ESCOLA ARTÍSTICA ANTÓNIO ARROIO
Contos ─ Mia Couto
Leituras ─ 10.ºF
Prof.ª Eli Maio de 2012
COUTO, Mia, 1997, Est贸rias Abensonhadas, Lisboa: Caminho
COUTO, Mia, 2001, Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos, Lisboa: Caminho
COUTO, Mia, 2004, O Fio das Missangas, Lisboa: Caminho
COUTO, Mia, 1987, Vozes Anoitecidas, Lisboa: Caminho
(cfr. p. 23 do Manual do 10.潞 ano)
“O calcanhar de Virigílio”, Estórias Abensonhadas
Afonso Sousa – n.º1
O CALCANHAR DE VIRIGÍLIO
Hortência vai de mágoas e panos. A manhã cresceu no pino do sol e a mulher segue o caixão de seu marido. No enterro se conta ela e escassas tias. Ninguém chora. Parece o falecido não era parente de vivente. Hortência caminha sob a chuva, intransitiva em meio do trânsito. Sempre ela tivera medo das viaturas, seus modos de donos, ditando leis. Ela que nem de casa era dona. Porém, no presente desfile, ela já perdera receios como se os pés e alcatrão tivessem trocado intimidades. […] pág. 51
“No cemitério, a viúva não chora, triste que está. Lágrima liga bem é nos que ainda guardam esperança”
pág. 53
Afonso Sousa. 2012
Afonso Sousa. 2012
“O Perfume”, Estórias Abensonhadas
Ana Catarina Sentieiro Teixeira – n.º2
O PERFUME
─ Hoje vamos ao baile! Justino assim se anunciou, estendendo em suas mãos um embrulho cor de presente. Glória, sua esposa, nem soube receber. Foi ele quem desatou os nós e fez despontar do papel colorido um vestido não menos colorido. A mulher, subvivente, somava tanta espera que já esquecera o que esperava. Justino guardava ferrovias, seu tempo se amalgava, fumo dos fumos, ponteiro encravado em seu coração. Entre marido e mulher o tempo metera a colher, rançoso roubador de espantos. Sobrara o pasto dos cansaços, desnamoros, ramerrames. O amor, afinal, que utilidade tem? […] pág.43
Com surpresa, ele viu a inédita lágrima, cintilando na face que ela ocultava. A lágrima é água e só a água lava tristeza. Justino sentiu o tropeço no peito, cinza virando brasa em seu coração. E fechou a noite, a porta decepando aquela breve desordem. Glória colheu a lágrima com dobra do próprio vestido. pág.46
Fotografia: Ana Catarina Teixeira
Ana Catarina Teixeira, 2012 grafite
“Na terceira pessoa”, Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos
Catarina Prata – n.º3
Na terceira pessoa
Dona Salima tratava o marido na terceira pessoa. O homem chegava, a masculinas horas da noite, e ela se levantava, olhos foscos a espreitar o corredor. Quando o marido se apresentava, ela lhe sussurrava: ─ Ele já chegou! […] pág. 165
“As palpébras limpamos olhos de poeiras. Que palpébras limpam as poeiras do coração?” Pág. 165 “O homem, cúmplice, aceitava ser nomeado como um terceiro, se convertia assim, em “ausente e outro”. Se achegava à mulher para escutar as terríveis ameaças contra ele próprio.” Pág. 165
“Salima, a par e laço, amolecia sua fúria enquanto confessava as raivas que sentia pelo desatinado respetivo.” pág. 166
“O sorriso na esquina de sua boca confirmava: não é homem verdadeiro quem não sabe usar a lágrima de mulher como um trapo em que enxugamos nossas inconfessadas sujeiras.” pág. 166
“Os gatos voadores”, Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos
Ana Natália Prazeres – n.º 4
Os gatos voadores
Havia e vivia um agentamento num certo prédio, tudo em alegres conformidades. A todos faltava o pão mas nenhum ralhava e todos tinham razão. Uns e outros bem avizinhados, conversas ganhando intimidade de paredes e ouvidos. Naquele edifício todas as paredes eram paredes-meias. As brigas eram sempre sem caso, apenas um tropeço na confraternidade. A pessoa discute com o mundo para se apaziguar com a vida. […] pág. 145
“[...] diante da janela lhe passara uma gatazana, cheia de sete vidas e bem miaudível. Desbichanara-se defronte da janela, rumo aos céus” pág. 145
“[...] um gato trespassara o espaço, em gatafunhos de voo.” pág. 147
“[...] quais felpudinhos cometas num ecrã de cinema.” pág. 147
“E as visões se repetiram, noite após noite: gatos riscando o céu em meteóricas desaparições, quais felpudinhos cometas num ecrã de cinema. Aquilo era o quê: um cat-man? O terror se confirmou entre os moradores. As versões se misturavam e engrandeciam. Já não eram apenas gatos mas monstros que tracejavam os céus. Uns começaram a mudar de casa. Assombros não podem coabitar com a humanidade. Só quando esta última se garante como senhoria e recebe a certeira renda do medo alheio. “ pág. 147
Fotografia: internet
Fotografia: Ana Natรกlia Prazeres
“O Adivinhador das Mortes”, Estórias Abensonhadas
Beatriz Teixeira Lira – n.º 5
O ADIVINHADOR DAS MORTES
No bairrinho de Muitetecate havia um poderoso espiriteiro que adivinhava, com acerto de álgebra, a data das individuais mortes. Não usava os convencionais métodos: pedrinhas, conchas e ossinhos. Não. Ele tinha duas pequenas cruzes de marfim que encostava sobre os olhos dos consultados. O adivinho cerrava os seus próprios olhos: se concentrava, todo dentro das pálpebras, até abraçar com seu escuro o escuro do outro. Nesse tocar de penumbras se escrevia o exacto da data dos falecimentos. […] pág. 167
“Saboreamos o cristal do riso, a polpa samaruda do amor, a doce sombra da amizade, trincamos a eternidade em breves dentadas não é para depois sermos nada, nenhum, ninguém.” pág. 167
“– Vou morrer daqui a nada? – Não, não vai morrer.” – Não vou morrer? Como não vou? – Esse o problema. – Se me explique, homem! – É que você, Adabo Salanje, você já morreu.” pág.169
Beatriz Lira, 2012 sanguĂneas, lĂĄpis de cor amarelo e azul, caneta de ponta fina preta
fotografia - editada
“Os olhos dos mortos”, No Fio das Missangas
Catarina Telo Afonso – n.º 6
Os olhos dos mortos
Estou tão feliz que nem rio. Deito-me com desleixo, bastando-me: eu e eu. O regressar de meu marido mediu, até hoje, todas as minhas esperas. O perdoar a meu homem foi medida do desespero. Durante tempos, só tive piedade de mim. Hoje não, eu me desmesuro, pronta a crianceiras e desatinos. Minha alegria, assim tanta, só pode estar errada. […] pág. 71
“O assalto”, Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos
Clara Morais – n.º 7
O assalto
Uns desses dias fui assaltado. Foi num virar de esquina, num desses becos onde o escuro se aferrolha com chave preta. Nem decifrei o vulto: só vi, em rebrilho fugaz, a arma em sua mão. Já eu pensava fora do pensamento: eis-me! A pistola foi-me justaposta no peito, a mostrar-me que a morte é um cão que obedece antes mesmo de se lhe ter assobiado. [...] pág. 129
"O medo é uma faca que corta com o cabo e não com a lâmina. A gente empunha a faca e, quanto maior a força de pulso, mais nos cortamos". pág. 129
"Temos medo do que não entendemos. Isso todos sabemos. Mas, no caso, o meu medo era pior: eu temia por entender". pág. 130
"O homem recorria ao assalto de arma de fogo para roubar instantes, uma frestinha de atenção". pág. 131
Clara Morais, 2012
“A menina de futuro torcido”, Vozes Anoitecidas
Daniela Martins – n.º 8
A menina de futuro torcido
Joseldo Bastante, mecânico da pequena vila, punha nos ouvidos a solução da sua vida. Viajante que passava, carro que parava, ele aproximava e capturava as conversas. Foi assim que chegou de ouvir um destino para sua filha mais velha, Filomeninha. […] pág. 143
Quando você for rica hás-de dormir até de colchão. Aqui em casa todos vamos deitar bem, cada qual no colchão dele. Vai ver que só acordamos na parte da tarde, depois dos morcegos despegarem. pág. 147
À noite amarrava a filha ao bidão para que as costas dela ficassem noivas da curva do recipiente pág. 146
O acontecimento nunca é indígena. […] O mundo tem sítios onde pára e descansa a sua rotação milenar. Aquele era um desses lugares. pág. 147
Quando a retiravam das cordas, a menina estava toda torcida para trás, o sangue articulado, ossos desencontrados. Queixava-se de dores e sofria de tonturas. pág. 146
Filomeninha amarrotava a olhos vistos. pág. 146
Na garagem os seus ouvidos eram antenas à procura de notícias do contratador. pág. 147
"O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma. Confrontados com
a ausência de tudo, os homens abstêm-se do sonho, desarmando-se do desejo de serem outros. Existe no nada essa ilusão de plenitude que faz parar a vida e anoitecer as vozes. Estas estrias desadormeceram em mim sempre a partir de qualquer coisa acontecida de verdade mas que me foi contada como se tivesse ocorrido na outra margem do mundo. Na travessia dessa fronteira de sombra escutei vozes que vazaram o sol. Outras foram asas no meu voo de escrever. A umas e a outras dedico este desejo de contar e de inventar." In “Texto de abertura”, pág. 19
Daniela Martins, 2012
“O arroto de Dona Elisa”, Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos
Diogo Assis – n.º 9
“Por um instante acreditava no final total, o apocalipse”.
“Mamã Elisa está incomodada”.
“Dona Elisa, afinal, não era caso de ciências. Nem geologia nem humanologia a entenderiam. Seu único fenómeno era amor, a ausenciada de paixão.”
“Em vez do esperado e proclamado arroto veio um fiozinho de voz, um piar de passarinho. Esse sopro foi a sua última exibição”
Diogo Assis, D. Elisa, fiozinho de voz, piar de passarinho, 2012 Aguarela, lรกpis, caneta preta e pincel.
“A fogueira”, Vozes Anoitecidas
Eduardo Carvalho – n.º 10
A fogueira
A velha estava sentada na esteira, parada na espera do homem saído no mato. As pernas sofriam o cansaço de duas vezes: dos caminhos idosos e dos caminhos caminhados. […] pág. 21
“─ como és tão bom, marido! Tive sorte no homem da minha vida.” pág. 24
“─ Se tu morres como é que eu, sozinho, doente e sem as forças, voulhe enterrar?” pág. 24 “─ Estou a medir o seu tamanho. Afinal és mais alta do que eu pensava.” pág. 25 “─ Vai, mulher. Eu vou ficar a covar teu cemitério.” pág. 25 “Neste deserto solitário a morte é um simples deslizar, um recolher de asas.” pág. 27 “Quando a lua começou a ascender as árvores do mato, ela inclinou-se e adormeceu.” pág. 28
O velho adormeceu, a mulher sentou-se à porta. Na sombra do seu descanso viu o sol vazar, lento rei das luzes. Pensou no dia e riu-se dos contrários: ela, cujo nascimento faltara nas datas, tinha já o seu fim marcado. Quando a lua começou a acender as árvores do mato ela inclinou-se e adormeceu. Sonhou dali para muito longe: vieram os filhos, os mortos e os vivos, a machamba encheu-se de produtos, os olhos a escorregarem no verde. O velho estava no centro, gravatado, contando as histórias, mentira quase todas. Estavam ali os todos, os filhos e os netos. Estava ali a vida a continuar-se, grávida de promessas. Naquela roda feliz, todos acreditavam na verdade dos velhos, todos tinham sempre razão, nenhuma mãe abria a sua carne para a morte. Os ruídos da manhã foram-na de si, ela negando abandonar aquele sonho. Pediu à noite que ficasse chamando para fora para demorar o sonho, pediu com tanta devoção como pedira à vida que não lhe roubasse os filhos.” pág. 28
Imagem: da internet
Eduardo Carvalho, 2012
“A infinita fiadeira”, O Fio das Missangas
Francisco Lacerda – n.º 11
A infinita fiadeira ( A aranha ateia Diz ao aranho na teia: O nosso amor Está por um fio!)
A aranha, aquela aranha, era tão única: não parava de fazer teias! Fazia-as de todos os tamanhos e formas. Havia, contudo, um senão: ela fazia-as, mas não lhes dava utilidade. O bicho repaginava o mundo. Contudo, sempre inacabava as suas obras. Ao fio e ao cabo, ela já amealhava uma porção de teias que só ganhavam senso no rebrilho das manhãs. […] pág. 75
A aranha ateia diz ao aranho na teia: o nosso amor está por um fio!
Imagem: internet
“O último aviso do corvo falador”, Vozes Anoitecidas
Gabriel Pessoa – n.º 12
O último aviso do corvo falador
Foi ali, no meio da praça, cheio da gente bichando na cantina. Zuzé Paraza, pintor reformado, tossiu sacudindo a magreza do seu todo corpo. Então, assim contam os que viram, ele vomitou um corvo vivo. O pássaro saiu inteiro das entranhas dele. Estivera tanto tempo lá dentro que já sabia falar. Embrulhado nos cuspes, ao princípio não parecia. A gente rodou à volta do Zuzé, espreitando o pássaro caído da sua tosse. O bicho sacudiu os ranhos, levantou o bico e, para espanto geral, disse as palavras. Sem boa pronúncia, mas com convicção. Os presentes perguntaram: - Está falar, o gajo? […] pág. 33
“Um homem pode parir nos pulmões?” pág. 34
“No dia seguinte, Zuzé confirmou esta última versão. O corvo vinha lá da fronteira da vida, ninhara nos seus interiores e escolhera o momento público da sua aparição.” pág. 34
Imagem: internet
Gabriel Pessoa, 2012
“O Moço não mental”, Na berma de Nenhuma Estrada e outros contos
Joana Fatela – n.º 13
O moço não mental
A mãe olhou o relógio na parede da cozinha. ─ Por que esse miúdo não regressa, sozinho como os outros? […] pág. 43
“compaixonasse” pág.43 “alumbração” pág.44 “risonhável” pág.45
“ A mãe se sentou, caneta em riste, disfarçando, uma vez mais, a letra torta do menino. Ela se cansara de recobrir o atraso do moço. Outras tinham filhos. Ela tinha uma doença. Incurável, definitiva. Mesmo que ele se extinguisse, na fronteira do suspiro, mesmo assim ela continuaria exercendo sua maternidade. É-se mãe ainda que deixando de ser. Toda a mãe é vitalícia” pág.45
Joana Fatela
“A avó, a cidade e o semáforo”, O fio das Missangas
Laura Ramos – n.º 14
A avó, a cidade e o semáforo
Quando ouviu dizer que eu ia à cidade, Vovó Ndzima emitiu as maiores suspeitas: ─ E vai ficar em casa de quem? […] pág. 127
“Cozinhar é o mais privado e arriscado acto. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno.” pág. 128
“« [...] agora, neto, durmo aqui perto do semáforo. Faz-me bem aquelas luzinhas, amarelas, vermelhas. Quando fecho os olhos até parece que escuto a fogueira, crepitando em nosso velho quintal [...]»” pág. 131
“O silêncio me atropelou, um riso parvo pincelando-me o rosto.” pág. 130
“Ri, sem palavra. Mas, para ela, não havia riso, nem motivo. Cozinhar é o mais privado e arriscado acto. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Quem assegurava a pureza da peneira e do pilão? Como podia eu deixar essa tarefa, tão íntima, ficar em mão anónima? Nem pensar, nunca tal se viu, sujeitar-se a um cozinhador de que nem o rosto se conhece.” pág. 128
Laura Ramos, 2012
“O bebedor do tempo”, Estórias Abensonhadas
Leonor Vaz – n.º 15
O BEBEDOR DO TEMPO
Naquela tarde eu me sentei na esplanada, cobrando sossego para minha alma privada. Em pausa de viagem, aguardava meu regresso à capital. Naquela transitória vila, fazia muito Norte e o calor apertava. A gente se desmoçava só de tocar a atmosfera. Eu, em verdade, me asfixiava. Por isso, escolhi assento fora, na esperança de um fresco. O bar se chamava A Brisa do Inferno e merecia o título. Ali fiquei, me entretendo a ver passar as moças, dessas mais ligeiras que as libelinhas que fazem amor no ar. Até que vi um homem escuro, barulhando, algumas mesas adiante. Sem aparência de razão, o tipo esbracejava no ar, convocando suores e atenções. Perguntei o que ele fazia mas me ordenaram respeitoso silêncio: […] pág. 151
Panicaram pág. 155
Contemplinactivo pág. 156
“O que estou bebendo não é cerveja. Estou bebendo é o tempo, para ver se ela não demora tanto…” pág. 154
Fotografia: Leonor Vaz
Liquefação do tempo
“Na Berma de Nenhuma Estrada”, Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos
Mª Catarina Azevedo ─ n.º18
Porque dentro de mim há qualquer coisa de falecida, a secreta desistência de mim-nunca ninguém me vai carregar.
As vezes que eu já viajei, rumei para os desmundos.
Quando somos loucos a vida nunca nos faz mal.
Não quero alegria de morcego que sai para o mundo quando já tudo anoiteceu. Quero sair quando ainda tenho mocidades para viver, peito encostado na alma. Tenho inveja da chuva: Tomba e logo muda de nome. Termina a chuvinha e começa a água, acaba o corpo e começa a substância.
Imagem: M.ÂŞ Catarina Azevedo
“O menino que escrevia versos”, O Fio das Missangas
Mariana Andrade – n.º 20
O menino que escrevia versos
De que vale ter voz se só quando não falo é que me entendem? De que vale acordar se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(Versos do menino que fazia versos)
─ Ele escreve versos! Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha. ─ Há antecedentes na família? […] pág. 133
“Ele escreve versos!” .pág.133
“ […] o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, […]” Pág. 134
“ O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.” págs.133-134
, “─ O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.” pág. 134
” Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava.” pág. 136
“Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios: - Não pare, meu filho. Continue lendo…” pág.136
Fotografia: Mariana Andrade
Fotografia: Mariana Andrade
“A outra”, Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos
Marta Manso – n.º 20
A outra
Ninguém, mas ninguém, pensava que Laura admitiria uma coisa assim: viver junto com o marido e mais a outra. Ela, que era orgulhosa, ciosa e ciente, como é que albergava e alimentava agora a própria amante de seu marido, o Amaral? Afinal, ninguém conhece ninguém. Cada qual é a capa de um outro livro. […] pág. 67
“quando Amaral esfriou, moroso no gesto, vago na palavra, Laura ainda pensou ser esse o desbotar do matrimónio” pp. 67-68
“ela usava as narinas não do nariz mas da alma: farejava o improvável querendo encontrar o impossível” pág. 68 “─ O homem, você entende, Laura, o homem necessita de viver muitas vidas. ─ E a mulher não ? ─ A mulher gera vidas dentro de si. Essa é a diferença.” pág. 68
“mais grave que a ausência seria ele ter-se dedicado a uma individa qualquer” pág. 68
Marta Manso, machado, 2012 aguarela
“O adivinhador das mortes”, Estórias Abensonhadas
Mikeias Costa – n.º 22
O ADIVINHADOR DAS MORTES
No bairrinho de Muitetecate havia um poderoso espiriteiro que adivinhava, com acerto de álgebra, a data das individuais mortes. Não usava os convencionais métodos: pedrinhas, conchas e ossinhos. Não. Ele tinha duas pequenas cruzes de marfim que encostava sobre os olhos dos consultados. O adivinho cerrava os seus próprios olhos: se concentrava, todo dentro das pálpebras, até abraçar com seu escuro o escuro do outro. Nesse tocar de penumbras se escrevia o exacto da data dos falecimentos. […] pág. 167
“Sonhara que estava na casa dos mortos e lhe perguntavam: ─ Você, Salange, ainda está morto?” pág. 165 “ -Desconsigo, sua cabeça está muito barulhosa . aquiete lá o pensamento” pág. 165 “ – É que você, Adabo Salanje, você já morreu” pág. 169
“ E os dois pelo caminhinho não deixava nenhuma pegada fossem pisando não a areia mas o céu “ pág. 171
Mikeias Costa, 2012
Mikeias Costa, 2012
“O abraço da serpente”, Estórias Abensonhadas
Patrícia Nobre – n.º 23
O ABRAÇO DA SERPENTE
A notícia da Rádio falava na imprecisa morte de Acubar Aboobacar, encontrado em jeito de total falecimento no vasto cadeirão de sua sala. E assim: pelo aspecto do malogrado suspeita-se que a causa da morte tenha sido mordedura de cobra. Contudo, não foram encontrados nem o animal nem sinais dos dentes no corpo do falecido. A esposa disse à Rádio que Aboobacar vinha denotando um comportamento estranho e lhe dirigia frequentes ameaças. Suspeitava, sem fundamento, de infidelidade conjugal. […] Pág. 105
Acubar Aboobacar nem cabia nos universos. A vasta admiração dele
sobrava, descomposta, de todos seus nervos.” pág. 106
Olhando aquela figura, o menino sentiu saudade do pai que ele tinha
sido antes da guerra.
Perguntar é vergonha, duvidar é fraqueza pág. 106
[…] boina vinagrando-lhe no colo]. pág. 107
Parecia que outro ser, monstriforme, roubava o desenho do seu velho. pág.108
[…] retirou a boina azul do colo do marido. Depois, amarfanhou-a disfarçadamente em sua bolsa. Dizem pág. 108
“A guerra dos palhaços”, Estórias Abensonhadas
Rita Diniz – n.º 26
A guerra dos palhaços
Uma vez dois palhaços se puseram a discutir. As pessoas paravam, divertidas, a vê-los.─ É o quê?, perguntavam ─ Ora, são apenas dois palhaços discutindo. Quem os podia levar a sério? Ridículos, os dois cómicos ripostavam. Os argumentos eram simples disparates, o tema era uma ninharice. E passou-se um inteiro dia. Na manhã seguinte, os dois permaneciam, excessivos e excedendo-se. Parecia que, entre eles, se azedava a mandioca. Na via pública, no entanto, os presentes se alegravam com a mascarada. Os bobos foram agravando os insultos, em afiadas e afinadas maldades. Acreditando tratar-se de um espectáculo, os transeuntes deixavam moedinhas no passeio. No terceiro dia, porém, os palhaços chegavam a vias de facto. As chapadas se desajeitavam, os pontapés zumbiam mais no ar que nos corpos. A miudagem se divertia, imitando os golpes dos saltimbancos. E riam-se dos disparatados, os corpos em si mesmos se tropeçando. E os meninos queriam retribuir a gostosa bondade dos palhaços. pág. 135
“Na via pública, no entanto, os presentes se alegravam com a mascarada.” pág. 135
Entrava-se na segunda semana e os bairros em redor ouviram dizer que […] a coisa escaramuçara toda a praça.” pág. 136 “esparramorto” Pág. 136
“escaramuçara” pág. 136 “Nessa manhã, os cómicos se sentaram cada um em seu canto e se livraram das vestes ridículas. Olharam-se, cansados. Depois, se levantaram e se abraçaram, rindo-se a bandeiras despregadas. De braço dado, recolheram as moedas nas bermas do passeio. Juntos atravessaram a cidade destruída, cuidando não pisar os cadáveres. E foram à busca de uma outra cidade.” pág. 137
Rita Diniz. 2012
“Prostituição auditiva”, Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos
Filipe Rosado – n.º 26
Prostituição auditiva
O português gostava era de ouvir as pronúncias dela. Pagava notas só para a ficar escutando a noite inteira. Mariana não tinha que fazer mais nada: só divagar, devagar, sem sexo nem nexo. O tuga, militar até aos botões, só queria que a prostituta falasse. […] pág. 71
“Canoa se inventou antes do rio?” pág. 73 “Uma furtiva tristeza, véspera de lagrima?” pág. 73 “Ela sobrancelhou uma surpresa” pág. 74 Horas depois, ele se apressava a sair. Pagava os variáveis honorários. Ela amarfanhava os dinheiros no soutien. Já sabia o seguinte: antes de sair o branco lhe pedia para cheirar as notas, tomava-as como se fossem delicadas flores e nelas aspirava fundamente o cheiro do suor dela. Depois, tocava as notas e dizia: - Eu transpiro para as ter, tu tem-las transpiradas. pág. 72
Filipe Rosado. 2012
COUTO, Mia, 1997, Est贸rias Abensonhadas, Lisboa: Caminho
COUTO, Mia, 2001, Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos, Lisboa: Caminho
COUTO, Mia, 2004, O Fio das Missangas, Lisboa: Caminho
COUTO, Mia, 1987, Vozes Anoitecidas, Lisboa: Caminho
(cfr. p. 23 do Manual do 10.潞 ano)
ESCOLA ARTÍSTICA ANTÓNIO ARROIO
Contos ─ Mia Couto
Leituras ─ 10.ºF
Prof.ª Eli Maio de 2012