Terras de Antuã - Histórias e Memórias do Concelho de Estarreja

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[ FICHA TÉCNICA ]

TERRAS DE ANTUÃ REVISTA DE PUBLICAÇÃO ANUAL Nº14 | ANO 14 | NOVEMBRO DE 2020

DIRETORA Rosa Maria Rodrigues EDITOR Câmara Municipal de Estarreja PROJETO GRÁFICO Câmara Municipal de Estarreja | GCOMRP TIRAGEM 750 Exemplares IMAGEM DE CAPA Mapa e plano da Barra de Aveiro Feitos Findos, Fundo Geral, Letra T. mç 148, nº1 PT/TT/FGFF/019/0148/00001 “Imagem cedida pelo ANTT” IMPRESSÃO E ACABAMENTO Procer - Design & Printing Studio ISSN 1646-8562 DEPÓSITO LEGAL 267394/07 Os artigos publicados neste número são da responsabilidade científica e ética dos seus autores bem com o respeito pelo acordo ortográfico em vigor.


[ SUMÁRIO ]

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A “TERRAS DE ANTUÔ EM PLENA PANDEMIA COVID-19 Diamantino Sabina

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EDITORIAL Rosa Maria Rodrigues

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O NOSSO LIVRO Abel Cunha

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MAJOR ANTÓNIO BERNARDINO FERREIRA António Augusto Silva

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A “GRATIDÃO” DE JOSÉ LUÍS DA CUNHA: UM CASO DE SUOR, SUCESSO E LÁGRIMAS NO PANORAMA EMIGRATÓRIO DA ESTARREJA OITOCENTISTA António Pedro de Sottomayor

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O CONCELHO DE ESTARREJA EM 1865 Delfim Bismarck Ferreira

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A EMBARCAÇÃO TRADICIONAL COMO ARTEFACTO E O HOMEM ARTESÃO: O MESTRE CONSTRUTOR NAVAL DA RIA DE AVEIRO. Etelvina Resende Almeida

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“O COLÉGIO” José Fernando Correia

130 DR.TAVARES AFFONSO SEIS CARTAS E UM BILHETE POSTAL DIRIGIDOS AO PROF. DOUTOR EGAS MONIZ José Gurgo e Cirne 152 AVIVAR MEMÓRIAS: AS TRADIÇÕES ORAIS COMO PATRIMÓNIO CULTURAL IMATERIAL DO CONCELHO DE ESTARREJA Juliana Cunha 161 OS LIMITES HISTÓRICOS COMUNS DAS DIOCESES DO PORTO E DE COIMBRA Marco Pereira 176 SÃO SEBASTIÃO Maria Clara de Paiva Vide Marques, António Cruz Leandro 192 EGAS MONIZ E O JOGO Rosa Maria Rodrigues 219 PARA QUE OS OLHOS SE LEMBREM Sérgio Paulo Silva 221 EMIGRAÇÃO ESTARREJENSE NO ANO DE 1909 Teresa Cruz Tubby e Valter Santos


243 VEIROS SINOPSE PELAS REFERÊNCIAS DA SUA HISTÓRIA E SUAS GENTES Victor Bandeira 262 SAUDADES BIORIA, O SUSTENTÁVEL CONVÍVIO ENTRE A NATUREZA E O HOMEM Adolfo Vidal


A “TERRAS DE ANTUÔ EM PLENA PANDEMIA COVID-19 Diamantino Sabina*

Tentei não o fazer, mas seria como que evitar o “elefante na sala”! Esta 14.ª edição da revista “Terras de Antuã”, por força das evidências, terá que ficar inevitavelmente ligada à maior pandemia da nossa história recente. A COVID-19 veio alterar substancialmente as nossas vidas. Levou-nos a testemunhar a morte de centenas de milhares de pessoas no mundo. Não permitir que saíssemos de casa ou visitássemos amigos ou familiares a nosso bel-prazer. Do (desa)sossego do dia-a-dia, passámos ao confinamento nas nossas casas e ao “quando é que isto vai passar?”. Agarrámo-nos à fé e a frases como “tudo vai ficar bem!”. Com medo, fomos e vamo-nos protegendo e protegendo os outros. Vimos as nossas liberdades quartadas e os nossos movimentos definidos por ordens de entidades superiores. Fomos confrontados com a realidade dos “Lay-Off ”, dos “Equipamentos de Proteção Individual”, com uma panóplia de novas palavras que doravante fariam parte do nosso vocabulário. Aprendemos a viver com o “distanciamento social”, com a máscara na cara e a cumprimentarmo-nos com o cotovelo. Como Presidente de Câmara tem sido um desafio. Em várias dimensões! Fui confrontado com a fragilidade de instituições capitais e com o quanto as Autarquias são essenciais na vida dos seus cidadãos. Abdicámos de eventos que nos marcam anualmente, tornando este ano de 2020 um ano pobre, sem cor, sem espírito festivo. Por curiosidade, há dias pesquisei a Pandemia da Febre Espanhola que ocorreu no início do século passado (maior das pandemias a anteceder a atual). Quis saber quanto tempo durou. Descobri que foram 2 longos anos de doença. 2 longos anos. Dizem também os relatos que de repente se esfumou, que desapareceu no nada. Queria que esta durasse bem menos e que também assim se esfumasse. De resto, e como vimos habituando os estarrejenses, não podíamos deixar de apresentar a nossa edição anual da “Terras de Antuã”. Mais uma revista repleta de artigos de excelente qualidade histórica e literária sobre o nosso Concelho. Fica também um abraço fraterno aos que têm feito desta revista uma referência e um documento que nos engrandece sobremaneira. Saúde a todos! * Presidente da Câmara Municipal de Estarreja



EDITORIAL

Rosa Maria Rodrigues Assinalando-se no corrente ano (15 de novembro), os 501 anos da outorga do foral por D. Manuel I às Terras de Antuã, apresentamos a décima quarta edição da revista “Terras de Antuã – Histórias e Memórias do Concelho de Estarreja”, bem como registamos com preocupação a instabilidade pandémica provocada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2 – Covid-19, que assolou o mundo e nos fez quedar e refletir sobre a vulnerabilidade humana. Como destino inevitável da nossa memória coletiva, inscreveremos o ano de 2020, nas páginas duras e amargas da história mundial e como de algum modo fomos capazes de redescobrir uma nova forma de estar, de ultrapassar silêncios e confinamentos, onde a esperança em novos dias, é sempre uma constante. Os temas apresentados nesta edição de Terras de Antuã permitem-nos na sua maioria um maior conhecimento da historiografia local, desencadeiam o debate, permitem a divulgação de estudos sobre realidades e momentos que passariam despercebidas, se não fossem metodizados e respigados numa publicação com estas características e que passam por estudos sobre personalidades, construção naval, emigração, genealogia, história medieval, religiosa, local e política, bem como damos a conhecer o projeto do Município de Estarreja “Avivar Memórias” que nos transporta à imaterialidade do conhecimento, à nossa memória local, ao conhecimento de “pedaços de vida”, no caso concreto à vida de uma Mulher estarrejense, Ilda da Silva Ferreira, que a partir de 2017 viu perpetuados em pedra, na parede da sua mercearia rostos e memórias ligados à cultura do arroz, num trabalho de Camilla Watson (II edição do ESTAU – Festival de Arte Urbana). Este número de Terras de Antuã apresenta na capa um pormenor do Mapa e Plano da Barra de Aveiro, finais do Século XVIII(?) numa (imagem cedida pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo), que de alguma forma nos remete para a identidade do território, as suas mutações e perspetiva de alguma forma a configuração atual e onde são referidos topónimos do nosso conhecimento atual, nomeadamente Aveiro, Murtosa, Pardilhó e Veiros. O tema Saudades desta revista Terras de Antuã, assinala a criação de um projeto denominado BIORIA, onde a partir de 2005 o Município de Estarreja desenvolveu um conjunto de projetos e ações onde o denominador comum incide na relação com a Ria de Aveiro, assente na ideia de “Virar o Concelho para a Ria”, valorizando o território municipal no que concerne à conservação da natureza e da biodiversidade. Os seus percursos pedestres e clicáveis, possibilitam o contacto com uma beleza ímpar onde a natureza e o Homem coabitam de uma forma sustentável e harmoniosa. A todos os que contribuíram abnegadamente, para a concretização desta publicação de Terras de Antuã, acreditando na veracidade de projetos desta natureza, o nosso muito OBRIGADO.



TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

O NOSSO LIVRO

Abel Cunha*

António Domingues de Sá, filho de Manuel Domingues de Sá e Margarida Marques de Oliveira, lavradores abastados, nasceu a 15 de Agosto de 1917 na Quinta do Espinhal, então propriedade dos seus avós, na freguesia de Canelas, concelho de Estarreja e faleceu a 18 de Maio de 1994 na mesma freguesia de Canelas. Como tantos outros filhos desta aldeia, completou a quarta classe da instrução primária e trabalhou na agricultura familiar até aos 27 anos quando, apoquentado pela polícia política do regime, emigrou para Angola em Novembro de 1944, onde permaneceu até 1974. Em Luanda, começou por trabalhar como motorista de pesados e mais tarde tornou-se proprietário de uma empresa de táxis. Foi sócio número um e fundador da CERTA (Cooperativa Estrela Rodoviária Táxis Angola) e nos trinta anos em que permaneceu emigrado, apenas regressou a Canelas uma única vez e sob falsa identidade para o adeus a sua mãe, então falecida. Afligido por problemas do foro cardíaco, regressou definitivamente à sua terra natal em 1974, o ano da revolução de Abril que acabara com a longa ditadura instaurada desde 1932. Aqui, dedicou os últimos vinte anos da sua vida perseguindo o sonho de escrever sobre a sua terra, a sua história e as suas gentes. A escolaridade limitada, a pouca literacia e o afastamento físico do lugar durante grande parte da sua vida não o impediram, contudo, de procurar ultrapassar barreiras e dificuldades que uma tarefa desta natureza sempre acarreta. O trabalho resultante da sua persistência é uma compilação de notas e tópicos que necessitariam esclarecimento, adaptação discursiva e continuidade descritiva capaz de despertar um maior interesse aos eventuais leitores. Falho de recursos para tal, procurou *Aposentado, Master em Marketing e Gestão Comercial pela Universidad Complutense de Madrid

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ABEL CUNHA

junto de amigos e conhecidos a necessária ajuda para dar forma literária às suas notas, mas também nisso não foi bem sucedido, pelo que o Nosso Livro, nunca chegou ao prelo. Em boa verdade, o Nosso Livro, como escreveu o próprio António Domingues de Sá, é a continuação das anotações que já vinham desde os anos trinta por iniciativa de Arnaldo Silva. Diz António Sá: “O Sr. Arnaldo Cândido Duarte Silva começou a fazer o seu livro de onde tirei alguns preciosos apontamentos para o Nosso Livro e pediu-me, antes de morrer, para continuar a sua obra e eu assim fiz e agora sou eu que peço que deem continuidade a esta mesma obra de tanto valor para a freguesia, para os vindouros perceberem a nossa importância, para que admirem e deem valor ao seu povo que muito trabalhou com as suas enxadas desde as Arrotas até às Praias do Campo, sem esquecer também a vida dos moleiros canelenses que todos os dias pela força do calor tinham de ir pelo monte acima transportando o milho nos seus burros para moer nos moinhos do Rio Caima, regressar de manhã cedo a trazer a fornada para os lavradores cozerem no seu forno o alimento da família para a semana e para logo a seguir voltar ao Caima sem descanso e sem parança e ainda esse trabalho tão custoso das mondas do arroz onde os ranchos de mulheres, às vezes quarenta ou mais, entoavam os seus cânticos a três vozes que se ouviam pelos campos adiante.” Não conseguiu dar o seu trabalho à estampa, deixando nas mãos da sua filha Rita Sá umas centenas de folhas A4 dactilografadas num português falado, cujo texto descorado pela acção do tempo, se apresenta de difícil leitura. Ainda assim, os seus escritos são de grande interesse para a história local. Os assuntos, casos, e pessoas referidas já apenas são lembrados nestas suas notas, porque são os pequenos casos da vida de uma comunidade cujo viver não chega aos livros da história, acontecimentos diluídos na espuma dos dias que já ninguém recorda. António Domingues de Sá deixa-nos memória destes pequenos acontecimentos como sejam as obras de conservação da igreja, a longa disputa para que se construísse uma escola, a chegada do primeiro comboio a Canelas ou o horrível crime da Lomba, entre tantos outros episódios ocorridos. Apesar dos muitos apelos e diligências, faleceu sem ver o Nosso Livro editado. Sem datação, em folhas soltas originalmente manuscritas, de que se mostram dois exemplos: Será agora! Chegou a hora de sair o Nosso Livro já é tempo estando completo (h)á 6 anos porque é que todos nós unidos não se vai em frente tentar todos juntos até se fazer 500 escrições (subscrições?) já dão para pagar os 1.500 contos porque é um livro muito grande e é o mais barato possível e pagando 3 contos cada livro e não é caro tendo 1.100 páginas em 3 volumes e tem uma capa muito bonita e tem tudo o que está escrito sobre Canelas e Fermelã desde o ano de 1077 até 1983 – Peço por favor se é agora, escrevam-se (inscrevam-se?)

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Um outo apelo: Ajudai a sair O Nosso Livro é uma obra importante para a freguesia de Canelas, a sua história desde o ano de 1077 até 1983 com 3 volumes em 1.100 páginas. Os vossos (e)imigrantes teriam uma melhor lembrança da sua terra porque nunca esquece o passado dos seus como para os de Fermelainha e os Sal do Rio - Salreu, os de Estarrejia – Estarreja, e do Marquê(s)z de Angeja que tudo se fala. – Em 1400 enquanto os Tre(a)smontanos andavam nas descobertas aqui havia o negócio das terras. (Ins)Escrevam-se num livro e outro para o (e)imigrante. Cada um 3 contos – vendendo um coelho paga um livro para se pagar 1.500 contos de os fazer só sai com 500 assinaturas, ajudai [()] acrescentos do autor (Abel Cunha)

De facto, o Nosso Livro trata de tudo um pouco, misturando acontecimentos locais, nacionais e internacionais, pequenas estórias do quotidiano, adágios, máximas, provérbios e ditados populares, como se verifica no exemplo infra, o resumo do Capítulo XIII 1900 Passagem do séc. XIX para o XX Os 12 meses do ano do agricultor e seus adágios Os apelidos da Rua Direita até à Igreja Um namoro em verso Embarque da Canelas para o S. Paio na Torreira 1915 Grande Pereira do Campo da Cruz Grande Carvalho à porta do pequeno Tavares 1918 Reconstrução da Capela de N. S. da Saúde e sua vida Interdição da Igreja de Canelas

Foi abaixo o governo do Salazar Um incêndio fez arder o monte 1976 Os beneméritos de Canelas 1977 1.427 Habitantes em Canelas Fundação dos escuteiros 1978 Repudiada a sessão da Câmara 1979 Segunda inauguração do posto medico Pela segunda vez derrubaram a Capelinha do Ameal Comeram e pregaram o cão A 15 de Agosto foi reconstruída a capelinha do Ameal 1932 O desvio da estrada ao campo da Cruz já fez desastres Todas as capelas de Canelas 1980 O nobre povo de Canelas que andava a pé Formatura do Dr. Virgílio da Silva Pinto O cão Fó do Rebelo As obras das águas pluviais do Campo da Cruz Um segredo de há cinquenta anos do diabo do Roxico Censo da população de Canelas, 1510 habitantes 1933 Comunicação ao povo da construção da autoestrada pelo monte O Sr. Arnaldo começa o seu livro e pede para continuar História da capelinha do Ameal O esforço do lavrador e do moleiro Derrube da Capelinha do Ameal Os ranchos das mondas Ano trágico para Canelas

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Muito vinho Os paralelos da estrada de Estarreja a Angeja e a fundação do Arsenal 1934 As duas inaugurações da escola e a divisão da freguesia 1935 Inauguração da luz eléctrica Os moinhos do Caima 1939 Corte da vinha americana Três rapazes para Timor 1944 Meu embarque a 18 de Novembro e a desordem no Espinhal 1959 Os primeiros jogos florais da Ria de Aveiro 1969 Violento tremor de terra 1974

1981 A construção da autoestrada no monte Queriam fechar o caminho do Ribeiro Calor de 40º e o temporal arrancou arvores 1982 Demolição da barreira do Areal O novo cemitério e a história do velho 1983 Caiu muito folepo na região Comecei e acabei o Nosso Livro Um benemérito do Nosso Livro e da freguesia Demolição do Centro Republicano Na sessão Camarária de 7 de Setembro aprovação do Nosso Livro 1983 Minha coincidência ao número 3 Falecimento do Sr. Camilo Rego O Álvaro, filho do Saramaga emprestava 1.000 dólares

[NdA] O objecto desta colaboração é o de dar conhecimento da existência do trabalho de António Domingues de Sá, pelo que seleccionei en passant, alguns tópicos que tentarei enquadrar e tratar na sua forma e ortografia. Mereceriam um estudo e tratamento literários que não estarão em prioridade neste trabalho.

Alguns relatos retirados do Nosso Livro: [NdA] No ano de 1900, em rima e com um certo teor maledicente, António Sá descreve o inventário dos moradores da rua principal da aldeia, a Rua Direita, lengalenga ouvida ao Abel da Gregória. Aceitando que todos os moradores são citados, residiriam então nesta rua, 14 famílias.

Em 1900 se fez a conta dos moradores da Rua Direita: (os apelidos da Rua Direita até à Igreja) Zé Peniche toca o fado, O Manuel Santa é bem mandado, E faz o que o Quintal manda, E o Tique está à varanda, Jerónimo da outra banda, OVicente está deitado, E o Cabique a dormir, E salta-se a Alha a rir, Vem o Nora com a fralda de fora, Vem o Barreira, mete o focinho na ratoeira, [ 14 ]


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E o Zé Rego com la(n)zeira, Porque o Rodrigues era sapateiro, O Cascais era tamanqueiro, E acabou o fandango no Casimiro marinheiro. O S. Paio pequenino Na chegada dos barcos, ali no ribeiro, que voltavam da festa a S. Paio da Torreira, era tanta a animação que tudo cantava e dançava, cantava-se ao desafio, havia foguetes, eram ranchos de gente do Sobreiro, Albergaria, Angeja, Fermelã e Canelas. Os barcos de canelenses, para cima de 10, todos os anos iam nem que fosse o S. Paio a meio da semana, era uma grande animação. Basta dizer vinha muita gente de Fermelã e Canelas para o Ribeiro assistir à chegada pelo que até lhe chamavam o S. Paio pequenino. [NdA] A festa a S. Paio era, ainda o será, a grande festa Marinhoa. Esta referência ao regresso dos romeiros diz-nos que no esteiro de Canelas embarcavam gentes um pouco de toda a região; Sobreiro, Albergaria, Angeja, Fermelã e, naturalmente, Canelas. O regresso era festejado pelos que voltavam da festa, mas também por aqueles que não tendo podido ir, queriam saber das novidades e partilhar da alegria dos que voltavam. Tanto quanto pude apurar, chamavam a este regresso o S. Paio dos pobrezinhos (porque não tinham posses para ir) e não S. Paio pequenino.

1915 - 20 de Dezembro Grande pereira no Campo da Cruz

No Campo da Cruz, dentro de uma vedação que quase fechava a entrada para a loja do Sr. José Alberto, existia uma colossal pereira, perto da capela da N. Sª. do Amparo onde a 30 de Dezembro se fazia a feira de S.Tomé, na qual se vendiam carros e toda a sorte de utensílios agrícolas, e para a qual vinham artistas e feirantes de todos os lados. Esse terreno não se cultivava e as peras toda a gente as apanhava. A pereira secou e o Sr. Manuel Domingues Piqueira transferiu a Capela de dentro do terreno para junto ao caminho no lugar dum fontanário cujas águas foram encanadas no ano de 1870 e direccionadas para o meio do largo para um lavadouro público então construído.

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1925 – pela construção de uma escola primária em Canelas Em Abril de 1925, encontrando-se casualmente o Rv. Padre João Mateus Morais das Neves, pároco ao tempo em Canelas, José Pereira Teles, natural de Ílhavo e professor e, António Domingues de Sá, falou-se na deficiência da casa onde funcionava o ensino escolar, um espaço sem condições para o efeito, cedido pelos proprietários da Quinta de Cima, na Rua da Fonte, onde funcionavam as aulas oficiais e da necessidade de se construir um edifício apropriado. Convocaram no domingo próximo a freguesia para uma reunião, a realizar na escola na Rua da Fonte, à qual compareceram os Senhores: Dr. Manuel A. Domingues de Andrade, Manuel Domingues de Sá, Arnaldo Cândido Duarte Silva, Padre Morais, José Pires Júnior, João Martins Salgado, Manuel Domingues Rego, Manuel Dias P.Valente, José Nunes da Silva, António Domingues de Aguiar,Torquato Domingues de Sá, Manuel Domingues da Fonseca, Alberto Gomes da Luz, Carlos Domingues de Andrade, Cipriano da Silva, Manuel Domingues da Cruz, Abel Domingues de Andrade, D. Maria do Lado e José Pereira Teles. Foram explicados os motivos da reunião e aclamado por unanimidade o projecto de construção de um edifício escolar. Formou-se uma Comissão inicial e, elaborou-se uma circular que foi assinada por todos os presentes e a seguir, se transcreve: Exmo. Senhor, Se percorremos Portugal de norte a sul, verificamos que na aldeia mais obscura hoje se ergue ao lado do templo da fé um outro templo de onde irradia em fogaças de amor e de beleza, a luz refulgente da instrução; a escola primária. Na verdade, em todas as terras de Portugal se procura hoje erguer a casa da Escola onde os pequeninos Portugueses possam receber a instrução primária e a educação que depois do alimento, são a primeira necessidade dos povos. Não desejando ficar na retaguarda de todas as populações que tentam progredir e ainda porque corre riscos de ser fechada a escola desta freguesia, os abaixo assinado, constituídos em comissão, resolveram esforçar-se para que, num futuro mais ou menos próximo a freguesia de Canelas, Concelho de Estarreja, seja dotada de um edifício escolar com todas as condições higiénicas e pedagógicas para que não perigue a saúde das crianças que a frequentam. Para conseguir o seu intento a comissão conta desde já com o apoio material do povo desta freguesia e aV. Ex.ª., roga a subida firmeza de promover a melhor propaganda da patriótica iniciativa, angariando donativos para a realização de tão simpático empreendimento. E contando com os bons esforços deV, Ex.ª., que antecipadamente agradecemos, que confiadamente nos dirigimos. [ 16 ]


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Subscrevemo-nos com muita consideração. Canelas (Estarreja) Maio de 1925. Seguem-se as assinaturas da Comissão: Camilo da Silva Rego, João Martins Salgado, Manuel Domingues Dias de Andrade, Arnaldo Cândido Duarte Silva. Foi também nomeada uma subcomissão em Lisboa que pouco tempo depois, por discordância com a comissão central, foi dissolvida, quer dizer, se dissolveu, enviando a quantia de 2.451$40, juntamente com a lista dos cavalheiros que tinham contribuído. A comissão central era constituída pelos senhores: Camilo da Silva Rego, João Martins Salgado, Manuel Domingues Dias de Andrade, Arnaldo Cândido Duarte Silva. A construção iniciou-se no ano de 1925 e as obras prolongaram-se até à cobertura do edifício em 1927. Até esta data, tinha-se angariado a quantia de 30.876$70 e gastara-se 31.864$72, registando-se um saldo negativo de 988$02 que, o Sr. Camilo da Silva Rego, generosamente, cobriu. Os fundos angariados integravam subsídios do governo e da Câmara Municipal de Estarreja. Foram incansáveis os membros da comissão, Senhores Camilo da Silva Rego e João Martins Salgado que não se pouparam a trabalhos, canseiras e desgostos. Através do Senhor Tenente-coronel Oliveira Simões foi conseguido do governo a quantia de 7.500$00 e ainda mais 3.000$00 que tendo sido concedida anteriormente mas que, por não ter sido reclamada, fora considerada nula. A propósito destas verbas houve a troca de correspondência seguinte: Exmº. Senhor, Tendo lido num dos Diários do Porto um Edital que dizia serem atendidas todas as reclamações que disserem respeito ao Ministério da Instrução Pública, aproveito o ensejo de informar Vª. Ex.ª., do seguinte: Em 17 Setembro de 1925, a Junta de Freguesia de Canelas, do Concelho de Estarreja, recebeu da Repartição das Construções Escolares o ofício Nº 70, livro 4, no qual notificava a concordância do Exmº. Ministro em despacho de 29 de Julho do mesmo ano, de ser reforçado o subsídio de 3.000$00 concedido em 1921, com mais 7.500$00, para conclusão de uma escola que aqui se anda edificando. A verba de 3.000$00 já foi recebida faltando a de 7.500$00, cuja remessa tem sido insistentemente solicitada, ultimamente reclamada pela Junta de Freguesia em dois ofícios que não obtiveram resposta. [ 17 ]


ABEL CUNHA

A escola que tantos sacrifícios tem custado à freguesia, por falta de verba, está parada com os vigamentos a apodrecer pela acção do tempo, peço aVª. Ex.ª., a valiosíssima interferência neste assunto a fim de se evitarem prejuízos maiores. Canelas, 6 de Dezembro de 1927. DeVª. Ex.ª Arnaldo Cândido Duarte Silva A resposta chegou poucos dias depois: “Encarrega-me S. Ex.ª, O Sr. Dr. Marcelo Matias, Magistrado Sindicante aos Serviços do Ministério da Instrução Pública de acusar a recepção da sua reclamação datada de 6 de Dezembro corrente e lhe comunicar que oportunamente serão ordenadas as diligências atenentes ao esclarecimento e resolução do assunto que diz respeito à queixa porV., apresentada. Saúde e Fraternidade, Secretaria da Sindicância em 17 de Dezembro de 1927. Passado pouco tempo, chegaram os 7.500$00. De 1927 a 1932, viu-se quem estas linhas escreve, completamente sozinho e em constantes alternativas de esperanças e desalentos.Ver o edifício da escola incompleto e a estragar-se magoava-me profundamente. Mas que fazer? Até que, felizmente, alguém que me é parente próximo conseguiu do governo da ditadura um subsídio de 20 contos, por um decreto do ministro de Salazar, foram dados como comparticipação. Oh céus! Apenas se soube que o governo tinha dado dinheiro, apareceram logo os amigos da escola, dessa escola que tão abandonada estes cinco anos! Apareceram logo patriotas a declarar (Urbi et Orbi) que tinham sido eles que conseguiram o dinheiro. Fortes pataratas! E para terem a ridícula vaidade de poderem alardear serviços prestados à escola não hesitaram, grosseira e malcriadamente, afastar as pessoas que fizeram parte da comissão iniciadora da construção da escola. Seriam ridículos se não fossem tão nojentos. Como felizmente nem tudo é lama é com o máximo prazer que quero deixar consignado aqui o gesto altruísta do Sr. Dr. Amândio da Silva Pinto que sabendo haver um deficit se prontificou a extingui-lo do seu bolso, fê-lo inesperadamente sem basófila e sem alarde. A este propósito o correspondente desta freguesia para o Jornal de Estarreja dizia o seguinte: Para a escola – damos aos nossos leitores a grande notícia que o Exmº. Sr. Dr. Amândio da Silva Pinto, nosso ilustre conterrâneo e abalizado médico na Capital, num gesto de grande patriotismo que muito significa e enobrece, prontificou-se a pagar do seu bolso o défice existente, que a freguesia, [ 18 ]


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naturalmente por incompreensão dos seus deveres, não quis saldar. Bem-haja sua Ex.ª., e fazemos votos para que na nova escola onde o nome do Exmº. Sr. Dr. Amândio da Silva Pinto deve ser citado como um devotado amigo, se crie de futuro carácter que tenham a verdadeira noção dos seus deveres cívicos e saibam amar entranhadamente a sua terra. Nós que temos um pequenino quinhão na energia e boa vontade despedidas a favor da nossa escola, rejubilamos com o gesto nobilíssimo do Exmº. Sr. Dr. Amândio da Silva Pinto e daqui, individualmente, lhe apresentamos os protestos da nossa maior gratidão. Entre 1931 e 1932, deslocou-se a Canelas o Sr. Eng. Lucas, fiscal para o distrito de Aveiro, dos Edifícios e Monumentos Nacionais, para avaliar as obras da escola que, considerou, muito adiantadas. Pediu que lhe fosse feito e enviado o relatório que segue: A Comissão Administrativa da Freguesia de Canelas e da presidência, leva ao conhecimento de V. Ex.ª., que, em 1925, se organizou uma Comissão com o fim de, por meio de subscrição pública, dotar esta freguesia de um edifício que comportasse a população escolar da mesma. Iniciaram-se estes trabalhos com dinheiro adquirido já por subscrição pública, já por alguns donativos oferecidos pelo Governo e pela Câmara Municipal do Concelho de Estarreja, assim como carretos e algumas madeiras oferecidas pelos lavradores desta freguesia. Estas obras estão em paredes e devidamente telhados. A pobreza da freguesia não permite conclui-las, por isso e atendendo a que as escolas oficiais estão instaladas em casa velha e sem condições higiénicas requeridas para a vida das crianças e ainda, vindo um técnico que reconheceu a necessidade imperiosa da conclusão de tais obras, sob pena de se danificar o que está feito e tanto dinheiro custou, vem esta Comissão muito respeitosamente solicitar de Vª., Ex.ª., o subsidio de 40.000$00 calculados pelo técnico para final acabamento do referido edifício. Esta comissão espera deVª. Exc:, deferimento a este pedido que é justo de todos os pontos de vista. O Presidente, Camilo da Silva Rego Não houve qualquer deferimento. A comissão continuou a tentar angariar fundos e através de alguém, como atrás digo, da minha família por intermédio do Dr. Manuel Rodrigues, actual Ministro da Justiça, conseguiu o subsidio de 20.000$00, o que me foi imediatamente comunicado e do que dei conhecimento a vários indivíduos que se interessavam pela escola. Este subsídio veio depois em virtude de um decreto do governo com a rubrica de comparticipação. Esta é que é a verdade, não havendo ninguém, absolutamente ninguém que com honestidade, a contradiga, contrariamente aos meus hábitos e forçando a modéstia, vi-me obrigado a falar mais do que devia, sobre a minha humilde pessoa. [ 19 ]


ABEL CUNHA

Não posso calar a indignação que me causa ver certos pavões enfeitarem-se para satisfação de uma estúpida e ridícula vaidade com os sacrifícios que a outros pertencem. Felizmente, esses pavões são já conhecidos e ninguém os toma a sério. A junta presidida pelo Sr. Camilo da Silva Rego que tão valiosos serviços prestou à escola auxiliando, sempre de boa vontade, a Comissão iniciadora, foi substituída por outra, presidida pelo Sr. Manuel Domingues da Fonseca. É que a vaidade principiava a ter o seu desabafo e necessário se tornava para ela, calcar tudo e todos. Os resultados duvidosos na orientação seguida pela nova junta, viram-se! O importe da escola, segundo as verbas exactas por mim conhecidas foi de 61.864$72. É natural que esse importe seja um pouco mais elevado, atendendo a que a junta recebeu certas verbas destinadas ao mesmo fim e até este momento ainda não apresentou as contas como devia e era seu dever. [NdA] A Escola Primária de Canelas, um edifício bonito de dois andares ao estilo arquitetónico do Estado Novo, ao tempo um enorme progresso para a freguesia, demorou 9 anos a ser construído (1925-1934) sendo o seu financiamento uma pequena odisseia que se prolongou na recolha de fundos entre a população, mecenas e o Estado. Funcionou durante trinta e quatro anos, até 1968. Por incúria e falta de manutenção acabou por ser demolida, para construção de uma extensão de saúde, também esta desactivada há vários anos, encontrando-se este edifício actualmente sem qualquer actividade ou serventia.

1924 – 1934 Comeram e pregaram o cão Nesta década uns amigos da vizinha freguesia de Salreu vinham todos os anos pela festa de S.António comer a cabra na loja do Sr. Joaquim Nunes, à fonte da Barreira – e ferravam-lhe o cão. Isto passou-se e há alguns anos que o faziam e, no último ano, o Sr. Nunes prepara bem preparado um cão para os mesmos conhecidos, fica alerta e não os deixa sair sem pagar. Desta vez comeram e pagaram o cão. [ 20 ]


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[NdA] Na maior das nossas festas, a que é celebrada em honra de Santo António no final de cada Julho, não podem faltar nas mesas canelenses as suas melhores iguarias culinárias: cabra e leitão assados em forno a lenha, com todo o esmero e paciência de um povo em festa. As lojas existentes à época também os confecionavam e serviam essencialmente aos festeiros vindos de fora. As relações com os vizinhos de Salreu foram sempre motivo de alguma rivalidade e rara era a festa que não acabava em pancadaria entre naturais das duas localidades. Comer e não pagar em Canelas, era um feito de que os de Salreu se gabavam o ano inteiro, por vezes com outros custos e alguns avultados… Como se percebe no tópico, de Salreu costumava vir um grupo que, no Nunes, comia a cabra e o leitão, furtando-se sistematicamente ao devido pagamento ou, como se diz, ferravam-lhe o cão. Naquele ano, porém, o Nunes jurou vingança e em vez de cabra, assou-lhes um belo cão que os convivas alegremente comeram e de olho na mesa, o Nunes não os deixou levantar antes de lhes apresentar e continha e receber o devido pagamento, daí o por muitos anos famoso dito do Nunes, “comeram o cão mas não mo ferraram!” Estava vingado!

1930 – Inventário das oficinas e ofícios em Canelas: Na Rua Nova do Jardim, o Bértolo, que presta serviços diversos. Na Rua da Fonte, o Máximo da Cunha, serviço de serralharia. No Picoto, o Sr. António Rodrigues, um grande artista em todos os ramos. Eu no Espinhal, um simples ferreiro nas horas vagas que ainda fiz umas coisas e duma habilidade fiz um bico postiço para uma charrua que enferrava muito bem e ainda se aguentou para cima de dois anos antes de se gastar. Oficinas de carros de bois: O Sr. Rego na Rua da Estrada que trabalhava muito bem, mais tarde em carros de raios fixos. Em Aldeia, a oficina dos Brísios, três bons artistas que não davam mãos a medir em grades e outros serviços agrícolas. Oficina de Tanoaria na Rua da Fonte, Sr. Manuel Nora e seu irmão Inácio Nora e mais tarde, o filho Manuel que aqui não havia mais ninguém. De 1931 a 1933 – Um segredo com 50 anos que originou uma grande revolta no lugar do Roxico. Misteriosamente, desapareceu o Diabo, ajudante de S. Bartolomeu de dentro da capela, facto que originou grande sarilho no lugar tendo sido caluniado um irmão e restante família do Sr. Padre Morais que tinha a chave da capela. O caso deu-se assim: Um grupo de rapazes de Canelas foi, ao serão, às desfolhadas no Roxico o que sempre cativou os rapazes de Canelas, sempre cobiçosos das raparigas do lugar. Um deles, apertado, foi atrás da capela fazer o serviço e olhando pela janela, viu o Diabo do S. Bartolomeu encostado à parede interior. Resolveu retirá-lo, e deu-o a cheirar às raparigas mas, uma mais desconfiada viu-o e desatou a gritar que era o Diabo. E foi o Diabo no Roxico. Os rapazes resolveram voltar a Canelas trazendo o Diabo como recordação. No Roxico surgiram ameaças e desconfianças relativamente ao Sr. Prior Morais, até porque ele mesmo tinha tempos atrás dito que era escusado o S. Bartolomeu ter o ajudante a seu lado, que aquilo [ 21 ]


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era feio junto ao Santo, o que acirrou o povo no desejo de ter o seu diabo de volta à capela que o queriam lá, e tem de estar lá porque é a vontade do povo. E tanta era a indignação do povo que até uma senhora, a Maria do Canto agarra-se ao pescoço do Sr. Padre e diz-lhe: Ó Sr. Prior, c’um caralhão, queremos cá o nosso diabito! Os rapazes de Canelas, com receio de serem descobertos, deitaram-no ao poço do Ribeiro mas, o Diabo sendo feito de madeira, não ia ao fundo pelo que foi preciso amarrar-lhe uma pedra. E como o Diabo andava à solta no Roxico, o Sr. Padre Morais para evitar mais chatices, teve de comprar um diabo igual ao desaparecido e só assim, terminou a revolta. [NdA] Texto parcialmente revisto sem alterações factuais.

Dezembro de 1944 Canelas no sítio do Espinhal com todas as famílias e alcunhas e só os Agostinhos nunca foram zaragateiros. Deu-se há dias no Espinhal Um caso entre alguém Que a mim me fica mal De ir na família também Lá vêm os Agostinhos Armados com foices e paus Julgam que estão sozinhos Lá entram outros mais maus Entra Pires e Gardunha Sai Santa numa brisa Ainda não se supunha Da Ilda ter preguiça E a Grila sem alcunha E a do rato até diz chiça Entra a velha do Cunha Do Arrais ir p’ra justiça

Censuram as Mioas De a Mariana em casa dela Ouvir pancadas toas De tanto falar aborrece A Mariazinha à janela A ver tudo andar lá A Glória à porta dela Diz ao Rebelo que vá Corre mandado por ela O Banqueiro vai c’um pau Chama o cunhado Sá Que a paz e não é mau E de cima a vir do monte Vem o cabreiro e a manada E tudo no horizonte Assim acabou a pancada

O Grande Crime da Lomba No caminho da Lomba, no lugar da Afeiteira, devido a questões de pastos e gados, e também por causas de amores, Manuel Joaquim Tavares, chamado o Sargento, pai de Ana Tavares contrariava o namoro de sua filha com José Joaquim Domingues, pois há muito que preferia vê-la casada com Agostinho Tavares, criado de sua casa e, ainda seu parente afastado. [ 22 ]


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O Domingues, sabedor da preferência do Sargento, olhava com maus modos o seu rival Agostinho. Sabendo-o debaixo do mesmo teto da sua amada, os ciúmes davam-lhe volta ao juízo e traziam-no arreliado e triste. Naquele dia fatídico de 14 de Agosto de 1848, o Agostinho fora ao campo a ver de um talhão que o patrão tinha balizado para pasto do seu gado, dando com um rapazote, filho de José Neves, a prender uns animais na pastagem do Sargento, seu patrão. Pediu contas ao garoto e este disse-lhe que levara para ali o gado a mando do Domingues. O Agostinho viu nisto uma afronta, uma provocação do seu rival. Exaltado, com o sangue a ferver, tolda-se-lhe o raciocínio, e desfere uma pancada tremenda, metendo dentro a porta de uma cabana enquanto grita ao garoto: - se eu apanhasse aqui quem te deu esse conselho, metia-lhe dentro as costelas como fiz à porta. O garoto, disse-lhe qualquer coisa e o Agostinho, de cabeça perdida, empurra o miúdo para dentro de uma vala de água. Chegado a casa, choroso e molhado, o garoto conta a seu irmão António Neves, inseparável amigo do Domingues, o que se tinha passado. Imediatamente, este vai contar o caso ao Domingues e logo ali, combinam a vingança. Ambos tinham o pretexto; o Domingues, o ciúme, o Neves, a afronta ao irmão. Acertaram ir esperar o Agostinho ao caminho da Lomba, e no sítio da Afeiteira, armados de foices, saltaram-lhe ao caminho. Lançando a foice por baixo, o António das Neves, decepou-lhe uma perna pelo tornozelo. O Domingues, ia para secundar a agressão ao que o Neves se opôs dizendo: - Deixa que já está bem convidado. Deixando o Agostinho estendido a desfazer-se em sangue, seguiram caminho fora mas, a dado momento, o Neves volta atrás e, com a foice esquartejou-o. O Agostinho, gritou p’la alma até à morte ao que acudiu João da Cruz, o Cabano, que guiando-se pelos gritos, deu com o Agostinho já cadáver. Poucos metros à frente, os agressores tiravam-se de razões, culpando-se mutuamente. O Cabano, achando o Agostinho morto e vendo-se sozinho, seguiu o seu caminho. O Neves, escondeu a foice ainda ensanguentada, em casa dum cunhado chamado Inácio e fugiu. O Domingues, acompanhado do pai, fez igual. Nas averiguações, a polícia encontrou a foice em casa do Inácio e prendeu-o como autor do crime. O Cabano, sabendo que o Inácio estava inocente, procurou o regedor, Sr. AntónioValente e deu-lhe conta do que vira. Este saiu em perseguição dos fugitivos e acabou por prender o Domingues e o pai perto de Águeda. Foram julgados no tribunal de Águeda tendo sido o Domingues condenado à morte por enforcamento junto à sua casa. Apelou por clemência e a condenação acabou por ser alterada para a pena de deportação perpétua em CaboVerde e pagamento de 500 mil réis. [ 23 ]


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Do Neves, nada mais se soube. Aos 28 anos, Ana Tavares fora o motivo de uma disputa entre dois homens que acabaram, um no degredo, outro na sepultura. Dizia-se anos depois na Aldeia, que a fortuna da casa dos Gouveias, tinha sido mandada de Cabo Verde para Portugal pelo desterrado. O grande crime da lomba, foi recolhido da tradição oral pelo Sr. Reinaldo, que o incluiu nos seus escritos e posteriormente, contou a António Domingues de Sá, de cujos apontamentos me servi para compor este texto. [NdA] Texto parcialmente revisto sem alterações factuais. A pena de morte viria a ser abolida alguns anos depois em Julho de 1867.

1935 A 10 de Janeiro celebra-se o dia do moleiro e neste mesmo dia do ano de 1935 foi inaugurada a rede eléctrica em Canelas, Fermelã e Salreu.Trouxe aos moleiros o fim do seu martírio de diariamente calcorrearem os caminhos do monte para irem moer nos seus moinhos no Rio Caima e voltar depois com a farinha para sustento do povo, isto apesar de cá haver uns poucos moinhos que durante o Verão eram tocados à vaca, um grande esforço para os animais. Os rios do Ameal e do Castanheiro deixavam de ter água a partir dos meses de Maio ou Junho quando começava o calor e se iniciava o martírio da subida ao Caima cujo caudal era sempre suficiente para accionar as mós dos moinhos e por lá se foram entretanto estabelecendo, adquirindo propriedades e construindo os seus moinhos. Com a chegada da electricidade puderam então passar a moer em suas casas e poucos voltaram ao Caima, por lá tendo deixado 41 rodas de moer milho. [NdA] Apesar da electrificação em 1935, o primeiro moleiro a instalar um moinho eléctrico em Canelas foi Manuel Santa em 1958, 23 anos depois, pelo que haverá alguma imprecisão no texto de António Sá.

Quem tinha uma roda de moinho era rico e agora quase todos os lavradores de Canelas as têm ao canto da casa. A ida dos moleiros para o Caima tem grandes tradições e foi sempre uma vida árdua, os muares muito carregados, cansados e cheios de pó tinham de subir o morro de Nª. Sª. do Socorro debaixo dos calores dos meses de Julho a Novembro e os moleiros chegavam ao Caima já noite, cansados e a ter ainda de alimentar os animais, preparar os moinhos e separar e moer cada maquia, tornando as noites pequenas para tanto trabalho,nem tempo tendo para dormir. Logo manhã muito cedo havia de preparar o regresso já com as cargas distribuídas para a entrega aos fregueses que esperavam para cozer o pão de 8 dias para sustento dos seus. E, de seguida, recolher outras fornadas de outros fregueses para no dia seguinte voltar aos moinhos do Caima. [ 24 ]


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Inventário das mós e respectivos proprietários dos moinhos nos rios Caima: De Canelas, havia no Caima 42 rodas nos seguintes locais e donos: Local Palhal da Companhia do Ouro do Braçal

Nº de rodas 3

Silvestre, Fábrica de papel do Carvalhal

6

BoaVista Fabel Queimados (Bico do Monte)

7 16 10

Proprietários António Arrais António da Conceição Abel Arrais Manuel Arrais Augusto Santa família SilvaValente (Zabumbas) Manuel da Santa Bainões

Inventário das mós e respectivos proprietários dos moinhos em Canelas. Rio Ameal, 33 rodas. Local Ponte da Taborda Roxico Carvalha Sítio do Ascensão Sítio dos Aidos Sítio da Passagem

Nº de rodas 2 2 2 2 2 4

Lagar de azeite das Lameiras Boiça

4 3

Chão d’Além Moinhos

2 4

Proprietários

Augusto Santa Augusto Santa João Pires de Figueiredo AdrianoValente ManuelValente (Zabumba) ManuelValente (Zabumba) Alexandrino Lavancos Rego Amândio Castanheiro

Rio da Bóca do Castanheiro: Local Mata da Ribeira Fonte da Maeçaneira Cabreiro Arregaça Pedreira Passagem da Bóca

Nº de rodas 1 2 2 2 3 2

Proprietários Maria Quintala António Arrais Sem dono conhecido Valgas Bainões José Pires e família

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Quinta de Santo António Bandulha Jardim

2 1 2

António Santa Amadeu Rato Ângelo Almeida

Como os moleiros deixaram o Caima: Em 1967 o último moleiro a moer no Caima foi AdrianoValente, o Zabumba, na BoaVista e foi o seu bisavô, Joaquim da SilvaValente, que como outros de Canelas, também aforou terrenos até ao Caima e foi o primeiro moleiro da freguesia a ir para o Caima segundo diziam os mais velhos. Ainda hoje se vê à porta de sua casa a argola de amarrar o burro na entrega da fornada ou a receber a moenda para ir para o Caima. Em 1954, o primeiro moinho com motor de combustão em Canelas foi instalado por Ângelo de Almeida, do Jardim. Em 1958 foi Manuel da Santa – Marques, a instalar na Rua de Baixo o primeiro moinho eléctrico. Os serões da Aldeia de Canelas Aos serões juntava-se muita mocidade no serão das Maias, no Cabeço, e dali saíam as ideias para se fazer a contra-dança, uma dança muito engraçada e na qual muita gente participava. Outro serão muito importante era o da Deolinda da Costa, no Picoto ao descer para a Bóca, onde muito se aprendia a dançar o velho vira e as suas rasteiras e onde muitas raparigas iam aprender a fiar a lã das suas ovelhas. Metidas nas dobadoiras e ajudadas pelos rapazes (os serandeiros) seus pretendentes ou namorados. Outras delas fiavam o linho das suas culturas que tinha de ser demolhado em remolhos (molhos) nos tanques ou nos rios que por vezes transbordavam e os arrastavam rio abaixo para as águas largas, pelo que no dia seguinte tinham de os ir buscar de barco. Esse linho era depois ripado e espaldado em cortiços ao serão e aí se faziam também outros trabalhos como farripar panos velhos que depois eram tecidos nos teares em mantas e tapetes de trapo. O baptismo dos serões de Canelas: O das Maias, o das Pombas, o das Ticas, o das Pulgas, o do Rodrigues Resende da Rua do Jardim, o das do Rolo (no Rolo), o das Galinheiras na Pedregosa, o das Maginárias na Rua do Apeadeiro, o do Pedro na Murtosa de Baixo(?), o do Pelágio, em Aldeia, o da Deolinda da Costa e o da Laura Banqueira, ambos no Picoto e o do Beco da Mouraria, na Mata, todos eles baptizados por José Caetano em 1930 – 1931. Interdição da Igreja de Canelas 1928 – De 24 a 29 de Agosto a igreja de Canelas esteve interditada, tendo servido de paroquial a capela de S. António, na Aldeia. Deu origem a esta interdição o seguinte: Um rapaz chamado Jacinto Tavares Catarino, de profissão estucador e pintor, além do seu viver irregular perante a sociedade, que é [ 26 ]


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juíza austera no julgamento destas causas, não frequentava a igreja nem os sacramentos o que se torna notado em meios pequenos.

Dizem que morreu de uma dor. Com tempo para reclamar e receber os sacramentos, nem os pediu nem os recebeu nem, tão pouco, alguém os reclamou, naturalmente por reconhecer as suas ideias antirreligiosas. Depois do seu falecimento, os encarregados do funeral, mais papistas do que o papa, dirigiram-se ao pároco para lhe ser feito enterro católico, o que este recusou, dizendo muito bem, que tal não podia fazer sem uma licença do Bispo. Aqui, arrasou-se Troia! Na ocasião do enterro, como as portas da igreja estivessem fechadas, foram arrombadas ou abertas furtivamente e, uma vez dentro da igreja, uma mulher de nome Gertrudes de Oliveira fez-lhe os responsos.Tudo isto trocado em miúdos, quer dizer que os vivos numa inconsciência pasmosa à mistura com uma grande maldade pela boa vontade de criar dificuldades ao prior, não respeitaram as ideias e vontade do falecido e pretenderam fazer-lhe à força enterro aparentemente católico de que o falecido, nada tinha. E se passarmos em revista os indivíduos que mais teimosamente persistiram na ideia de levarem o pobre Jacinto dentro da igreja, havia muito que se lhe dissesse. Se fosse possível naquele momento uma ressurreição, temos a certeza que o ressuscitado correria a pontapé todos os seus amigos... de Peniche. Durante a interdição da igreja foi baptizado na capela de S. António a Silvina Rodrigues da Silva, filha de Generosa da Silva Valente, moleira do Espinhal, sendo padrinhos Isidro Augusto de Matos, solteiro, moleiro e Georgina da SilvaValente. [ 27 ]


ABEL CUNHA

Conclusão: Os textos supracitados são uma pequena amostra das memórias, casos e acontecimentos reunidos nos escritos de António Domingues de Sá. São os dias de uma pequena comunidade cujos maiores feitos não passarão as fronteiras desta pequena aldeia, mas que, no entanto, memorizam um povo encaixado entre a serra e o mar, no seu viver, na sua modéstia e nas suas lutas por uma melhor vida. Gentes atoladas em águas salobras na cultura do arroz, gentes que abriram à força de braço valas e ribeiros, gentes que cavaram as terras das quais tiraram o magro sustento, gentes que calcorrearam os caminhos dos montes carregando os cereais que transformariam em farinha nos moinhos do rio Caima, gentes que comeram o pão que o diabo amassou e que por isso têm a grandeza do mundo e aos vindouros merecem o maior respeito. Julho de 2020

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MAJOR ANTÓNIO BERNARDINO FERREIRA António Augusto Silva* Deste ilustre Estarrejense temos conhecimento do seu nascimento, mesmo ao lado da Capela de S. Filipe na Póvoa de Cima, Beduído, a 5 de Janeiro de 1876 filho de pai de Veiros e de mãe da Póvoa de Cima. No entanto da sua infância e adolescência nada sabemos, embora seja muito provável ter frequentado a Escola Primária de Conde Ferreira recentemente inaugurada.

Parte do registo de nascimento (1)

Só começamos a saber da sua vida quando a 20 de Julho de 1892, com apenas 16 anos, se alista como voluntário no Regimento de Artilharia 2, de Lisboa. Nesse ano frequentou o curso da classe de Cabos, que concluiu com distinção a 11/11/1892. Começa aqui a sua carreira militar que, veremos, foi de enorme sucesso. Em 1896 ascende a Sargento e nessa condição parte a 15/12/1898 para a sua primeira comissão em Angola que terminará a 14/11/1903, quando regressa à metrópole e é promovido a Alferes. Pouco depois, 1/2/1904, regressa a Luanda para nova campanha que se prolongará até 27/2/1908. O seu desempenho mereceu-lhe a promoção a Tenente por diploma de 26/12/1908 do Rei D. Manuel II. Poucos dias antes, a 1 de Dezembro, iniciara nova viagem para África onde permanecerá até 2/2/1911.

* Autodidacta sobre a História de Estarreja e Murtosa

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ANTÓNIO AUGUSTO SILVA

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Destas 3 presenças em África destacou-se a sua actuação nas Campanhas do Bailundo (1902) hoje Província de Huambo, ao tempo o reino mais poderoso e influente do centro de Angola, e depois em 1907 quando integrou uma grande força preparada para combater os Cuamatos, Província de Cunene, no sul de Angola e que anos antes tinham infligido pesada derrota às nossas tropas, pelo foi inúmeras vezes louvado e condecorado. Na 3ª presença desempenhou ainda a cargo de Secretário do Governo de Huíla, dirigido pelo destacado general João de Almeida, com quem regressaria à metrópole em 1911. Entretanto, e na primeira passagem por Angola há ainda a registar o seu casamento com Cristina Leopoldina Chaves, ocorrido em 1900 na Vila de Chibia, no Lubango, capital do Huíla. Já em Lisboa continua a sua carreira no Ministério da Guerra, sendo promovido a Capitão, em 1917, e a Major em 1918. Passou à reserva devido a incapacidade para o serviço activo em 12 de Julho de 1919. (3) Neste período de regresso à capital, e ainda como militar no activo, foi nomeado em 1915 pelo Governo do Gen. Pimenta de Castro como Comandante da Polícia do Porto de Lisboa, e depois em Março é designado como Administrador do Concelho de Ovar, cargo que ocupou por poucas semanas, no meio de grande conflito político nacional e local onde muitos Republicanos Vareiros o consideravam ser Monárquico, e por isso não merecedor do lugar … Como é de todos conhecido, a Europa já estava em Guerra e a nossa entrada activa na mesma só aconteceria em 1917. Mas as dificuldades político/económico/financeiras que vinham desde a implantação da República agravavam-se desde há muito e a nossa participação no conflito aumentava os problemas. Como consequência, no final desse ano, entre 5 e 8 de Dezembro dá-se um golpe militar liderado por Sidónio Pais que dissolve o Parlamento, como consequência derruba o Governo de Afonso Costa, e demite o Presidente da República Bernardino Machado. Neste movimento participou activamente o nosso Major Ferreira (na altura ainda Capitão) e que já fazia parte do seu núcleo mais próximo. Deste modo o ano 1918 vai assim ser palco de grandes transformações políticas no País, na qual o Major Ferreira terá também lugar de destaque. Em Março de 1918 é nomeado Chefe do Serviço de Depósitos do Ministério das Subsistências eTransportes e a 1 de Julho seguinte passa a Chefe de Gabinete do Secretário de Estado daquela pasta e fica encarregado de organizar e dirigir os serviços de abastecimento e o respectivo combate aos açambarcadores, que faz com sucesso. [ 30 ]


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No início da sua gestão Sidónio Pais convocara eleições para a Presidência da República e para o Parlamento, marcadas para o dia 28 de Abril de 1918. Entretanto os partidos e os políticos mobilizavam-se, mas perante as divisões/ dissidências das velhas estruturas nasceram novas forças políticas; coisa característica da 1ª República… entre elas uma que englobava “centristas, sidonistas e machadistas“, denominado “Partido Republicano Nacional“ liderado pelo Dr. Egas Moniz e onde, como fundadores, vamos encontrar o Capitão Bernardino Ferreira, e outro Estarrejense, o Dr. Severiano da Silva, irmão do Visconde de Salreu. Aqui surge a primeira referência/relação do Major Ferreira com o Dr. Egas Moniz, como veremos. Nessas eleições de Abril de 1918 são eleitos, por este Partido e pelo Distrito de Aveiro para Deputados, Egas Moniz e Bernardino Ferreira, e para o Senado o Dr. Severiano Silva, de Salreu, mas que vivia no Porto onde era figura de relevo. Por outros Distritos também entraram o Conde Azevedo (filho de Francisco Barbosa da Cunha Sotto Mayor), e João Ruella Ramos. Assim nesta legislatura e nas 2 Câmaras estavam 5 Estarrejenses!!! Notável!!!

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Sidónio Pais forma novo Governo (o 16º da 1ª República) onde o Dr. Egas Moniz - e o seu partido - são figuras incontornáveis; quando duma pequena remodelação governamental a 8 de Outubro de 1918, e pela influência do Médico, o Major Ferreira é nomeado Secretário de Estado do Interior, cargo equiparado a Ministro pois com Sidónio tinham deixado de existir Ministérios. (5) No entanto não devemos excluir o mérito do nosso Major que acompanhava o Presidente-Rei desde a criação da Obra de Assistência 5 de Dezembro e tinha efectuado notável trabalho nos últimos meses de governação que lhe deram fama de muito rigoroso e enérgico. Sidónio Pais, é sabido, foi assassinado a 14 de Dezembro desse ano e o Governo acaba a 23 de Dezembro, dando lugar a novo Ministério presidido por Tamagnini Barbosa. O Major Ferreira não é reconduzido, mas Egas Moniz continua nos Negócios Estrangeiros; numa longa carta que aquele enviou a 19 de Janeiro de 1919 ao seu amigo ele alerta-o para o facto do seu nome (pelo facto de continuar no Governo) estar a ser atacado e ainda mostra alguma preocupação e até desconfiança pela situação política que o País está a atravessar, acreditando que Tamagnini venha mesmo a cair (na verdade Tamagnini dirigiu 2 governos entre 23/12/1918 e 27/1/1919… ou seja duraram pouco mais de 1 mês). (6) Como vimos antes o Major Ferreira passou à reserva em Julho de 1919. Entretanto [ 31 ]


ANTÓNIO AUGUSTO SILVA

deixara a actividade política. Virava-se agora para os negócios no comércio e indústria, associando-se em várias firmas de Lisboa e na província. Em 10/3/1923 vamos encontrá-lo na constituição da Sociedade de Produtos Lácteos, em Avanca, (hoje Nestlé) ao lado do amigo Egas Moniz promotor da mesma; de realçar a confiança que o Major depositava no projecto, quando sabemos que ele investiu 10.000$00, sendo assim o 2º maior investidor particular logo atrás de Egas que investira 20.000$00. Quando falece em Lisboa a 7 de Dezembro de 1941 era proprietário do afamado “Café de la Gare“ no Rossio, e Administrador da Sociedade Portuguesa de Cafés. Deixou descendência e foi enterrado em jazigo de família no Cemitério dos Prazeres, na Capital. A Câmara Municipal de Estarreja atribuiu o seu nome a uma Rua, na Póvoa de Cima, em reunião de 23/8/1993.

Estava a “ Terras de Antuã” em correção final e eis que me surge uma informação sobre o meu biografado que julgo relevante e, por isso, de forma sucinta, devo acrescentar: Em Setembro de 1914,António Bernardino Ferreira, o Dr.António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, o Dr. António Tavares Afonso e Cunha e o Sr. Manuel Maria Esteves de Oliveira instalaram, na Freguesia de Beduído, uma fábrica para a preparação de cabedais e peles finas, a que chamaram “ Empreza Antuã “. Os 3 primeiros como capitalistas e o 4º como responsável técnico. Em poucos anos a “Empreza Antuã” , graças à gestão dos 4, afirmou-se, cresceu nos equipamentos, aumentou as instalações e, graças a este sucesso, em 1922, transforma-se na “ Companhia de Curtumes de Antuã “ com maior capital e novos accionistas. Nasceu assim uma das mais importantes indústrias da região que, no Concelho de Estarreja, mesmo depois de várias mudanças de nome e local existiria até 1994. Ou seja , afinal a amizade/cumplicidade entre Egas Moniz e António Bernardino Ferreira era anterior às eleições de 1918... Legenda: 1 - Livro de baptismos da Paróquia de Beduído. ADAVR 1.26.364/5; 2 - Arquivo Militar do Exército – Processo Individual 3 - Idem; 4 - Jornal de Estarreja 5/5/1918; 5 - Egas Moniz – Um ano de política; 6 - Arquivo da Casa Museu Egas Moniz Outras fontes de consulta: Jornais – O Concelho de Estarreja; A Discussão de Ovar; O Século; O Diário de Lisboa; O Tempo; Armando Malheiro da Silva – Sidónio e Sidonismo; Arquivo Particular de Fausto de Melo Ferreira;

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A “GRATIDÃO” DE JOSÉ LUÍS DA CUNHA: UM CASO DE SUOR, SUCESSO E LÁGRIMAS NO PANORAMA EMIGRATÓRIO DA ESTARREJA OITOCENTISTA António Pedro de Sottomayor* Admita-se a bem da verdade e antes do mais que seguirá: José Luís da Cunha não era, de facto, um estarrejense de gema. Resguardado de olhares indiscretos, viera ao mundo no dia das Mentiras de 1833 na melhor das casas do terreiro de Santo António, nos meandros do que fora, em tempos, a judiaria de Braga de que o imóvel chegou a ser sinagoga.

A Casa Grande da Rua de Santo António das Travessas, em Braga, onde nasceu José Luís da Cunha Créditos fotográficos: Arquivo Distrital de Braga e Maria Assunção Jácome de Vasconcelos

Filho natural de um matrimónio apenas validado in facie ecclesiae quatro anos adiante, comparecera no dia imediato, bem encapotado, à pia batismal de São Victor – freguesia vizinha – aconchegado no colo da criada de maior confiança do cónego Barbosa, tio paterno do neófito. A própria Engrácia Maria, com raízes na calçada bracarense da Senhoraa-Branca, lhe pusera a coroa da Senhora das Angústias, e por padrinho servira Manuel Felgueiras da Costa, coadjutor da paróquia. Na penumbra da pequena capela batismal, o pároco Manuel Joaquim da Rocha oficiara o ato, lavrando em seguida o respetivo assento. Entendido como filho de pais incógnitos, o pequeno José recebera por compensação o irónico e pomposo distintivo de “Augusto”. * Licenciado em Design. Desenvolve a sua actividade profissional na área da arquitectura. Autor de vários ensaios no âmbito da Genealogia e História da Família

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ANTÓNIO PEDRO DE SOTTOMAYOR

Pia batismal da igreja de São Victor, onde José Luís da Cunha foi batizado com o nome de José “Augusto” Crédito fotográfico: site “Visitar Portugal”

Oportunamente fora levado a Estarreja, onde se criou no seio da família paterna até cumprir os dezoito anos de idade. Por isso deve considerar-se um filho da terra antuana. E se dúvidas subsistirem, veja-se o exemplo do autarca Francisco Barbosa – seu irmão primogénito – cujo idêntico trajeto inicial em nada obsta à sua plena identificação com a região onde cresceu e amadureceu.

O deputado e autarca Francisco Barbosa do Couto Cunha Soto Maior1, irmão mais velho de José Luís da Cunha Crédito fotográfico: Arquivo Histórico Parlamentar

1 - Francisco Barbosa nasceu a 26 de dezembro de 1827 e foi batizado no mesmo dia na igreja bracarense de São Victor pelo então apenas coadjutor, padre Manuel Joaquim da Rocha. Engrácia Maria foi também a madrinha, tal como no caso da irmã de ambos, Rita Felicíssima (depois Rita de Cassia), nascida e batizada em maio de 1830. Os três irmãos foram registados como “filhos de pais incógnitos”.

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Privados por conveniência da companhia materna, Francisco e José foram acarinhados e educados pela tia Mónica – também ela filha natural da Casa da Fontinha2, onde sempre viveu – e pelos tios Joaquim Calisto e José Luís, este último certamente figura de referência para José que cedo trocou o seu augusto segundo nome pelo de “Luís”3. Igualmente o convívio com as oito décadas de vida da avó Maria Clara lhes terá moldado, não só a nobreza de carácter, mas também o ânimo aguerrido que ainda a moveu nesse tempo a disputar vínculos e morgados à família paterna!4 Eram os petizes e uma outra irmã Rita que nunca deixou a cidade arcebispal, prova tangível do secreto concubinato que se desenrolava, há uma meia dúzia de anos, entre o juiz Pedro Barbosa do Couto – desembargador da relação eclesiástica da Sé Primaz – e a prendada dona Mariana – uma das filhas do conhecido capitão dos voluntários realistas de Braga, o morgado Francisco Bernardo de Sá Sotto Mayor. Ao arrepio dos mandamentos tridentinos, aqueles amancebados vivenciavam duas realidades que não promoviam o almejado matrimónio: de um lado o celibato obrigatório exigido aos detentores de cargos eclesiásticos; do outro a guerra civil que do Mindelo a Évora Monte trazia o ativo legitimista Pedro Barbosa em bolandas, ante a admiração e condescendência dos pais e irmãos da amásia, parceiros na causa. Nascera José há pouco menos de um ano, e o primeiro desses impedimentos tendia enfim a resolver-se, com o ingresso do pai na magistratura do reino, nomeado em fevereiro de 1834 para um triénio enquanto juiz de fora na vila transmontana de Mogadouro. Porém a capitulação miguelista tudo deitaria a perder. No rescaldo do conflito, sobraram tempos de perseguição e fuga dos vencidos a que o logo apeado julgador não ficou imune. Ao cabo de três anos ainda se escondia quando o irmão José Luís o representou no altar do seu próprio casamento! Cerimónia naturalmente recatada e com dispensa de proclamas que aconteceu no dia 4 de outubro de 1837 em Gondizalves, na discreta capela de Nossa Senhora da Esperança, cabeça do morgado dos Sotto Mayor. Só em 1839, com outra filha já nascida5 e os ânimos quase serenados, é que consta a entrada definitiva do acossado como freguês no livro de contas de São Paio de Parada de Tibães onde, com o sogro e dona Mariana, desde então viveria retirado na quinta do Lugar! Assim mesmo e por cautela, apesar de ser a primeira filha legítima, também a pequena Maria Benedita cresceria junto dos irmãos, ao abrigo dos tios de Estarreja, reconhecidos liberais.

2 - Monica de Jesus Marques do Couto foi exposta na roda da vila de Estarreja na noite de 25 de Abril de 1792, poucos meses antes do casamento do pai, o morgado Agostinho Luís Marques do Couto Fontinha e Silva. Era filha de Florência da Silva, costureira em Pardilhó. 3 - Ou simplesmente porque este patronímico era de uso continuado nas gerações anteriores da família, desde o tio-tataravô Luís Marques Fontinha. 4 - Entre 1832 e 1843 Maria Clara Benedita Barbosa da Cunha e Melo manteve um longo pleito judicial com o sobrinho de Ovar, Francisco Barbosa da Cunha e Melo, pela posse dos vínculos da Quinta do Mato (Salreu) e do morgado de Sampaio (Vila Real). Espero abordar a matéria num dos próximos números desta revista.

5 - Maria Benedita nasceu na casa da quinta do Lugar de Parada de Tibães a 27 de agosto de 1839.

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Dona Mariana Cândida de Sá Sotto Maior e Dr. Pedro Barbosa do Couto Cunha e Melo, pais de José Luís da Cunha Crédito fotográfico: António Fernando de Sequeira Barbosa Sottomayor

Desse autoimposto exílio brotaram os restantes quatro filhos do casal e, a título de curiosidade, uma alcunha que se perpetuaria até aos nossos dias, identificando o avô materno de José Luís como “Morgado Triste”. O caso é singular e, embora divergindo um pouco do presente tema, merece a seguinte reflexão: Rezam as crónicas familiares que Francisco Bernardo de Sá Sotto Mayor, tenente de cavalaria na reforma, daquele modo se tornara conhecido em virtude “da sua habitual alegria ter resistido aos desgostos que muitos teve, e aos embates da fortuna”6. Sem deslustre da memória anterior, poderá ser, todavia outra a explicação, mais enraizada na tradição dos romances de cavalaria que ainda militavam nas estantes mais guarnecidas da sociedade de meados de setecentos e oitocentos. Neste particular, cumpre trazer à colação o título do “Palmeirim de Inglaterra”, saído da pena do português Francisco de Moraes e dado à estampa no século XVI, reeditado em 1786 e 1852.

6 - Citação extraída das notas familiares redigidas por António Fernando de Sequeira Barbosa Sottomayor

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Capa da reedição de 1786 do “Palmeirim de Inglaterra”, e retrato a óleo do “Morgado Triste” Francisco Bernardo de Sá Sotto Mayor, avô materno de José Luís Créditos fotográficos: site “Ecléctica Leilões” e Rita Nolasco Vaz Vieira

Florendos, também referido como “Cavaleiro Triste” é um dos heróis da trama, profundamente tocado por um misto de amor-adoração pela bela e cruel Miraguarda. Vencedor de múltiplas justas em nome daquela dama, acaba por soçobrar face ao valente Palmeirim. Ato contíguo despede-o a amada, proibindo-o de envergar armas por um ano. É um inconsolável Florendos que deixa Almourol e subindo o Tejo acaba por conhecer Floramão, um flautista guardador de ovelhas que se isolara por conta das penas amorosas que sofria. Solidário e “porque cada um seu igual busca; que triste com outro triste se alegra; o alegre com outro alegre se quer”, decidiu-se a com ele viver apartado do mundo numa arcádia pastoril. O paralelo não podia ser mais gritante: descontando que Francisco Bernardo enviuvara no outono de 1838, já anteriormente o rescaldo do desaire miguelista o levara a trocar definitivamente a vida cosmopolita da capital minhota – onde possuía um palacete ao Campo da Vinha – pela ruralidade de Parada de Tibães e da sua quinta do Lugar. A causa legitimista por quem lutara e a quem muito dera de seu7, devastara-o na concessão de Évora Monte; era 7 - Acérrimo partidário de D. Miguel, gastou no apoio à sua causa grande parte da fortuna. Por tradição local e familiar, é sabido que alienou a quinta do Armão, fronteira à do Lugar em Parada de Tibães, para equipar e municiar um batalhão miguelista.

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a sua Miraguarda. O mesmo ideal desiludia o genro do rumo liberal que a nação abraçava, levando-o a despir “a toga impoluta, ficando em pouco lisonjeiras circunstâncias de fortuna”8. Apoiaram-se mutuamente no retiro de São Paio de Parada; Pedro Barbosa do Couto era, desse modo, Floramão. E se o cavaleiro Florendos se conhecia por “Triste”, à sua imagem tomou alcunha o morgado Sá Sotto Mayor. Residindo em Estarreja, não é possível estimar o quanto José Luís terá convivido com este avô, adivinhando-se, porém, alguns curtos períodos de verão passados em Parada de Tibães, junto dos pais. Era um tempo em que o morgado “entretinha-se a tratar doentes e tinha sempre gente à sua procura para o consultar”9. Puro mimetismo ou reflexo genético, o porvir testemunhará prática semelhante ao biografado entre os congéneres fluminenses, como se verá. Aos dez anos foi oficialmente legitimado, ainda como Augusto. O tio José deixara Estarreja recentemente para constituir família nos Arcos de Valdevez10, e em Parada o pequeno Agostinho Luís – o quinto dos irmãos – não resistira ao primeiro inverno de vida11. Reagindo à perda, a mãe Mariana estava novamente de esperanças; garantia-lhe a barriga arredondada e alta outra menina12. Havia por isso que salvaguardar o futuro dos varões do casal Barbosa Sotto Maior. Feito o pedido ao recém-eleito arcebispo, D. Pedro Paulo de Figueiredo da Cunha e Melo, determinou aquele por portaria de 7 de julho de 1843 que se reformassem os registos de batismo dos três irmãos – legitimados pelo subsequente matrimónio dos pais – para neles constarem os nomes dos progenitores “que no primeiro assento eram incógnitos”. Entretanto o mano Francisco, quase seis anos mais velho, ganhava ascendente junto do tio Joaquim, figura influente em Estarreja onde exerceu vários cargos eletivos, desde juiz dos órfãos e da paz, a presidente da câmara e administrador do concelho13. Ali chegaram no outono de 1846 os ventos tumultuosos da “Patuleia”, opondo setembristas a cartistas, numa clara reedição – não assumida por nenhuma das partes – da anterior guerra civil. Desta feita e sob uma atmosfera exclusivamente constitucionalista, digladiavam-se, todavia, duas fações extremadas respetivamente entre a esquerda liberal e a direita mais conservadora. Alinhavam na primeira os Barbosa do Couto, tio e sobrinho. Constituída no Porto a Junta Governativa do Reino, de orientação setembrista, logo Estarreja lhe deu o seu apoio organizando um batalhão de voluntários encabeçados por Joaquim Calisto que a 23 de outubro já estacionava em Coimbra, no quartel-general das forças revoltosas. Nos dias subsequentes esse “batalhão nacional móvel” marchou para a cidade invicta ali chegando a 30. Disso fez eco o 8 - A Nação, Órgão do Partido Legitimista, 1 de dezembro de 1885. Depois de 1834, Pedro Barbosa do Couto Cunha e Melo recolheu-se à vida particular, e nunca solicitou nem quis exercer qualquer cargo público. 9  - Vd. nota 6. 10  - Casou a 2 de fevereiro de 1843 em São Paio dos Arcos com D. Maria do Patrocínio Azevedo Cardoso, da Casa da Ponte. O primeiro filho, Bento Augusto nasceria nove meses mais tarde, a 14 de novembro. 11  - Agostinho Luís nasceu na casa da quinta do Lugar de Parada de Tibães a 16 de maio de 1841 e faleceu a 8 de janeiro do ano seguinte. 12  - Maria Filomena nasceu na casa da quinta do Lugar de Parada de Tibães a 22 de outubro de 1843. 13  - Vd. nota 6.

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periódico “Progressista” nos seguintes termos: “Hoje entrou um batalhão de populares de Estarreja em força de 500 praças, comandadas pelo valente patriota Joaquim Calisto da Cunha Couto e Melo”14. Nomeado a 4 de novembro na patente de tenente-coronel pelo conde das Antas, comandante em chefe do exército em operações, foi no mesmo dia elevado a capitão da mesma milícia o sobrinho Francisco Barbosa15. É sabido que os oito meses seguintes de ação política e bélica resultaram no fracasso da insurreição, e no articulado da convenção de Gramido, cujo item sexto garantiu ao exército da Junta o tratamento “com todas as honras da guerra sendo conservadas aos oficiais as espadas e cavalos de propriedade sua”. Um amargo de boca para o tio Joaquim, de quem José Luís passou a ouvir repetido conselho feito lição de vida: “Nós viemos ao mundo para viver nele e não para o endireitar”16.

Senão antes, estariam os milicianos de regresso a Estarreja no verão de 1847. José Luís reencontrou um irmão ainda mais maduro e com avidez política, de tal sorte que se tornaria, nos anos vindouros, líder do Partido Progressista de Estarreja17. A impressão que lhe ficou desses tempos é que foram “motivos muito poderosos” aqueles que levaram Francisco Barbosa a imiscuir-se na política18. Cresceria na sua sombra até aos dezoito anos, tornandose evidente o papel secundário que o futuro lhe reservava no seio da Fontinha do Paço. Nesse período teria o gosto de conhecer mais dois irmãos – outro Agostinho Luís19 porque o primeiro não vingara, e a Maria Henriqueta – que fecharam a conta dos oito rebentos dos pais. Porém, igualmente o desgosto de ver desaparecer a avó Maria Clara, no dia de Todos os Santos de 1850, ainda rija e senhora de si a ponto de completar noventa e quatro anos! Abusando da influência de que gozava, a família logrou sepultá-la no interior da igreja de São Tiago, na capela da Senhora das Dores, ao arrepio da recente lei que proibia os enterramentos dentro dos templos. Esse decreto de Costa Cabral, aliás, mobilizara em revolta a fé das populações estando na génese, não só da mítica “Maria da Fonte”, como da própria “Patuleia”. Na hora de assentar o óbito, não se furtou o reitor de 14  - O jornal “Progressista” definido como “Periódico político, literário e comercial”, publicou-se entre 1/10/1846 e 23/6/1847 num total de 140 números que cobriram o período da “Patuleia”. A informação relativa ao batalhão nacional móvel de Estarreja foi extraída dos números 21 e 22, respetivamente de 29 e 30 de outubro de 1846. 15  - Vd. nota 6. 16  - Cartas de José Luís da Cunha ao irmão Agostinho Barbosa de Sottomayor: 6/10/1894. 17  - A nível nacional, o Partido Progressista foi criado em setembro de 1876, resultando da fusão das duas principais forças da esquerda parlamentar de então: o Partido Reformista com origens no vintismo, setembrismo e na Patuleia, e o Partido Histórico. 18  - Cartas: 28/11/1892. 19  - Agostinho Luís nasceu a 20 de outubro de 1845 e Maria Henriqueta a 3 de maio de 1847, ambos na casa da quinta do Lugar de Parada de Tibães.

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Beduído, António Moreira Carneiro, a manifestar à posteridade o desconforto e desagrado sentido, registando que o seu consentimento fora “concedido com muita dificuldade”.20 José Luís chegou assim, mancebo, ao verão de 1851. Certamente educado em casa no regime de preceptorado particular a que tradicionalmente recorriam as famílias mais abonadas. Na realidade, o liceu em Aveiro só foi criado nesse ano, ao abrigo da lei de 1844 que pretendia “um liceu em cada uma das capitais de distrito e dioceses do reino”, instalando-se a título provisório no paço episcopal. Aos dezoito anos, era tempo de orientar a vida. Na mesma idade, tanto o pai como o distante tio Francisco – cónego e juiz desembargador do tribunal pontifício de Braga – tinham rumado a Coimbra, às faculdades de Direito e Cânones21. Segundo lhe contara a avó, por conta dos franceses não o pudera fazer no tempo certo o mais velho daqueles irmãos, Manuel Bernardo – que José nunca conheceu por ser morto no cerco do Porto de 1832 – ingressando apenas com vinte e três anos na faculdade de Leis22. A mesma idade com que Joaquim Calisto começara a faculdade de Matemática23, da qual se ficou pelo segundo ano por falta de maior vocação para o estudo ou, simplesmente, porque a morte do pai24 o chamou à gestão da casa agrícola familiar. Sobravam, contudo, os exemplos do tio José Luís e do mano Francisco que nunca se propuseram a tal empreitada. Essa seria também a sua escolha, animado que andava com as novas do café que chegavam d’além Atlântico e a perspetiva de poder singrar – como tantos outros – no emergente Brasil imperial. É até bem possível a conjetura de que tudo se decidisse nesse verão em Parada de Tibães, junto dos pais e do avô. Afinal a ideia não era peregrina e já anteriormente colhera frutos entre a família. Efetivamente, a compra da quinta do Lugar pelo sogro do “Morgado Triste” resultara da aplicação de parte da fortuna herdada do pai e granjeada naquelas paragens25. Além disso, ter-se-ia eventualmente lembrado Francisco Bernardo do filho natural que tivera na “Vila dos Arcos, arcebispado de Braga”26 com Ana Joaquina Malheiro? A existência de José Maria de Sá era então vagamente conhecida entre o clã dos Sá Sotto Mayor27. 20  - Arquivo Distrital de Aveiro (ADAVR), Paróquia de Beduído, Registos de óbito, liv. 43, fl. 39. 21  - Arquivo da Universidade de Coimbra (AUC), Índice de Alunos da Universidade de Coimbra, letra F, nº M/005964, Francisco Barbosa Marques Couto da Cunha e Melo (1813-1817); letra P, nº C/014396, Pedro José Marques do Couto (1814-1819). 22  - Ibid., letra M, nº M/002155, Manuel Bernardo da Cunha Couto e Melo (1816-1821). 23  - Ibid., letra J, nº M/006150, Joaquim Calisto da Cunha Couto e Melo (1820-1821). 24  - Agostinho Luís Marques do Couto Fontinha e Silva faleceu em Estarreja, na casa da Fontinha, a 21 de maio de 1822. 25  - O sogro do “Morgado Triste”, António José Pereira de Lanções, comprou ao parente Francisco de Sousa e Castro de Lanções a quinta do Lugar de Parada de Tibães antes de 1773, ano em que casou já ali residindo. Era filho único e herdeiro do pai, André Fernandes de Oliveira, falecido em Braga no ano de 1769, o qual enriquecera no Brasil. 26  - A referência surge na documentação brasileira relativa ao casamento e batismo dos filhos de José Maria de Sá. Até ao presente ainda não foi possível a sua identificação, apresentando-se um trio de hipóteses viáveis: a freguesia dos Arcos, vizinha da de Parada de Tibães; a vila de Arcos de Valdevez; e a freguesia de S. Pedro d’Arcos, em Ponte de Lima. 27  - O tempo e o afastamento esquecê-lo-iam, só voltando a ser resgatado para a memória familiar, por feliz acaso, em 1960. Não sendo a documentação existente conclusiva acerca da sua filiação, recentes estudos comparativos de ADN demonstraram inequivocamente o próximo parentesco entre os seus descendentes e os de sua meia-irmã Mariana Cândida de Sá Sotto Maior.

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Emigrado em jovem, constava que se tornara negociante abastado no Rio de Janeiro28 e cabeça de dilatada prole. Apesar das vicissitudes do nascimento, sabia bem quem era o pai, cujo nome fez constar desde logo, em 1826, ao casar-se no Rio Grande com dona Josefa Maria da Cunha. Quiçá o sobrinho José Luís não o levasse por recomendado ao zarpar do Porto a 26 de outubro, empreendendo a travessia transatlântica que culminaria a 12 de dezembro no Rio de Janeiro29? O passaporte que lhe garantiu a legitimidade da viagem, embora erroneamente lhe subtraia um ano de vida demonstra, no entanto que José Luís não destoava fisicamente dos irmãos: rosto comprido, cabelos e sobrolhos castanhos, olhos azuis, nariz e boca regulares e cor natural; a estatura de 1,45 m aos dezoito anos indiciava também um adulto de estatura pouco elevada.

Passaporte de José Luís da Cunha, registado com o nome oficial de José Augusto Barbosa do Couto Cunha Souto Maior Arquivo Distrital do Porto (ADPRT), Passaportes nacionais para fora do reino, liv. 22, fl. 185

Existe igualmente a possibilidade do seu projeto não ter sido bem recebido entre os que lhe eram mais queridos, suscitando ressentimentos e mesmo algum distanciamento. O facto é que a 3 de dezembro de 1867, dezasseis anos mais tarde, no testamento de mão comum dos pais, embora o seu nome constasse entre os filhos herdeiros também se referia que “estava ausente em parte incerta no Brasil, sem dele haver notícias há muitos anos”. Desse modo não é possível reconstituir os seus passos desde que, solteiro, desembarcou e se estreou em solo carioca, até que desposou outra emigrante portuguesa, “moça bonita julgada por mim e muitos outros”30. Teria de facto, buscado o patrocínio do tio José Maria de 28  - “Genealogia da Família Sá no Brasil. Rio de Janeiro, Rio Grande, São Paulo e Bahia. Apontamentos coligidos por Carlos Grandmasson Rheingantz, 1937-1940”. O autor refere ainda a propriedade de uma fábrica de sabão e diversos prédios na cidade, assim como de uma chácara no Campo Alegre. Casado com Josefa Maria da Cunha, dela teve 14 filhos. 29  - Relação de filhos e netos de José Luís da Cunha apensa à carta de 8/9/1911. 30  - Cartas: 10/11/1911.

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Sá o qual, sabe-se, morreria quatro anos adiante31? Onde se empregou? Quem conheceu e como viveu? Incógnitas a que lamentavelmente nunca se remeteu nas missivas que veio posteriormente a trocar com os irmãos.

Barco a vapor e barra do rio Itabapoana em finais do século XIX, cenário bem conhecido de José Luís da Cunha Site “Museuonlinesfi” da autoria de Uellington Soares

Encontramo-lo novamente a 26 de novembro de 1868, com trinta e cinco anos, prestes a contrair matrimónio com Ana Vitoria da Fonseca, de vinte e três anos, no altar da capela do povoado de Limeira do Itabapoana32. O lugar, fronteiriço aos estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, chegou a dar nome ao 15º distrito do município de Campos de Goytacazes, no norte fluminense. É hoje, porém, um amontoado de ruínas cobertas de mato, destituído de função e relevância primeiro com a chegada do comboio a duas décadas do fim do século XIX e, mais tarde nos anos sessenta de 1900, com a política de erradicação dos velhos cafezais. No tempo de José Luís, contudo, exibia brios de entreposto comercial sendo o 31  - Vd. nota 28. José Maria de Sá faleceu no Rio de Janeiro, “na casa de sua residência à rua da BelaVista, nº 37, a 3 de dezembro de 1855”. A viúva sobreviveu-lhe pouco mais de quatro anos, falecendo na mesma cidade a 28 de janeiro de 1860, “na casa de sua morada, à travessa do Campo Alegre, nº 8”. 32  - Data e local (“Porto de Limeira”) informados nos apontamentos genealógicos redigidos por Agostinho Barbosa de Sottomayor, irmão de José Luís. Deveriam constar em carta que não se conservou no acervo.

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único porto fluvial por onde se escoava, rio abaixo até à foz em pequenas embarcações a vapor, toda a produção de café do vale do Itabapoana com destino à capital. Saliente-se, pois, que se realmente era o negócio do café o objetivo deste português, já o exerceria com boa fama de alguma maneira – fosse no campo ou enquanto comercial, administrativo ou feitor – ao cabo de dezassete anos emigrado.

Ruínas da capela de “Porto de Limeira” ou Limeira de Itabapoana, onde se realizou o casamento de José Luís da Cunha Crédito fotográfico: Gérson Moraes França

A origem e reputação de homem sério e trabalhador, permitiu-lhe o casamento com a filha de um casal de emigrantes portugueses – Guilherme Joaquim e Maria Joaquina da Fonseca33 – já instalados e com fazenda na região. É provável até que o ato resultasse do estreitamento afetivo derivado de uma hipotética relação laboral entre os Fonseca e José Luís. Não é possível sabê-lo. Tal como por mera suposição se estima que o novel casal viveu por sua conta quase duas décadas, extraindo da terra o sustento dos doze filhos que lhes nasceram, sofrendo alguns revezes próximos da miséria, dos quais sempre recuperaram34. Um desses desaires parece ter ocorrido nas vizinhanças de 1886. Efetivamente, nesse ano, José Luís passou a residir com a família em terrenos arrendados ao cunhado35 José Joaquim da Fonseca, situados na margem esquerda do Itabapoana (Espírito Santo), cerca de dez quilómetros a montante de Limeira. O porto fluvial principiava a ressentir-se da inauguração – fazia sete anos – da estação ferroviária denominada “Itabapoana” perto da localidade de Santo Eduardo, canal bem mais célere e direto para o Rio de Janeiro. Esta pequena povoação – aliás como a de Limeira – coexistia com outra de igual nome na 33  - Oriundos de Aião, concelho de Felgueiras, onde casaram a 5/9/1844. 34  - Cartas: 23/12/1890. “Tenho tido vicissitudes na vida que me tem feito perder em poucos dias o fruto de tanto trabalho que me tem colocado, carregado de Família, nos degraus da miséria”. 35  - Ibid. 6/10/1894.

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margem oposta correndo o rio de permeio. Términus da linha férrea, ficava a sul, em solo fluminense (Rio de Janeiro), enquanto a outra se quedava a norte, em território capixaba (Espírito Santo), ambas nem separadas um par de quilómetros.

As duas tiveram agência postal desde a chegada do comboio. A da estação levou naturalmente o nome da mesma: “Itabapoana”. Já a outra, no lado espírito santense, porque existia no povoado recebeu o correspondente identificativo: “Santo Eduardo”. Prenúncio de confusão que se adensou quatorze anos adiante, quando a estrada de ferro cruzou, enfim, o rio, inaugurando-se nova estação no lado capixaba com o nome de “Itabapoana”, e renomeando-se a anterior “Santo Eduardo” como o povo naturalmente a identificava. Consequentemente e para melhor clareza, também o Diretório Geral dos Correios se viu na contingência dessa troca onomástica que resolveu por portaria de 2 de março de 189336. E assim a correspondência postal destinada ao povoado da margem direita do rio passou a levar o identificativo de “Santo Eduardo”, enquanto que “Itabapoana” passou a figurar nos sobrescritos com destino à margem esquerda do mesmo curso de água.

Estações ferroviárias “Santo Eduardo” e “Itabapoana” na década de 1910 Site “Estações Ferroviárias do Brasil” da autoria de Ralph Mennucci Giesbrecht

36  - NOVAES, P. (2016). Agencias gêmeas Santo Eduardo. Duas localidades “Santo Eduardo” separadas pelo rio Itabapoana. (P. NOVAES, Ed.). Obtido em 15 de abril de 2020, de Agencias Postais. História Postal do Rio de Janeiro através de suas agencias e seus carimbos: http://agenciaspostais.com.br/?page_id=20075

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O histórico anterior, longe de exaustivo ou irrelevante, permitiu o conhecimento de que entre 1886 e 1894 – época em que viveu em terras do cunhado e deu início à correspondência regular com os irmãos – José Luís da Cunha fazia uso da agência postal a norte do vale do Itabapoana37. Consequentemente residia nos limites a sul do estado do Espírito Santo, no que hoje é o município de Mimoso do Sul. A primeira carta recebida do irmão e conservada no arquivo familiar de Agostinho Barbosa de Sottomayor tem data de 30 de novembro de 1889. Infere-se do seu conteúdo que pelo menos uma outra a terá precedido motivando o envio – na volta do correio e com anterioridade ao mês de agosto – do retrato de Agostinho com a esposa Belmira e o filho Pedro de pouco mais de um ano. O comentário agradecido é bem o reflexo da época: “Vejo que apesar dos teus 40 pareces ter 25; enquanto à mana soubestes unir o físico ao moral; vosso filhinho e meu caro sobrinho achamo-lo muito e muito interessantinho”.

Mãe e irmãos de José Luís da Cunha em finais da década de 1880, tempo em que deram início à correspondência regular mantida até final de vida. Tirado propositadamente para lhe ser enviado, era um dos retratos emoldurados que ornamentavam as paredes da sua casa Arquivo fotográfico de António Pedro de Sottomayor

Estima-se por isso que o início da troca postal regular com a família portuguesa tenha começado nesse ano, ou no anterior. O que a motivou depois de um silêncio de quase quatro décadas não é possível determinar. Eventualmente a nostalgia da meia-idade, aliada ao orgulho de uma vasta prole – tinha oito filhos vivos de um total de onze nascidos – e de estar a cumprir um ideal, singrando de motu próprio entre os plantadores de café. José Luís alimentava, aliás, quando o câmbio o permitisse, a vontade de surpreender em pessoa a mãe 37 - Cartas: 1/4/1894. Em postscriptum José Luís da Cunha pede que as próximas cartas já não sejam enviadas para Santo Eduardo, mas antes para a Estação de Itabapoana.

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e os irmãos, viajando a Portugal na companhia do cunhado – “um bom amigo” – o que nunca se proporcionou.38 Antecipando o mais que provável óbito dos pais e do tio Joaquim, terá sido ao irmão Francisco Barbosa a quem dirigiu as primeiras linhas, endereçadas à quinta da Fontinha do Paço em Estarreja, morada que bem conhecera. Na resposta certamente feliz pelo reencontro, terão chegado as novas bracarenses da mãe e irmãs, a certeza da morte do “bom pai”, e o endereço de Lisboa onde, recém-casado, residia o benjamim Agostinho. Pôde igualmente congratular-se em primeira mão com o triunfo político do mano Francisco, eleito deputado por Estarreja no sufrágio de outubro de 188939. No Brasil, entretanto, um golpe de estado depusera o “bondoso Imperador”, obrigado a exilar-se na Europa. Monarquista, José Luís da Cunha – nome com que maioritariamente se subscrevia – explicava que uma “sedição militar unida aos insignificantes republicanos promoveram sua queda” e pedia ao mano Agostinho o envio de jornais que melhor descrevessem o desembarque da família imperial em Lisboa. “Por enquanto tudo são palhaçadas, veremos no que fica”. E a República afirmou-se, de facto, esperando-se por lá que o mesmo viesse a suceder em Portugal, convicção que José não partilhava por acreditar que “o carácter português é mais firme que o brasileiro”!

Ponte ferroviária e rio Itabapoana, vendo-se ao longe a Pedra do Garrafão, autêntico ícone geográfico da região onde José Luís da Cunha viveu entre 1868 e 1894 Crédito fotográfico: Welliton Campos

À revolução sucedeu um período de violenta convulsão política e social identificado na história brasileira como “República da Espada”. Presidiram então sucessivamente ao 38  - Cartas: 30/11/1891 e 28/11/1892. 39 -  Ibid. 30/11/1889.

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país, em ditadura, dois chefes militares: os marechais Deodoro da Fonseca – “um verdadeiro autómato” – e Floriano Peixoto – “de uma crueldade plácida.”40 Ironizava José Luís a respeito que a dada altura “mandaram passear o Deodoro e chamaram o Floriano; não julgues que há mudança, é tudo a mesma república (na aceção comum). Faz pena ver como ia em progresso este país e como se está realizando o vaticínio de Cotegipe”41. Aludia ao barão daquele título, quando este, vendo aprovada a “Lei Áurea” que abolia a escravatura, se dirigiu à princesa Isabel nos seguintes termos: “Vossa Alteza acabou de redimir uma raça e perder um trono”.42 Desconhece-se em que medida esta notável decisão o afetou, ou ao cunhado, no trabalho dos cafezais, mas sabe-se por seu intermédio que todos os anos, na época da colheita, “nem as crianças ficavam em casa”. Ao vale do Itabapoana que cerca de trezentos quilómetros separavam do teatro de guerra do Rio de Janeiro, apenas chegavam os ecos da turbulência vivenciada na capital. José Luís entendia-se “inteiramente neutral, como estrangeiro, a estas questões”. Adaptando a máxima do tio Joaquim, fora ao Brasil para viver nele e não para se importar com a sua política, como certa vez o escreveu. Essa reserva sempre lhe garantiu uma vida tranquila e a estima da população local43. Manifestava-se, sobretudo, pela ironia das meias-palavras e dos opostos, sendo disso exemplo a sua posição face às primeiras eleições que sufragaram o terceiro presidente da imberbe república: “Fizeram-se as… as eleições e ou por fás ou nefas teve grande votação Prudente de Moraes que deve tomar posse em 15 de novembro. Não sei…”. Em pouco tempo já o definia como um “medroso que não sabe o que há de fazer”, vaticinando-lhe curta duração no seio da “mixórdia” política brasileira. Das fraudes e falsificações que marcaram esse ato eleitoral e se repetiram por décadas, nasceria uma expressão que haveria de fazer história e da qual José Luís da Cunha fez uso em primeira mão: “não sei se estará trabalhando o bico da Mallat”.44 Referia-se ao logro praticado nas próprias mesas eleitorais aquando da elaboração das atas, permitindo registar a presença e voto de pessoas ausentes, defuntas, ou até inexistentes! O historiador e jornalista Francisco de Assis Barbosa, justificou admiravelmente a expressão da seguinte forma que aqui se reproduz pelo seu evidente interesse: “As eleições se faziam mais nas atas que nas urnas. Havia especialistas na matéria. Enchiam laudas e laudas de almaço num paciente exercício de caligrafia, com a caneta enfiada sucessivamente entre cada um dos vãos dos dedos da mão direita, para repetir em seguida os mesmos golpes de habilidade. A pena Mallat 12, a mais comum – era também a mais indicada para semelhante prestidigitação –, 40  - Ibid. 26/7/1895. 41  - Ibid. 30/11/1891. 42  - A “Lei Áurea” foi sancionada pela princesa imperial regente Isabel Cristina Leopoldina de Bragança a 13/5/1888. Apesar de ser abolicionista, o senador João Maurício Wanderley (barão de Cotegipe) foi o único a votar contra a lei pelo seu texto não prever a indemnização dos proprietários, o que acarretou enormes prejuízos (no geral o valor nominal dos escravos excedia o valor das terras) e o descontentamento das elites e fazendeiros, sustentáculos da monarquia. 43  - Cartas: 1/4/1894. 44  - Ibid. Sem data (Finais de março de 1894).

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corria sobre o papel, ora com força, ora com suavidade, o bico virado, para cima ou para baixo, em posições as mais diversas, a fim de que o traço não saísse igual – frouxo, firme, tremido, grosso, firme, bordado, caprichado, mas sempre diferente.”45 O último comentário que se lhe conhece à situação brasileira é de fevereiro de 1896: “Isto por aqui vai às mil maravilhas, ou sobe a monarquia ou leva tudo os diabos”. Embora distante por quase uma vida, no entanto o coração de José Luís nunca deixou de sentir português, vivendo com superior intensidade a política lusa. Nesse particular, o referido convencimento de que no país natal o movimento republicano não teria aceitação, sofreria sério abalo com as notícias da fracassada revolta do 31 de janeiro no Porto. A partir daí é notória a sua crescente preocupação com o futuro próximo do reino: “Não tenho gostado das notícias do nosso Portugal que vai mal; felizmente vão mandando para a costa de África os exaltados republicanos. Deus livre nosso Portugal de tal peste que tem desgraçado o Brasil.”46 Por ali grassavam os boatos que chegaram mesmo a dar como certa a queda da monarquia e consequente fuga de D. Carlos para Inglaterra: “Que susto meu irmão que tomei!!!”

Cachoeira do Inferno, outro dos ícones da região, e um aspeto geral do vale do Itabapoana onde se situavam as terras de José Joaquim da Fonseca, cunhado de José Luís da Cunha. Créditos fotográficos: plataforma “YouTube” e portal “acopiaragora”

Por motivos menos claros, depois da morte da mãe a 27 de fevereiro de 1895, arrefeceu a troca de correspondência entre os irmãos. Um ano mais tarde e recordando a triste 45  - MELO FRANCO, A. A. & QUADROS, J. (1967). História do Povo Brasileiro (Vol. V). São Paulo, Brasil: J. Quadros. Editores Culturais, p. 180. 46  - Cartas: 25/9/1892.

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efeméride, José Luís queixava-se mesmo de ter sido por eles esquecido, sendo que a última carta que recebera fora do mano Francisco e “relativa a inventários. É coisa bem para se sentir; mas enfim porque eu tenha um coração que nele possa abrigar esposa, filhos e irmãos não se segue que o coração dos outros tenha abrigo para tantos. Deixemos.”47 No arquivo do mano Agostinho regista-se em consequência um hiato de cartas ao longo de cerca de catorze anos, até dezembro de 1910. É por isso impossível conhecer as reações do biografado ao atentado régio de 1908, ou mesmo ao decisivo cinco de outubro. Parece, no entanto, que a propósito da implantação da república, retomou a correspondência postal a regularidade de outrora. Do que se ia passando, fora as notícias filtradas dos jornais brasileiros, informavam-no os irmãos a título mais pessoal – Agostinho, por exemplo, além das cartas que lhe chegavam já abertas48 confidenciou-lhe um ataque à sua casa com três granadas – e também os “Campeões” que estes lhe faziam chegar sempre que os acontecimentos o justificavam. Tratava-se, obviamente, do periódico “Campeão das Províncias”, o primeiro jornal aveirense, de orientação liberal, publicado entre 1852 e 1924, que deste modo se fica a saber ser lido até nos confins do sertão brasileiro!

Apenas face ao exemplo português dos tempos persecutórios que estrearam a primeira república – ou “Comuna de Lisboa”49, como lhe chamava – pôde José Luís da Cunha dar tréguas ao congénere modelo político em que vivia. Era indubitavelmente uma alma monárquica e católica reconhecida que escrevia, em janeiro de 1912, que “a república aqui tem ido muito bem não só não perseguindo os monarquistas como tratando com toda a consideração os chefes de religião auxiliando até pecuniariamente as construções religiosas; o que está acontecendo é derramamento de sangue na presidência dos Estados”50.

47  - Ibid. 27/2/1896. A ausência de notícias da família comprova-se pelo facto de só em novembro de 1910 ter sabido da morte do sobrinho Francisco – filho de Francisco Barbosa – ocorrida em novembro de 1898, e de Joaquim Germano de Sequeira – sogro de Agostinho Barbosa de Sottomayor – ocorrida em setembro de 1909. Pensava inclusive que o irmão Francisco já teria morrido, convicção que o “tinha feito derramar muitas lágrimas”. 48 -  Ibid. 26/2/1912. Pelo uso de meias palavras e face à violação de correspondência, é possível subentender um prévio aviso de Agostinho Barbosa de Sottomayor ao irmão no Brasil, assim como a sua resposta assertiva: “(…) com tanta pressa te escrevi que esqueci de pôr o número da rua em que tu moras e confiado no grude que trazem os envelopes segundo dizes chegou aberta (…) terei agora mais cuidado e por cautela subscrevo esta à mana (a cunhada Belmira) não pondo o Sotto Maior”. 49  - Tratava-se de um paralelo alusivo à “Comuna de Paris”, movimento que governou a capital francesa entre março e maio de 1871, considerada por alguns historiadores como a primeira república proletária da história, e vista por Marx e Engels como um exemplo da ditadura do proletariado. Entre as muitas reformas que preconizou no seu curto espaço de vigência salienta-se a laicização do Estado e a sua separação da Igreja. Como princípio para que as novas instituições pudessem florescer, fez-se tábua rasa da velha ordem e tudo o que com ela estava vinculado. 50  - Cartas: 13/1/1912.

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Já ficou visto que esta família de imigrantes portugueses no Brasil, desfrutava do pacato ambiente provinciano em que se inseria. Os sobressaltos advinham essencialmente dos anos de seca, da inconstância do câmbio, e das doenças, das quais em 1891 chegou a vivenciar uma epidemia de sarampo fortemente letal. Influenciado talvez pelo avô materno, José Luís vibrava com a prática médica a que se dedicava por caridade desde os quarenta anos de idade51, descrevendo-se mesmo como um charlatão “muito amolador (…) a tratar ou falar de medicina”52. Entre as suas fontes estariam decerto os manuais de medicina popular do polonês Pedro Napoleão Chernoviz, famosos no Brasil imperial em virtude de aliarem a uma escrita para leigos, os mais atualizados conhecimentos académicos. Dessa forma, esses e outros volumes como os de Imbert, Langaard ou Bonjean, penetravam no Brasil profundo, habilitando curiosos autodidatas, boticários e fazendeiros à prática de uma medicina popular no seio de populações carenciadas, muitas vezes distantes dos recursos médicos encartados. Tal seria o caso dos povoados de Limeira ou Santo Eduardo onde, informados pelos formulários médicos, os boticários já “cumpriam, desde os tempos coloniais, o papel de médicos”, e os fazendeiros passaram também a assumir o papel de curandeiros – ou charlatães conforme o ponto de vista oficial – “praticando uma medicina para os escravos e para os seus familiares, extensiva a colonos e diversas outras pessoas da região.53

Assinaturas e rubrica de José Luís da Cunha

Globalmente bem sucedido nesta atividade, José Luís da Cunha mostrava pelos médicos um soberano desprezo. Considerava-os inclusive “inimigos não escusados e infeliz quem deles precisa”, arrependendo-se até final da vida de se ter precipitado em chamar um desses profissionais para assistir o filho Agostinho, ceifado aos treze anos por doença que o acometeu.54 Esse profundo abalo fá-lo-ia enfrentar com renovado vigor, meses depois, a já citada epidemia extraordinária de sarampo, de tal forma intensa que chegaram a “sair de uma só casa aos dois no mesmo dia”! Por mérito ou simples felicidade, tratando à média de dez a doze casos diários ao longo de um mês, não perdeu um só paciente, mas teve “muitos dias que com a casa cheia de doentes era necessário descansar um pouco para refrescar o miolo”!55 51 - Vd. nota 44. 52  - Ibid. 28/11/1892. 53 - COTRIM GUIMARÃES, M. R. (dezembro de 2008). Os manuais de medicina popular do Império e as doenças dos escravos: o exemplo do “Chernoviz”. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, II (4 (suplemento)), pp. 827-831, 834 e 837. 54  - Vd. nota 44. 55  - Cartas: 30/11/1891.

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À posteriori haveria de comentar, a propósito, que muitos dos óbitos se ficaram a dever à teimosia dos médicos em combater a febre com sulfato de quinino e calomelanos. A acreditar nas suas palavras, nunca fez uso de tais drogas, e em vinte anos de prática “num lugar em que aparecem mais doentes em 6 meses do que nessas grandes Freguesias56 em 6 anos, nunca uma febre teve o desaforo de caçoar comigo 15 dias”.57 Um lugar que não era seu, e onde perdeu quatro filhos ainda crianças. Contudo, o ano de 1894 marcaria o realizar do maior sonho de José Luís e Ana Vitória: “termos um canto que pudéssemos chamar nosso, o que felizmente conseguimos”58. Diversas viagens de prospeção de mercado, acabaram por resultar na compra “magnífica” de uma fazenda que haveria de lhes servir de morada e “para os filhos trabalharem no que há de ser seu”. Situava-se na região norte fluminense, cerca de trinta quilómetros a sudeste das povoações de Santo Eduardo e Itabapoana em cujas imediações a família vivera até ali. Concretamente, os seus terrenos localizavam-se nas faldas do morro do Mico, no que é hoje a zona rural de São Francisco de Itabapoana, município inexistente naquele tempo porque englobado no de São João da Barra. Uma área geográfica de tabuleiro costeiro compreendida entre os rios Itabapoana e Paraíba do Sul, já designada no século XVII como “sertão das Cacimbas”.59

Períodos conhecidos da vida de José Luís da Cunha no Brasil de acordo com a sua localização geográfica 56  - Referia-se a Lisboa, onde a cunhada Belmira convalescia então de uma maleita da qual se chegou a temer o pior. 57  - Vd. nota 44. 58  - Cartas: 6/10/1894. 59  - SOFFIATI, A. (2013). São Francisco de Itabapoana – RJ: ecossistemas Nativos, problemas ambientais e perspectivas futuras. I Encontro Científico da Estação Estadual de Guaxindiba (pp. 10-38). Campos de Goytacazes: Centro de Convenções da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Obtido em 12 de abril de 2020, de http://www.inea.rj.gov. br/wp-content/uploads/2028/12/producao_portal011873.pdf

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Era então uma vasta e húmida “floresta intruncada e escura”, em cujo interior serpenteavam múltiplos ribeiros – ou córregos – paulatinamente cerceados no seu desaguar atlântico por uma restinga em crescendo. Formadas pela menor vazão e o desacelerar da corrente, pululavam diversas lagoas que mais não eram do que grandes poças de águas paludosas – as ditas cacimbas. Porém, José Luís já pouco conheceu dessa realidade de outrora, uma vez que a exploração agrícola do seu século cortara e queimara grande parte dessa mancha verde, desse modo transformada em madeiras nobres, lenha para os engenhos, e férteis áreas de plantio e de pasto. Sobravam as lagoas, a par dos diques que os fazendeiros construíam na ânsia de obterem mais água, algumas vezes privando da mesma os vizinhos a jusante.60 Ainda não era evidente quando ali chegou, mas sob a capa da salubridade aparente que tanto o encantou – “o lugar aonde estou é muito e muito salubre (…) e desde a nossa mudança a 25 de novembro ainda não houve a mais pequena doença”61 – aumentava a secura, desaparecia a fauna e haveria de chegar a devastação contemporânea. A fazenda designava-se oficialmente “Mico” em virtude do morro do mesmo nome que se elevava na vizinhança. José Luís pretendeu desde logo mudar-lhe o nome62, o que se revelou difícil, acabando apenas por “crismá-la” com a expressão do sentimento que lhe ia então na alma perante Deus e a vida: “GRATIDÃO”.63 Pertencera a um casal, cujo cabeça enlouqueceu. Anos mais tarde, morreu a mulher, deixando dois filhos órfãos de mãe e pai insano. Após inventário, coube ao meeiro louco a herança da fazenda e de tudo o que nela se continha. Reagiu o curador dos jovens, requerendo que a mesma fosse a leilão sem, contudo, conseguir atingir o preço de 9 500 réis com que fora avaliada. Depois foi o momento de entrada em cena do emigrante português cuja oferta chegou aos 14 500 réis, ou seja, cinco contos de réis acima do valor base. Previa o acordo feito com o curador em setembro de 1894, um arrendamento de 6 500 réis por um triénio para tirar madeira, e o pagamento de 8 000 réis, metade do qual sinalizou, desde logo, o negócio. Os restantes 4 000 réis seriam pagos – como o foram – um ano depois do assinar da escritura. Porém, baseando-se no facto de estar então em funções um juiz substituto, guarda-livros do anterior e não formado, recusou-se o curador a pedir-lhe a necessária licença para a venda, preferindo aguardar pela nomeação efetiva de um novo juiz, o que só ocorreu em junho do ano seguinte.64 Nessa primavera65 mudou-se a família Fonseca e Cunha, de armas e bagagens, para a nova morada: pai, mãe, e os filhos Artur (19 anos), Maria Benedita (18 anos), Querubina (14 anos), 60  - SOFFIATI, A. (15 de março de 2015). Os córregos de São Francisco de Itabapoana e de Marataízes. (C. Jorge, Ed.) Obtido em 12 de abril de 2020, de Blog do Carlos Jorge: https://carlosjorgepedagogo.blogspot.com/2015/03/os-corregos-desao-francisco-de_15.hrml 61  - Cartas: 26/7/1895. 62  - Ibid. 6/10/1894. 63  - Ibid. 27/1/1911. Trata-se da primeira carta encabeçada com o nome de “Gratidão”. 64  - Ibid. 26/7/1895. 65  - Não é demais lembrar que no Brasil a primavera decorre entre 23 de setembro e 21 de dezembro, e o outono entre 21 de março e 21 de junho.

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José (7 anos), Inácio (5 anos) e a pequena Ana (3 anos) “muito miudinha (…) doente desde que nasceu”, a qual não resistiria ao outono seguinte. O arrendamento das terras convinha a José Luís, uma vez que não pretendia enveredar pelo negócio da madeira, podendo assim levar a cabo o corte e venda de árvores faseado durante os três anos concertados, resultando no final “pastagens feitas que não sou obrigado a pagar, assim como outras quaisquer benfeitorias que faça”66. Em junho investira já três contos de réis, não só na melhoria do cafezal existente – “muito maltratado”67 – como também na plantação de grandes áreas de milho, mandioca e cana de açúcar68. Soube, entretanto, que um novo juiz fora nomeado e apressou-se a viajar as oito léguas que o separavam do curador. Este, sentindo a pressão e subjacente desconfiança acerca da sua honestidade, zangou-se e pretendeu anular o meramente apalavrado negócio, devolvendo os 4 000 réis adiantados. Apesar de tudo, terminaram concertadas as partes, combinando-se a entrega da escritura em quinze dias. Uma espera que José Luís e Ana Vitória passaram em sobressalto, dadas as notícias que correram – inclusive da boca da própria mulher do curador – que os órfãos não concordavam com a venda e que um deles acabara de completar a maioridade. Enfim lá se assinou definitivamente a escritura, cumprindo o biografado o sonho que o movera à Terra de Vera-Cruz69.

Vista geral do município de São Francisco de Itabapoana com mancha assinalada da área, localização e orientação aproximadas da fazenda “Mico” que pertenceu a José Luís da Cunha 66  - Cartas: 26/7/1895. 67  - Ibid. 68  - Ibid. 6/10/1894. 69  - Ibid. 26/7/1895.

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Era agora um fazendeiro de fôlego, cujos domínios apresentavam grosso modo cerca de dois quilómetros de testa (950 braças) por quase três quilómetros e meio de fundo (1 500 braças). Uma área total que rondava os sete milhões de metros quadrados (150 alqueires de 100 braças quadradas70) que valeu o comentário do mano Francisco de que “ela era maior que todas as propriedades dele”71. Convém notar que Francisco Barbosa era já à época detentor de um extenso rol de bens, herdados e adquiridos, nos quais se incluíam a quinta da Fontinha do Paço em Estarreja, a quinta e morgado de São Paio em Mouçós (Vila Real), a quinta solar de Azevedo em Lama (Barcelos), e outras propriedades no Porto, Braga, Póvoa de Varzim e Vila do Conde, e nas freguesias de Mazarefes, Junqueira e Balasar, entre outras! Não foi possível localizar com precisão esse território, e muito menos traçar-lhe o contorno. Apenas algumas pistas permitiram um exercício dedutivo nesse sentido, que nem mesmo os contactos encetados via internet junto de alguns elementos da comunidade de São Francisco de Itabapoana permitiram esclarecer. Das cartas de José Luís, sabe-se que ficava junto do morro denominado “Mico”, perto de “Santa Luzia”, e a légua e meia da agência postal “Santo Amaro” que recebia correio de três em três dias por condutor de malas desde São Francisco de Paula, capital do futuro município.

Contactado a propósito desta pesquisa, o filatelista Paulo Novaes esclareceu que aquela agência postal fora criada em 5 de novembro de 1892 com o nome de “São Luís Gonzaga” e renomeada “Santo Amaro” quatro meses mais tarde, assim se mantendo até 1969. Desde então ter-se-ia denominado “Maniva” e ultimamente “Ponto de Cacimbas”.72 Suporta esta afirmação o facto de ter existido desde 1874 em São João da Barra um distrito chamado “São Luís Gonzaga”, o qual se renomeou “Maniva” por decreto estadual de 1943, e hoje é o terceiro distrito do município de São Francisco de Itabapoana. Justamente o povoado de “Santa Luzia”, em cujas imediações se situa a fazenda “Mico”, é um dos dezasseis bairros que integram esse distrito73. No que concerne à distância de légua e meia da fazenda à agência postal, o mais provável é que José Luís da Cunha se baseasse na chamada “légua brasileira”, equivalente a 3000 braças (6,6 km), ou aos sete quilómetros a que “os mais antigos” ainda se referem74. 70 - O alqueire de 100 braças quadradas referido por José Luís da Cunha é o chamado “alqueire fluminense ou geométrico”, e corresponde a 4,84 hectares. Como a fazenda “Mico” media cerca de 150 desses alqueires, a sua área aproximada era de 726 hectares. 71  - Cartas: 26/7/1895. 72  - NOVAES, P. (2011). São Francisco de Itabapoana. (P. NOVAES, Ed.). Obtido em 15 de abril de 2020, de Agencias Postais. História Postal do Rio de Janeiro através de suas agencias e seus carimbos: http://agenciaspostais.com.br/?page_id=373. Os esclarecimentos complementares decorreram de uma troca de emails ocorrida entre 28/3 e 9/4/2020. 73  - O Brasil subdivide-se administrativamente e por ordem decrescente de grandeza, em Estados, Municípios, Distritos e Bairros. No caso particular tem-se: estado do Rio de Janeiro, município de São Francisco de Itabapoana, distrito de Maniva e bairro de Santa Luzia. 74  - Wikipédia, entrada “Légua”. https://pt.wikipedia.org/wiki/Légua

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Uma outra fonte, de cariz legislativo, é o único rasto atual na internet a mencionar especificamente a fazenda “Mico”. Trata-se da Lei nº 2379, de 18 de janeiro de 1995 que cria o município de São Francisco de Itabapoana, a ser desmembrado do município de São João da Barra. Na descrição dos limites intermunicipais a oeste, surge a menção à dita propriedade, a par da fazenda “Pedra Santa”, ambas entre a estrada “Boa Vista-Bom Jardim” e o córrego Pedra Santa”75. Aliando os cerca de dez quilómetros (légua e meia) até “ManivaPonto de Cacimbas” onde se localizava a agência postal, e seguindo os contornos descritos na lei com o auxílio do programa informático “Google Earth”, é possível sugerir a provável localização da sede da fazenda, sem contudo uma certeza definitiva, a qual se espera, num futuro próximo, possa ser confirmada ou corrigida.

Localização provável da fazenda “Mico”, com os contornos dos limites intermunicipais a oeste e a distância de 10, 7 km (em linha reta) até à agência postal de Maniva (antiga “Santo Amaro”)

Conforme já esperava, o primeiro ano deu fraco rendimento. Como modo de enfrentar o problema, em agosto de 1895, dois meses depois da compra da fazenda, José Luís retomou a prática de charlatão, desta feita cobrando pelas consultas o que lhe rendeu, em meio ano, perto de um conto de réis. Nos alvores de 1896, depositava toda a sua esperança na prevista colheita que deveria suplantar as mil arrobas de café (quinze toneladas), permitindo-lhe desse modo “endireitar as finanças”.76 Depois, o hiato na correspondência impede qualquer avaliação do modo como decorreram os anos subsequentes, e apenas em janeiro de 1911 se 75  - Jusbrasil, Lei nº 2379, de 18 de janeiro de 1995. https://gov-rj.jusbrasil.com.br/legislacao/150771/lei-2379-95 76  - Cartas: 6/10/1894 e 27/2/1896.

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conhece uma séria ameaça de seca capaz de estragar muitas plantações. “O que aí está sendo demais está-nos faltando aqui. Aí estão tremendo de frio e nós aqui suando.”77 A história da produção de café no Brasil relata que já então se vivia o ciclo decadente dos cafezais do tabuleiro norte fluminense.Vítimas de técnicas inadequadas de plantio e cultivo, do mau uso da terra e consequentes alterações climáticas que alteraram a vital regularidade pluviométrica da serra, sofriam ainda a concorrência das florescentes plantações do oeste paulista.

Provável sede da fazenda “Mico”. Identificação deduzida pelo autor e da sua exclusiva responsabilidade, utilizando as fontes disponíveis e o programa informático “Google Earth”

Por oposição, à beira de cumprir os setenta e nove anos, José Luís da Cunha mantinhase forte e de boa saúde. Há mais de vinte anos que usava óculos para ler e escrever, estava um pouco surdo, mas tinha fígado, baço e pulmões perfeitos.78 Apenas uma hérnia lhe complicava a vida, chegando a estar, certa vez, cinco dias deitado de costas alimentando-se unicamente de gemadas!79 Ana Vitória com menos treze anos, também estava forte “mas um tanto sentindo os estragos dos 64, igualando-me no prazer que tenho em receber cartas daí”.80

77  - Ibid. 27/1/1911. 78  - Ibid. 26/2/1912. 79  - Ibid. 8/9/1911. 80  - Ibid. 10/11/1911. Ana Vitória da Fonseca desconhecia a sua idade real. Nascera, de facto, a 11/7/1845 na freguesia de Aião, concelho de Felgueiras, tendo assim 66 anos em novembro de 1911. A consulta aos livros paroquiais de Aião revelou uma proximidade dos pais à família Silva Teles, das casas do Telhado e do Cimo da Vila (Sernande), a qual se poderá talvez explicar em virtude de Guilherme Joaquim, pai de Ana Vitória, ser filho de pais incógnitos e ter sido exposto na roda. Essa família com origem nos Teles de Meneses de Unhão, tinha propriedades e interesses no Brasil, facto que pode justificar a presença dos Fonseca no outro lado do Atlântico.

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Emigrado há sessenta anos, José Luís tornara-se o patriarca de uma numerosa família brasileira, com doze filhos dos quais viviam sete, e vinte e nove netos sobreviventes de um total de quarenta e oito, “todos brancos; tenho tido nisso muito capricho”81! De todos fez relação em 191182, derradeiro elenco chegado até ao presente da descendência deste ramo dos Barbosa da casa estarrejense da Fontinha, e que seguidamente se transcreve devidamente completado com informação dispersa retirada do conteúdo das suas missivas. 1 – FRANCISCO BARBOSA SOTTO MAIOR DA FONSECA E CUNHA, nascido em 15 de agosto de 1869, provavelmente em Limeira do Itabapoana. Recebeu o nome do tio paterno, o que prova a muita estima dedicada pelo pai ao irmão mais velho junto de quem cresceu. Casou com MALVINA NAZIANZENO DA SILVA “excelente menina filha de muito boa família” em 26 de novembro de 1892, data do vigésimo quarto aniversário do casamento dos pais José Luís da Cunha e Ana Vitória da Fonseca. A festa foi em casa “com tudo o que de melhor havia nas redondezas”, reunindo mais de duzentas pessoas. Não houve baile por a família estar de luto em virtude do falecimento recente da tia – primeira mulher de José Joaquim da Fonseca – vítima de tísica pulmonar. Não fora o caso e talvez o baile “se compusesse de cinquenta pares, tal era a plêiade de moças”.83 O casal parece ter-se mantido a viver nas imediações de Santo Eduardo ou de Itabapoana, mesmo depois da mudança dos pais para a fazenda “Mico” – crismada “Gratidão” – no sertão das Cacimbas. Foram seus filhos: 1.1 – MANUEL, nascido a 11 de março de 1896. 1.2 – JOÃO, gémeo do anterior. 1.3 – IRENE, nascida a 18 de maio de 1898. 1. 4 – FRANCISCO, nascido a 21 de abril de 1899. 1.5 – ANA, nascida a 11 de junho de 1902. 1.6 – JOAQUIM, nascido a 27 de fevereiro de 1904. 1.7 – JOSÉ, nascido a 20 de setembro de 1905. 1.8 – MARIA, gémea do anterior, falecida em criança assim como outros cinco irmãos não identificados. 2 – MARIANA, nascida em 8 de outubro de 1870, provavelmente em Limeira do Itabapoana. Primeira menina da família, levou o nome da avó paterna pelo muito amor que José Luís dedicava à mãe, uma mulher “que tanto amava seus filhos nunca se esquecendo nem mesmo deste que há quarenta e tantos anos vive exilado”.84 Em novembro de 1889, com dezanove anos cumpridos, Mariana já tinha casamento tratado com ANTÓNIO DOS SANTOS GRANJEIA – também emigrante português - acontecendo a cerimónia em janeiro do ano seguinte. Era filho de Manuel dos Santos Granjeia e Rosaria Miguelo, todos naturais da freguesia de Covões, concelho de Cantanhede. “Este meu genro” – escreveu José Luís da Cunha a dado momento – “não prima pela inteligência mas me estima 81  - Ibid. 8/12/1910. 82  - Ibid. 8/9/1911. Nesta carta veio apensa a relação de filhos e netos de José Luís da Cunha. 83  - Ibid. 28/11/1892. 84  - Ibid. 27/2/1896.

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muito e é um excelente chefe de família; tem uma bonita situação com um fabrico de açúcar”.85 Cabe aqui ressaltar que o ciclo do açúcar no norte fluminense atingiu o seu auge precisamente nos anos setenta do século XIX. Localizavam-se as fazendas e respetivos engenhos junto dos cursos de água, de modo a otimizar a sua produção, sendo por isso de crer que este casal tenha vivido também no vale do Itabapoana. Após dois abortos iniciais, Mariana finalmente “deu coisa que se visse”86: 2.1– MARIA, nascida a 13 de setembro de 1892, e batizada no mesmo dia do casamento dos tios Malvina e Francisco. Já tinha falecido em julho de 1895. 2.2 – ROSARIA, nascida a 16 de maio de 1895 e falecida no decurso de algumas semanas. 2.3 – JOSÉ, nascido a 7 de setembro de 1897. 2.4 – JOAQUINA, nascida a 24 de dezembro de 1898. 2.5 – SENHORINHA, nascida a 25 de abril de 1900. 2.6 – MARIA DA CONCEIÇÃO, nascida a 5 de janeiro de 1902. 2.7 – MANUEL, nascido a 31 de agosto de 1904. 2.8 – FRANCISCO, nascido a 13 de janeiro de 1906. 2.9 – ANTÓNIA, nascida a 20 de maio de 1908. 2.10 – ARNALDO, nascido a 27 de junho de 1911. Outros cinco não identificados morreram crianças, assim como uma menina de doze anos. 3 – JORSELINO, nascido em 1 de abril de 1872 e falecido a 2 de abril do ano seguinte, provavelmente em Limeira do Itabapoana. 4 – ARTUR BARBOSA DA FONSECA E CUNHA, nascido em 8 de janeiro de 1874, provavelmente em Limeira do Itabapoana. Acompanhou os pais na mudança para o sertão das Cacimbas e lá casou com LAURENTINA CRESPO MOÇO em 27 de junho de 1903. O casal parece ter vivido junto de pais na fazenda “Mico-Gratidão”, onde lhes terão nascido os filhos seguintes: 4.1 – ALTER, nascido a 3 de junho de 1904. 4.2 – JOSÉ, nascido a 25 de dezembro de 1905. 4.3 – LAURENTINO, nascido a 16 de janeiro de 1908. 4.4 – ANA, nascida a 5 de janeiro de 1911. 5 – MARIA BENEDITA, nascida em 20 de agosto de 1875, provavelmente em Limeira do Itabapoana. Recebeu o nome da única irmã de José Luís que também viveu de pequena em Estarreja. Casou a 24 de setembro de 1896 com MANUEL CURTINHAS DA SILVA, de origem portuguesa, filho talvez de Joaquim Curtinhas da Silva e Maria Amélia Pereira da Silva fundadores da família Curtinhas de Bom Jesus do Itabapoana, 85  - Ibid. 27/1/1911. 86  - Ibid. 25/9/1892.

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RJ. O casal terá vivido provavelmente em Santo Eduardo, onde o apelido ainda se mantinha em finais do século XX, e uma das ruas homenageia a memória de Joaquim Curtinhas da Silva. Tiveram os filhos que seguem: 5.1 – VALDEMAR, nascido a 9 de outubro de 1902. Foi salvo pelas práticas de saúde do avô José Luís da Cunha87. 5.2 – ANA, nascida a 1 de agosto de 1904. 5.3 – MARIA JOAQUINA, nascida a 5 de dezembro de 1907. 5.4 – AGUINALDA, nascida a 28 de abril de 1910. Outros cinco não identificados morreram crianças. 6 – AGOSTINHO, nascido em 5 de maio de 1877, provavelmente em Limeira do Itabapoana. Recebeu o nome do bisavô paterno e do irmão mais novo do pai. Faleceu em Santo Eduardo ou em Itabapoana a 11 de dezembro de 1890, com catorze anos, e a sua morte inesperada causou a José Luís um profundo desgosto: “Passei uma quadra dolorosíssima, receei até perder a razão e creio se não realizassem as tuas previsões88 que me não deixavam tempo para pensar nesse ente tão querido julgo que enlouquecia”. 7 – QUERUBINA, nascida em 3 de fevereiro de 1879, provavelmente em Limeira do Itabapoana. Acompanhou os pais na mudança para o sertão das Cacimbas e casou a 19 de fevereiro de 1898 com DAMÁSIO PEREIRA DE MACEDO, filho de portugueses. Atualmente uma das escolas do município tem o nome de “Benedito Pereira Macedo”, mas não foi possível esclarecer a eventual relação familiar. O casal parece ter vivido na área do que é hoje o município de São Francisco de Itabapoana, RJ. Foram seus filhos: 7.1 – MANUEL, nascido a 19 de setembro de 1901. 7.2 – MARIA, nascida a 24 de novembro de 1903. 7.3 – DAMÁSIO, nascido a 20 de abril de 1905. 7.4 – QUERUBINA, nascida a 19 de fevereiro de 1907. 7.5 – TERESA, nascida a 17 de março de 1911. 8 – ROSALINA, nascida em 3 de maio de 1881, provavelmente em Limeira do Itabapoana, e falecida em 8 de dezembro de 1885. 9 – PEDRO, nascido em 16 de julho de 1883, provavelmente em Limeira do Itabapoana, e falecido a 2 de julho de 1885. A sua morte, bem como a da irmã Rosalina, ambas ocorridas em 1885, podem ter sido determinantes para a mudança da família, no ano seguinte, para as terras do cunhado, em Santo Eduardo ou Itabapoana. 10 – JOSÉ BARBOSA DA FONSECA E CUNHA, nascido em 3 de maio de 1886, provavelmente em Santo Eduardo ou Itabapoana. Acompanhou os pais na mudança para 87 -  Ibid. 8/12/1910. 88  - Ibid. 30/11/1891. Dirigia-se ao irmão Agostinho que fizera um paralelo meteorológico entre ambos os países, sugerindo que se em Portugal o muito frio tinha feito vítimas, o muito calor no Brasil também as faria.

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o sertão das Cacimbas. Casou em 5 de março de 1910 com CORINA MARIA DA CONCEIÇÃO, e o casal terá vivido junto dos pais na fazenda “Mico-Gratidão”, onde lhes nasceu, pelo menos, uma filha: 10.1 – TERESA, nascida a 26 de março de 1911. 11 – INÁCIO BARBOSA DA FONSECA E CUNHA, nascido em 28 de fevereiro de 1888, provavelmente em Santo Eduardo ou Itabapoana. Acompanhou os pais na mudança para o sertão das Cacimbas e com eles viveu na fazenda “Mico-Gratidão”. Era solteiro em 1912. 12 – ANA, nascida a 5 de abril de 1891, provavelmente em Santo Eduardo ou Itabapoana. “Nascida aleijadinha sem nunca falar nem andar, morreu com 4 anos de idade” na fazenda “Mico-Gratidão”. A primavera de 1911 viu José Luís da Cunha “um pouco mofino, mas não é coisa de cuidado”. Parecia adivinhar que um ano volvido, em outubro de 1912, lhe sobreviria uma grave crise renal durante a qual “teve a esperança perdida de completar os 80”.89 Incharam-lhe pernas e pés, e passou muitas noites em aflição, sem conseguir dormir com dores. Porém em meados de dezembro já tinha melhorado o suficiente de modo a esperar “para o Natal poder comer bacalhau”! E certamente que o fez, e a 1 de abril seguinte também cumpriu as oito décadas de vida. Sucumbiria, contudo, ao inverno de 1813, falecendo no dia 17 de agosto. Coube naturalmente à inconsolável viúva a tarefa de participar a triste nova aos cunhados. Fê-lo apenas um mês mais tarde “por falta de papel”, e unicamente ao mano Agostinho por desconhecer a direção de Francisco Barbosa, pedindo-lhe ainda o favor de avisar a família, e de ter a bondade de logo lhe responder informando a dita morada em falta. A carta, cumprindo os preceitos sociais da época, deveria ser dirigida não a ela, mas ao filho Artur.90

Assinatura de Ana Vitória, esposa de José Luís da Cunha

Percebe-se que os Fonseca e Cunha se debatiam, já então, com algumas dificuldades financeiras. De tal forma que para satisfação do último pedido paterno de que “não deixasse os seus ossos rolar sobre a terra”, o mesmo Artur, padecendo já aos quarenta anos de muitas artroses, não se coibiu ele próprio de construir um jazigo sobre a sepultura do pai. São também suas as afirmações posteriores de que José Luís deixara os negócios muito enrolados, e toda a família disso se ressentia, especialmente Ana Vitória, já septuagenária.91 89  - Ibid. 13/12/1912. 90  - Ibid. 18/9/1913. 91  - Ibid. 18/8/1916

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Baseado na convicção paterna de que os irmãos “estavam em muito boas posições e que a todo o tempo que nos atrapalhássemos (…) teria a certeza de que haviam de nos auxiliar”, Artur Barbosa da Fonseca e Cunha apelou diversas vezes por escrito ao tio Francisco Barbosa, só obtendo resposta em maio de 1916. Não há dados que permitam saber se houve, ou não, alguma ajuda concreta da parte do antigo deputado e autarca de Estarreja aos sobrinhos brasileiros. A ter havido, não foi suficiente, e Artur dirigiu-se ainda ao tio Agostinho a quem, de passagem, pediu notícias do “bondoso primo e amigo Conde de Azevedo”.92

Assinatura de Artur, varão segundogénito de José Luís da Cunha, o qual ficou à cabeça da fazenda “Mico-Gratidão” depois da morte do pai

A informação de um novo endereço postal para os envios de correspondência futuros, sugere a deslocação da família Fonseca e Cunha para outras paragens situadas cerca de vinte quilómetros a sul, em “Conselheiro Josino”, bairro do município de Campos de Goytacazes. É provável, por isso, que em 18 de agosto de 1916 – data da última carta existente no arquivo de Agostinho Barbosa Sottomayor – já a fazenda “Mico-Gratidão” estivesse na iminência de sair da posse da família, quiçá alienada face aos compromissos a atender. Se assim foi, esfumou-se ingloriamente o sonho da vida de José Luís da Cunha.

Estação ferroviária de “Conselheiro Josino” onde se situava a agência postal do mesmo nome, último endereço conhecido da família Barbosa da Fonseca e Cunha Crédito fotográfico: Carlos Latuff

O mano Francisco morreu a 21 de maio de 1921. O mano Agostinho a 11 de abril de 1923. Eram os últimos daquela geração. A sua ausência encerrou o canal transatlântico que unia os Barbosa de Estarreja. Depois… cem anos de silêncio… que o autor destas linhas vai teimando em quebrar! 92  - Ibid.

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FONTES E BIBLIOGRAFIA FONTES MANUSCRITAS ADAVR – Arquivo Distrital de Aveiro Livros Paroquiais da freguesia de Beduído UM-ADB – Universidade do Minho - Arquivo Distrital de Braga Livros Paroquiais das freguesias de Parada de Tibães, São Vítor e Sé ADPRT – Arquivo Distrital do Porto Livros Paroquiais da freguesia de Aião Passaportes nacionais para fora do reino ADVCT – Arquivo Distrital de Viana do Castelo Livros Paroquiais da freguesia de S. Paio dos Arcos de Valdevez AUC – Arquivo da Universidade de Coimbra Índice de Alunos da Universidade de Coimbra, letra F, nº M/005964; letra J, nº M/006150; letra M, nº 002155 e letra P, nº C/014396 Cartas de José Luís da Cunha ao irmão Agostinho Barbosa de Sottomayor Notas familiares redigidas por António Fernando de Sequeira Barbosa Sottomayor FONTES IMPRESSAS COTRIM GUIMARÃES, M. R. (dezembro de 2008). Os manuais de medicina popular do Império e as doenças dos escravos: o exemplo do “Chernoviz”. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, II (4 (suplemento)), pp. 827-831, 834 e 837 Genealogia da Família Sá no Brasil. Rio de Janeiro, Rio Grande, São Paulo e Bahia. Apontamentos coligidos por Carlos Grandmasson Rheingantz, 1937-1940 Jornal “A Nação”, Órgão do Partido Legitimista, 1 de dezembro de 1885 Jornal “Progressista”, Periódico político, literário e comercial, nºs 21 e 22 de 29 e 30 de outubro de 1846 MELO FRANCO, A. A. & QUADROS, J. (1967). História do Povo Brasileiro (Vol. V). São Paulo, Brasil: J. Quadros. Editores Culturais INTERNET Jusbrasil, Lei nº 2379, de 18 de janeiro de 1995. https://gov-rj.jusbrasil.com.br/legislacao/150771/lei-2379-95 NOVAES, P. (2011). São Francisco de Itabapoana. (P. NOVAES, Ed.). Obtido em 15 de abril de 2020, de Agencias Postais. História Postal do Rio de Janeiro através de suas agencias e seus carimbos: http:// agenciaspostais.com.br/?page_id=373 NOVAES, P. (2016). Agencias gêmeas Santo Eduardo. Duas localidades “Santo Eduardo” separadas pelo rio Itabapoana. (P. NOVAES, Ed.). Obtido em 15 de abril de 2020, de Agencias Postais. História Postal do Rio de Janeiro através de suas agencias e seus carimbos: http://agenciaspostais.com.br/?page_id=20075 SOFFIATI, A. (2013). São Francisco de Itabapoana – RJ: ecossistemas Nativos, problemas ambientais e perspectivas futuras. I Encontro Científico da Estação Estadual de Guaxindiba (pp. 10-38). Campos de Goytacazes: Centro de Convenções da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Obtido em 12 de abril de 2020, de http://www.inea.rj.gov.br/wp-content/uploads/2028/12/producao_portal011873.pdf SOFFIATI, A. (15 de março de 2015). Os córregos de São Francisco de Itabapoana e de Marataízes. (C. Jorge, Ed.) Obtido em 12 de abril de 2020, de Blog do Carlos Jorge: https://carlosjorgepedagogo.blogspot. com/2015/03/os-corregos-de-sao-francisco-de_15.hrml Wikipédia

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O CONCELHO DE ESTARREJA EM 1865 Delfim Bismarck Ferreira* Quase acidentalmente, no âmbito de uma pesquisa sobre o concelho de Albergaria-aVelha, tropeçamos num antigo “Diario de Lisboa”, datado de 1865, o qual contem informações importantíssimas para o conhecimento do concelho de Estarreja na segunda metade do século XIX.

Cabeçalho do “Diario de Lisboa”, n.º 167, de 28 de Julho de 1865

Essas informações, referem-se à caracterização da população trabalhadora do concelho de Estarreja, identificada por freguesias, sexo, idades, tipologias, etc., mas também sobre as indústrias locais (moinhos de água e de vento, fornos de telha e de tijolo, lagares de vinho e de azeite, teares e oficianas de palitos fosfóricos), e as pescas (pescadores, companhas, barcos e sua tipologia, redes e espécies capturadas), entre outros pormenores que permitirão ao leitor e ao investigador daqui extrair um sem número de informações úteis para um melhor conhecimento da sua freguesia, do seu concelho e da região em torno da Ria de Aveiro. Estes dados eram reunidos pela Direcção Geral dos Trabalhos Geographicos, Estatisticos e de Pesos e Medidas (Repartição de Pesos e Medidas), para a Estatistica Industrial do Districto de Aveiro:

* Historiador e Conservador de Museu

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DELFIM BISMARCK FERREIRA

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Mappa da população e numero de fogos Número de habitantes Do sexo masculino Do sexo feminino 15:462 16:237

Número de fogos 8:726

Total 31:669

Diversos estabelecimentos de pequena industria Freguezias

Avanca Beduido Bunheiro Canellas Fermelã Murtosa Pardilhó Salreu Veiros Total

Moinhos De agua

De vento

7 3 9 7 4 16 2 68

1 1 2

Fornos de telha e tijolo 3 3

Lagares De vinho

De azeite

26 12 4 14 14 3 6 18 3 100

1 1

Teares

20 10 10 8 5 15 10 10 6 94

Officinas de palitos phosphoricos 3 3

Moinhos Os moinhos moem durante o anno 17:570 hectolitros de milho. Os mesmos moinhos dão emprego a 120 pessoas de ambos os sexos, incluindo menores de 16 annos. As conducções de grão e farinha feitas por 80 cavalgaduras, termo médio, durante o anno. Fornos de telha e tijolo Empregam-se no fabrico de telha e tijolo 460:000 kilogrammas de barro, procedente de Fontella, logar proximo do sitio onde se acham estabelecidos os fornos; custa cada kilogramma de barro 0,17 réis. Fabricam-se annualmente 415 milheiros de telha e 218 milheiros de tijolo, vendendo-se este a 2$950 réis o milheiro, e aquella a 2$980 réis. Consomemse nas coseduras 1:460 steres de ramada de pinheiro e lenhas miúdas, a 300 réis o stere. Empregam-se no fabrico durante o anno 12 socios e suas familias, que não ganham salario. Lagares de vinho No anno de 1862 só trabalharam em todo o concelho 30 lagares, nos quaes se fabricaram 687,90 hactolitros de vinho, valendo 6$289 réis o hectolito. Empregaram-se n’este fabrico 30 lagareiros e 60 trabalhadores, ganhando os primeiros 300 réis diarios, e os segundos a 200 réis. O producto foi consumido pelos proprios fabricantes ou lavradores. [ 65 ]


DELFIM BISMARCK FERREIRA

Lagares de azeite Foi muito diminuto o fabrico de azeite no anno de 1862 nos dois lagares do concelho, já pela escassez da colheita da azeitona, já pelo pequeno numero de lagares; a fabricação apenas foi de 10 hectolitros de azeite, o qual não foi vendido pelas fabricantes, mas que poderia ter o valor de 12$000 réis cada hectolitro, sendo empregados nos trabalho dos lagares 2 lagareiros e 4 trabalhadores, ganhando os primeiros a 300 réis e os segundo a 240 réis durante alguns dias de trabalho. Teares Nos teares tecem durante o anno 2:500 metros de burel, 3:000 metros de serguilha, 12:000 metros de panno de linho e 6:000 metros de estopa, sendo vendida mais de metade de cada um dos mencionados productos pelas feiras do concelho e dos concelhos proximos, pelos preços de 350 réis o mero de burel, 400 réis o metro de serguilha, 300 a 800 réis o metro de panno de linho, e 180 réis o metro de estopa. Alem dos tecidos acima mencionados, tecem-se annualmente mais de 100 mantas e 2:000 cintas, que se vendem pelos preços de 4$500 réis cada manta, e 800 réis cada cinta. Fazem-se á agulha mais de 200 camizolas e 300 barretes, sendo o preço d’estes a 350 réis cada um, e o d’aquellas a 1$000 réis, preços medios. Officinas de palitos phosphoricos Estas officinas empregam annualmente em chlorato de potassa, sulfureto de antimónio, enxofre e pinho 160$000 réis, produzindo 1:220 grozas de caixas de phosphoros, que vendem por 600 réis a 720 réis cada groza. Emprega cada uma das officinas 2 operarios, ganhando a 200 réis diários cada um. Esclarecimentos sobre florestas O concelho de Estarreja tem de comprimento 16 kilometros de N. a S., e 10 kilometros de E. a O. Na superficie de todo o concelho comprehendem-se 3:400 hectares proximamente, que contêem pinhaes, os quaes em algumas localidades servem para sustentar as areias e evitar o assolamento das povoações marítimas. Julga-se que a superficie que contém pinhaes, e na qual se póde fazer o corte annual, é de 190 hectares, sendo de 20 hectares a superficie que contém carvalhos e outras differentes arvores, que tambem se offerecem ao corte annual. Com as bases que mencionámos deduzimos os dados seguintes em relação ao referido corte, servindo-nos tambem de guia algumas informações especiaes: 17:000 metros cúbicos de madeira de pinho, a 2$500 réis …………............ 8:500$000 26:000 steres de chas de pinho, a 800 réis ……………………………...... 20:800$000 28:000 carradas de França e ramada de pinheiro, a 400 réis …...………….. 11:200$000 9:000 carradas de matos, a 380 réis ……………………....…………...….. 3:420$000 Caruma e lenhas miudas, a 1$000 réis por hectare …......…………………. 3:400$000 300 metros cúbicos de differentes madeiras, a 6$000 réis ……………………. 1:800$000 ------------------------------------------49:120$000 [ 66 ]


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A maior parte das madeiras e lenha, e outros productos mencionados, é consumida pelos lavradores, proprietários e outros habitantes do concelho, saindo muito pouca quantidade de madeiras e lenhas para fora do mesmo concelho. Mappa do numero de barcos de mar e outros, que se constroem annualmente no concelho de Estarreja Localidade onde são Avanca Bunheiro Murtosa Pardilhó

Numero de bateiras 2 4 20 4 30

Numero de barcos grande do mar e varinos 3 3 37 3 46

Numero de barcos moliceiros 2 3 2 2 9

Total 7 10 59 9 85

O preço medio dos barcos grandes, a que chamam barcos de mar, é de 100$000 réis, e o dos barcos moliceiros é de 30$000 réis. Mappa do numero de pescadores e material empregado na industria da pesca Numero de companhas

Numero de pescadores Estações maritimas

Numero de barcos

Numero de redes

Maiores de 14 annos das companhas de mar

Maiores de 14 annos das companhas da ria

Manores de 14 annos das differentes companhas

Do mar

Da ria

Grandes

Pequenos

Grandes de arte

Pequenas

1:000

345

589

7

90

16

150

32

150

Costa da Torreira, Murtosa e ria

Estações Marítimas

De cada barco grande

De cada barco pequeno

De cada rede grande de arte

De cada rede pequena

Da armação de um barco e restantes utensilios de uma companha de mar

Total de material de pesca

Costa da Torreira, Murtosa e ria

100$000

12$000

260$000

10$000

1:600$000

24:420$000

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DELFIM BISMARCK FERREIRA

Observações – O numero de pescadores de cada companha, que pescam nas costas da Torreira e Murtosa, não é menor de 120 pescadores maiores e 50 rapazes, pois que nem todas as campanhas têem o mesmo numero de homens. O numero de pescadores de cada uma das companhas da ria é muito variável, havendo algumas que têem apenas dois pescadoresm entretanto que outras têem dez. A pesca nas costas acima mencionadas principia ordinariamente nos meses de abril ou maio, e finda em Outubro ou Novembro. Depois de acabada a pesca nas costas da Torreira e Murtosa, uma grande parte dos pescadores se ausenta, indo para Lisboa e costas do Algarve juntar-se a algumas companhas d’estas costas, por isso que a pesca na ria de Aveiro é nos meses referidos muito diminuta. A qualidade de peixe de que abundam mais as mencionadas paragens marítimas, Torreira e Murtosa, é a da sardinha; algumas vezes porém acontece virem nas redes outras differentes qualidades de peixe em abundância, sendo estas corvinas, pescadas, capatões, ruivos e peixes gallos, e ainda algumas outras qualidades de peixe miúdo. Na ria pescam-se principalmente enguias, linguados e solhas, ainda em algumas estações do anno saveis e lampreias.

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TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

A EMBARCAÇÃO TRADICIONAL COMO ARTEFACTO E O HOMEM ARTESÃO: O MESTRE CONSTRUTOR NAVAL DA RIA DE AVEIRO Etelvina Resende Almeida*

A EMBARCAÇÃO TRADICIONAL COMO ARTEFACTO 1 Embarcação, barco, barca, bateira, batel, bote. Como denominamos este ente material? No presente estudo, seguindo na óptica do design e no âmbito da minha Dissertação de Mestrado2, ancorada pelos estudos de diversos autores, abordo a relação entre o artefacto, a embarcação tradicional e o artesão, o Mestre Construtor Naval3, seu criador, destacando a importância de ambos no meio sociocultural e identitário da Região Lagunar. Quando nos referimos a uma embarcação4, pressupõe-se que se trata de qualquer tipo de barco ou navio, bote ou batel. O termo designa qualquer construção ou artefacto produzido pelo homem e destinado a transportar, à superfície da água, pessoas, objectos ou matérias e abrange construções estanques, como o barco e não estanques, como a jangada. Em sentido restrito, designa um barco pequeno, por oposição a um navio, um barco grande. As embarcações contam-se entre as mais antigas e importantes aquisições tecnológicas do Homem, que soube aproveitar os materiais existentes nas várias regiões que habitava, trabalhando-as diferentemente5. * Etelvina Resende Almeida, nasceu em 1969 e é natural de Aveiro | Licenciou-se em Design pela Universidade de Aveiro, tendo terminado o Mestrado, em Dezembro de 2012, com o tema: Embarcações Tradicionais da Ria de Aveiro. Uma análise pelo Design. | É Designer da Comunicação, em regime de freelancer. | Integrou o projecto Postais solidários, no concelho da Murtosa, na vertente fotográfica e de design e participou em 7 exposições colectivas de fotografia, na Murtosa, Torreira e Aveiro, durante os anos 2013, 2017, 2018, 2019 e 2020. | Participou, em co-autoria com Ana Maria Lopes, na apresentação de uma palestra intitulada Uma viagem p’la Ria, em 2014, no Clube de Vela da Costa Nova. | Expôs individualmente, com permanência de Janeiro a Maio de 2014, no Museu Marítimo de Ílhavo, fotografias do Processo construtivo da bateira ílhava. Publicou, em co-autoria com Ana Maria Lopes, com fotografia de Paulo Godinho, Uma Janela Para o Sal, em Abril de 2015, editado pela Alêtheia Editores | Tem alguns artigos publicados sobre o tema do património lagunar: as embarcações tradicionais da Ria de Aveiro, no “Diário de Aveiro”, “Notícias de Aveiro”, jornal “O Ilhavense” e “AveiroMag” | Conduziu a Conversa à Volta da Construção Naval, com Mestre Esteves e Etelvina Almeida no Estaleiro do Mestre, em Pardilhó, a 5 de Maio de 2018, uma iniciativa da Câmara Municipal de Estarreja. | Faz parte da Direcção dos Amigos do Museu de Ílhavo. | Foi coordenadora e designer editorial da obra monográfica, que homenageou o artista plástico Murtoseiro, José de Oliveira, intitulada: Memórias. 30 anos a pintar a Ria. José de Oliveira, editada pela Câmara Municipal da Murtosa, em Julho de 2019. A autora não segue o acordo ortográfico. 1 - Uma análise pelo Design. 2 - Textos desenvolvidos para a Dissertação de Mestrado em Design, da minha autoria, realizado para a Universidade de Aveiro, no ano de 2012, com o título, Embarcações Tradicionais da Ria de Aveiro: uma análise pelo Design. 3  - Construtores Navais de Embarcações Tradicionais que exercem a sua actividade no Distrito de Aveiro, situados ao longo da zona ribeirinha, da Ria de Aveiro. 4  - Embarcação. s. f. Qualquer barco ou navio; bote, batel in CAMACHO, Alfredo - O nosso dicionário. 3ª Edição. Lisboa: Didáctica, 1979. 5  LIXOTECA - Moderna enciclopédia Universal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1986.

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Se procurarmos na etimologia da palavra – o barco6 – ela remete-nos para a barca7, uma pequena embarcação de vela, de fundo chato, mas que também pode ter grandes dimensões. Ora um barco lagunar é uma embarcação de pequenas a médias dimensões, indo até 18 metros, no máximo, no barco mercantel e nas bateiras com 3 metros, no mínimo.As pequenas embarcações são as bateiras8 que provêm do batel9, ou “bateau”- uma pequena embarcação, um bote ou canoa.

1 - Postal antigo. Barco Mercantel no Canal das Pirâmides, junto à Lota, em Aveiro.

2 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Cais de Abrigo da Torreira (Murtosa). Bateiras tradicionais de pesca. 2020. 6  - Barco. s. De barca. Em 919 “cum illos barcos et cum pequena barca, de gôndola. Barca. s. do lat. Barcha, mesmo sentido, talvez de origem hispânica; para mais já se documenta numa inscrição de cerca de 200 A.C. encontrada na Lusitânia; bastante vulgar em textos da fase arcaica do nosso idioma. Barca parece ter tido menos uso no séc. XVI. Batel. s. Do ant. fr. Batel (séc. XII) mod. Bateau, diminutivo derivado do antigo anglo.saxão bãt! Séc. XIII “et porén se foi cambiar/no batel, bem com duzentos/omees; et un saltar d’eles quis et se lançar cuidou no batel” St. Maria, cap.33, p.50. É provável que o batelão em vez de um aumentativo de batel, seja antes importação do it. Batellone (…). Bote. s. Embarcação pequena. Do ing. ant. Bôt, hoje Boat, certamente pelo ant. fr. BotIn. In MACHADO, José Pedro Dicionário etimológico da Língua Portuguesa. 6ª Edição, 1º vol. A-B. Lisboa: Livros Horizonte. Lisboa. 7  - Barca. s. f. (do latim Barca) Embarcação de vela, de fundo chato, e que serve para e que serve para transportes de cargas e, às vezes de passageiros. Navios de comércio de três mastros e dimensões consideráveis. In GRANDE DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA, vol.2. Algés: Euro Formação, Lda. 1989. 8  - Bateira. s. De batel com mudança de suf. Séc.XVI; “com uma bateira pequena”. Déc. 1, fl. 66 (cit. De D.V.) 9  - Batel. s. m. (do lat. Batellu). Embarcação pequena em que se ia a bordo dos navios, que não estavam junto com terra; bote; canoa. In MACHADO, José Pedro - Dicionário etimológico da Língua Portuguesa. 6ª Edição, 1º vol. A-B. Lisboa: Livros Horizonte. Lisboa. Bateira. s. f. Embarcação pequena, que servia a respeito das galés, como o batel a outros navios. “Pequeno barco sem quilha usado no Tejo, serve na pesca e no tráfego do Rio”.

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Uma embarcação para ser considerada tradicional terá de obedecer a alguns critérios: o de manter a sua traça original; o de ser construída com uma matéria-prima da região, utilizada durante séculos e, ainda, o de utilizar uma técnica de construção artesanal ancestral.

3 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Tabuado de madeira a secar no estaleiro, para construção de um barco moliceiro. Pardilhó. 2019.

Um artefacto é entendido como um objecto produzido pela mão do Homem. Ele fornece informação sobre a cultura do seu criador e do seu usuário. Um objecto é uma coisa material ou determinada, é tudo aquilo de que o Homem se pode ocupar e ao qual vai dirigida uma acção ou sentimento. Um artefacto é entendido como um objecto feito pela mão do Homem. Ele fornece informação sobre a cultura do seu criador e do seu usuário. Ele pode sofrer mutações ao longo do tempo, assim como a classificação que lhe é dada poderá também vir a alterar. Os objectos criados pelo Homem na sociedade moderna, também são considerados artefactos culturais. Existem vários estudos sobre o termo e significado da palavra artefacto, sobre o entendimento que os estudiosos, os utilizadores e os designers têm dele. Cada interveniente, tanto na criação como na utilização, tem um entendimento diferente sobre o que é o artefacto. Assim sendo, o artefacto10 é um objecto11 produzido ou modificado pelo Homem. Pode ser uma ferramenta ou um ornamento; a criação de um conceito; uma observação; o resultado ou efeito gerado pela tecnologia através de um erro experimental; uma estrutura ou construção nem sempre presente, mas visível através de uma acção ou agente externo, defende Owen Smith12. Segundo André Ricard, (2000, p.56)13, a partir do momento em que um artefacto se incorpora na vida quotidiana necessita que lhe seja atribuído um nome próprio para que 10 - Artefacto. Denominação utilizada em geral, para todo o objecto de construção não artificial. Na pré-história designavam-se assim todos os objectos fabricados pelo homem, especialmente os de pedra, que através da sua manipulação adquiriam, muitas vezes, o carácter de utensílios. In Enciclopédia. 11  - Objecto. Filosofia. Coisa material ou determinada, tudo aquilo de que o homem se pode ocupar e a que vai dirigida uma acção (material ou intelectual). In Enciclopédia. 12 -  SMITH, Owen F. Object artifact, image artifacts and conceptual artifacts: beyond the object into the event. Artifact, (2006). 1:1,4-6. Artigo intitulado Object Artifact, imagem artifacts ande conceptual artifacts: beyond the object into the event. 13 -  RICARD, André – La aventura creativa: las raíces del diseño. Barcelona. Ariel, 2000.)

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possa ser identificado por uma colectividade, que o adoptará. “La donominacíon de las cosas es así simultânea al primer uso”. Todos os nomes de objectos conhecidos, além de denotarem aquilo que designam, também contêm outras mensagens subjacentes que nos transmitem dados sobre o tempo em que foram criadas e da primeira linguagem que os denominou. Procurando na etimologia do nome das coisas, obtém-se um outro conteúdo informativo sobre as denominações, mas estas estão limitadas às Línguas conhecidas, nada nos dizem sobre as origens mais remotas das denominações, que remontam para lá do tempo histórico, defende o autor. Uma embarcação tradicional é um objecto produzido pelo Homem, é um produto artesanal, “é um artefact, simultaneamente um resultado de um processo, sendo ele próprio o processo através do qual o ser humano constrói o Mundo” (SMITH, 2006). Este artefacto transmite conhecimento através do seu todo. Os artefactos são considerados agentes da mudança, “eles objectivam o conhecimento e a acção humana”14. Na sua essência, eles formam um conjunto de imagens através das quais atribuímos significado e funcionalidade, de acordo com o que experimentamos ou percebemos. As embarcações, como artefactos que são, transportam uma herança etnográfica muito importante. Os historiadores e os antropólogos consideram que podemos obter mais informações sobre as pessoas e as suas culturas através dos artefactos. O estudo do objecto ou artefacto, neste caso concreto das embarcações, pressupõe a análise de um discurso por ele evocado enquanto representação, invenção ou reinvenção de uma cultura ou região.

4 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Proas de barcos moliceiros, Murtosa. 2019. 14  - ibidem

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Como refere Clara Sarmento15, numa das duas obras sobre o barco moliceiro, “o processo através do qual os objectos adquirem capacidade de significação está relacionado com valores e condicionantes socioculturais que os transformam em veículos de afirmação de uma entidade regional”. O artefacto transmite informação, ele torna-se num veículo da comunicação. Ele comunica através da sua imagem, “atravessa a sua opacidade inoportuna”, como refere Michel Foucault16. Pode-se dizer que uma embarcação, produto da criação humana, é um artefacto cultural, pleno de significado, porque contém aspectos etnográficos, heranças de uma época, de uma região e de um povo – ele faz parte de um processo cultural. E segundo Umberto Eco, os processos culturais são processos de comunicação atravessados por uma multiplicidade de “sub-códigos”. A embarcação comunica através da sua forma, função, decoração, processo construtivo, materiais empregues e através da forma interventiva do seu criador. A embarcação comunica através da sua forma, da decoração, do processo construtivo, da matéria-prima, do material empregue na sua construção, da sua função e das alterações registadas, resultado das mudanças tecnológicas, ambientais, económicas e sociais que vão surgindo ao longo do tempo, e ainda através da forma interventiva do seu criador, o Mestre Construtor Naval.

5 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Barcos Moliceiros aguardando a partida para a Regata “Ria de Aveiro Weekend”. Praia do Monte Branco, Murtosa. 2020. 15  - SARMENTO, Clara. A cultura do moliceiro no Presente: encenando a tradição. 16  - FOUCAULT Michel. A arqueologia do saber.

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No caso do barco moliceiro pode-se concluir que é um transmissor de informação, quer através da sua evolução histórica, quer através da sua forma, função e decoração (floreados decorativos e dos quatro painéis pintados com iluminuras e legendas alusivas ao pensar das gentes da ria, e aos acontecimentos da época). Sobre a sua função, ou sobre a actividade que nele se exercia, de referir que esta sofreu uma grande alteração: de uma ferramenta de trabalho, a da apanha do moliço, que fertilizava as terras da beira-ria, para a função do lazer, do passeio e convívio, da competição e transporte de turistas, na actualidade.

6 - Postal antigo. Barco moliceiro com moliço.

7 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Passeio convívio a bordo de vários barcos moliceiros pela “Ria da Murtosa”, organizado pela Junta de Freguesia do Seixo de Mira. 2019.

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Ao longo do tempo têm-se verificado alguns aspectos evolutivos na embarcação, se comparados com imagens de embarcações mais antigas. Essas imagens fazem-nos compreender essa evolução, oferecendo uma leitura sobre as necessidades de alterar o artefacto, em resposta às solicitações do utilizador e do contexto sociocultural das épocas que atravessou – o artefacto oferece, assim, dados históricos importantes. A embarcação lagunar como artefacto construído de forma artesanal, e no cumprimento da sua função, poderá ser entendido como cultura. A antropologia, como ciência que trata do estudo do comportamento humano, analisa a forma como as pessoas reagem a experiências internas e externas a si próprias e procura entender os seus comportamentos e os do meio onde o estudo se desenrola. E sendo a cultura definida por um role de práticas, de relações comportamentais do homem com os artefactos e de sensações e ideias transmitidas no dia-a-dia, poderá concluir-se que a embarcação lagunar, como artefacto construído de forma artesanal, e no cumprimento da sua função, poderá ser entendido como cultura. As embarcações tradicionais são portadoras de significados, porque integradas num espaço, são o meio pelo qual o homem se serve para atingir um fim e com as quais poderá realizar actividades. No campo do design, os produtos dele resultante implicam um pensamento humano sobre questões relacionadas com a utilidade e o meio onde se inserem os objectos. São objectos impregnados de significado – “situatedness”. Através deste fenómeno, os designers e consumidores ao interagirem com os objectos criam entendimento. As embarcações tradicionais são portadoras de significados porque, integradas num espaço, são o meio pelo qual o homem se serve para atingir um fim e com as quais poderá realizar actividades. O próprio uso da embarcação é interpretado como uma actividade cultural. Ainda no âmbito do Design, de referir que um dos compromissos com o design de artefactos é feito através do uso – da usabilidade (NORMAM, 1989). A forma como os objectos são experimentados e interpretados são consideradas actividades culturais. O próprio uso da embarcação é interpretado como uma actividade cultural. Ela é usada num determinado contexto cultural, social e económico. Esse uso serve um propósito e, como tal, representa a forma como as pessoas se relacionam com a embarcação, e essa relação denota cultura. A construção de uma embarcação tradicional torna-se na materialização de uma ideia, e nela prevalecerá sempre o cunho pessoal do construtor. Para entender a forma como o design nos influencia é necessário compreender o [ 75 ]


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contributo da antropologia, das suas teorias e do seu método de investigação – o da etnografia. O termo “imponderabilidade da vida actual” (MALINOWSKI, 1922) refere-se à forma como se pode compreender o ponto de vista de um povo, da sua relação com a vida e da sua visão do Mundo, através do estudo do seu comportamento, integrado no seu meio natural. As pessoas vivem e sonham através do design, e desenhar artefactos é como “materializar ideologias”. De certa forma, o sentimento de nós próprios, da nossa identidade, advém da matéria bruta do design. Tal como projectar em design, a construção de uma embarcação tradicional torna-se na materialização de uma ideia, e nela prevalecerá sempre o cunho pessoal do construtor. Durante o processo de construção das embarcações não é empregue um método projectual rigoroso, nem um estudo etnográfico académico prévio. O Mestre construtor naval segue o método de produção artesanal resultante do seu saber, aprendido com outros mestres. Trata-se de um saber geracional e também intuitivo, fruto da sua experiência. Utilizando técnicas artesanais infalíveis permitem-lhe realizar a construção de qualquer tipologia de embarcação tradicional, mantendo a traça e as dimensões originais. Utiliza para tal, um pau de pontos, uma régua graduada contendo as medidas necessárias, alturas e espaçamentos rigorosos, e os moldes que sustentam a forma da embarcação.

8 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Ferramentas artesanais e “paus de pontos”. Espólio do Mestre Henrique Lavoura exposto no CIA do BIORIA, em Salreu, Estarreja. 2018.

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9 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Moldes para construção. Espólio do Mestre Henrique Lavoura exposto no CIA do BIORIA, em Salreu, Estarreja. 2018.

Tanto na construção de novas embarcações, como nas alterações e melhoramentos, mantém-se a técnica de construção, dando resposta às solicitações e necessidades actuais – tanto em embarcações de pesca, de lazer, de competição ou de passeios marítimoturísticos. Para este último caso, e na actualidade, o construtor apoia-se nos desenhos técnicos elaborados e exigidos pelas entidades competentes, mas mantém o mais fielmente possível o processo construtivo tradicional. Adapta-se às necessidades actuais alterando o artefacto de forma a cumprir a sua nova função.

10 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Desenhos Técnicos para construção de um barco moliceiro. Estaleiro do Mestre Marco Silva, Torreira (Murtosa). 2020.

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“Se um artefacto é o resultado de um processo, ele torna-se simultaneamente o próprio processo através do qual o ser humano constrói o mundo”. Segundo F. Smith Owen17, “um artefacto é o resultado de um processo, ele torna-se simultaneamente o próprio processo através do qual o ser humano constrói o mundo.” O processo de construção da embarcação tradicional é ele próprio portador de informação, comunica a forma como o ser humano o construiu e como ele se relaciona com a obra, utilizando uma tecnologia remota e um saber fazer, uma arte. O artefacto nasce das mãos do artesão fruto de todo esse processo, fazendo transparecer todo esse conhecimento ancestral guardado.

11 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Mestre António Esteves no seu estaleiro, em Pardilhó, a construir uma bateira. 2018.

A propósito desse conhecimento, os artesãos, Mestres Construtores Navais ainda a laborar, orgulham-se por ainda o manterem na sua memória e o utilizarem nos seus trabalhos diários, seguindo as linhas ancestrais que tanto fascinam os usuários e contempladores destas embarcações inigualáveis. Cada embarcação é uma peça única, uma peça de artesanato impregnada de saber e de identidade cultural. 17  - SMITH, Owen F. Object artifact Artifact, image artifacts and conceptual artifacts: beyond the object into the event. Artifact (2006). 1:1,4-6.

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Salienta ainda Smith, que os artefactos são muito mais do que simples objectos, eles são considerados agentes da mudança, “eles objectivam o conhecimento e a acção humana”. Na sua essência, eles formam um conjunto de imagens através das quais atribuímos significados e funcionalidade àquilo que experimentamos ou percebemos. “Os artefactos são como uma linguagem - quando se nos apresenta uma determinada actividade nós conhecemo-la através deles…” Os historiadores e os antropólogos consideram que podemos obter mais informações sobre as pessoas e as suas culturas através dos artefactos. Smith salienta que o mais importante é que os artefactos forneçam os traços físicos e mentais das pessoas, as suas crenças, atitudes, estrutura cultural e valores. Isto é possível porque as propriedades físicas de um artefacto contêm referências dos seus criadores e utilizadores – “(…) os artefactos são como uma linguagem (…) - quando se nos apresenta uma determinada actividade nós conhecemo-la através deles (…), eles são o produto das nossas actividades”. Podemos identificar uma embarcação tradicional lagunar pela sua actividade e entender assim a sua evolução, a sua estrutura e processo construtivo, referindo como exemplos as actividades do transporte do sal, de mercadorias ou de pessoas; a da apanha do moliço; da pesca; do lazer, etc.

12 - Postal antigo Ribeira de Ovar. Barcos mercantéis (saleiros). A descarga do sal.

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O ser humano medeia as suas actividades através dos artefactos, por esse motivo eles não podem ser estudados como coisas. Eles não têm significado ou valor se vistos isoladamente, adquirem-no se inseridos numa cultura, relacionando-se com uma sociedade. Estas embarcações evoluem, alteram-se, extinguem-se e têm-se reinventado ao longo do tempo. Por esse motivo, o homem muda constantemente os artefactos de acordo com o uso ou utilidade que lhe queira dar.

13 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Recriação “A Vida dos Cais” na Ribeira do Gago, Murtosa. Barco moliceiro transportando madeira. 2015.

14 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Recriação “A Vida dos Cais” na Ribeira do Gago, Murtosa. O transporte de junco num barco moliceiro. 2015.

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É através da criatividade que “os artefactos mudam a nossa percepção do mundo”. Os artefactos possibilitam a criação de actividades e desenvolvimento de ideias e prácticas culturais. Eles estimulam a criatividade. Smith não deixa de salientar a importância da criatividade. É através desta que “(…) os artefactos mudam a nossa percepção do mundo”. “O espaço, o lugar e a história estabelecem os constrangimentos que definem o comportamento do artefacto”, esses constrangimentos podem ser considerados informação”. Um outro autor, Ken Friedman18, neste mesmo campo, e sobre os artefactos, interessa-se pelas actividades que os mesmos permitem realizar. Ou seja, ele pretende captar o conceito e a dimensão do comportamento dos artefactos. Em termos físicos entende que o comportamento do artefacto é como uma “affordance”, um interface. Esse comportamento reflecte-se na organização do nosso trabalho diário criando padrões, tornando-se visíveis em termos individuais e dentro de estruturas sociais. Uma embarcação se isolada da informação estrutural, formal ou estética, pode ainda comunicar através da sua função, da actividade que permite desenvolver, ou da sua forma de navegabilidade. Ela transporta consigo uma informação valiosa acerca da sua história, do lugar onde se encontra e do espaço que ocupa. “O espaço, o lugar e a história estabelecem os constrangimentos que definem o comportamento do artefacto (…)”, esses constrangimentos podem ser considerados informação, defende o autor. Os artefactos definem-se pela sua concepção. O artefacto “não pode existir sem uma história que o fundamente, a história da sua produção”. Se na linha de Flusser, “identificamos cultura com informação adquirida, e o objecto cultural como objecto portador de informação impressa pelo homem, então o que distingue o modo de produção industrial do pós-industrial, característico do da era da informação, é o facto da materialidade do objecto ser mais importante e visível no primeiro do que no segundo.”19 Segundo Krippendorff20, os artefactos definem-se pela sua concepção. A tendência dos estudiosos será, não só, o estudo da sua materialidade, ou a forma como funciona, mas também o da sua origem: é importante saber quem produz o artefacto, e o porquê. Através da História podem-se encontrar pistas que nos darão respostas a essas perguntas. O artefacto “(…) não pode existir sem uma história que o fundamente, a história da sua produção, por mais simples que esta possa ser (…), a artificialidade dos artefactos não pode ser separada da própria linguagem usada para os descrever.” 18  - FRIEDMAN, Ken. Behavioral artifacts: what is na artifact? Or who do is it?. Artifact, (2007) 1:1, 7-11. 19  - SERRA, Paulo – O design na era da informação. Universidade da Beira Interior. 1-13. P. 9. 20  - KRIPPENDORFF, Ken numa relfexão que explora a artificiallidade. Krippendorff, Klaus. Na exploration of artificiality. Artifact. (2006 )1:1, 17-22.

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Os artefactos são projectados para o uso. No entanto, projectar, inventar e produzir artefactos é diferente do acto de os usar, de os fruir. Cada um dos intervenientes tem um entendimento diferente em relação ao artefacto: o criador sabe como lhe dar uma forma, como juntar as partes que o compõem e trazê-las para onde elas são necessárias; o usuário pode ter a noção da sua origem, conhecer a intenção do seu fabricante, que o informa sobre o que pode fazer com ele, algo que com os objectos naturais não é possível ter.

15 - A preparação dos barcos moliceiros para a Regata. A azáfama do Mestre José Rito, do proprietário e amigos, junto ao “Estaleiro Museu” da Praia do Monte Branco, Torreira. 2020.

O construtor e o proprietário da embarcação acertam pormenores sobre a sua forma, e apuraram a estética e a decoração. Consoante a função que irá exercer, constrói-se o artefacto para que possa cumprir os parâmetros exigidos. Porque como refere o autor21, cada interveniente tem o seu papel, um deles o de projectar e fazer o artefacto, o outro o de o usar. O construtor projecta uma embarcação com o objectivo de cumprir com excelência as suas funções, tanto o de optimizar e salvaguardar uma navegabilidade segurança, como a de facultar uma excelente performance na actividade que se irá realizar, aliadas a uma estética e decoração tradicional. O usuário de uma embarcação deverá conhecer a história, o material de que é feita e o seu funcionamento interno, para que possa usar e desfrutar dela com segurança e prazer, e aproveitar toda a sua performance e eficácia. 21 - Ibidem

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16 - Fotog. do meu arquivo pessoal. O Mestre Marco Silva a construir um barco moliceiro no seu estaleiro, na Torreira. 2020.

Um artefacto cumpre um ciclo de vida. Todos os artefactos a partir do momento em que são criados já se encontram a caminho de uma reforma, mudando a sua categoria ao longo do caminho. As embarcações, como artefactos que são, cumprem o seu ciclo de vida. Elas são construídas com um objectivo funcional e por vezes acabam por ter um uso final diferente ao do inicial. O seu ciclo de vida é limitado tendo em conta o material empregue na sua construção, a madeira de pinho, o bom ou mau uso que lhe é dado ao longo do tempo e ao número de vezes que se efectuam as manutenções ou reparações, e até aos acidentes que sofrem. Elas também podem tornar-se obsoletas quando deixam de cumprir as suas funções.

17 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Barco Moliceiro em degradação junto à margem da Ria. Quintas do Norte. Torreira. 2018.

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Artefacto significa tudo aquilo que os utilizadores possam contar sobre eles, sobre o seu passado, presente e futuro. Artefacto significa tudo aquilo que os utilizadores possam contar sobre eles, sobre o seu passado, presente e futuro. Na prática, significa tudo aquilo que possamos imaginar fazer com eles. Para um observador, os artefactos significam o conjunto de todos os contextos nos quais eles são vistos a trabalhar. Eles só são reais no presente, como experiências concretas, no momento em que interagimos com eles. Mas o que interessa é o significado que eles têm para nós, aquilo que eles nos permitem que façamos com eles e as possibilidades que nos oferecem. Os artefactos têm origem humana, residem no presente, mas mais importante, eles deixam-nos o controle de um futuro por provir. O futuro das embarcações lagunares pode estar comprometido pelo facto de deixarem de cumprir algumas funções para as quais foram construídas, aliado também ao aparecimento de embarcações construídas com materiais mais duráveis, de fácil manutenção e mais económicos. Alguns dos construtores estão a optar por um material de mais fácil manuseamento, mais económico, resistente e de fácil manutenção - a fibra de vidro. Defendem que conseguem com este material obter uma maior performance, mantendo a forma e a função, e até a decoração tradicional. Trata-se de uma questão pertinente, não se sabendo ao certo qual será o resultado de tal iniciativa. O Homem pode alterar ou manter uma tradição, tudo dependerá das suas acções. O HOMEM ARTESÃO, O CONSTRUTOR NAVAL TRADICIONAL DA RIA DE AVEIRO Criar para sobreviver parece ser o propósito único destes artífices, ou obreiros, que praticam a sua arte utilizando o seu saber, como profissão e consequente meio de subsistência. Ricard (2000)22, ao longo da sua obra aborda a questão do homem como um ser criativo que cria para sobreviver. Os primeiros homens tiveram que dedicar grande parte da sua incipiente capacidade intelectual para resolver os alucinantes problemas prácticos que lhes surgiam. Assim, essa capacidade de raciocinar que a espécie foi adquirindo, serviu-lhe para tomar consciência das suas carências, e criar os aditamentos necessários para reequilibrar artificialmente aquilo que a Natureza não podia oferecer. Ao longo da História o Homem teve de desenvolver mais que simples habilidade para poder responder aos desafios da sua própria existência e sobrevivência. Desenvolveu uma capacidade de “hombre sabedor”23 plenamente consciente do que faz. Esta pulsão criativa forma parte da sua própria pauta genética. Os artefactos que o Homem tem vindo a criar para se libertar acabam por o escravizar. 22  - RICARD, André – La aventura creativa: las raíces del diseño. Barcelona. Ariel, 2000. 23  - Ibidem.

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Ao longo do tempo o Homem foi adequando o seu ambiente à sua forma de viver, mas em contrapartida, esse mesmo ambiente artificial condicionou-o. “Los artefactos que el Hombre há ido creando para liberarse acaban también por esclavizarle”24 A tecnologia, que nos ajuda em tudo o que fazemos, leva-nos a olhar para ela com receio e inquietude devido à sua constante evolução, refere Ricard, para explicar a perda de uma certa capacidade individual. Actualmente o indivíduo não se pode valer por si só, ele encontra-se inserido num “mundo global” e depende do funcionamento de um sistema e de um equipamento colectivo. Essa perda de capacidade individual, por parte do homem que produz o artefacto, condiciona-o na sua acção e na sua criatividade. Ele deixa de produzir para um pequeno nicho de mercado, algo que já não controla, e adapta-se ao novo contexto, inserido agora num mundo mais globalizante. O Homem artesão é o que idealiza e produz o artefacto, utilizando técnicas artesanais. Quem é o homem artesão? É o homem que idealiza e produz um artefacto de forma artesanal. É o especialista numa arte manual que executa um artefacto, usando para tal técnicas artesanais. Ele trabalha por conta própria numa oficina ou na sua casa – “porque assim, como artesão, trabalha com a sua ferramenta”.25

18 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Bateira a ser reparada pelo Mestre Arménio Almeida no seu estaleiro, em Pardilhó. 2019. 24  - Ibidem. (pag.80). 25  - Ibidem.

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O produto artesanal gerado nesta actividade denomina-se de artefacto. E “não há artefacto mais dependente do seu artífice”, defende o autor.26 Assim o é para os Mestres Construtores Navais, artesãos de profissão. Eles exercem a sua arte com mestria e saber, de forma artesanal, utilizando técnicas ancestrais de construção, conhecimentos que foram transmitidos ao longo de várias gerações. Trabalham por sua conta fazendo reparações à beira-ria, em toscos estaleiros, ou num espaço amplo da sua casa. Actualmente em espaços com infra-estruturas mais modernas.

19 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Mestre Manuel Pires recuperando uma bateira perto da margem da Ria, em Esgueira, Aveiro. 2020.

Os Mestres encontram-se condicionados pelo contexto globalizante em que vivem, confrontando-se com outras tecnologias e outro mercado. Actualmente os Mestres sentem-se condicionados pelo contexto globalizante em que vivem, confrontando-se com outras tecnologias: materiais, desenho técnico, ferramentas eléctricas que os levam a alterar alguns aspectos da construção, levando-os a inovar. O seu nicho de mercado também mudou, assim como as preferências dos clientes e as próprias funções das embarcações. O Mestre Construtor Naval Tradicional tem-se adaptado a uma nova forma de vida e de trabalho, já não dependendo totalmente da sua arte para subsistir. Apesar da diminuição das encomendas vão mantendo um trabalho regular, devido a um incremento que surgiu recentemente, o da construção e reparação de embarcações resultante da actividade marítimo-turística. 26 - Ibidem.

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20 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Ferramentas artesanais para trabalhar a madeira. Espólio do Mestre “Henrique Lavoura” exposto no CIA da BioRia, em Salreu. 2018.

21 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Mestre Marco Silva, da Torreira, cortando uma peça para o barco utilizando uma serra eléctrica. 2019.

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Perdem-se algumas técnicas de construção ancestrais e as ferramentas artesanais caem praticamente em desuso, em prol das ferramentas eléctricas. O mais grave neste cenário é o da perda do saber ancestral. Este tem-se vindo a esfumar à medida que os Mestres mais velhos vão deixando de exercer, ficando somente uma réstia do conhecimento prático, mas volátil, que de alguma forma foram passando aos mais interessados, aos mais jovens que os acataram e se mantêm na arte, mas que não seguem totalmente as técnicas de construção tradicionais desses mestres.

22 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Mestre Marco Silva construindo um barco moliceiro no estaleiro da Torreira. 2019.

Estes novos Mestres inovam na sua forma de projectar a embarcação, encontrando-se também condicionados pelas novas solicitações do mercado, em que se confrontam com os desenhos técnicos apresentados pelos novos proprietários - tendo de cumprir com as novas exigências legais e, para tal, alterar em parte, o processo construtivo. Inovam através da aplicação de alguns materiais complementares, utilizam ferramentas eléctricas que permitem uma rápida execução de tarefas, que até então se apresentavam muito morosas. No entanto, mantêm a utilização da mesma matéria-prima, o pinheiro bravo e o pinheiro manso, seguindo quanto possível os passos do processo construtivo, e algumas técnicas, como o emprego do pau de pontos e das formas, quando necessário. Procuram melhorar alguns aspectos estruturais, cumprindo com as alterações solicitadas pelas entidades, nomeadamente as de segurança, para a função do transporte de pessoas, ajustando também alguns pormenores de navegabilidade exigidos para embarcações que naveguem dentro dos canais da cidade, de acordo com os novos meios de propulsão eléctricos exigidos por lei. [ 88 ]


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23 - Fotog. do meu arquivo pessoal. O Mestre Pintor José de Oliveira a pintar o painel da proa de um barco moliceiro junto à Ria. 2020.

A decoração tradicional das embarcações mantém-se inalterada, continuando a ser realizada pelas mãos do mestre José Oliveira27, artista plástico da Murtosa, que mantém esta a tradição há 31 anos. O artesão “é um construtor de artefactos”, possuidor de uma “criatividade especial” que imprime melhoramentos constantes aos produtos, na perspectiva do utilizador. André Ricard, (2000), vem nesse sentido corroborar o que acima ficou descrito, considerando o artesão como “um construtor de artefactos” possuidor de uma “criatividade especial”, que imprime melhoramentos constantes aos produtos na perspectiva do utilizador. É durante a fase de construção que a comunicação entre o construtor e o cliente se faz, no sentido de operar melhoramentos, ou exigências legais que poderão vir a alterar estruturalmente a embarcação. O artesão controla todo o ciclo de produção. Na concepção do artefacto, procura melhorar e adapta-lo à nova função, empregando sempre o seu cunho pessoal – a sua marca.28 27  - OLIVEIRA, José. Memórias. 30 anos a pintar a Ria. José de Oliveira. Coordenação de Etelvina Almeida. Editada pela Câmara Municipal da Murtosa, em Julho de 2019. 28 - A propósito de “marca”, é de salientar que cada Mestre Construtor Naval desenha a sua sigla na embarcação que constrói (no leme).

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O autor define o artefacto tradicional como o resultado da “interiorização lúcida da prova de eficácia passada pelos objectos, propondo melhorias incrementais, quase imperceptíveis que reforçam a apreciação do público, através da capacidade do bem fazer. Este tipo de artesanato deverá consolidar-se como portador de diferentes mensagens, que devem ser transmitidas para as gerações seguintes, processo que não difere dos cuidados inerentes à preservação e difusão de outros valores patrimoniais”, conclui Ricard. Neste sentido, e em termos conclusivos, é de salientar o forte compromisso do artesão com o seu trabalho, com a produção do artefacto. O seu espírito criativo, o seu saber fazer aprendido e de experiência feito, levam-no a manter uma técnica de construção ancestral, não obstando de inovar quando o mercado assim o solicita, criando soluções inovadoras, sem comprometer a tradição e a sua obra final, da qual se orgulha. O mercado evolui e os artefactos adaptam-se às solicitações do homem. Mas é o Mestre artesão o dono do seu saber fazer, quem controla objectivamente, e de forma criativa, o resultado final. Daí o compromisso total do artesão, do Mestre, com o artefacto. Os dois unem-se num só Ser cultural, portador de uma identidade, de um património material e imaterial da Ria de Aveiro. O mercado actual ainda vai permitindo que estes Mestres mantenham a sua arte. Ao longo de toda a Ria de Aveiro já poucos Mestres construtores navais tradicionais, que trabalham com as técnicas ancestrais, se mantêm ligados à arte, construindo e mantendo a frota de embarcações tradicionais e turísticas existentes. Mantêm-se a trabalhar nos seus estaleiros, ou em locais improvisados para o efeito, deslocandose também até à beira-Ria, ao local onde se encontra a embarcação para a reparar. O mercado actual ainda vai permitindo que estes Mestres mantenham a sua arte. A maior parte destes Mestres laboram no concelho de Estarreja, na localidade de Pardilhó: são eles António Esteves, Arménio Almeida e Felisberto Amador. Ainda, em Estarreja, no lugar de Canelas, o Mestre Manuel Pires mantém-se a reparar pequenas embarcações, deslocando-se onde é solicitado. No Concelho da Murtosa, na Torreira, existem dois Mestres a laborar, José Rito e Marco Silva. Ao sul, no concelho de Mira, no Seixo de Mira, o Mestre Evangelista Loureiro continua a reparar embarcações de mar e barcos moliceiros, e a construir barcas para a Lagoa de Mira. Ainda ao sul, no concelho de Ílhavo, na Gafanha da Encarnação, o Mestre António Conde tendo deixado de construir em madeira passou a trabalhar em fibra de vidro. Construiu um barco moliceiro de pequenas dimensões e um mercantel em fibra, esse último para turismo, em 2010. De recordar um Mestre Construtor mais jovem, recentemente falecido, Victor Domingues (5-08-1971 - 25-06-2020), que na carpintaria da família, na Gafanha do Carmo, se aventurou desde muito jovem a reparar e a construir pequenas embarcações tradicionais, bateiras, com base na observação atenta do trabalho do Mestre Construtor, seu vizinho (Mestre Conde), tendo em 2010 reconstruído o seu primeiro barco moliceiro para turismo, não deixando de trabalhar na arte até à data do seu falecimento. [ 90 ]


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24 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Mestre Felisberto Amador, de Pardilhó, a reparar um barco de mar na Praia do Furadouro, em Ovar. 2020.

25 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Mestre José Rito a reparar um barco moliceiro junto ao “Estaleiro Museu” da Praia do Monte Branco, na Torreira (Murtosa). 2020.

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26 - Fotog. do meu arquivo pessoal. A reabilitação e ampliação do “Estaleiro Museu” da Praia do Monte Branco, na Torreira. A reconstrução de um barco moliceiro junto ao estaleiro pelas mãos do Mestre José Rito. 2020.

27 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Mestre Evangelista Loureiro. Seixo de Mira. 7-10-2009

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18 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Mestre António Conde. Gafanha da Encarnação. Construção de um barco mercantel em fibra de vidro. 6-05-2010

29 – Fotog. do meu arquivo pessoal. Mestre Victor Domingues. Gafanha do Carmo. Construção de uma bateira caçadeira. 17-11-2010

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Denota-se a perda de um saber ancestral. Este tem vindo a esfumar-se à medida que os Mestres mais velhos vão deixando de exercer, sem no entanto passarem o seu testemunho. Não se acautelando este saber aprendido e de experiência feito, intrínseco ao Mestre, poderá perder-se se não for devidamente registado e transmitido às novas gerações. Actualmente torna-se difícil cativar e formar novos Construtores, dado os mais jovens não terem a pretensão de abraçar a arte como os seus antepassados, devido, em parte, à dificuldade financeira em manter um estaleiro a funcionar de forma empresarial. As solicitações para construir e reparar embarcações ao longo dos anos diminuíram devido ao fim de algumas actividades lagunares, e ainda ao aparecimento de novos materiais. No entanto, e nos últimos anos, a procura de embarcações para o turismo aumentou, estando estas solicitações a manter os estaleiros ainda a laborar, juntamente com as reparações e construções, também de novas embarcações para uso pessoal e de competição, mas em menor número. Mas o mercado não chega para manter um estaleiro a funcionar em pleno durante todo o ano, como acontecia nos tempos áureos da Construção Naval Lagunar.

30- Fotog. do meu arquivo pessoal. Um barco moliceiro turístico a passear turistas no Canal de S. Roque, passando sob a Ponte dos Carcavelos, em Aveiro. 2018.

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Assim se tem mantido a arte naval tradicional, onde Mestres construtores exercem o seu papel de artesãos criadores de artefactos únicos, que transmitem a sua cultura e identidade, gerando um património material e imaterial único para a Região Lagunar. Aos proprietários, aos usuários das embarcações, aos Mestre Construtores, os artesãos, se deve a existência de uma frota agraciada de barcos tradicionais a navegar à vela em dias de festa e de Regata, assim como aos que mantêm a frota de pequenas embarcações de pesca e de lazer a navegar, as bateiras. De salientar, ainda, os empresários marítimo-turísticos que laboram dentro e fora dos canais da cidade de Aveiro, em Ria aberta, que se mantêm a construir novas embarcações turísticas, a repararem as antigas e as da sua actual frota, para esta nova função, a de transportar turistas em barcos moliceiros e em barcos e bateiras mercantéis. Assim se tem mantido a arte naval tradicional, onde Mestres construtores exercem o seu papel de artesãos criadores de artefactos únicos, que transmitem a sua cultura e identidade, gerando um património material e imaterial único para a Região Lagunar.

31- Fotog. do meu arquivo pessoal. Barcos moliceiros em Regata. Murtosa. 2019.

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32- Fotog. do meu arquivo pessoal. Barco Moliceiro em Regata. Aveiro. 2017

33 - Fotog. do meu arquivo pessoal. Barco Moliceiro em Regata. Murtosa. 2017

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34 - Infografia realizada no âmbito deste trabalho. 2020.

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Bibliografia referida ALMEIDA, Etelvina. Universidade de Aveiro. Dissertação de Mestrado em Design. Embarcações Tradicionais da Ria de Aveiro: uma análise pelo Design. UA. 2012. CAMACHO, Alfredo - O nosso dicionário. 3ª Edição. Lisboa: Didáctica, 1979. FRIEDMAN, Ken. Behavioral artifacts: what is na artifact? Or who do is it?. Artifact, (2007) 1:1, 7-11. GRANDE DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA, vol.2. Algés: Euro Formação, Lda. 1989. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. LIXOTECA - Moderna enciclopédia Universal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1986. KRIPPENDORFF, Ken, numa reflexão que explora a artificialidade. Krippendorff, Klaus. Na exploration of artificiality. Artifact. (2006) 1:1, 17-22. OLIVEIRA, José. Memórias. 30 anos a pintar a Ria. Coordenação de Etelvina Almeida. Editada pela Câmara Municipal da Murtosa, em Julho de 2019. RICARD, André – La aventura creativa: las raíces del diseño. Barcelona. Ariel, 2000. SARMENTO, Clara. A cultura do moliceiro no Presente: encenando a tradição. SERRA, Paulo – O design na era da informação. Universidade da Beira Interior. 1-13. P. 9. SMITH, Owen F. Object artifact, image artifacts and conceptual artifacts: beyond the object into the event. Artifact, (2006). 1:1,4-6.

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O “COLÉGIO”

José Fernando Correia*

Introdução O “Colégio” de Estarreja, ou se quisermos ser mais formais, o “Externato Dom Egas Moniz”, embora para mim sempre, apenas e só o “Colégio”, tem uma história cujo início se aproxima já do centenário, pois terá começado a sua actividade lectiva em Outubro de 1923. Não tem contudo esses anos de vida, pois em 1973 passaria de uma Instituição de Ensino Particular para a rede Nacional dos Estabelecimentos de Ensino Públicos. Porém, durante esses 50 anos, teve o “Colégio” uma vida rica de factos e histórias, desenhando e moldando o futuro e a vida de milhares de jovens rapazes e raparigas que, durante essas décadas nas suas carteiras se sentaram enchendo salas de aula e salões de estudo, espremendo as meninges, alegremente ocupando recreios e trazendo uma brisa de mocidade e juventude ao centro da então Vila de Estarreja. Mas não pretende ser este texto um estudo exaustivo dessa longa e bonita história, pois tal seria pretensão sem base e areia em demasia para a minha estafada camioneta. Tentará ser, ou assim se pretende, mais um contributo de elementos e apontamentos, que resultam parte de busca documental, parte de escutar os relatos de quem recorda tempos anteriores ao meu e, como a última das partes, a memória dos anos em que fui aluno do Colégio, entre os finais da década dos anos Cinquenta e os meados da década dos Sessenta do já encerrado Século XX. Essa história, que começa com o Externato de Estarreja e depois se continua com o ColégioExternato Dom Egas Moniz, é também a história do início do Ensino Secundário Particular em Estarreja, da sua consolidação e efeito precursor no Ensino Público nesta terra, agora sob a forma do Agrupamento das Escolas de Estarreja, e que se poderá dividir em três períodos: o do “primeiro” Colégio, que funcionou de 1923 a 1931 na “Casa de S. Gonçalo”, o segundo ou do “antigo “ Colégio, de 1931 a 1960 a funcionar no “Palacete dos Leite” e finalmente o do “novo” Colégio, de 1960 a 1973, no edifício onde depois funcionou a Escola Secundária de Estarreja e actualmente se encontra o “Centro Criativo” da Câmara Municipal. Por esses espaços físicos diferentes e que se foram sucedendo no tempo, passaram como mestres e alunos, muitos daqueles que de várias formas asseguraram o desenvolvimento e consolidação da então Vila e hoje Cidade de Estarreja e das suas Freguesias. É pois também e de alguma maneira, a história de Estarreja e do seu Concelho durante cerca de 50 anos do século passado. * José Fernando F. Correia nasceu em Novelas, Penafiel, mas logo à saída da Escola Primária vem viver para Estarreja na onda migratória industrial que assolou esta região no final dos anos cinquenta do século passado. Sessenta anos passados sobre essa chegada, sente-se um filho adotivo bem tratado e um Estarrejense agradecido à terra que lhe deu novas raízes e oportunidades. Casado com a sua namorada desde os bancos do Colégio, também ela filha de migrantes industriais vindos do Norte, é um orgulhoso pai da Patricia e da Gilda. Com uma vida profissional exercida sempre no Concelho, procura retribuir o que Estarreja lhe deu e dá, participando nas formas em que pode ser útil na vida comunitária e associativa, e procurando saber mais sobre o passado, as gentes e as memórias destas “Terras de Antuã”.

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PADRE DONACIANO DE ABREU FREIRE

E, como todas as histórias bonitas, obrigatóriamente começa com: Era uma vez... A instalação do “Primeiro” Colégio/Externato de Estarreja - ... Era uma vez uma Vila e um Concelho de Estarreja que tentava, como todo o País à época, emergir do negrume de anos recentes de uma guerra mundial que ceifara vidas a eito, trouxera carestia e fome. A instabilidade política não ajudava, a economia era débil e iam valendo alguns importes e regressos de emigrados no Brasil, com dinheiro madeireiro e seringueiro para se ir vendo uma nova casa ali, um palacete acolá e até mesmo um esboço de festas da Juventude, para adubar a esperança no futuro. É facto porém que, e malogradamente, alguns desastres locais teimavam em puxar para trás, como o incêndio e destruição da Igreja Paroquial na noite de 27 de Março de 1922. Mas como soe dizer-se, “ se Deus fecha uma porta, cuida de abrir uma janela”, esse mesmo ano trouxe consigo o Padre Donaciano da Silva Bastos de Abreu Freire, nascido em Pardilhó e que com 32 anos de idade assumia a paróquia de Beduído, e que virá a ser personagem determinante na instalação do Ensino em Estarreja (e não só, pois foi iniciador de várias instituições e Associações, como o “Orfeão de Estarreja”; a “A Conferência de S. Vicente de Paulo”; o “Instituto de Beneficência, Instrução e Recreio de Estarreja”; a “Santa Casa da Misericórdia de Estarreja” e outras). Assim, neste enquadramento de dificuldades e iniciativas, de desânimos e de esperanças, não será de estranhar que apareça a 25 de Fevereiro de 1923, no semanário da imprensa [ 100 ]


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local, ”A Voz de Estarreja”, um artigo intitulado “Por um Colégio em Estarreja”. Bate-se o artigo, de autor desconhecido e que se subscreve com “um Estarrejense”, pela necessidade e vantagens de um Colégio em Estarreja, que permita a proximidade entre a residência das crianças e jovens e o estabelecimento de ensino (só disponível em Aveiro ou no Porto, com quem as comunicações não eram propriamente fáceis), bem como o seu enquadramento familiar fora dos tempos lectivos.A alternativa era o internamento em Colégios particulares, de que era modelo paradigmático e de excelência o “Colégio dos Carvalhos”, mas cujos encargos económicos não estavam ao alcance da grande maioria das bolsas familiares. Estes e outros argumentos eram esgrimidos a favor da causa da abertura de um estabelecimento de ensino em Estarreja. E essa campanha de sensibilização da comunidade deu de imediato frutos, pois passados que foram apenas oito meses, abre em Outubro desse ano de 1923 o Externato de Estarreja, tendo como seu principal mentor o Padre Donaciano de Abreu Freire, acompanhado por outras figuras locais, supondo-se que uma delas tenha sido o licenciado em Direito, Dr. António Augusto Oliveira Pinto. O estabelecimento fica situado numa casa na Quinta de S. Gonçalo, e que seria propriedade da Família dos Leites, donos da Quinta e da Capela de S. Gonçalo. Essa casa ainda hoje lá se encontra, próxima da antiga Escola Conde Ferreira (e hoje Sede do Rotary Club de Estarreja).

(À esquerda, Postal de propriedade de António Augusto Silva, datado de 1908, onde em primeiro plano se vê a Capela de S. Gonçalo e a seguir a Casa de S. Gonçalo onde foi instalado o primeiro Colégio. À direita essa mesma casa tal como lá está hoje, embora já sem o muro e o gradeamento da frente, próximo da antiga Escola Conde Ferreira e actualmente Sede do Rotary Club)

Não se conhece o número exacto de alunos que teriam frequentado o Externato nesse primeiro ano da sua existência, cujo objectivo era o de habilitar alunos para o Ensino Secundário, mas teriam sido cerca de uma dezena, inferindo a partir de um artigo publicado em Agosto de 1924, pelo jornal local “O Povo de Estarreja” que havia sido fundado nesse mesmo ano e que escrevia: “... O Externato de Estarreja obteve um magnífico triunfo no seu primeiro ano de leccionação. Todos os alunos conquistaram no liceu de Aveiro plenas aprovações”, tendo sido eles candidatos aos 1ºs e 2ºs anos do Ensino Liceal. E segue-se uma listagem dos nomes desses “alunos pioneiros” que, por assim o terem sido,

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entendemos dever reproduzir: Maria Helena de Lona Peres; Edgar de Almeida Simões; António Caetano Pereira; Joaquim de Oliveira Calado; João Carlos d ´Assis Pereira de Melo, Artur Gouveia da Cunha, Manuel Marques da Silva Viana; Luís da Cunha Matos; Amilcar Botte e Ernesto Domingues de Andrade. Aparentemente terão sido 10 certinhos e será curioso de referir que haveria quase tantos professores como alunos, pois nesse mesmo artigo aparece a listagem do Corpo Docente que era constituído pelos Drs. António Augusto de Oliveira Pinto e Joaquim da Silva e pelos Padres Donaciano de Abreu Freire, Joaquim Dias Afonso e José Nunes Antão. Aparentemente seriam portanto cinco professores para dez alunos. Estes excelentes resultados obtidos logo no primeiro ano de magistério do Externato tiveram impacto local e mesmo para além das fronteiras do Concelho e o 2º ano de vida iria iniciar-se com o triplo das inscrições e com o alargamento para o 3º ano do Liceu. O Externato mantinha o mesmo corpo docente e funcionava das oito da manhã até à uma da tarde. Este segundo ano de vida do Externato volta a caracterizar-se por um sucesso absoluto nos exames no Liceu de Aveiro, tendo sido um dos alunos José de Oliveira e Silva, que julgamos ter sido aquele que mais tarde foi conhecido em Estarreja como o médico Dr. Oliveira e Silva. A única nota dissonante neste ano foi a da saúde do Padre Donaciano que não lhe permitiu leccionar durante todo o ano lectivo. E novo ano se segue, iniciado a 10 de Outubro, com crescente frequência e prestígio. E assim terão as coisas continuado durante oito anos, até que as instalações já não teriam resposta para a procura e crescimento. O Externato era já manifestamente insuficiente e havia pedidos para a criação de regimes de internato e Semi-Internato.Terá sido então que o Padre Donaciano, de colaboração com o padre Manuel Resende Tavares Garrido, de Avanca (que seria também professor de Matemática) e o Dr. António da Silva Tavares, também de Avanca, antigo Juíz de Direito e então Conservador do Registo Civil de Estarreja, decidem em 1931, fundar o “Colégio Dom Egas Moniz – Grande Instituto Regional da BeiraRia”, com os Cursos Primário, Liceal e Comercial, para alunos internos, semi-internos e externos, com secções masculina e feminina. O “Colégio Dom Egas Moniz – Grande Instituto Regional da Beira-Ria” - O edifício escolhido para a sua instalação é o “Palacete dos Leite”, edifício onde actualmente se encontra a Biblioteca Municipal e que depois de ter deixado de albergar o Colégio em finais de 1960, foi durante algumas décadas ocupado com as actividades da Casa do Pessoal do Amoníaco Português/Quimigal. Esse palacete, situava-se na Praça da República (hoje Largo dos Combatentes da Grande Guerra) e tinha uma estrutura mais moderna e funcional que o anterior Externato, grande beleza arquitectónica, uma marquise no 1º andar virada a Sul e um grande logradouro nas suas traseiras que servia de espaço de recreio. Mas sobre uma descrição mais detalhada deste edifício e do seu funcionamento, me encarregarei mais à frente quando der conta da minha passagem por lá, entre finais da década de cinquenta e meados da de sessenta. [ 102 ]


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(Aguarela de Tavares Gravato (1992) com o título “O meu primeiro Colégio”, também ele antigo aluno, e representando o Palacete dos Leite, onde se albergou o Colégio de 1931 a 1960. Para além da fachada principal, pode-se ver junto do canto inferior direito o portão lateral por onde entravam os rapazes e por cima a estrutura da marquise Sul, que servia de recreio das meninas)

Por agora registe-se que este novo Colégio, que recebe o nome de Dom Egas Moniz por, e segundo as palavras de um dos seus fundadores, o Padre Donaciano: “ ... não foi por mero acaso que lhe foi este nome escolhido para patrono. Dom Egas Moniz está enraizado nas profundidades históricas do carácter nacional. É o Padroeiro da moralidade da raça refractária à traição, à mentira e à desonra. Fé, Lealdade, Honra, é a flâmula tripartida que desfraldamos como ideal moral para comando da consciência dos nossos alunos”.

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A Direcção do novo Colégio fazia questão de declarar desde logo que alguns dos seus objectivos primeiros era “... radicar, no espírito dos seus alunos, hábitos de disciplina, ordem e pontualidade ..., para uma vida activa e fecunda.” Declarava mais ainda que: “ O Colégio será inflexível na observância dos preceitos regulamentares internos que lhes assegurem uma ambiência disciplinar propícia à virtude, ao trabalho e ao brio pessoal”. Disciplina era pois palavra de ordem e assim sempre viria a ser pelas décadas seguintes. No primeiro ano de funcionamento do Colégio Dom Egas Moniz, que a partir de agora passarei a referir como de forma abreviada a ele nos referíamos, ou seja “O Colégio”, tem cerca de 100 alunos e obtém uma vez mais dos melhores resultados nos exames no Liceu José Estevão, em Aveiro, como disso se faz anúncio acima, publicado no jornal “Progresso da Murtosa”, de 29 de Setembro de 1932. Além dos cursos normais do Liceu e do Comércio, com os correspondentes currículos ordinários e obrigatórios, o Colégio ainda oferecia cursos complementares de opção para a formação integral dos alunos neles interessados, tais como: solfejo, piano, violino, caligrafia, dactilografia, lavores, desenho artístico, pintura, dança, etc. O Colégio evolui, a solicitação de várias famílias, para a instituição de uma Secção Feminina, sendo interessante referir o texto que acompanhava a divulgação dessa nova valência, e que a seguir reproduzimos: “– No louvável propósito de atender os insistentes pedidos que nos vêm sendo feitos por numerosas famílias da região, continuamos a admitir meninas para qualquer dos Cursos professados no Colégio, como semi-internas e externas, exigindo-se, porém, como norma educativa e disciplinar pré-estabelecida, que estas sejam acompanhadas por pessoas de família na entrada e saída do Colégio. - Admitem-se como pensionistas (internas) as meninas, cujas famílias residam fora da localidade, tendo o seu internato em edifício apropriado e sob vigilância de Perceptoras de Confiança que as acompanharão em todos os actos da sua vida escolar e civil. - Todas as alunas do Colégio têm sala de estudo privativa, e são assistidas disciplinarmente sob a acção contínua da Direcção. O referido edifício onde funcionava o internamento das meninas seria no “Pavilhão de Santa Joana Princesa” que julgamos se situaria numa casa no terreno nas traseiras da Capela de Sto António. Já o local onde se encontravam os rapazes em regime de internos, seria no Pavilhão de Sto. António, cremos que dentro do próprio Palacete dos Leite. E, com a Direcção pedagógica repartida entre o Padre Donaciano (área das Letras, especialmente Língua e Literatura Portuguesa) e o Padre Garrido (área das Ciências, designadamente Matemática) o Colégio avança. Em 1933 tem já 115 alunos, continua com excelentes taxas de aprovações e arranca para o ano lectivo de 1933/34 com um interessante anúncio publicado no Jornal de Estarreja, e que não resistimos a reproduzir na íntegra: [ 104 ]


TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

COLÉGIO DOM EGAS MONIZ Grande Instituto Regional Beira-Ria Sede: ESTARREJA – Praça da República --------Admite alunos internos, semi-internos e externos, para os Cursos de: Primário, Liceal e Comercial -------Educação física, moral, civil e religiosa DISCIPLINA AUSTERA MAS PATERNAL Alimentação abundante e escrupulosamente confeccionada, constando das seguintes refeições: 1º Almoço: Café com leite e pão com manteiga 2º Almoço: Sopa, três pratos, pão, vinho ou chá Merenda: Pão com manteiga e chá, fruta, queijo, compota, etc Jantar: Sopa, três pratos, pão, vinho ou chá (Cópia do anúncio publicado no “Jornal de Estarreja”, em 15 de Outubro de 1933)

Curiosa a disponibilidade de vinho às refeições do Almoço e Jantar para estas idades, prática corrente à época e que hoje seria seguramente inaceitável. Em 1934, é criada a Secção Especial do “Curso Complementar do Comércio”, com a seguinte justificativa publicitada no Jornal “Progresso da Murtosa”:“Anuíndo aos insistentes pedidos que nos vêm sendo feitos e atendendo ao desenvolvimento comercial e industrial da Terra-Ribeirinha, que tende progressivamente a abandonar a acanhada rotina das “transacções a medo”, arrojando-se a emprezas de vulto que constituem já em certas localidades, um importantíssimo factor de prosperidade e riqueza - resolvemos dar ao nosso Curso Comercial uma organização mais completa, de harmonia com as necessidades culturais da região, servida pelo Colégio de Egas Moniz”. E seguia-se a descrição do currículo pedagógico desse Curso Comercial de 4 anos, que se apoiava no Decreto-Lei nº 20.420 de 20 de Dezembro de 1931, orientando para a formação de profissionais tais como: Admissão aos Institutos Comerciais; Admissão aos concursos de Aspirantes de Finanças, de Contadores e Escrivães de Direito, Secretarias de Corpos Administrativos, funcionários da Caixa Geral dos Depósitos, Pilotos da Escola Náutica; Manipuladores dos Correios e Telégrafos; funcionários das Alfândegas e Mestres de Caligrafia, Dactilografia e Estenografia das Escolas Comerciais. No final do ano de 1935 o Padre Donaciano deixa a direcção do Colégio que passa a partir daí a ser constituída apenas pelo Padre Garrido e pelo Dr. António da Silva Tavares. O Padre Donaciano voltará mais tarde ao Colégio, mas apenas como professor e no tempo da gestão do Colégio pelo Padre Boaventura Valente de Matos. O Padre Donaciano de Abreu Freire, que tão importante havia sido na instalação do Ensino em Estarreja, bem como de muitas outras valências sociais, viria a falecer a 18 de Abril de 1950, com 60 anos de idade. [ 105 ]


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Nos anos seguintes continuam a aparecer nos jornais locais várias referências aos resultados obtidos pelos alunos nos exames, com a indicação de muitos nomes, anos lectivos que frequentaram e as classificações obtidas, curiosamente aparecendo uma referência em que se diz que “ ... o Colégio de Estarreja é já uma 2ª edição do famoso Collégio Internato dos Carvalhos”- O Colégio dos Carvalhos era um prestigiado estabelecimento de ensino, fundado em 1889 no lugar dos Carvalhos, Freguesia de Pedroso, Concelho de Vila Nova de Gaia. Este Colégio viria muitas vezes no futuro a cruzar o destino de vários alunos do Colégio de Estarreja e dos seus intercâmbios desportivos e sociais. Uma nota que nos parece interessante de referir era a forma como o Ensino Liceal estaria então organizado. Ao lermos esses resultados os mesmos referem o Ensino Primário de 4 anos (da 1ª à 4ª Classe) a que se seguia um Exame de Admissão ao Liceu para quem quisesse continuar a estudar (e que era exame bem exigente que justificativa um período orientado para a sua preparação e que terminava com a realização de uma prova escrita e outra oral). A quem passava (e muitos não passavam neste exame e tinham que o repetir no ano seguinte), tinha pela frente um 1º Ciclo de 3 anos com exame final a que se seguia outro 2º Ciclo de mais 3 anos com o exame final do 6º ano liceal. Depois haveria mais 1 ano para o acesso às Universidades. Este modelo só veio a ser definitivamente mudado e formalizado com o Decreto-Lei nº 36.507 de 17 de Setembro de 1947, que estabeleceu a Reforma do Ensino Liceal, e do qual falaremos mais em detalhe, quando passarmos por essa data.

Em 1938, em Setembro, o Jornal “O Progresso da Murtosa” publicitava as matrículas para o novo ano lectivo e especificava que para a Instrução Primária e admissão aos Liceus as propinas mensais eram de 10$00 (Dez Escudos) para a 1ª e 2ª Classes, 15$00 (Quinze Escudos) para a 3ª Classe, 20$00 (Vinte Escudos) para a 4ª Classe e 30$00 (Trinta Escudos) para a Admissão ao Liceu. Para a época, sem dúvida que era dinheiro... [ 106 ]


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E nos anos seguintes vão-se encontrando notícias nos jornais locais dos excelentes resultados obtidos nos exames oficiais no Liceu José Estevão, em Aveiro, pelos alunos do Colégio, sendo frequentes as aprovações com média final de 17, 18 e 19 valores. Em 1940 encontra-se mesmo uma referência ao trabalho no Colégio do Professor Miguel Marques de Lemos, por todos os alunos que preparou e propôs a exame de Admissão ao Liceu terem sido admitidos, e aparece uma referência de que “... conjuntamente com o 7º ano liceal funcionará no próximo ano lectivo de 1940/1941, o Curso de Admissão às Universidades, havendo número suficiente de alunos”. Este exame ficou conhecido durante muitas décadas, quase até aos finais dos anos de 70, como o “Exame de Aptidão à Universidade”. Os vários Cursos ministrados no Colégio bem como a excelência dos seus resultados, aparecia várias vezes publicitado em jornais e outros suportes, como se pode ver no documento da página anterior de um desses anúncios, neste caso difundido na contracapa de um panfleto sobre um espectáculo de teatro local, levado à cena em Junho de 1941. Em 1942 e 1944 os comunicados e anúncios publicados em diversos Orgãos da Imprensa local, assinalando os resultados escolares e informando sobre as matrículas, já só aparecem assinados pelo Director Padre Manuel Resende Tavares Garrido.Ter-se-á seguido um período de direcção e propriedade do Padre Boaventura Valente de Matos, em que o Padre Donaciano também terá voltado a leccionar. Será talvez oportuno e de algum interesse referenciar como se encontrava então organizado o Ensino Liceal nessa altura. Em 1947, a 17 de Setembro, são publicados em Diário do Governo, e da autoria do Ministro da Educação Fernando Andrade Pires de Lima, os Decretos Lei nº 36:507 “Reforma do Ensino Liceal” e o nº 36:508 “Estatuto do Ensino Liceal”, em que se definem as bases curriculares que se viriam a praticar durante vários anos e que se caracterizavam por: - Um Ensino Primário de 4 anos (1ª, 2ª, 3ª e 4ª Classes), com um Exame de Admissão aos Liceus. Seguiam-se 3 Ciclos de Ensino Secundário, divididos por: 1º Ciclo de 2 anos, com as seguintes disciplinas e o correspondente número de horas semanais: Língua e História Pátria (5); Francês (5); Ciências Geográfico-Naturais (4); Matemática (3) e Desenho (3). Este 1º Ciclo concluía-se com um Exame Nacional, que consistia de uma prova escrita e de uma prova oral, a que se acedia com a média das 5 disciplinas superior a 9 valores (numa escala de 0 a 20), e se dispensava da prova oral se a média fosse igual ou superior a 13,5. De frisar que se podia reprovar (e não era tão raro como isso) na prova oral e perdia-se em consequência o ano. O 2º Ciclo, tinha já 9 disciplinas divididas em duas Secções: a de Letras composta de: Português (3); Francês (2); Inglês (5) e História (3), e a de Ciências que incluía Geografia (2); Ciências Naturais (2); Ciências Físico Químicas (3); Matemática (3) e Desenho (1). No final deste 2º Ciclo havia um Exame Nacional, por Secções e nos mesmos critérios de avaliação quantitativa do 1º Ciclo. Aqui podia-se passar numa Secção e reprovar na outra, o que obrigava a repetir o ano e o exame no ano seguinte e impedia a matrícula no 3º Ciclo. [ 107 ]


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Este 3º Ciclo, tinha já uma estrutura bem diversa e uma grande panóplia de opções de disciplinas, conforme o ramo se antecipava o acesso às Faculdades/Universidade. Assim, havia 2 disciplinas, a Filosofia (4) e a O.P.A.N. – Organização Politica e Administrativa da Nação (1), que eram comuns a todas as “opções” (como eram referidas as escolhas/opções que se faziam pelas restantes 4 disciplinas) e que definiam a “alínea” que desembocava num acesso diferente na carreira universitária. Havia então 8 alíneas, desde a a) até a h), com várias combinações de 4 entre as seguintes disciplinas e com as respectivas cargas horárias semanais: Português (4); Grego (3); Latim (5); Francês (3); Inglês (3); Alemão (5); História (4); Filosofia (4); Geografia (4); Ciências Naturais (4); Físico-Químicas (4); Matemática (4) e Desenho (4). Essa escolha das 4 disciplinas e consequentemente a tal alínea), dava acesso, após o exame de Admissão à Faculdade, a um determinado Curso Superior. A título de exemplo pode referir-se que uma das mais frequentadas, a alínea f), dava acesso a cerca de 13 cursos, tão diversos como Medicina, Veterinária, todas as Engenharias, Escolas Militares, Instituto Superior de Educação Física – INEF, Farmácia, Licenciaturas em todos ramos das Ciências, Agronomia, ... A passagem ou reprovação era feita disciplina a disciplina, com um mínimo de 9 valores na prova escrita para acesso à prova oral, da qual se dispensava com 16 valores. Só após se ter obtido a passagem a todas as 6 disciplinas é que se podia realizar o exame de Aptidão/ Admissão à Universidade. Podia-se evitar este exame de acesso ao Ensino Superior, se se tivesse média geral nas 6 disciplinas de 14 valores e obrigatoriamente 14 ou mais nas duas disciplinas “nucleares” e que variavam de “opção” para “opção”. Para além desta estrutura das disciplinas de carácter mais “de estudo”, havia a obrigatoriedade de espaços horários para a Educação Física, Canto Coral, Lavores Femininos e Mocidade Portuguesa. Todo este trajecto escolar era registado numa “Caderneta Escolar”, que acompanhava o estudante, nas suas mudanças de Escola, nos registos dos exames que fazia noutros estabelecimentos de ensino, etc.

(Imagem do exterior e do interior de uma Caderneta Escolar, em 1958)

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Encontraram-se evidências da existência deste modelo de Caderneta Escolar a serem utilizadas já em 1950 e que se mantiveram até ao ano de 1975. É pois neste regime de Ensino que se vão desenrolar as duas décadas seguintes escolares no Colégio. A Direcção do Colégio pelo Dr. Augusto Ramos, ou o “Careca” - A primeira referência que se encontra a um novo director é já em 1953, num anúncio publicado em finais de Agosto com os resultados escolares, que aparece com a assinatura do Dr. Augusto César Ramos. O Dr. Ramos, como a partir de agora a ele nos referiremos, iria ser durante muitos anos o director do Colégio e figura marcante das gerações que por lá passaram até quase ao final da década de 60, e que justificadamente merece uma descrição mais detalhada, baseada naquilo que dele retive e recordo. Augusto César de Oliveira Marques Ramos era o segundo de 19 irmãos nascidos no Concelho da Murtosa, sendo que dos 19 nunca terão estado vivos em simultâneo mais do que 14. Uma nota curiosa seria a de que todos os filhos tinham os nomes começados pela letra A (Augusto, Ângelo, Ângela, Alice, ...) e no período em que os 14 estiveram vivos eram 7 homens e 7 mulheres, sendo um deles Padre e uma delas Freira. Licenciado em Matemática, terá chegado à direcção do Colégio nos inícios da década de 50. A forma como tal terá sucedido, sendo pouco conhecida de uma forma geral, é num belíssimo texto do seu cunhado e também saudoso professor Jaime Vilar, que encontramos a melhor descrição: “ Foi na fase ascensional da fama, do prestigio e dos êxitos do Colégio que surgiu à frente da Direção, o Dr. Ramos. Vinha lá de baixo, da borda d´água. Nasceu na Murtosa em 19 de Janeiro de 1916. Estávamos no início da década de 50. Questões de herança levaram a posse do Colégio às mãos de uma sociedade constituída a propósito. Em busca de um lugar no Corpo Docente, onde ainda o Padre Garrido era alma grande, apareceu um dia o Dr. Ramos, para professor de Matemática. O Padre Garrido não precisava. Mas, por razões que me escapam, passado algum tempo, por intermédio do contínuo Francisco, mandou-lhe recado para vir falar com ele.Tinha o que pretendia, seria professor de Matemática no Colégio. Digamos que, sem ventos nem ondas, se virava uma folha da história. De génio miudinho, como diz o nosso povo de certos temperamentos vibráteis e escrupulosos, demarcou-se da direcção à custa de atritos que não pôde evitar, e, após algum tempo de fricções internas envoltas em nevoeiro, tomou as rédeas e a posse do Colégio.” O Dr. Ramos tinha, como se adivinha do texto anterior transcrito, características muito próprias e um forte carisma. De estatura média, apresentava-se sempre impecavelmente vestido, com roupa de boa qualidade e um cuidado especial na escolha das gravatas que exibiam um nó simetricamente colocado no colarinho das alvas camisas que usava. Sempre perfeitamente escanhoado, tinha como traço particular uma calvície claramente definida, num desenho à “Santo António”, que lhe justificava a alcunha pela qual foi sempre conhecido e referido pelos alunos de “o Careca”. Disciplinador em extremo, tanto como director como professor de Matemática, exercia um profundo “terror” (a palavra pode até parecer violenta, mas pelo menos para mim é a que melhor descreve o sentimento que despertava) em toda a população escolar. Ao ar asceta da sua pose acrescia um olhar penetrante e uma velocidade [ 109 ]


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de mãos que impediam qualquer posição defensiva face ao castigo que se avizinhava. O Dr. Ramos, se tivesse nascido no “farwest” americano, teria sido um célebre pistoleiro. A sua rapidez de mãos era tal, que a “vítima” (entenda-se o “aluno”), quando inquirido sobre uma potencial ou real falha, e enquanto ouvia as perguntas que lhe eram lentamente sibiladas para averiguação do ocorrido ou sobre o conhecimento de qualquer conteúdo pedagógico, sabia que uma estalada viria a caminho a qualquer momento. Só não sabia quando nem de que lado. Subitamente ouvia-se o estalo e quando se olhava as mãos do Dr. Ramos estavam de novo em baixo ou nos bolsos. E só se adivinhava se tinha sido com a mão direita ou com a esquerda em resultado da bochecha encarnada na face do aluno. E a segunda, se viesse, tanto poderia voltar a ser do mesmo como do outro lado. E era sempre, ou quase sempre assim. Nalgumas vezes, para castigos menos imediatos, o Dr. Ramos poderia recorrer à ”menina de 5 olhos” ou palmatória, ou mesmo, e eu vi isso acontecer, a uma pequena chibata ou “cavalo marinho”. Esta descrição pode parecer (e era) bárbara nos tempos de hoje, mas era então prática corrente em muitos estabelecimentos de ensino particulares, como garante de disciplina e motivador de melhores resultados académicos. E os encarregados de educação, em muitas situações, davam ao Dr. Ramos (não era que ele disso precisasse) “carta de alforria” para “motivar” e disciplinar o seu educando por essas vias. Será curioso referir que, neste início da década de 50, em que o Dr. Ramos terá iniciada a sua direcção do Colégio, Estarreja vivia uma época de transformação significativa. No primeiro semestre desse ano, o Colégio via-se rodeado de dois novos e importantes “vizinhos”: mesmo ao seu lado e junto à fachada nascente, acabava de ser inaugurado o primeiro hotel de Vila, o “Hotel Miranda” que iria ser durante os seguintes vinte anos uma unidade hoteleira de referência. E, a cerca de apenas cinquenta metros para norte do Colégio, era inaugurado o “Cine-Teatro de Estarreja”, que já celebra os seus setenta anos de uma vida de altos e baixos, hoje felizmente novamente de altos. Duas determinantes unidades urbanas, uma empresarial e outra cultural, mas ambas socialmente impactantes no mudar, moldar e modernizar da vida e das gentes de Estarreja. Anos depois, era este Colégio que eu vim encontrar quando próximo do final do 2º período do 1º ano liceal de 1957/58, fui transferido do Colégio de Penafiel (onde os “métodos pedagógicos” não eram muito diversos) para o Colégio Externato de Dom Egas Moniz. Funcionava então e ainda no Palacete dos Leite, como acontecia desde 1931, edifício a dominar a então Praça da República e hoje designado como Largo dos Combatentes da Grande Guerra. O acesso ao Colégio era, e sempre foi diferenciado para os rapazes e para as meninas, como se dizia na época. Os rapazes entravam por um portão na lateral poente, em frente da loja da MAEL, acedendo de imediato ao grande logradouro das traseiras, ocupado pelo recreio dos rapazes e por um campo em saibro com duas tabelas em madeira de basquetebol e pelos sanitários dos rapazes. As meninas tinham honras de entrada pela porta principal do edifício, localizada na sua fachada de fidalga arquitectura, virada a norte, encimada por uma grande tabuleta em madeira com as letras pintadas anunciando “Externato Dom Egas Moniz” (tabuleta essa que “desconhecidos e arrojados alunos apearam uma noite do frontespício e a puseram a tomar banho no pequeno lago que se abria a meio da Praça“). Passada essa porta [ 110 ]


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entrava-se num hall, com a Secretaria à direita e o Gabinete do Director à esquerda. Esse hall abria de seguida e em frente para um corredor distribuidor que dava à esquerda para duas salas de aula, ligação ao vestiário dos rapazes, a uma arrecadação (seria a antiga cozinha da residência dos Leite) e à porta para o recreio. Para o lado direito do corredor havia mais duas salas de aulas. Em frente ao hall desenvolvia-se uma bonita escadaria em madeiras exóticas por onde as meninas subiam para o primeiro andar, piso onde estavam os dois Salões de estudo, o dos rapazes e o das raparigas e ainda mais três salas de aula. No final da galeria onde desembocavam as escadas e virada a sul, ficava a marquise em estilo colonial, que era o recreio das meninas, que assim podiam olhar de cima (como sempre o faziam) para os tristes dos rapazes que conforme as idades se entretinham nos intervalos a jogar ao “berlinde”, ao “estanca”, ao “mata e salva” ou à “casóla”, sendo que os mais velhos tentavam jogar basquete e preferencialmente olhar para cima para ver quem estava na marquise. Havia ainda uma escada de serviço desde o rés-do-chão para o primeiro andar e sótão, que era por onde os rapazes subiam. No Sótão chegou a haver mais uma sala de aulas, quando o Colégio começava já a não ter capacidade para a frequência que o procurava. A rotina do Colégio era sempre a mesma, ano após ano: entrada às oito e meia e saída ao meio-dia e meia. De tarde entrava-se às duas e saía-se às seis da tarde, excepto às quartas feiras em que se saía mais cedo, pelas quatro horas. Aos sábados de manhã, aulas das oito e meia até ao meio dia e meia.Todos os dias das cinco às seis da tarde havia Salão de Estudo para todos, o que também acontecia quando havia furos no horário ou alguma falta de um professor (o que era caso muito raro). Estes Salões de Estudo eram vigiados por um “perfeito”, lembrandome bem que o dos rapazes era um irmão do Dr. Ramos, o Sr. Ângelo, que também exercia funções de motorista da carrinha, e o das raparigas era uma irmã dele, a Dª Ângela. Antes e depois houve outros: o Aurélio, o Sr. Sá, o Sr. Arménio, etc. Havia ainda um outro carismático funcionário do Colégio, o “contínuo” Sr. Francisco Pires ou Chico “Maneta”, assim apelidado pelos alunos por não ter o braço direito, que dizia-se tinha perdido num acidente de camião onde era ajudante de motorista e iria com o braço fora da janela. O Sr. Francisco era uma espécie de “faz tudo”, trabalhando na Secretaria, sendo o clavicular de todas as portas e um vigilante do recreio e corredores dos rapazes a quem ameaçava com o braço esquerdo levantado e a mão cheia de chaves, mas a quem nunca vi passar dessas ameaças. A entrada e saída para as aulas era também separada para rapazes e meninas: o 1º toque para entrar e sair era para as meninas, seguindo-se cerca de 1 minuto depois o 2º toque para a entrada e saída dos rapazes. Nem nos corredores havia “misturas”. Algumas turmas já começavam a ser mistas, para justificar o número de alunos, mas se tal não fosse necessário eram apenas turmas unissexo. Voltando ao Dr. Ramos, a verdadeira “eminência parda” do Colégio e dono e senhor dos nossos destinos enquanto alunos, exercia também como professor de Matemática. Quando no início do ano sabíamos os horários e os professores que teríamos por disciplina, havia desde logo dois grupos: o dos felizardos, a quem havia tocado a Dª Arnaldina como professora dessa disciplina, e os outros, a quem tinha “saído a fava”, o dos infelizes e desde logo aterrorizados alunos que teriam [ 111 ]


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um ano inteiro cólicas antes de cada aula de Matemática. O Dr. Ramos era, como professor, claríssimo na exposição do conteúdo e extremamente organizado na sua apresentação. Dizia e assim o exigia, que a resolução de qualquer teorema ou equação, se fazia no quadro ou no papel, tal e qual como se escrevia o português, ou seja, nas suas próprias palavras: “de cima para baixo e da esquerda para a direita”. E tudo o que fugisse dessa ordem, complementada com algarismos, letras e símbolos sempre bem desenhados (como por exemplo o sinal divisório de uma fracção tinha de ficar bem a seguir ao meio do sinal de igual =), era punido com um ou vários “cachaços” ao som da repetida ladainha “de cima para baixo e da esquerda para a direita”, ou de qualquer outra ladaínha, conforme a falha, tipo “o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos”. O seu método de ensino era sempre o mesmo durante todo o ano: Começava com uma aula ou duas de apresentação de nova matéria, a que se seguia uma aula de resumo da matéria dada, onde já se introduzia algumas perguntas com direito a “bónus” e depois uma aula, que começava com o sumário ditado e que era recebido pelos alunos como uma sentença terminal: “Chamadas de apuramento!”. Silêncio sepulcral, olhares furtivos e angustiados enquanto a sua caneta deslizava ao longo da lista dos alunos da turma e se imobilizava num nome, e todos tentavam antecipar qual seria pelo local onde a caneta tinha parado. Mas o Dr. Ramos prolongava o suspense, levantava a caneta, lentamente roscava a tampa e ainda com torturante lentidão a metia no bolso do casaco ou sobretudo, ajeitava as abas e levantando a cabeça, como que antecipando todo o gozo do terror instalado, olhava a vítima e sibilava: “Manuel Joaquim ...”. Um inaudível suspiro de alívio percorria quase trinta gargantas e confundia-se com um igualmente silencioso gemido de sofrimento da “vítima” a caminho do quadro. Só pode achar que exagero nesta descrição quem nunca por ela passou. Eu pelo menos assim a vi, vivi, e algumas vezes “senti”. Mas era também o Dr. Ramos capaz de, em momentos de algum embaraço circunstancial ou risco de “perder o pé” numa situação imprevista, de fazer uso de um humor muito próprio condimentado com uma fina ironia, em saídas originais e apropriadas que ficavam a pairar no ar por longo tempo e que no meu caso pessoal, me recordo de um pequeno episódio desse jaez que nunca mais esqueci. A história é curta e conta-se depressa: Aula de Matemática do 5º ano, e já quase a acabar mais uma hora de tortura, particularmente difícil pois o nível geral de conhecimentos não havia estado particularmente conforme o exigido, o Dr. Ramos resolve, para dar o exemplo de como queria as coisas, chamar ao quadro o melhor aluno da turma, que iria mostrar como tudo aquilo era fácil. Colocada a questão, o “urso” da turma engasga-se e falha. A frustração, e não só, invade o director ao ver-lhe fugir a estratégia de encerrar a aula de forma pedagogicamente exemplar. Olha de alto a baixo para o seu aluno predilecto, aposta falhada na ocasião, e quase que com desprezo deixa cair, palavra a palavra, uma sentença sibilina: “Aluno, o teu corpo divide-se em CABAÇA, Tronco e Membros!”. E em cada período escolar havia sempre dois “pontos escritos”, hoje chamados de “testes de avaliação/aferição”, na então usada escala de 0 a 20, embora sempre classificados com uma legenda qualitativa, que ia do Mau ao Muito Bom, passando pelos graus intermédios do Medíocre, do Sofrível, do Suficiente e do Bom, por vezes cada um deles seguidos dos símbolos - ou +. E, tudo o que não fosse no mínimo Suficiente, o equivalente a 10-11, dava direito a “sermão e missa cantada”. [ 112 ]


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Esta rotina era quase idêntica em todas as outras disciplinas, salvo no espectro das consequências mais imediatas e sensoriais. Sempre que havia testes, estes tinham que regressar ao Caderno Diário da cada disciplina com a assinatura do Encarregado de Educação a tomar conhecimento da classificação obtida. Esta exigência desenvolveu em muitos de nós notáveis dotes de falsários, que com maior ou menor êxito foram tentando ludibriar este sistema de controle. Mas a escapatória tinha a perna curta, pois no final de cada trimestre e do ano lectivo, chegava por correio um postal dirigido ao Encarregado de Educação, com as médias de cada disciplina e a classificação em Comportamento. E o postal entrava na caixa do Correio e era difícil, senão mesmo impossível, o seu sequestro ou “falsificação”. E os resultados dos Exames finais todos os anos eram publicados nos jornais locais, como se pode ver abaixo neste extracto do “O Concelho de Estarreja” do Ano Lectivo de 1958-59:

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E assim foram seguindo os anos nesse final dos 50, começando a notar-se que o espaço do Palacete dos Leite começava a ser exíguo para a crescente procura de alunos vindos de todas as Freguesias do Concelho, em muitos casos dois ou mais irmãos, ficando-me na memória algumas dessas “famílias” como era o caso dos “Amaro” de Pardilhó, dos “Valente” de Salreu”, dos “Costa” e dos “Moutinho” de Avanca, dos “Cunha” de Beduído e tantos outros. Mas também de muitos outros lados de fora do Concelho, como os “Fragoso” e os “Sardo” da Murtosa, assim como me recordo de colegas vindos de Ovar, Aveiro, Anadia, ..., passando a abrir até salas de aula no Sótão do palacete. O Novo Colégio E recorrendo de novo à prosa do Professor Jaime Vilar, que a propósito desta situação explanava: “Agitava o Dr. Ramos uma força emanente que não sofria amarras. Não tardou a sentir que a população escolar asfixiava na estreiteza de espaço. Tornava-se urgente desafogá-lo. A solução era construir um edifício novo, adequado às exigências modernas. Em fins de 1958, com audácia muito calculada (não fosse ele matemático) fez nascer a casa onde ficou a pairar, na imortalidade dos espíritos, o espírito do Dr. Ramos.” De facto, entre 1958-1959, começa o projecto e a obra para um” novo Colégio”. O local escolhido é um terreno de gaveto, com cerca de 5.000 m2 e próximo da Cadeia e Quartel da GNR, com a frontaria virada a Sul e para a Rua Dr. Pereira de Melo, via essa que até poucos anos antes se chamava de Estrada do Agro. O Projecto desse moderníssimo estabelecimento de ensino, que passados agora 60 anos sobre a sua construção se mantém perfeitamente funcional e actual em todas as suas características de espaço, luminosidade e adequabilidade, era da autoria do Arquitecto António Linhares de Oliveira e tinha como responsável técnico pela obra, o Engenheiro Civil António Tomás Machado da Conceição. Os Requerimentos, Licenças e Alvarás submetidos à Câmara, então presidida pelo Dr. Fernando Elísio Pinto Gomes, são feitos por dois proponentes: Augusto César de Oliveira Marques Ramos, proprietário de 6/7, e Manuel José de Oliveira Ramos, que seria muito provavelmente seu parente, que não irmão, pois os nomes desses começavam todos por A, mas que também teria uma ligação ao Ensino por ter sido professor de Dactilografia nos colégios de Estarreja e Murtosa e dono da Papelaria Ramos em Pardelhas e mais tarde bancário na (Cópia do Requerimento para Vistoria do Novo Colégio, entrado na Câmara Municipal Murtosa, que se subscreve como sendo proprietário do restante 1/7. O projecto constava de vários de Estarreja em Setembro de 1960) [ 114 ]


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blocos que perfaziam uma área coberta de 2.801 m2, distribuindo-se por 3 pisos da seguinte forma: - Na planta do rês do chão, ou Piso 0, a Entrada pela porta principal envidraçada, na fachada virada a Sul, acedendo a um hall com Secretaria e Gabinete da Direcção à direita e Sala de Espera à esquerda. Deste hall, e igualmente através de portas envidraçadas com barras verticais foscadas, desembocava num espaçoso átrio de distribuição ligando por corredor à esquerda para 2 Salas de aula, arrecadação, Sanitários das meninas e dos professores, vestiário das meninas, recreio feminino, corredor em frente onde se localizavam à direita mais 3 Salas de aula, e à esquerda o Vestiário dos rapazes. Ainda no Piso 0, encontrava-se o Refeitório com uma capacidade para cerca de 100 comensais, com acesso a partir do Recreio feminino e masculino, a Cozinha e Copa, e no logradouro a Norte/Poente o recreio masculino, os Sanitários dos rapazes, o Ginásio amplo e equipado com espaldares e material de ginástica e ainda um polivalente a céu aberto, de piso em cimento, com tabelas de basquete e murete a toda a sua volta. Deste Piso 0 acedia-se, por uma escada à direita desse átrio distribuidor, que desembocava noutra amplo átrio do 1º andar ou Piso 1. Neste, virando à direita, havia um corredor com 2 Salas de aula, e ao fundo o amplo Salão de estudo dos rapazes. Em frente às escadas ficava a Sala dos Professores, e à esquerda uma pequena arrecadação, 1 Sala de aula, o Salão de estudo das meninas, os sanitários dos professores e meninas e o amplo Laboratório de Ciências Naturais. A partir deste átrio a escada prosseguia para acesso ao 2º andar ou Piso 2, onde se encontravam mais 3 Salas de aula, os bem equipados Laboratórios de Física e Química e ainda, em plantas do projecto mas que eu não me recordo de alguma vez ter visto ou utilizado, uma Sala para a Mocidade Portuguesa e um Anfiteatro com cerca de 40 lugares de capacidade. Do que me recordo é que em lugar destes compartimentos havia uma escada de acesso a um Sótão de arrumações.

Cópia do documento de Vistoria e Licença para utilização do Novo Colégio, emitido pela Câmara de Estarreja em Setembro de 1960)

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(Acima foto de época, da autoria de Carlos Pinto de Sousa, do edifício do Novo Colégio)

No total, para além de todas as necessárias funcionalidades logísticas, higiénicas e sociais, o Novo Colégio dispunha de 11 salas de aula, cada uma delas com capacidade para 40 alunos, deduzindo-se assim de uma capacidade de ocupação simultânea de 440 alunos. Não creio que o Colégio tenha alguma vez chegado a este número, mas terá andado muito perto das três centenas. Este Colégio viria a receber a Licença Camarária para “Ocupação de Edificação Nova” em Setembro de 1960, iniciando-se já nele o ano Lectivo de 1960-61 e com isso um novo e importante ciclo na história do Colégio Externato Dom Egas Moniz. Para todos aqueles que, como eu, tinham já estado durante um ou mais anos no “antigo” Colégio e agora mudavam para o “novo”, era como se se abrisse uma porta de modernidade, um acesso a uma realidade comparável aquela que conhecíamos dos Liceus de Aveiro e Porto quando lá íamos fazer exames. Por uma feliz e simbólica coincidência, o novo Colégio e a nova e prodigiosa década dos anos Sessenta começavam juntas o seu percurso. Essa década de profunda mudança social, em que por força da afirmação da televisão o mundo conheceu homens como John Kennedy e Martin Luther King, do aparecimento do Eusébio e do Mundial de Futebol de 1966, do fenómeno dos Beatles e do Homem que põe o pé na Lua. Era o tempo em que nos rapazes os cabelos começavam a ficar mais compridos e nas raparigas as saias começavam a ficar mais curtas. Era um caldeirão efervescente de novas modas, novos ritmos e o dealbar de uma nova Sociedade. Esse impacto e esses ventos entraram lenta mas progressivamente pelas frestas das novas portas envidraçadas e pelas janelas agora com modernas persianas. [ 116 ]


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Sendo um conservador rígido nos modelos comportamentais e educativos, o Dr. Ramos acabava de contribuir, com o seu arrojado projecto de edifício escolar, para a modernidade social que assediava a juventude por todos os lados. Mas nesse tempo o aforismo de “Roma e Pavia não se fizeram num dia” ainda tinha toda a propriedade. A mudança, que inevitável e inexoravelmente progredia, ainda se fazia de forma lenta e aos soluços, longe da velocidade quase alucinante deste presente Século XXI. E assim a vida no novo Colégio trazia como lastro os mesmos horários, as mesmas regras, a mesma disciplina (ou mais ainda por se perceberem já os sinais da mudança dos tempos) do agora “velho” Colégio: os Recreios de rapazes e meninas separados física e visualmente; as entradas e saídas separadas por diferentes “toques” de campainha, as meninas de bata “cinza azulado”, sempre do mesmo tecido comprado na Casa “Álvaro Pinto Baptista” para garantir uniformidade (os rapazes, esses sempre “à civil”, com a roupinha que cada um usava em casa). Quase tudo na mesma, mas claras melhorias na Ginástica, agora com um excelente Ginásio que protegia da intempérie, no apetrechamento dos Laboratórios, na higiene dos Sanitários e Vestiários, na nova funcionalidade do Refeitório, na luminosidade natural e artificial dos Salões de estudo e das Salas de aula. Estes salões e salas tinham a particularidade de terem todas elas uma bandeira de vidro rectangular e colocada à altura dos olhos, que permitiam ao director espreitar/vigiar a partir dos corredores o que se passava lá dentro e, se tal se propiciasse, entrar intempestivamente pela aula adentro e “justiçar” de imediato e “in loco” o desprevenido prevaricador. Mas o que não havia mesmo mudado era a qualidade de um Corpo Docente conhecedor, empenhado e comprometido com a missão de formar estudantes e cidadãos. Podia-se por vezes não gostar tanto deste ou daquele mestre, ter preferências baseadas no estilo pedagógico ou interactivo de cada um, como certamente os professores teriam em relação a alguns alunos por efeito da sua aplicação e comportamento. Mas, num caso e noutro, seriam sempre excepções. A regra era assiduidade, competência e rigor. E muitos foram esses mestres, a que na altura nos referíamos como “professores” ou “engenheiros” no caso dos mestres masculinos, sendo o único que recebia o tratamento de “doutor”, era o director, o Dr. Ramos. Quantos às mestras, as professoras, não me perguntem porquê mas eram tratadas por “Dona”. Eram a Dª Arnaldina, a Dª Adelaide Maria, etc, isto apesar de serem todos e todas igualmente Licenciados/as. Referir todos eles é da mais elementar justiça e a menor das homenagens e agradecimentos que se lhes devem. Mas é também um risco elevado por inadvertidas e não intencionais omissões. Para tentar minimizar isso, listam-se, por ordem alfabética e por género, exactamente como vinham publicados nos anúncios de fim de ano que o Colégio fazia nos jornais locais, publicitando os resultados escolares obtidos, as inscrições e matrículas para o novo ano, incluía também a composição do Corpo Docente. Pode-se assim ler, como exemplo, num anúncio publicado no “O Concelho de Estarreja” em Setembro de 1963 a seguinte composição, começando pelas senhoras: - Adelaide Maria da Silva Matos; Ângela de Oliveira Marques Ramos; Ema Carrelhas Huet; Fernanda da Silva Marques; Haidé da Silva Mendes; Laura Emília Alves Macedo Fragateiro; Margarida Fernandes de Carvalho; Maria Arnaldina da Silva Guiomar; Maria Georgina de Carreira Landeiro; Maria Helena Falcão Costa Laíns; Maria Luísa Soares da Costa Pereira; Maria Nazaré Almeida Oliveira; Maria [ 117 ]


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Palmira Valente Amador Pinho. Vinham depois os professores masculinos: - António Ferreira Pitarma; António Maria Tavares; António Simões Neto; Augusto César de Oliveira Marques Ramos; Bento Manuel da Graça Araújo; Carlos Espain Neves de Oliveira; Casimiro da Silva Tavares; Fernando Lucindo Ferreira do Amaral; Jaime Tavares Vilar; Joaquim Arnaldo da Silva Mendonça; Monsenhor Manuel José Amador Fidalgo; Manuel Tavares Lopes; Tomaz Joaquim de Miranda.

(Anúncio no “O Concelho de Estarreja em Setembro de 1963, publicitando o Corpo Docente do Colégio)

Recordo-me de mais uns quantos, quer anteriores quer posteriores a estas datas, mas seguindo o tal princípio de não querer pecar por omissão, cinjo-me ao oficial e publicado. Seguramente que cada aluno terá retido de forma mais perene, afectiva ou identitária este professor ou aquela professora, por muito boas (e eventualmente algumas menos boas) razões. Natural e normal ontem, hoje e amanhã. E como no caso sou eu que estou a escrever, sinto que não me devo furtar a essa minha “selecção”, que colherá nalguns casos adeptos e acordos e noutros resolutos e justificados desacordos. Declarando desde logo o meu maior respeito e agradecimento a todos quantos participaram da espinhosa tarefa de superintender na minha aprendizagem e educação escolar e cívica, (não sendo dos piores, também nunca fui um “menino de côro”...), retenho e elejo, por diferentes razões, aqueles mestres e mestras que ainda povoam mais claramente as minhas memórias desses tempos. Começando pelas [ 118 ]


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senhoras, que serão três: - A Dª Maria Luísa, minha professora de Francês, que quando apareceu no Colégio de Estarreja, vinda da cidade grande do Porto, trouxe com ela uma lufada de modernidade e visão estética. Para nós, adolescentes nos 15-16 anos, descobríamos que se podia ser professora e elegante, aprender a falar e escrever francês e falar de livros e de músicas em voga, da Françoise Hardy, do Johnny Hallyday e da Sylvie Vartan. Terá sido a primeira professora do Colégio, com o seu cabelo à Mylène Demongeot e indumentárias à moda que então explodia, que provocou paixões platónicas nos seus alunos, e soube com o decorrer dos anos sempre receber com um sorriso de genuína satisfação os seus antigos alunos. A segunda a Dª Adelaide Maria, que levando de nós talvez apenas 7 a 8 anos de avanço na idade, começara a leccionar Ciências Naturais logo após a sua formatura. Essa proximidade de idades criava-lhe algumas dificuldades com os “matulões” do 6º e 7º ano, já todos rapazotes de barba feita, e que não lhe facilitavam a vida colocando-lhe sistemáticas “dúvidas” sobre os aparelhos reprodutores e temas afins, a que ela com controlada vontade de nos pôr de imediato no “olho da rua”, ia fazendo que não percebia e voltava a explicar. Hoje penitencio-me de ter por vezes sido um desses agentes “provocadores” e procuro expiar tais pecadilhos dando-lhe mostras de um profundo respeito e de uma sincera amizade para com a professora e a senhora que sempre foi. A terceira, inevitavelmente, a Dª Arnaldina, minha professora muitos anos de Geografia e/ou de Matemática, que me tratou a mim e quase que juraria que a todos, como “alunos-filhos” ou “filhos-alunos”. Ano após ano, permanentemente disponível para qualquer ajuda ou revisão, liderava as sabatinas de horas das suas disciplinas, já depois de acabarem as aulas e antes de começarem os exames, voltando a explicar e esclarecer e sendo a primeira que após as provas escritas vinha corrigir os exames com os alunos tentando perceber como as coisas tinham corrido, genuinamente preocupada com eles. Nunca me esqueço de que quando fiz o exame do 2º ano no Liceu de Aveiro, depois de ter passado na prova oral, quando todos os que haviam feito orais nesse dia regressávamos de comboio, ao passar na ponte ferroviária de Cacia sobre o Rio Vouga, fiz menção de abrir a janela armado em “esperto” para atirar o livro de matemática ao rio, como manifestação de vingança pelo trabalho que ele me havia dado, a Dª Arnaldina “pôs-se ao alto” comigo e pespegou-me um sermão sobre o respeito para com os livros de estudo e o sacrifício dos meus pais para os comprar, que me ficou para a vida. Obrigado Dª Arnaldina. Sei que partilho com muitos este meu sentimento de gratidão para com ela, pois alguns anos depois isso seria comprovado numa homenagem que lhe seria feita. Mas disso se falará um pouco mais à frente. Quanto aos professores, a minha particular referência vai para dois: - O Dr. Ramos, nem sempre pelos melhores e suaves motivos, mas porque entendo melhor agora o seu papel determinante no ensino em Estarreja, nesses tempos que levam já mais de sessenta anos. Se podia ter sido feito de outra forma, talvez pudesse ter sido, mas era essa matriz de disciplina e rigor, quiçá excessivos, talvez herdados do padre Garrido que consta ter sido também “uma fera” nesses foros, que fazia corrente na época. É, porém, inegável o seu legado, tanto físico nas instalações que deixou como nas dezenas de gerações que academicamente preparadas fez sair do “seu” Colégio. E isso viria também a ser reconhecido pelos seus antigos alunos, em 1993, com a colocação no átrio do “novo” Colégio de um busto seu da autoria do antigo aluno, arquitecto e escultor José João Brito, que se vê na foto abaixo. (Foto de Mário Rui Oliveira) [ 119 ]


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- O outro professor foi o Dr. Jaime Vilar, do qual nesta selecção estou seguro de que terei comigo quase todos quantos passaram pelas suas aulas de Português e Latim. Foi meu professor de Português durante o 2º Ciclo do Liceu e a ele devo não só o gosto pela leitura, mas mais o entendimento e a interpretação do que se lê e o prazer em procurar a escrita. Era um mestre de palavra fácil e rica e ainda de melhor prosa vertida no papel, como o atestam os seus inúmeros artigos e textos, na sua grande riqueza descritiva de lugares (as suas bem amadas terras da beira-ria), de episódios e de personagens. Também um sereno e inesgotável contador de histórias e costumes, como ficaram registadas as suas crónicas na rádio “Voz da Ria”. Mas foi mais do que um professor; foi um mentor de caracteres nessa fase do barro mole da puberdade dos seus alunos, em que uma palavra, um conselho, um exemplo molda e grava traços na formação da personalidade. Mas para além destas referências especificas, assumidas numa escolha muito pessoal, havia todo um competente e dedicado leque de professores, de quem só percebi o “aconchego” e apoio quando na sequência de uma falhada tentativa de frequentar o Liceu em Aveiro, no início do Curso Complementar dos Liceus, o 6º ano, descobri após os dois primeiros períodos que andava demasiado “perdido” no meio de novos professores que eu não conhecia e não me conheciam e em simultâneo andava demasiado “achado” nos bilhares do Café “Maravilhas”. Regresso urgente “à casa de partida” para salvar o ano e, de forma que nunca percebi, descobrir que os “afastamentos” e as “cotas” dos quadrantes da disciplina de Desenho que me baralhavam todo em Aveiro se tornavam visíveis e claros nas explicações do Engº Mendonça e que os “silogismos da Lógica” e as correntes filosóficas de Locke, Kant e Conte, contra as quais nadava para não me afogar nessas turvas águas, passavam a fluidas e serenas correntes e “lógicas interpretações e conclusões” na simplicidade da exposição da professora Dª Laura Fragateiro, que já me havia feito gostar de História e fez de mim um excelente aluno de Filosofia, capaz de conseguir um 18 na oral dessa disciplina [ 120 ]


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no liceu Alexandre Herculano, no Porto. E por referir este Liceu, convém talvez detalhar um pouco como e onde eram feitos os exames oficiais. Durante muito anos esses exames, do 2º, 5º e 7º anos liceais, eram feitos (provas escritas e orais) no liceu José Estevão, em Aveiro. Quando se abriu em 1960 o novo Colégio, passaram esses exames a ser feitos no Colégio (as provas escritas no Ginásio que era para isso preparado com as carteiras bem afastadas umas das outras), e as orais numa das mais espaçosas salas de aula, mas sempre por professores que vinham do Liceu de Aveiro. Mas, e cremos que por algum “quid pro quo” que se tenha verificado entre estas duas entidades, de um ano para o outro os exames passaram a ser feitos no Porto, nos Liceus Rainha Santa ou Carolina Michaelis, para as meninas, e nos Liceus Alexandre Herculano ou D. Manuel II, para os rapazes. O intercâmbio Lúdico – Desportivo com o Colégio dos Carvalhos Ao longo dos anos foi-se enraizando uma tradição de intercâmbio, a que chamo de lúdico - desportivo entre o Colégio de Estarreja e o procurado e reputado (ainda hoje), em todo o território entre o Minho e o Mondego, Colégio dos Carvalhos. Não foram poucos os alunos de Estarreja que, uma vez concluído o 2º Ciclo do Liceu, iam para o regime de internato nos Carvalhos para aí fazerem o Curso Complementar ou 3º Ciclo do Liceu, pois era quase garantia de uma boa preparação, fruto da exigência disciplinar e de ensino aí praticada, para o acesso à entrada directa nas Universidades ou Institutos, ou numa boa prestação nos exames de aptidão para o mesmo efeito. Essa tradição consistia na realização de dois jogos de futebol entre as equipas de cada um dos colégios, sendo sempre o primeiro nos Carvalhos no dia 8 de Dezembro, feriado por ser o dia da Imaculada Conceição, Padroeira de Portugal e também então o festejado Dia da Mãe. O convite formal vinha dos Carvalhos, pedia-se autorização ao Dr. Ramos e algumas vezes conseguia-se mesmo o apoio do transporte da carrinha. O Colégio fazia-se representar por uma equipa auto intitulada de Real EDEM. Real porque equipava toda de branco inspirada pelo já então famoso Real Madrid, dos icónicos Gento, Puskas e Di Stefano. EDEM por serem as iniciais do Externato Dom Egas Moniz.

Uma das Equipas do Real EDEM, com o seu carismático equipamento todo branco, em 1965 (?)

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Será talvez oportuno de referir neste ponto que cerca de 30 anos antes, em 1938, terá havido uma tentativa de alguns alunos do Colégio em criar um clube desportivo chamado “Académica Egas Moniz”, como se pode ler em notícia publicada no Jornal “O Povo de Pardilhó” de Novembro desse ano. Tal iniciativa não terá sido consolidada e quem sabe que se tal tivesse vindo a acontecer não teríamos hoje, em vez do CDE, que só seria fundado alguns anos depois, uma Académica de Estarreja. Mas voltando ao Real EDEM, a selecção de quem ia jogar fazia-se em auto-gestão entre os mais velhos e algum tráfico de influências, pois fazer parte do lote equivalia quase a uma “internacionalização” e dava “estatuto”. O jogo lá era sempre de manhã e depois éramos convidados para o almoço no refeitório dos alunos, em dia de rancho melhorado e com honras de partilhar a mesa com os colegas/adversários e um ou dois na mesa dos professores, segundo me recordo todos ou quase todos, padres. A retribuição fazia-se normalmente próximo do final do 2º período ou logo no abrir do 3º, sempre às 15.00 horas de uma 4ª feira à tarde (quando saímos mais cedo e não havia tempos lectivos mas apenas tempo de Salão de estudo), e jogava-se no Campo do CDE, ao tempo ainda Campo de São Gonçalo. Mal terminado o jogo, direitinhos à Sede do CDE, na Rua do Jornal de Estarreja e no 1º andar do edifício onde agora funciona uma Escola de Línguas. Umas sanduíches, uns bolos caseiros que algumas alunas traziam de casa, acompanhados por pirolitos e laranjadas que a Uprel sempre nos cedia, serviam de desculpa ao lanche de recepção, onde a “pièce de resistance” era o gira-disco a passar tangos e slows. Era a oportunidade para a rapaziada dos Carvalhos, e nós por arraste, de podermos dar uns passos de dança com as meninas que sempre tão afastadas e “interditas” estavam a qualquer contacto. O pessoal dos Carvalhos disputava cada lugar na equipa só para puderem vir cá jogar e dançar e nós acabávamos por também beneficiar desse intercâmbio. E por vezes resultavam nascer ou consolidar-se alguns namoricos entre o pessoal de “cá”, e os de “lá” uns temporários namoros platónicos e epistolares (carta para lá e carta para cá, que não havia telemóveis nem facebook e afins) que nunca chegavam ao próximo ano pois já então, “longe da vista ....”. Verdade seja dita, que quem ficava com a melhor parte deste intercâmbio acabavam sempre por ser os Carvalhos, pois em termos desportivos/futebolísticos levávamos sempre uma abada (não me recordo de alguma vez termos conseguido sequer empatar), e em termos lúdicos nós ganhávamos um almoço com rapazes e padres, enquanto que eles ganhavam um lanche (muito fraquinho, é certo) e um baile com simpáticas meninas. Mas eram sempre duas datas importantes em cada ano lectivo para quem tão poucas oportunidades de convívio tinha. O primeiro Baile de Finalistas do Colégio Como já referido os tempos nesta década de sessenta, e cada vez mais à medida que ela avançava, eram de mudança, num sentido de maior abertura, igualdade e liberalismo. Nas redondezas começavam a proliferar os Bailes de Finalistas, os alunos do 7º ano que no ano seguinte poderiam já estar nas Universidades e Institutos. Era assim no Liceu de Aveiro, nos do Porto e muitos outros. Os conjuntos musicais, tipo quartetos ou quintetos, surgiam [ 122 ]


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como cogumelos em casca de árvore. O Colégio de Estarreja e a sua população, pese todo o controle interno exercido, não passava à margem desta “movida”. Os alunos que constituíam no ano lectivo de 1965/66 o conjunto dos finalistas das várias alíneas de acesso ao Ensino Superior, seriam cerca de 30, logo a abrir o ano organizam-se em Comissão e, com o discreto apoio e retaguarda de alguns professores e professoras, apresentam ao Director um programa de Ano de Finalistas que no essencial constava de um almoço dos alunos finalistas com todos os seus professores e a direcção, um Baile de Finalistas a realizar no Ginásio e até ao final do 1º período e uma viagem de dois a três dias em itinerário a fixar face aos proventos do baile. O Dr. Ramos que era tudo menos desatento e acima de tudo um homem inteligente, soube ler os sinais da tal incontrolável mudança. O Colégio de Estarreja, por muito que lhe custasse essa cedência, não podia ser uma isolada ilha no mar do ensino particular e público regional. E, colocadas algumas condições, autorizou. Dessas condições constava que todo e qualquer dano causado nas instalações era da total responsabilidade da Comissão, que o Baile não passaria para lá das seis da manhã e que o Colégio não meteria um escudo nas festividades. Cedia o Ginásio, os Sanitários, mesas e cadeiras, suportava os custos da energia eléctrica e do pessoal auxiliar que fosse necessário. A Comissão concordou com tudo, antes que houvesse mudança de decisão, embora se pensasse num plano B que obrigaria a procurar um espaço fora do Colégio. Mas o plano A era o que se pretendia, fazer o 1º Baile de Finalistas em quase 40 anos de história do Colégio de Estarreja. Criaram-se Comissões para as diversas tarefas e distribuíram-se responsabilidades. O local para o Baile não oferecia qualquer dúvida: seria no Ginásio do Colégio. A escolha do conjunto musical para animar o baile, era igualmente óbvia: ”Os Kzars”, de Aveiro, banda em que dois dos seus elementos, o Nói, que também era finalista e tocava viola, e o Tude que era o guitarra e vocalista, estudavam no Colégio. Era o conjunto da moda na época, à semelhança dos que então havia espalhados pelo país (o Quinteto Académico, o Conjunto do João Paulo, os 1111, Os Sheiks, ...) e lá fora (Os Beatles, pois claro, Os Shadows, Les Chats Sauvages,...). Reserva feita no preenchido calendário do conjunto e o acordo comercial com a garantia de um bom desconto para amigos e satisfação de ambas as partes. Convites feitos, sóbrios e elegantes, em cartolina preta e letras douradas, começaram a ser criteriosamente distribuídos. A decoração do Ginásio era uma tarefa já mais difícil de fazer: pouca experiência no ramo, fundo de maneio a roçar o zero, tinha-se portanto que apelar a formas de bonito e barato, pois o bom à época não era assim tão importante. Todos de acordo que umas capas negras de Coimbra nos espaldares eram fáceis de arranjar e o estandarte do Colégio ao centro e em fundo. Alguém lembrou uns desenhos para alegrar as paredes. Havia um artista conhecido, também de Aveiro mas de passagem por Estarreja, que tinha jeito para isso. Creio que se chamava Rui Mira Correia e foi contratado para produzir as obras contra o pagamento de duas entradas à borla no baile. O resultado final apresentado foram uns espectaculares calhambeques (estava na moda a canção “O Calhambeque“ do Roberto [ 123 ]


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Carlos), pintados a giz de cores sobre cartolina preta (a dizer com os convites e nos materiais mais baratos que havia). Mas de bom gosto. Cuidadosamente distribuídos pelas paredes do Ginásio e afixados com fita cola, faziam um vistaço. Chegado o dia do Baile, 27 de Novembro de 1965, Sábado à noite, a coisa marcada para as nove e meia para começar aí pelas dez, todas as mesas reservadas e lotação esgotada, por bailarinos da casa e muitos vindos de fora (Aveiro, Ovar, Oliveira de Azeméis e até de Arouca). Bailes de Finalistas de então eram como os festivais musicais de agora: atraíam a juventude como a luz as borboletas. Receita gorda de bilheteira garantida, via de rigorosa disciplina de ingressos e controle de borlistas, e siga o baile. Um finalista abre com a esposa do director, a Dª Aida e uma finalista com o Dr. Ramos. Solenidade e classe na estreia do Colégio em Bailes de Finalistas. E até às quatro da manhã foi um verdadeiro e inesquecível esplendor, com namoricos a iniciar-se aqui e outros a consolidar acolá, tudo nas voltas da dança, com alguns a acabarem anos depois em firmes matrimónios. Também alguma dose de umas quantas desilusões, muitas “tampas” a pedidos de dança, mas nenhum verdadeiro “banho de assento” a entristecer a festa. Quase a finalizar, foto de grupo para mais tarde recordar.

(Os alunos Finalistas de 1965/66, no dia do Baile, com o director Dr. Augusto Ramos)

Já perto das cinco da manhã, com a sala abandonada pelos bailarinos e famílias, começaram os finalistas de tal incumbidos a desmontar a tenda, com o regresso das mesas e cadeiras para a Cantina, quando alguém reparou que a grande maioria dos desenhos dos calhambeques havia sido levada à laia de “recuerdo” por uns quantos bailarinos mais [ 124 ]


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apreciadores de arte. A descoberta resultou dos indícios do crime sob a forma de quatro tiras de tinta arrancada pela fita adesiva ao descolar do local, onde antes haviam estado em exibição, cada uma das obras de arte nas paredes do ginásio. Os poucos que ainda restavam, mesmo sendo cuidadosamente retirados, deram origem ao mesmo efeito: tinta da parede arrancada. O aspecto geral das paredes, depois de desmontada a “galeria de arte”, era uma verdadeira desgraça. Ficou logo clarinho que na 2ª feira a seguir, quando fosse passada a cuidadosa revista às instalações adstritas à festa, a coisa ia piar fino. O melhor era mesmo abrir logo as negociações com a declaração de capitulação final e a garantia de que, “o ginásio vai ficar pintado como estava antes, novinho em folha” e rezar pela aceitação da outra parte de tão pronta e total reparação. As contas da receita do baile, que haviam garantido um lucro de cerca de vinte contos (uma fortuna na altura e a valer hoje qualquer coisa como, actualizando a inflação, cerca de quinze mil euros) ficava assim e desde logo, comprometida. A viagem de fim de curso, que havia incluído alucinantes possibilidades de ida à ilha da Madeira ou no mínimo, ao Algarve (então não se sabiam das alternativas da Costa Brava, Costa Dourada, ou outros paraísos que tais), teve que ser, como agora se diz, “refundada”, e ficou-se por uma ida de dois dias à Serra da Estrela, mas ainda assim com um pagamento suplementar de dormida na Covilhã. Tal mordomia de cama e pequeno almoço, ficou reservada aos professores, às meninas, a dois ou três mais abonados e, é claro, ao motorista do autocarro. Os restantes dormiram (é como quem diz, passaram a noite...) nos bancos do autocarro, numa praça deserta da capital da Serra. O almoço dos Finalistas, que comparativamente era uma despesa menor, ainda deu para fazer e teve dignidade e classe: na Pousada da Ria, com todos os professores convidados e direito a eloquentes discursos. O Ginásio, esse ficou de facto como novo. Uma pintura integral a fazer desaparecer das paredes as cicatrizes do crime e a ensinarem-nos a todos uma lição prática sobre o verdadeiro valor da arte: aqueles “desenhos” de calhambeques, feitos a giz de cores sobre cartolina preta, valiam exactamente o preço de uma “pintura” de duas demãos das paredes do Ginásio! Não deu para mais e não foi o fecho em beleza que se pretendia, mas os compromissos foram todos honrados e ficou para a história como a 1ª Comissão e Baile de Finalistas do Colégio de Estarreja. Termina o Ciclo do Dr. Ramos e o aproximar do final do Colégio Mas o tempo, como já enfatizado, era de mudanças e o Dr. Ramos pressentia-o. Ninguém melhor do que o professor Jaime Vilar, seu cunhado e colega no corpo docente durante muitos anos para descrever essa fase da vida dele: “... começou a pressentir, para além do horizonte quotidiano, rumores surdos de tempestade que, como vento imprevisto que remexe o arvoredo, anunciavam mudança de tempo. No Ultramar o fogo da autonomia reanimava-se cada vez com mais fogo soprado por políticas anti-colonialistas.Veio a transição do Colégio e a retirada de cena do Dr. Ramos, poupando-se aos golpes de viração e voltando a vela a Penates. Era a agonia de meio [ 125 ]


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século de esforços, de lutas, de sucessos e de fracassos com que se escreve a brilhante história do Colégio Dom Egas Moniz, de Estarreja.” O Final do ano lectivo de 1965-66 terá sido o último da direcção do Dr. Ramos. A partir dessa data a direcção passou para o também antigo aluno, Dr. Júlio Francisco Pereira, que representava uma sociedade já instalada com outra unidade de ensino particular, segundo cremos em Albergaria, até que em 1973 o Colégio cessa a sua actividade de ensino particular e passa a integrar o ensino Público, a Escola Secundária de Estarreja.Terminavam assim quase 50 anos certinhos dessa epopeia que foi a criação e desenvolvimento de um estabelecimento de ensino particular, que justificadamente conquistou prestígio regional e formou gerações de jovens vindos de todos os cantos do Concelho de Estarreja e de Concelhos vizinhos. Quinze anos mais tarde, em Maio de 1988 e com 72 anos de idade, o Dr. Ramos partia, deixando uma recordação da sua rigidez no trato da disciplina, mas também de uma vida dedicada ao ensino e à capacidade de empreender, cuja memória evocamos com saudade e gratidão. A Homenagem à Professora Maria Arnaldina Guiomar Terminava assim, após meio século de vida, a saga do Colégio. Mas não terminava ainda (e ainda não terminou...) a memória de factos e gentes que a marcaram nesse percurso. Uma delas, pelas suas grandes qualidades enquanto mestre e pessoa, foi a Professora Dª Arnaldina, que em 1989 terminava uma carreira de 42 anos de exemplar dedicação e serviço. Embora sendo mais conhecida por ter leccionado Matemática e Geografia, orientou ainda alguns anos as disciplinas de Física, Biologia e Desenho. Mal conhecida a sua aposentação, iniciaram-se conversas e movimentos de seus antigos alunos para uma mais que merecida homenagem. Casimiro da Silva Tavares, antigo aluno e professor do Colégio, advogado e político local bem conhecido pelo seu dinamismo social e comunitário, convoca um grupo de outros antigos alunos para a preparação desse momento de público reconhecimento. As reuniões na “sede” (o seu gabinete de advocacia na Praça) tinham a sua liderança, por todos aceite, decorrente da sua experiência organizativa e associativa. Sendo (provavelmente) o mais velho dos participantes, era (seguramente) o mais entusiasta, e pouco depois, em Setembro de 1990 tem lugar, na Escola Secundária de Estarreja onde a Professora Arnaldina terminou o seu “sacerdócio pedagógico”, uma Homenagem a que se associaram antigos alunos e colegas de magistério. Estão presentes quase trezentas pessoas, são lidas mensagens chegadas de muitos lugares e de muito longe, discursos são proferidos e é-lhe entregue em mão, por um seu antigo aluno e no momento Secretário de Estado do Tesouro do XI Governo, Carlos Tavares, um Voto de Congratulação exarado em Despacho nº 74 de 14 de Setembro de 1990 do Secretário de Estado adjunto do Ministro da Educação, “louvando a professora licenciada Maria Arnaldina da Silva Guiomar pela sua dedicação exemplar em prol do ensino e da educação, com esclarecido empenho e alto sentido de responsabilidade e competência, em longo e fecundo magistério”. Pelas mesmas razões, na véspera deste despacho, a Assembleia Municipal de Estarreja havia-lhe concedido um Voto de Louvor e Congratulação. Ficaram ainda desta homenagem, [ 126 ]


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uma placa com o seu nome na Biblioteca da Escola e a criação de um prémio “Drª Arnaldina” para o melhor aluno do 11º ano na disciplina de Matemática, da Escola Secundária de Estarreja. Alguns anos depois, a Associação dos Antigos Alunos colocou na sua última morada no cemitério da Murtosa, uma pequena placa onde se pode ler: “Com o reconhecimento pelos ensinamentos transmitidos e o carinho pela pessoa no seu exemplo humano”. Nada mais justo e mais merecido.

(Fotos da homenagem à Professora Maria Arnaldina Guiomar. À esquerda uma vista de parte da assistência e à direita a Dª Arnaldina agradecendo a homenagem)

Os Antigos Alunos Quem saía do Colégio, depois de por lá ter passado alguns anos, dificilmente apagava da sua vida e memória esses tempos e incidências. Nada portanto mais natural e previsível do que a determinado momento se comecem a recolher notícias de encontros e reencontros de antigos alunos. A primeira notícia que se encontra no “O Concelho de Estarreja” refere que em Agosto 1970 um grupo de antigos alunos do Colégio se reuniu na Pousada da Ria, em alegre confraternização e de que saíram algumas propostas para futuros convívios e para sugerir à Câmara da atribuição a uma rua da Vila do nome do Padre Garrido. Encontra-se dezassete anos depois, novamente em finais de Agosto de 1987, noticia de uma reunião num restaurante de Aveiro, onde terão estado presentes mais de sessenta antigos alunos. Seguramente que outras reuniões e encontros terão havido mas passado pela malha das referências noticiosas. Mas é a Homenagem à Dª Arnaldina e a enorme adesão que registou, que vem propiciar a ideia de formalizar uma Associação de antigos alunos. Uma vez mais é Casimiro Tavares o grande impulsionador da ideia, e mandatado pelos participantes presentes nessa homenagem, prepara a Escritura de Constituição da Associação dos Antigos Alunos do Externato Dom Egas Moniz e Escola Secundária de Estarreja, que vem a ser lavrada a 14 de Maio de 1991 nas folhas 136 a 140 do Livro de Notas oitenta e oito - A, no Cartório Notarial de Estarreja e que teve como seus outorgantes e fundadores: Maria Arnaldina da Silva Guiomar; Casimiro da Silva Tavares; António Nunes Ferreira Girão; António Manuel de Oliveira Saramago; Miguel da Silva Henriques Barbosa; Manuel Nogueira Nunes; Luís Augusto Marques Coutinho; José

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JOSÉ FERNANDO CORREIA

Fernando Ferraz Correia; Rosa Palmira dos Santos Amador Rodrigues de Carvalho; Berta de Fátima Abreu Freire; Maria Isabel Marques de Andrade da Silva Tavares; Maria Carolina Coutinho Valente da Cunha e Castro e Maria dos Anjos de Oliveira Nunes Barbosa.

(Foto de reunião de antigos alunos e professores de 1994, onde ainda se vêem na primeira fila a Dª Arnaldina e Casimiro Tavares)

Casimiro Tavares foi o primeiro Presidente desta Associação, cargo que manteve até que nos deixou em Janeiro de 1995. Em 1997 a Associação tinha 237 associados. Desde a sua criação, já lá vão quase trinta anos, a Associação tem organizado e concretizado diversas realizações, tais como a publicação de Boletins da Associação, a administração das concessões dos prémios Maria Arnaldina (Matemática), Casimiro Tavares (História) e mais recentemente, José Teixeira Valente (Português) e Manuel Augusto Marques da Silva (Geologia/Biologia), promoção de periódicos encontros e almoços de confraternização de antigos alunos, etc.

(Cópia da capa de um Boletim da Associação-1997)

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Epílogo Como se alertou, logo no abrir deste modesto trabalho, o mesmo não seria um relato histórico e exaustivo do nascimento, vida e encerramento do Ensino Particular em Estarreja por via do seu “Colégio”, bem como iria ser composto numa base mista de documentação factual e de exercícios de memória do próprio e de outros, alguns deles quase a raiar a lenda de que se vestem sempre os factos que habitam nos sótãos das recordações. É pois, muito naturalmente um trabalho imperfeito, onde caberiam muitas mais histórias, referências, nomes de personagens e passagens inesquecíveis, propriedade de cada um que por lá, numa ou noutra condição, passou. E, sugerindo e propondo a todas essas fornadas de lá saídas, direi em jeito de contributivo convite, com as palavras de Garcia de Resende: “O Caminho está aberto, a quem mais quiser dizer....”. Comecei este trabalho dizendo que gostaria de olhar para ele como o contar de uma bonita história, daquelas que começam sempre com, “Era uma vez...”. E, em assim sendo, gostaria também de terminar como terminam sempre essas belas histórias que nos embalaram a infância e a imaginação, dizendo mais ou menos isto, na esperança de que tenha mesmo sido verdade: “E todas as gerações que por lá passaram, foram Felizes para Sempre ...” FIM - Fontes de Informação, a quem sinceramente se agradecem todos os contributos, tenham eles sido em forma documental ou em relatos de memória e vivências pessoais: - Arquivo documental pessoal de António Augusto Silva - Arquivo Municipal da Câmara de Estarreja - Foto de Mário Rui Oliveira - Artigos do Jornal Semanário “O Povo de Estarreja” - Artigos do Jornal Semanário “AVoz de Estarreja” - Artigos de “O Jornal de Estarreja” - Artigos de “O Concelho de Estarreja” - Artigos de “Progresso da Murtosa” - Obra “O Padre Donaciano de Abreu Freire: O Homem e o Padre do seu tempo” da autoria do Cónego Filipe de Figueiredo - Boletins da Associação dos Antigos Alunos do Extº D. Egas Moniz e Escola Secundária de Estarreja (AAAEDEM e ESE) - Textos do Professor JaimeVilar, publicados nos Boletins da AAAEDEM e ESE - Diários do Governo -Testemunhos e memórias de antigos Alunos, designadamente: Maria José Campos; Luís Augusto Coutinho; Orlando Botte Nota 1: Fiz a opção de escrever este texto usando o Português anterior ao Acordo Ortográfico de 1990, pela simples razão de ter sido esse “Português” aquele que aprendi na Escola Primária e neste “Colégio” de Estarreja, e com essa forma me sentir mais identificado e confortável. Nota 2: Com apenas duas curtas excepções, nos 1º e 2º períodos do 1º Ano Liceal, em que residia em Novelas - Penafiel e frequentei aí o Colégio dessa cidade, e nos mesmos períodos do 6º Ano Liceal, em que fui “experimentar” o Liceu de Aveiro, todo o meu percurso liceal de 1958 a 1966 foi feito no “Colégio” de Estarreja. [ 129 ]


JOSÉ GURGO E CIRNE

DR. TAVARES AFFONSO - SEIS CARTAS E UM BILHETE POSTAL DIRIGIDOS AO PROF. DOUTOR EGAS MONIZ José Gurgo e Cirne*

Entre os meses de Julho de 2006 e Novembro do mesmo ano, publicou o jornal “O Concelho da Murtosa” uma série de cinco artigos, da autoria do recém-falecido Pe. Manuel JoaquimTavares Cirne (19.04.2020), nosso saudoso professor de Francês, ainda que por breve tempo, no antigo Seminário de Calvão, no início do ano lectivo de 1972-73. (Ressalve-se que, apesar do mesmo apelido, nenhum laço de parentesco conhecido nos unia.) Tais artigos já vinham sendo publicados sob o título genérico de “Achegas para a História do Bunheiro”, mas, no caso em particular, o seu autor acrescentou-lhe a seguinte epígrafe: “Os Rebimbas Tavares Originários do Celeiro” (Achegas nºs 65-1; 65-2; 65-3: 65-4; e 65-5). A pretexto da publicação desses artigos, tivemos o ensejo de trocar alguma correspondência com o seu autor, de que guardamos treze cartas manuscritas suas, em resposta pelo menos a outras tantas da nossa própria lavra. São aquelas todas datadas da Casa * Licenciado em Antropologia e Serviço Social, pós-graduado em Família e Sistemas Sociais, mestre em Antropologia Social e Cultural. Possui o Diploma de Estudos Avançados em Antropologia e frequentou também Estudos Avançados em História das Idades Média, Moderna e Contemporânea. É membro do CRIA – Centro em Rede de Investigação em Antropologia, sob cuja égide se encontra a realizar o doutoramento em Antropologia.

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Diocesana de Nª Senhora do Socorro, em Albergaria-a-Velha, onde o Pe. Cirne assumira funções de orientador espiritual, sendo a mais antiga de 06.11.2006 e a mais recente de 14.09.2009. Quando pensámos dar início à redação do presente artigo, voltámos a contactar o Pe. Cirne, de que resultou a marcação de um encontro, que se veio a efectivar com a nossa deslocação à referida Casa Diocesana, naquela que viria a ser, mal o sabíamos então, a nossa conversa de despedida. Sucede que, em simultâneo, dávamos início à nossa colaboração com a revista “Terras de Antuã”, ainda dirigida pelo Dr. Delfim Bismarck Ferreira, com a publicação de um artigo intitulado “Episódio da Vida Política de Há Cem Anos”, que saiu no nº 3 (2009) daquele anuário e versava a figura do Dr.AntónioTavares Afonso e Cunha. Com vista à elaboração de tal artigo, socorremo-nos dos bons ofícios da Dra. Rosa Maria Rodrigues, actual directora da revista “Terras de Antuã”, que, em complemento, nos cedeu fotocópias de várias cartas autógrafas do Dr. Tavares Afonso, que se encontram no espólio da Casa-Museu Egas Moniz e que hoje aqui damos à estampa. Entretanto, será bom reavivar o que, sobre a personalidade em causa, escreveu o Pe. Cirne na sua “Achega nº 65-2”, publicada no jornal “O Concelho da Murtosa” de Agosto de 2006. Dizia ele: Para começar, escolhi o Dr. António Tavares Afonso e Cunha, um homem íntegro, depreciado por vicissitudes adversas da sua vida malsucedida, ou má sorte, e caído no esquecimento do público em geral. É certo que a Câmara Municipal de Estarreja lhe dedicou uma rua na Póvoa; e temos testemunhos coevos dos colegas vereadores em sua defesa, reagindo contra certa corrente política, que pretendeu amesquinhá-lo, afastando-o dela. Também a Junta de Freguesia do Bunheiro, com acerto e justiça, deu o seu nome a uma das principais artérias da sua Terra. E acrescentava, sem peias: Ora, eu posso apresentar razões comprovativas de que ele foi um grande homem: inteligente, expedito e oportuno, honrado e fiel à sua palavra, um administrador competente (como o reconheceram os seus pares), um advogado hábil, conhecedor da Lei e honesto na sua aplicação (que nunca pactuou com a injustiça), um cristão sincero, um educador atilado, um bunheirense devotado ao bem da sua Terra Natal, um pensador sensato, que nos honra a quantos nascemos no Bunheiro. Aceito que outros tenham opinião diferente. Porém, a minha é esta, que passo a explanar com factos da sua vida e alguns escritos seus. De seguida, acrescenta um resumo dos seus traços biográficos: O Dr. António Tavares Afonso e Cunha, filho de Manuel José Pereira de Sousa e de Joana Maria [ 131 ]


JOSÉ GURGO E CIRNE

Tavares, nasceu no lugar do Celeiro, em 15 de Junho de 1870, sendo baptizado no dia 19 seguinte, pelo tio paterno, Pe. José Joaquim Pereira de Sousa (Pe. José Zarelho). Teve por padrinhos os tios maternos António Tavares Afonso e Cunha e Maria Ana Tavares Afonso e Cunha, já identificados.1 Desconheço onde terá feito os seus estudos preparatórios, mas pode-se afirmar com segurança que neles teve influência preponderante o tio materno Pe. Domingos Tavares Amador, professor de nomeada em Aveiro, o qual, com a extinção da Diocese em 1882, regressou à casa paterna, onde faleceu em 8 de Junho de 1889 – período correspondente aos ditos estudos do sobrinho. Quanto aos seus estudos académicos, elucida: António Tavares Afonso e Cunha matriculou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Outubro de 1888. Tenho o registo de cada um dos seus exames dos cinco anos do seu Curso de Direito e em todos, seguidos, a classificação, que mereceu aos Lentes, foi de «aprovado nemine discrepante», o que equivale em linguagem corrente a «distinto». Formou-se em 17 de Junho de 1893 e foi-lhe passada carta em 30 de Janeiro de 1894. No que respeita ao exercício da profissão, para além da sua competência, enaltece também a sua singularidade: Que foi um advogado competente, conhecedor das leis e dos homens, de bom senso e equidade, é opinião generalizada de quem o conheceu e apontou como exemplar aos mais novos. Porém, no exercício da Advocacia, procedeu, com frequência, de uma forma tão estranha, que a generalidade dos advogados classificará de loucura. Conheci uma pessoa, que o consultou sobre determinada questão, na qual se julgava injusta e abertamente prejudicada pelo seu opositor. Depois de ter ouvido, pacientemente, o queixoso e concordando que a razão estava do seu lado, ajudou-o a ponderar o valor entre os gastos, que teria de suportar, e o lucro, que lhe adviria, se ganhasse a questão, o que é sempre uma incógnita. Que tentasse tudo por chegar a uma conciliação razoável. Lembrou-lhe pessoas de influência junto do adversário, que o chamassem à razão e o dissuadissem da sua ambiciosa pretensão, que poderia passar por entre as malhas da Lei, mas nunca amarfanha o grito da consciência. Poderia conseguir-se, com reflexão e bom senso, resolver a contenda, de forma aceite por ambos. E rematou o seu conselho, dizendo: «Mesmo que fiques algo prejudicado, lembra-te que vale mais uma fraca acomodação do que uma boa demanda». Enquanto político e autarca, informa que: 1 - Faleceu em 7 de Março de 1956, como consta do assento de óbito nº 82/1956 da Conservatória do Registo Civil de Estarreja, segundo a amável informação que, desde já, agradecemos à sua conservadora, a Exma. Sra. Dra. Helena Pinheiro.

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Ele aparece a fazer parte daVereação Municipal, sempre por eleição, em três fases ou épocas: 19081909; 1919-1922; 1923-1925. 1ª Fase Nesta, foi eleito Presidente da Câmara, em sessão extraordinária de 30 de Novembro de 1908, sucedendo a Francisco Barbosa do Couto Cunha Sotto Maior. Presidiu às sessões até à de 13 de Janeiro de 1909, inclusive, sendo, a partir dela, substituído na presidência peloVice-Presidente Bacharel Artur Augusto de OliveiraValente. Na sessão ordinária de 10 de Fevereiro de 1909, o referidoVice-Presidente comunicou aos vereadores presentes – segundo o teor da acta - «que ao Presidente desta Câmara, Dr. António Tavares Afonso e Cunha, havia sido intimada a decisão do Supremo Tribunal Administrativo, que o exclui do cargo de vereador desta Câmara, motivo porque o mesmo não tem comparecido às últimas sessões». Não se conhece o motivo desta tomada de posição do Supremo Tribunal Administrativo. Inclino-me a atribuí-la a influências políticas2, até porque, em cerca de um mês, o Dr. António Tavares não tinha tempo de cometer irregularidades, que impusessem a sua exclusão de vereador, eleito pelo povo e escolhido para Presidente da Câmara pelos demais vereadores, e nem o dito Tribunal tinha tempo de as julgar. 2ª Fase Os vereadores eleitos em 25 de Maio de 1919, fizeram o compromisso de honra em 13 de Agosto do dito ano e foi-lhes conferida a posse de vereadores da Câmara Municipal de Estarreja, «que hãode gerir e administrar o mesmo concelho desde o dia treze de Agosto de mil novecentos e dezanove até trinta e um de Dezembro de mil e novecentos e vinte e dois». Na lista, aparece em 1º lugar o Bel. José Maria de Abreu Freire, de Avanca; e, em 2º, o Bel. António Tavares Afonso e Cunha, do Bunheiro. E continua o Secretário: «... logo se procedeu por escrutínio secreto à eleição do Presidente,VicePresidente e Secretários desta Câmara Municipal e o resultado foi o seguinte: Presidente – Dr. José Maria de Abreu Freire;Vice Presidente – Dr. Manuel Maria Vaz, da Murtosa; 1º Secretário – Capitão Manuel Maria da Silva Abreu; 2º Secretário – José Bernardino Pereira – e assumiram o compromisso de honra, obrigando-se a cumprir as Leis da República. «Em seguida, a dita Câmara procedeu, por escrutínio secreto, à eleição da sua Comissão Executiva, da qual resultou a eleição, como efectivos: Dr. António Tavares Afonso e Cunha, do Bunheiro; Dr. José Fortunato do Amaral Cirne, de Salreu; Joaquim Maria de Resende, de Pardilhó; Joaquim Manuel da Silva Gravato, da Murtosa; Capitão Manuel Maria da Silva Abreu, de Avanca; José Domingues de Andrade Júnior, de Fermelã; eVitorino Tavares de Sousa, do Bunheiro». 2  - Cf. O nosso artigo publicado no nº 3 de “Terras de Antuã” (2009:99-104).

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JOSÉ GURGO E CIRNE

Foi durante a sua presidência da Comissão Executiva que a Câmara Municipal mandou erigir o monumento de homenagem aos mortos da I Grande Guerra. Ao facto se refere também o Pe. Cirne quando diz o seguinte: Em 21 de Junho de 1922, no exercício da sua função de Presidente da Comissão Executiva, o Dr. António Tavares Afonso e Cunha dirigiu um ofício ao Prof. Doutor Egas Moniz, elogiando o discurso, que fizera na inauguração do Monumento Aos Mortos da Grande Guerra, e pedindo se dignasse cedêlo à Câmara Municipal, que desejava mandá-lo publicar, juntamente com uma fotografia do Autor3. 3ª Fase Há uma terceira fase, em que participou temporariamente. A acta da tomada de posse, entrada em exercício e declaração de compromisso de honra dos cidadãos eleitos é de 2 de Janeiro de 1923. Em princípio, o mandato prolongar-se-ia até 1925. Nesta sessão, aparece, em primeiro lugar, o Dr. José Luciano Pires de Castro Corte-Real e, em segundo, o Dr. António Tavares Afonso e Cunha. O regulamento do exercício do poder é igual ao do período anterior. A última sessão, em que participou, foi a de 26 de Setembro desse ano de 1923. Houve eleições para o biénio de 1924-1925, mas ele não se propôs. E compreende-se, porque nesta altura já se encontrava à frente da Companhia de Curtumes Antuã. Na sua “Achega nº 65-3”, publicada no jornal “O Concelho da Murtosa” de Setembro de 2006, o Pe. Cirne não hesita em evocar o Dr. António Tavares Afonso e Cunha, a propósito da sua actuação à frente dos destinos da Companhia de Curtumes Antuã, como “Um Homem de Valor, Digno da Gratidão dos Bunheirenses”. E não se coíbe de entrar em minudências particulares e recordações pessoais, ao contar que: Desde criança, ouvi frequentemente falar da falência dum Banco4, que o Dr. António Tavares tivera na Póvoa de Estarreja, perdendo o meu Avô, em consequência, o capital, que nele depositara, pertencente a um filho emigrante no Brasil.

3  - Trata-se do opúsculo intitulado “Do Valor e da Saudade”, editado pela Câmara Municipal de Estarreja em 1922. “Discurso proferido na inauguração do obelisco de homenagem aos soldados do concelho de Estarreja mortos na Grande Guerra, em 17 de Junho de 1922.” No dizer de João Lobo Antunes, “Este elogio ao «soldado marinhão» é, lido hoje, de insuportável lamechice, mas decerto o seu estilo correspondia ao gosto da época e às expectativas da audiência” (Antunes, 2011:107). Continha ainda a “Correspondência trocada entre o Presidente da Comissão Executiva da Câmara Municipal, Sr. Dr. António Tavares Afonso e Cunha, e o Sr. Dr. António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, a propósito da presente edição”, cujas missivas são respectivamente de 21 e de 25 de Junho. 4  - Trata-se, com efeito, da Firma Tavares Afonso, Lda. - Administrações -, sociedade de âmbito e capitais familiares, que era também representante da Companhia de Seguros Equidade.

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E contavam que indo lá, acompanhado por uma Filha, com intenção de reforçar a conta, encontraram-no, ao balcão, de braços cruzados e muito acabrunhado. Depois da saudação habitual, o meu Avô disse ao que ia. E a resposta dele, amargurada, foi esta: «O Banco já não dá, nem recebe». Perante o espanto e consternação do meu Avô e da Filha, ele continuou: «Vieram os lá de cima e levaram tudo: valores e livros. Caímos na falência». Mas é de todo conveniente, neste ponto, não confundir a casa bancária Tavares Affonso, Lda., com sede em Lisboa, na Praça Luís de Camões, nº 48-3º Esq., e com filial em Estarreja, com a Companhia de Curtumes Antuã5. E foi esta que faliu, não a casa bancária. Fundada em 1922, a Companhia de Curtumes Antuã teve inicialmente sede na Praça da Liberdade, nºs 28 e 29, na filial da casa bancária Pinto e Sotto Mayor, no Porto, com a prerrogativa de a sua direcção poder “estabelecer agências ou quaisquer outras formas de representação no país ou no estrangeiro”. Contudo, há indícios de que já em 1926 tinha mudado a sua sede também para Lisboa, o que se confirma no ano de 1927, quando aparece domiciliada na mesma Praça Luís de Camões, nº 46 – 3º Esq. Já então faziam parte da sua Direcção, além do Dr. António Tavares Afonso e Cunha, o Prof. Doutor António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz e o capitão António Bernardino Ferreira. Mas, ao contrário do que se possa julgar, nem o Prof. Doutor Egas Moniz6, nem o capitão António Bernardino Ferreira7 participaram na sua fundação. Não deixa, porém, de estranhar a existência, anterior mesmo à constituição legal da Companhia de Curtumes Antuã, do seguinte

5  - O Dr. António Tavares Afonso e Cunha, enquanto director da Fábrica de Curtumes Antuã, costumava receber, na sede desta, os clientes da Firma Tavares Afonso, Lda. Era habitual os lavradores, no regresso da Feira de Santo Amaro (até porque ficava em caminho), lá tratarem dos seus negócios financeiros. Daí a confusão que acabou por se instalar entre ambas as firmas. 6  - Pelo contrário, aquando da constituição da Sociedade de Produtos Lácteos, em Avanca e casas do Dr. José Maria de Abreu Freire (parente de Egas Moniz), em 10 de Março de 1923, com um capital social de 300.000$00, o Dr. António Tavares Afonso e Cunha foi um dos seus cinquenta signatários. A sua laboração teve início em 1 de Abril de 1924 e a firma seria depois adquirida pela Nestlé, em 1934. (Não confundir com a Sociedade Avancanense, Lda., fundada em 9 de Maio de 1920 e com interesses em Angola, da qual o Dr. António Tavares Afonso e Cunha foi igualmente sócio, sendo dela gerente o Dr. António de Abreu Freire, também médico e parente de Egas Moniz.) 7  - Tal como Egas Moniz (Negócios Estrangeiros), embora mais tardiamente, veio igualmente a integrar o governo de Sidónio Pais (Interior).

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JOSÉ GURGO E CIRNE

Instrumento de Venda «Em nove de Junho de mil novecentos e vinte e um, nesta vila de Estarreja e meu cartório, perante mim Manuel Rodrigues Gomes, notário nesta comarca e as testemunhas idóneas, minhas conhecidas, no fim designadas, compareceram os Excelentíssímos Senhores António Caetano Lopes Fonseca com sua esposa Dona Eduarda Virgínia Calheiros Pereira Fonseca, proprietários, moradores nesta vila, os quais disseram – que eram legítimos senhores e possuidores de um pinhal situado na Arrotinha, freguesia de Beduído, desta comarca, a partir do Norte com a estrada, Sul com herdeiros de Francisco Barbosa, Nascente com o caminho e Poente com a “Empresa Antuã”8: que este prédio está livre de hipotecas, penhoras e arrestos, foros e, em geral, de toda e qualquer responsabilidade: que assim do mesmo prédio faziam venda, para sempre, aos senhores Doutor António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, casado, médico, das Congostas, freguesia de Avanca, Doutor António Tavares Afonso e Cunha, solteiro, maior, advogado, desta vila e António Bernardino Ferreira, casado, oficial do Exército, da Póvoa de Baixo, freguesia de Beduído e todos desta comarca, pelo preço de vinte escudos, quantia que, em moeda corrente, já receberam dos compradores, de que lhes davam quitação: que nos mesmos compradores, pois, cediam e transferiam o domínio, direito e acção, usufruto e administração que até hoje têm tido no prédio vendido, do qual, com suas pertenças, dependências e partes integrantes, os compradores tomarão posse como e quando quiserem, obrigando-se eles outorgantes à evicção nos termos de direito. – Assim o disseram e outorgaram, do que dou fé. (…) Foram testemunhas continuamente presentes Adriano Augusto Rodrigues da Silva, escrivão de direito e Alfredo Mendes Barata, oficial de diligências, ambos casados, residentes nesta vila, os quais vão assinar com ambos os outorgantes, depois de lido este instrumento em voz alta aos mesmos outorgantes, na presença das testemunhas, por mim notário, que também assino. Foram praticadas seguidamente, num só acto, as formalidades legais.» Quanto à Companhia de Curtumes Antuã, a sua escritura de constituição e respectivos estatutos foram publicados no Diário do Governo de 17 de Junho de 1922. A duração da sociedade seria por tempo indeterminado, “contando-se para todos os efeitos o seu começo desde 1 de Janeiro de 1922”. O seu capital social foi inicialmente fixado em 500.000$00, representado por 5.000 acções de 100$ cada uma, o qual se achava integralmente subscrito e já realizado aquando da escritura de constituição. Poderia, no entanto, ser elevado a 1.000.000$00 quando a Direcção o entendesse conveniente, depois de ouvido o Conselho Fiscal. Ressalvavase, porém, que em caso de aumento de capital, os anteriores accionistas teriam preferência na subscrição das novas acções, segundo as condições estipuladas pela direcção.

8  - Segundo tudo indica, a Empresa Antuã terá sido a predecessora da Companhia de Curtumes Antuã. Provam-no os abonos feitos pelo Dr. António Tavares e sua irmã Maria Luciana em 28 de Fevereiro, 6 e 26 de Março e 8 de Abril de 1918, no total de 2.000$00, por lapso inscritos no livro-razão da firma Tavares Afonso, Lda., que uma nota manuscrita corrige: “Transportado para os livros da Empresa Antuã.” Provam-no ainda as seguintes entradas do livro-razão da firma Tavares Afonso, Lda., a saber: em 5 de Agosto de 1917, “Empréstimo à «Empresa Antuã» do capital do Dr. Júlio Seabra, recebido a fls. 40 – 150$00”; em 13 de Janeiro de 1919, “Nesta data o sr. António Bernardino Ferreira depositou em nome da “Empresa Antuã”, de Estarreja, no Banco Português e Brasileiro, o juro do 1º ano do abono dos 5 contos (da Maria Luciana), na importância de – 250$00”; em 15 de fevereiro de 1915, “Por conta da despesa com esta propriedade, dois carros de lixo da fábrica para estrume – 1$000.”

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Escritura de Constituição «Em vinte e nove de Julho de mil novecentos e vinte e dois, nesta vila de Estarreja e moradas do Doutor António Tavares Afonso e Cunha, para onde foi reclamada a minha presença, ante mim Manuel Rodrigues Gomes, notário nesta comarca e as testemunhas idóneas, minhas conhecidas, no fim designadas, compareceram os senhores Dom Juan de GuineaY. Basterra, casado, engenheiro, morador na rua Duque de Loulé, palacete Bijou, da cidade do Porto, cidadão espanhol que declarou prescindir de intérprete por conhecer e falar o idioma português; Doutor José Marques Pereira Barata, casado, engenheiro, da Quinta da Costeira, freguesia de Beduído, desta comarca de Estarreja; Doutor Guilherme Eugénio de Souto Alves, solteiro, maior, advogado, desta vila de Estarreja; Doutor António Tavares Afonso e Cunha, solteiro, maior, proprietário, morador nesta casa; Manuel Maria Esteves de Oliveira, casado, industrial, residente nesta vila; Manuel Soares Ferreira, casado, negociante, desta mesma vila; João Carlos da Silveira Pinto Camelo, casado, farmacêutico, do lugar da Igreja, freguesia de Avanca, desta comarca; Doutor António de Abreu Freire, viúvo, médico, do lugar da Aldeia, da mesma freguesia de Avanca; José Maria Dias Pereira, casado, proprietário, da Póvoa de Baixo, freguesia de Beduído, desta comarca; Ezequiel da Silva Pinho, casado, negociante, desta vila; José Marques de Oliveira e Silva, casado, negociante, desta mesma vila;Augusto José Ferreira, casado, comerciante, da Praça, freguesia de Beduído, desta comarca; Francisco de Oliveira Marques, casado, negociante, desta vila; Manuel Pereira de Sousa, casado, cirurgião-dentista, morador nesta vila, e Avelino dos Santos Leitão, solteiro, maior, negociante, residente nesta mesma vila, sendo todos meus conhecidos. E por todos os outorgantes foi dito – que ao abrigo das respetivas disposições legais, haviam constituído uma sociedade anónima, de responsabilidade limitada, (que será regida pelas seguintes disposições digo cujos estatutos) digo limitada, que será regida pelos seguintes Estatutos, os quais reduzem à presente escritura, afim de surtirem todos os seus efeitos, pela maneira seguinte: Capítulo primeiro – Denominação. Sede. Objecto e duração.Artigo primeiro – Em harmonia com a respetiva legislação vigente e nos termos dos presentes Estatutos é fundada uma sociedade anónima de responsabilidade limitada, que adopta a denominação de “Companhia de Cortumes (sic) Antuã”. Artigo segundo – Esta sociedade tem a sua sede e foro jurídico no Porto na praça da Liberdade, vinte e oito e vinte e nove, filial da casa bancária Pinto & Soto Maior, podendo a direcção estabelecer agências ou quaisquer outras formas de representação no país ou no estrangeiro. Artigo terceiro – A sociedade tem por objetivo: Primeiro: a preparação de camurças, couros, peles e mais artigos similares e derivados englobados na generalidade sob a denominação de indústria de cortumes (sic). Segundo – efectuar toda a espécie de contratos e operações comerciais e financeiras, que directa ou indirectamente digam respeito ou interessem ao seu objeto.Terceiro – promover quaisquer empreendimentos e explorar qualquer outro ramo de negócio, excepto bancário, podendo para esse efeito adquirir e transacionar, mediante os meios legais, mercadorias, bens móveis e imóveis, privilégios e garantias, mediante prévia deliberação social. Artigo quarto – A duração da sociedade é por tempo indeterminado, contando-se para todos os efeitos o seu começo desde um de Janeiro de mil novecentos e vinte e dois. Capítulo segundo – Organização financeira. Secção primeira – Capital – Artigo quinto. O capital social é formado desde já em quinhentos mil escudos, representado por cinco mil acções de cem escudos cada uma, o qual se acha integralmente subscrito e já realizado. Parágrafo primeiro – O capital social poderá ser elevado a um milhão de escudos quando a direção o entender conveniente, depois de ouvido o conselho fiscal. Parágrafo segundo – Em caso de aumento de capital, os anteriores accionistas terão preferência na subscrição das novas ações, segundo as condições estipuladas pela direcção. Secção segunda – Acções – Accionistas – Obrigações.Artigo sexto – Todas as acções são nominativas e poderão ser [ 137 ]


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convertidas em títulos ao portador, até ao limite que a Direcção julgar conveniente. Parágrafo único – Os títulos poderão ser de uma, cinco ou dez acções, conforme desejo do accionista, manifestado no ato da subscrição. Artigo sétimo – As acções são indivisíveis em relação à sociedade, que só reconhecerá um proprietário por cada uma.Artigo oitavo – A sociedade poderá emitir obrigações por proposta da Direcção e com voto favorável do conselho fiscal. Parágrafo único – Os accionistas terão preferência na aquisição das obrigações nos termos prescritos no parágrafo segundo do artigo quinto. Artigo Nono – Fica a sociedade autorizada a adquirir acções e obrigações próprias e a realizar sobre elas todas as operações legais, sempre que a direcção o julgue conveniente para o interesse da sociedade. Secção terceira – Lucros. Artigo décimo – Os lucros líquidos, verificados durante o ano social, terão a aplicação seguinte: Primeiro – Cinco por cento para fundo de reserva legal, enquanto não estiver preenchido ou quando for preciso reintegrá-lo, podendo a direcção criar quaisquer outros fundos que julgue convenientes (para) digo convenientes; Segundo – dividendo pelos acionistas até seis por cento sobre o capital;Terceiro – seis por cento para distribuir pelos membros efectivos da direcção em partes iguais; Quarto – dez por cento para o gerente contratado; Quinto – o saldo restante terá a aplicação que a assembleia geral determinar sob proposta da direcção e com o respectivo parecer do conselho fiscal.= Capítulo terceiro – Assembleia geral. Artigo décimo primeiro – A assembleia geral compõe-se de todos os accionistas possuidores dum mínimo de cinquenta acções, equivalentes a um voto, que estejam averbadas ou hajam sido depositadas com dois meses de antecedência, pelo menos, na sede da sociedade. Parágrafo primeiro – A mesa da assembleia geral compõe-se de: um presidente, um vice-presidente, dois secretários e dois vice-secretários eleitos trienalmente de entre os accionistas elegíveis, sendo permitida a reeleição. Parágrafo segundo – qualquer accionista com direito a voto pode fazer-se representar na assembleia, devendo o mandato ser provado por carta cuja assinatura o presidente da assembleia geral poderá fazer reconhecer quando o julgue conveniente, ou por outro qualquer documento legal de procuração, não podendo o mandato ser substabelecido. O documento do mandato deve ser entregue na sede da sociedade dez dias, pelo menos, antes da data da reunião. Artigo décimo segundo – A assembleia geral, exceptuando os casos previstos pelo segundo período do artigo décimo sexto, constitui-se com a presença, digo décimo terceiro, constitui-se com a presença ou representação de um mínimo de dez accionistas que representem pelo menos uma quinta parte do capital social. A assembleia geral reunirá ordinariamente no primeiro trimestre de cada ano social, podendo reunir-se extraordinariamente quando a direcção ou o conselho fiscal o entenderem ou por efeito de requerimento em que se mencione o fim da reunião e que deverá ser firmado por um grupo de oito accionistas que representem, pelo menos, um quarto do capital social.Artigo décimo terceiro – A assembleia geral ordinária é competente para deliberar sobre contas, relatórios, pareceres e propostas apresentadas pelos corpos gerentes. À assembleia geral extraordinária compete deliberar sobre a notificação dos Estatutos, dissolução e notificação da sociedade, devendo as suas resoluções ser tomadas por um número de accionistas que representem, pelo menos, metade do capital. Capítulo quarto – Administração e fiscalização – Artigo décimo quarto – A Administração da sociedade compete a uma direcção, que será composta de três membros efectivos e três substitutos, possuidores de um mínimo de cinquenta acções cada um, eleitos trienalmente com a faculdade de reeleição e que deverão caucionar a sua gerência com o depósito prévio de cinquenta acções na caixa da sociedade. Parágrafo primeiro – A direcção elegerá de entre os seus membros um para presidente, que será o director delegado. Parágrafo segundo – A direcção deverá reunir ao menos uma vez por mês, Parágrafo terceiro – Cada membro da direcção receberá mensalmente a quantia de cinquenta escudos, além do que fica exposto (na al) digo exposto no número terceiro do artigo décimo, recebendo o director delegado cem escudos mensais. Artigo décimo quinto – Compete á direcção: Primeiro: designar na [ 138 ]


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sua primeira reunião o respectivo presidente e director delegado, distribuindo os serviços pelos seus membros, se assim o julgar mais conveniente para os interesses da mesma, conforme o disposto nos artigos segundo e terceiro e no parágrafo primeiro do artigo quinto dos presentes estatutos. Terceiro – nomear e demitir quaisquer empregados, fixando os seus vencimentos, salários, benefícios e cauções; Quarto – representar a sociedade nas suas relações com terceiros ou em juízo, acompanhando e resolvendo sobre quaisquer pleitos e procedimentos judiciais, concernentes aos interesses da sociedade, podendo renunciar a quaisquer direitos e privilégios e constituir mandatários para a prática dos actos que necessários forem. Parágrafo único – Os documentos de responsabilidade deverão ser assinados por dois directores ou por um deles e qualquer outra entidade a quem a direcção expressamente confiar esse poder. Quinto – Compete ainda à direcção fiscalizar a escrita da sociedade e a marcha dos trabalhos nas suas fábricas ou instalações, expedindo todas as instruções, regulamentos e ordens atinentes à melhor organização dos serviços, à determinação das funções dos empregados e demais pessoal e praticar todos os actos indispensáveis à defesa e garantia dos interesses e direitos da sociedade, e finalmente contratar e nomear o gerente, mediante contrato em que se estipulem as condições de segurança e vantagens que se julgue úteis para os interesses mútuos. Artigo décimo sexto – Ao concelho fiscal, que se compõe de três membros efectivos e três suplentes, competem as atribuições designadas pela lei. Parágrafo único – O concelho fiscal reunirá pelo menos uma vez por mês, e cada um dos seus membros perceberá como remuneração de serviços a quantia de vinte escudos por cada sessão. Capítulo quinto – Dissolução e liquidação – Artigo décimo sétimo – A sociedade dissolve-se e liquida-se nos termos legais. Capítulo sexto – disposições diversas – Artigo décimo oitavo – O ano social começará para todos os efeitos a contar desde um de janeiro de mil novecentos e vinte e dois. Artigo décimo nono – A sociedade toma a seu cargo o pagamento da contribuição industrial dos corpos gerentes, seus empregados e assalariados. Artigo vigésimo – Dentro de trinta dias, a contar da data da escritura de constituição da sociedade reunir-se-ão os seus accionistas em assembleia geral para se proceder à eleição da respetiva mesa e do concelho fiscal. Artigo vigésimo primeiro – A direcção no primeiro triénio fica constituída pelos seguintes accionistas: Efetivos – Doutor António Tavares Afonso e Cunha, Dom Juan de GuineaY. Basterra e Doutor Guilherme Eugénio de Souto Alves. Substitutos – Augusto José Ferreira, José Marques de Oliveira e Silva, João Carlos da Silveira Pinto Camelo. – E que desta forma ficava constituída a sociedade de que se trata e haviam por outorgados os Estatutos por que há-de ser regida. Assim o disseram e outorgaram, do que dou fé. – Os outorgantes apresentaram-me dois documentos, que no meu cartório vão ser, para os devidos efeitos, arquivados: a) uma guia pela qual me provaram ter sido hoje feito, na tesouraria da Fazenda Pública deste concelho, o depósito a que se refere o artigo cento e sessenta e dois, número três, do Código Comercial; b) e uma certidão passada em catorze do mês corrente na Repartição do Comércio pela qual se prova não estar ali inscrita qualquer sociedade com denominação idêntica à de que se trata, ou alguma por tal forma semelhante que possa induzir em erro. – Foram testemunhas continuadamente presentes José Soares da Silva, casado, negociante e António Miranda, casado, negociante ambos desta vila, os quais vão assinar com todos os outorgantes depois de na presença dos mesmos outorgantes e testemunhas esta escritura ser lida em voz alta por mim notário, que também assino. O selo devido, no valor de dois mil duzentos cinquenta e três escudos, foi pago por meio de guia arquivada no final deste livro. Foram praticados seguidamente, num só ato, as formalidades legais. Ressalvo: a rasura a linhas vinte e quatro e vinte e cinco de folhas trinta, que diz… “Augusto José Ferreira, casado, comerciante, da Praça”; a emenda a linhas cinco de folhas trinta e duas, que diz “seguinte” e a emenda a linhas vinte e quatro da página retro, que diz “foi”. – Juan de GuineaY. Basterra. José Marques Pereira Barata. Guilherme Eugénio de Souto Alves. Manuel Maria Esteves de Oliveira. Manuel Soares Ferreira. José Carlos da Silveira Pinto Camelo. [ 139 ]


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António de Abreu Freire. José Maria Dias Pereira. Ezequiel da Silva Pinho. José Marques de Oliveira Pereira.Augusto José Ferreira. Francisco de Oliveira Marques. Manuel Pereira de Sousa.Adelino dos Santos Leitão. José Soares da Silva. António Miranda. Em fé. O Notário. Manuel Rodrigues Gomes.» Em 1926, na sequência de uma 2ª emissão de acções, a Companhia de Curtumes Antuã detinha já um capital social de Esc. 2.500.000$00, em vinte e cinco mil acções de cem escudos cada uma. Os respectivos títulos são datado de Lisboa, em 28 de Dezembro de 1926, estando assinados pelos seus directores, a saber e na seguinte ordem: António Tavares Affonso e Cunha, Egas Moniz e António Bernardino Ferreira. Conclui-se assim que, só aquando do aumento de capital da Companhia é que os dois últimos passaram a integrar a referida sociedade. Em 1927, a Companhia de Curtumes Antuã mantinha ainda o mesmo capital social de 2:500.000$00, tendo a sua sede, no entanto, passado a ser na Praça Luís de Camões, nº 46, 3º Esq., em Lisboa. E pela Portaria nº 4.949 do Ministério do Comércio e Comunicações, publicada no “Diário do Governo” nº 152-1ª Série de 19 de Julho de 1927 e escritura de 1 de Setembro do mesmo ano, foi a mesma autorizada a fazer uma emissão de 25 mil obrigações no valor nominal de 100$00 cada uma. (Segundo a respectiva Tabela de Amortizações, estas iniciar-se-iam em Janeiro de 1928 e terminariam em Janeiro de 1957.) Aquando da sua emissão, no respectivo panfleto publicitário, a sociedade garantia o seguinte: Os haveres da Companhia estão inteiramente livres, não pesando sobre eles qualquer ónus – como sejam – hipotecas, penhor, ou quaisquer outros encargos que possam diminuir o seu valor. (…) Os «coupons» serão pagos, nos respectivos vencimentos: em Lisboa, na sede da Companhia; em Estarreja, no escritório da Fábrica; e no Porto, na filial do Banco Português e Brasileiro. Lisboa, 28 de Dezembro de 1927. Os administradores: Dr. Egaz Moniz, Dr. António Tavares Affonso e Cunha e António Bernardino Ferreira. Quanto às circunstâncias da falência da Fábrica de Curtumes Antuã, acrescenta o Pe. Cirne, ainda na sua “Achega nº 65-3”, publicada no jornal “O Concelho da Murtosa” de Setembro de 2006, o seguinte: Desconheço a data precisa, em que se deu a falência, mas aconteceu ainda na década de 1920. Ignoram-se também os trâmites pormenorizados, que levaram ao lamentável desfecho. O assunto não está devidamente estudado; e estudá-lo será louvável. Porém, duvido que existam dados, para que se possa levar a cabo. Todavia, há pontos certos para se dar um parecer aceitável sobre a questão: 1º - A falência não foi determinada pela Direcção, mas por uma entidade superior. 2º - Se existia descalabro económico, ele era da responsabilidade da Direcção «in solidum», que reunia todos os meses, devia examinar a escrita mensalmente e, por isso, estava a par do movimento da Empresa. [ 140 ]


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3º - O Conselho Fiscal tinha obrigação de reunir, pelo menos, uma vez por mês, para examinar a situação económica da Empresa e se pronunciar sobre ela. 4º - Não se pode atribuir ao Dr. António Tavares a culpa da derrocada da Empresa, apodando-o de administrador inábil, como «Gerente Delegado». E, de facto, não consta que alguém se tenha atrevido a fazê-lo. Não utilizou o capital em seu proveito, não o desviou, nem o esbanjou. E o desenvolvimento técnico da indústria não lhe dizia respeito, exclusive e directamente. 5º - Perante a extinção da Sociedade, o menos que se pode dizer, é que os colegas dessa altura o abandonaram9. Foi vítima da falta do cumprimento dos deveres de cada um dos responsáveis. Sobre o comportamento do Dr. António Tavares em todo o processo de falência da Companhia de Curtumes Antuã, o Pe. Cirne classifica-o do seguinte modo: “Único, Insólito, Espantoso!” E acrescenta, a seu respeito: Ele, por seu turno, em vez de recorrer aos meandros, que a Lei oferece em tais circunstâncias – e conhecia muito bem, como advogado – tomou uma decisão insólita, excepcional, singular, que define a nobreza do carácter, de quem a praticou. Tinha empenhado a sua palavra, pedindo a pessoas amigas que investissem na iniciativa (que vislumbrava de progresso feliz) e muitos o fizeram pela confiança, que lhes merecia. Perante a derrocada, em vez de se refugiar na Lei, como fizeram os outros10, decidiu vender tudo quanto possuía, para atenuar os prejuízos daquelas pessoas, que, a seu pedido, tinham depositado as suas esperanças na empresa, pioneira da indústria no concelho de Estarreja. E ficou na miséria! E nunca mais voltou à Terra Natal! Com efeito, para acorrer aos encargos decorrentes da falência da Companhia de Curtumes Antuã, procedeu inclusive à dissolução da Firma Tavares Afonso, Lda., como o prova a seguinte procuração, passada – imagine-se, em seu próprio nome! – pelo Conselheiro Júlio Martins Lobo de Seabra: 9 - Seria injusto deixar de referir aqui o nome do médico Dr. António de Abreu Freire, antigo Governador Civil de Aveiro, que sempre permaneceu seu fiel amigo – amizade extensiva à família e depois prolongada pelo seu genro, o também médico Dr. António de Oliveira Duarte. Antigos colegas em Coimbra, ao terminar o curso, legou-lhe a sua capa de estudante, que outros eram os tempos e mesmo a lavoura, que de resto sempre acarinhou, já não sustinha o lustre dos brasões das casas grandes de Avanca. E enquanto o Dr. António Tavares não se “exilou” em Estarreja, foi sempre convidado presente nos jantares de S. Mateus (padroeiro da freguesia), que todos os anos organizava na sua casa do Celeiro, na freguesia do Bunheiro. Aí se deslocavam, por essa ocasião, para além de outros amigos seus, também a dona da pensão onde estava hospedado (a famosa “República”), D. Ana Mortágua, que por essas alturas assumia a liderança da cozinha. (Aquando da revolta militar que levou, ainda que por breve tempo, à instauração da chamada “Monarquia do Norte” (1919), estando os Paços do Concelho de Estarreja sob a mira das tropas revoltosas, alguma gente boa da Praça também encontrou refúgio na sua casa do Celeiro.) 10  - A propósito, existem rumores credíveis de um secreto divórcio entre D. Elvira e Egas Moniz, que urgia averiguar. Tudo, porém, o Dr. António Tavares perdoou e não renegou aquele que continuou a considerar seu amigo, como aqui se comprova.

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«Júlio Martins Lobo de Seabra, Desembargador da Relação de Lisboa, casado e morador em Lisboa, Calçada de Santos, 3-3º Esq., por si e na qualidade de pai e administrador de sua filha menor Camila Júlia Correia Mendes de Seabra ou Camila Júlia de Seabra, que como tal assina a concordata que a Firma Tavares Afonso Limitada efectuou com os seus credores e já está homologada, – constitui seu bastante procurador o Exmo. Sr. Dr. António Tavares Afonso e Cunha, para receber as quantias que lhes foram fixadas na referida concordata, ou quaisquer outras que venham a ter que receber de qualquer origem ou proveniência, passando delas quitação e podendo substabelecer em quem entender o que tudo se dá por válido e firme. – O procurador constituído é advogado, solteiro e morador em Estarreja. – Lisboa, em 1931, Júlio Martins de Seabra. No verso pode ler-se: “Reconheço a letra e assinatura da procuração retro. Lisboa, 1 de Abril de 1931.” Ostenta rubrica e selo branco do notário Tavares de Carvalho.» Contudo, como diz o Pe. Cirne, é verdade que: A Família sempre o amparou; e o sobrinho Dr. José Tavares Afonso e Cunha, em conversa ocasional, confidenciou-me que todos os meses lhe enviava um cheque para a sua subsistência. Todavia, foi uma ferida, que lhe ficou sempre a sangrar, o desabar dum projecto bem estudado, com recurso aos princípios da Economia Política, um choque esmagador no seu orgulho de profissional, competente e sério. Alguns amigos do quilate daquelas pessoas, para quem «o ter vale mais que o ser», esqueceram-no. Não podia deixar de sofrer com tal isolamento. E, como pessoa, inteligente e sensível, sofria. Em situações destas, recorrer aos valores sobrenaturais é um arrimo dum valor insubstituível.Talvez o tenha feito, porque era um homem cristão, convicto e praticante. Todavia, por azar e cúmulo da desgraça, eis que um padre11 (talvez não intencionalmente, mas abusivamente), utilizou-se do ambão para comentar de forma equívoca a falência da Empresa, a qual pôde ser interpretada desfavoravelmente ao Dr. António Tavares, como tendo obrigação de indemnizar os accionistas prejudicados: «Não se aflijam, que ele tem por onde pagar». Foi uma frase de duplo sentido, que o amachucou e lhe barrou a entrada na Igreja, para sempre.

11  - Pe. Donaciano de Abreu Freire, filho de um bunheirense, primo direito da avó paterna do autor deste artigo, grau familiar que nos permite alegar equidistância na análise da questão. A propósito, dizia o reverendo Pe. Donaciano de Abreu Freire (apelido materno que usou, em simultâneo com a alcunha de “Morgado”, de idêntica origem), que de nada tinha mais medo do que da pena do Dr. António Tavares… (Atribuem-se-lhe geralmente os louros pela criação da Misericórdia de Estarreja, mas lamenta-se que a referida instituição de caridade omita qualquer menção oficial ao nome do Dr. António Tavares, quer como integrante do seu Núcleo Organizador de Beduído (1923), quer como seu doador desinteressado.)

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E termina o Pe. Cirne, concluindo que tal interdito ou anátema o tornaram vítima – se esse nome pode ser atribuído a alguém de tão vincada conduta moral – dos seguidores da Igreja Evangélica, que aliás possuíam um templo nas imediações da sua residência12, em Estarreja. Igualmente deverá ser descartada, por notória ingenuidade, a seguinte história (talvez usada como explicação acessível aos elementos das gerações mais novas da família), que o Pe. Cirne não deixa de evocar: Contaram-me que, numa ocasião caiu na rua13, por qualquer circunstância, e quem o socorreu foi um evangélico, quando tinham já passado outras pessoas, que não se dignaram aproximar-se dele. Tudo concorreu para deixar a Igreja Católica, na qual nasceu, foi educado e viveu quase toda a vida. Aderiu à Igreja Evangélica14 e nela veio a falecer. Esta situação fez sofrer muito a família, de modo especial, a irmã Maria Luciana (sempre muito amigos), a qual lhe suplicava que ponderasse a decisão, que tomara tão à margem da linha em que foram criados. «Não te aflijas, Maria! Tu vais por um caminho, eu vou por outro, mas havemos de nos encontrar ambos no Céu», era a resposta que lhe dava, convicto, e com a ternura de irmão, com que sempre a tratara e para a consolar. Para sustentar as suas afirmações, na “Achega” nº 65-4, publicada no jornal “O Concelho da Murtosa, de Outubro de 2006, o Pe. Cirne esclarece: Pude ler algumas das suas cartas, que dirigiu ao seu sobrinho José Tavares Afonso e Cunha, tanto quando este cursava os Estudos Preparatórios em La Guardia, como quando passou a frequentar a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. São dum valor excepcional, porque espontâneas, de índole familiar, sem intenção de que o público as venha a conhecer e as critique. Nelas, revela com simplicidade a sua vida interior, em diversas manifestações: amor à Família, pedagogia sensata nos conselhos, que dá ao Sobrinho estudante, e no comportamento exigente com ele; interesse pelos carenciados e vivência manifesta da Fé Cristã; a sua relevante craveira intelectual e um critério de valores muito ajustado. E na última “Achega”, a nº 65-5, publicada no jornal “O Concelho da Murtosa” de Novembro de 2006, o Pe. Cirne conclui:

12  - Pessoa geralmente bem informada, asseverou-nos que tal templo, ainda hoje existente, serviria também como refúgio da oposição política, pelo que chegou a estar na mira da PIDE/DGS. 13  - Na cidade do Porto, onde era costume deslocar-se pela Páscoa, para cumprir a desobriga da confissão, na igreja de Stº António (ou dos Congregados), logo à direita e à saída da estação ferroviária de S. Bento. 14  - Preferimos ver nesta atitude, em vez duma conversão, uma adesão aos valores primitivos do Evangelho, na senda dos princípios da filosofia estóica, de que está eivado o Cristianismo e que veio a influenciar também o Direito Romano, no qual bebeu à saciedade o nosso Direito Moderno.

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O pouco que ficou escrito é bastante para aquilatar e comprovar a riqueza dos valores, resumidamente apontados nas últimas quatro “Achegas”, de um Homem excepcional, que, vítima da maldade, e talvez da traição, dos homens, se manteve de pé, na defesa da sua dignidade e honradez. A nossa Freguesia deve-lhe muito. Para deixar um exemplo, lembro a construção do nosso cemitério com a sua história, cheia de entraves, tanto da parte das Autoridades Civis, como dos proprietários dos terrenos a ele destinados (cf.“Achegas” 38/1-2-3). E, por favor, não esqueça o Povo do Bunheiro que é a ele que deve a conservação da sua venerável Residência Paroquial, contra a tirania usurpadora da Primeira República. Na sua biografia de Egas Moniz (2010), o mais desapaixonado e rigoroso de quantos escritos se têm produzido sobre o Prémio Nobel, o Prof. Doutor João Lobo Antunes, a dado passo, diz sobre o biografado o seguinte: Uma outra iniciativa empresarial não foi tão bem-sucedida. Tratou-se da criação, em 1930, do Banco Antuã, para apoiar o desenvolvimento da região, que teve vida curta e lhe trouxe grandes dissabores. Egas terá entrado com 200 contos e foi acusado num processo de falência fraudulenta, pois o sócio principal fugiu para o Brasil com os bens da sociedade. Em carta a José António de Almeida15, Egas lamentava ter sido «muito maltratado pelo tribunal colectivo». «Vexaram-me e, contudo, devem saber que os factos alegados contra mim eram falsos», queixava-se. Era seu advogado o Dr. António Bustorff Silva e Egas foi absolvido. No entanto, teve de reembolsar os depositantes, para o que teve de contrair um empréstimo avalizado pela cunhada Estefânia Macieira» (Antunes, 2011:136). Ao longo da sua obra, o insigne e já defunto biógrafo não faz qualquer referência à Companhia de Curtumes Antuã. No entanto, menciona a gorada tentativa de criação de um Banco Antuã. Salvo resultado de melhor pesquisa, não estaria Lobo Antunes16 a confundir a casa bancária Tavares Afonso, Lda., com a própria Companhia de Curtumes Antuã? Haverá nisso reminiscências do processo de falência daquela? Ou teria Egas, aquando da dissolução da referida casa bancária, vislumbrado uma oportunidade de captar os seus antigos clientes e outros adventícios, uma vez que os “manos Pintos”17, no dizer do Dr. Tavares Afonso, praticavam usura demasiado elevada junto dos seus conterrâneos? Seja como for, interessa ressalvar que o Dr. António Tavares e Egas Moniz foram coevos. O primeiro, como vimos, nasceu em 15 de Junho de 1870 e faleceu em 7 de Março de 1956, quase a perfazer 86 anos. Egas Moniz, quatro anos mais novo, pois nasceu em 29 de Novembro de 1874, veio a falecer antes, em 13 de Dezembro de 1955, com 81 anos 15 - Advogado de Ovar e conservador do Registo Predial na mesma cidade, então vila (cf. Antunes, 2011:303.) 16 - Enquanto vivo, fizemos chegar às suas mãos, no Hospital de Stª Maria, uma cópia da escritura de constituição e respectivos estatutos da Companhia de Curtumes Antuã, com vista à correcção de uma eventual edição futura da obra, que o mesmo cortesmente agradeceu. 17  - Alfredo e António Vieira Pinto, murtoseiros. António viria a fundar, juntamente com Cândido Sotto Mayor, primeiro (1914-1926) a Casa Bancária Pinto e Sotto Mayor, que se transformou depois em banco.

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completos. No que respeita a política, enquanto jovens, batalharam em campos opostos: o Dr. António Tavares era Regenerador e Egas Moniz militava no partido Progressista. E, dos ecos dessas refregas, está repleta a imprensa local da época… Enquanto estudantes, o Dr. António Tavares Afonso e Cunha matriculou-se, como acima vimos, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Outubro de 1888. Formou-se em 17 de Junho de 1893, tendo-lhe sido passada a carta de conclusão do curso em 30 de Janeiro de 1894. Por sua vez, Egas Moniz ingressou no 1º ano de Medicina, precisamente em 1894, mas já levava três anos de vida coimbrã, onde desde 14 de Outubro de 1891 cursava estudos preparatórios (Antunes, 2011:41). É natural que ambos se conhecessem. Refere ainda o seu biógrafo que quando concluiu o 1º ano de Medicina, por razões económicas, Egas cogitou na hipótese de concorrer a professor de liceu. Mas terá sido um parente seu, José Maria de Abreu Freire18, quem o dissuadiu de tal ideia, pois augurava-lhe melhor futuro como professor universitário (idem:45). Egas acabaria assim por se formar em 1899. Regressado a Avanca e Pardilhó “esperavam-no foguetes, archotes e a Filarmónica Pardilhoense”19 (idem:49). Defendeu depois a tese de licenciatura em 1900. Em 1901 prestou provas de doutoramento e em 1902 entrou para o quadro docente como professor substituto. Já no fim da vida, apesar de maçon (em 1910 fez a sua iniciação na maçonaria, na Loja Simpatia e União, em Lisboa)20 e não crente, terá acedido aos rogos da esposa e aceitou que o seu funeral tivesse a presença de um clérigo apenas. O que pouca gente saberá é que, para a sua inumação, foi transportada, num carro de bois, desde a sua Quinta do Marinheiro, a terra que lhe havia de cobrir a campa rasa.21 E assim mesmo o confirmou o “Diário de Lisboa” ao dar a notícia do seu funeral, informando em título que “O corpo de Egas Moniz repousará numa campa simples no meio de terra recolhida na sua propriedade de Avanca” (Antunes, 2011:309). Quanto ao Dr. António Tavares, embora tivesse adquirido, em 1922, uma campa “na quarta secção do cemitério paroquial” do Bunheiro, que o mesmo mandara construir 18  - Segundo visconde de Baçar, em Castelões de Cambra. O primeiro do título, em tempo de el-rei D. Luís, foi Fernando António de Almeida Tavares e Oliveira, que morreu solteiro e sem descendência. “Sua irmã Dona Maria Miquelina de Almeida casou, em Avanca, com o capitão de Ordenanças João de Resende Valente de Sá Abreu Freire, com solar e capela no lugar do Outeiro. A sucessão da Casa de Baçar transmitiu-se aos filhos desta irmã, o Dr. José Maria de Abreu Freire, que foi segundo visconde, juiz de direito de Bragança e também morreu solteiro, e António Tomás de Sá Resende de Abreu Freire, avô paterno do Dr. Azevedo Bourbon, que foi o primeiro oficial do Registo Civil do concelho da Murtosa” (cf. Cunha, 1965:116-117). 19 - Ao contrário de constituir uma excepção, como parece ser, esta era mesmo a regra para quem acabava de se formar. (Pelo menos em Pardilhó.) A título de exemplo, quando em 1908 se formou em direito Caetano Tavares Afonso e Cunha, primo direito do Dr. António Tavares, igual recepção lhe foi dispensada pela Filarmónica Pardilhoense. 20 - Instituto Camões. http://cvc.instituto-camoes.pt/ciencia/p12.html Ciência em Portugal – Personagens e Episódios. [07.08.2020] 21 - Assim o escutámos de um familiar nosso, de Avanca, também já falecido, que o ouvira da boca do próprio carreteiro encarregado do transporte.

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enquanto presidente da Junta de Paróquia, veio, no entanto, a ter a sua última morada no cemitério paroquial de Beduído, onde já tinha sido inumado, em 1909, na “sepultura nº 15 do canteiro norte-poente”, o seu tio e padrinho, em terreno que o próprio adquiriu posteriormente, em 1911, mas que entrementes a Junta de Freguesia alienou, não sabendo onde o mesmo se encontra sepultado…

Amº Egas: 25-12-1932

(I)

- Do coração te desejo e à Sra. D. Elvira alegres festas do natal (Natal), e todas as venturas e prosperidades dum ano novo mais feliz. - Escrevo-te duma cama do Hospital do Carmo (Porto), quarto nº 9, onde estou desde 13 do c/. – Na sexta-feira fizeram-me a intervenção cirúrgica de esmagamento de cálculo na bexiga, mas sem êxito, por ser tão duro que o instrumento resvalava ao apertá-lo, e só à volta conseguiu reduzi-lo, saindo ainda assim grande quantidade de resíduos semelhantes a caliça triturada. - Hoje disse-me o médico que bem queria poupar-me ao martírio da operação de barriga aberta (tão cheia e gorda ela era) mas não se podia fazer a extracção por outro processo. Que podia aproveitar fazê-la a seguir, mas disse-lhe que primeiro queria voltar a casa, pois preciso de me preparar para a poder fazer, que (não) é mais sem dúvida que uma simples intervenção. - A intervenção de há três anos quase não custou nada a suportar também com anestesia geral, mas esta tem-me sido torturante. - Esperava lá para quarta-feira sair, mas tiraram-me hoje a sonda, e fiquei com uma tal irritação dolorosa da bexiga a fazer as micções, que estas não se completavam. - Sem normalizar não devo ter alta, e estou a ver que isto ainda leva dias. - Em cima de todas as desventuras ainda mais esta infelicidade da operação, cuja cura em mim se torna de efeitos martirizantes! - E se eu escapo dela, o que ainda virá mais?! - Com a vinda do ministro22 ao Norte e com a atitude deste o entusiasmo com o consórcio23 22  - Desconhece-se quem seja a personalidade e a pasta que representa. 23 - Parte-se do princípio de que o autor esteja a referir-se à Fábrica de Curtumes Antuã.

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baixou. Diz-me, porém, o Leite24 que é medida que não está inteiramente posta de parte, e que continua a mexer com mais elementos. - Se a fábrica não se aguenta é outro problema para mim sem solução. - Olha lá, e não haverá pela medicina um tratamento preventivo que me fizesse desaparecer esta gordura, para tornar a operação mais fácil? - Nas comidas há 3 anos que venho fazendo dieta apertadíssima, comendo mesmo pouco e coisas pouco nutritivas, mas baixas de … (palavra ilegível). - Sempre o mesmo amº certo, Tavares Affonso

Amº Egas: Estarreja, 31-10-1939

(II)

Por acaso li n’ O Século o artigo junto que do mesmo recortei para veres no caso de ainda o não teres lido. Talvez te possa aproveitar para referência em qualquer nova edição do Júlio Diniz25. E a propósito sugere-se-me a lembrança da passagem do ofertório no fim do rosário que o romancista nas noites de inverno ouvia evocar à alma generosa do Senhor Rei qº., com as suas benemerências tinha formado médico uma pessoa ou antepassado do familiar. Uma nova edição enriquecida com a romantização deste episódio aumentava de interesse a sua leitura. Quem foi o médico formado pela beneficência régia? Sabe-se q. era de Ovar, e foi exercer clínica para Lamego, pois nesta época o grande comércio de sardinha entre Ovar e o Douro tinha estreitado relações entre as populações vareiras e de Lamego. Diz-se ainda hoje no Douro que a D. Antónia Ferreirinha ou seus antepassados iniciaram a sua avultada fortuna com o negócio então muito lucrativo da sardinha, que ia de Ovar para o Douro. Rocha Martins, paciente e erudito investigador, eventualmente pode ter coligido apontamentos da administração da Casa Real donde constem os subsídios ou mesadas dados ao estudante seu protegido. Também no arquivo da secretaria da Câmara Municipal de Lamego deve constar o processo de nomeação do médico de Ovar para seu facultativo de partido. 24  - Desconhece-se a pessoa em causa, que, no entanto, se presume próxima e conhecida do autor. 25 - “Júlio Dinis e a Sua Obra”, Egas Moniz, Livraria Civilização, Porto, 1924, com inéditos do romancista e uma cartaprefácio do Prof. Ricardo Jorge. (Originalmente publicado em 2 volumes.)

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Ainda por vezes noto nos jornais apelidos de pessoas de Lamego que são de conhecidas e antigas famílias de Ovar. Desculpa a sugestão, que é em si maçadora, mas boa na intenção. Os meus respeitosos cumprimentos à Senhora D. Elvira e um abraço do amº certo e grato, António Tavares Affonso e Cunha

Amº Egas: Estarreja, 6-5-1945.

(III)

Tens passado por todas as fases e modalidades dos extraordinários talentos, e esta última, de médico romântico da velhice é das mais curiosas e interessantes, mesmo admirável. Agradeço a oferta da “anciania”26, termo bem mais simpático que o pejorativo “velhice”, para quem nunca durante a vida pensou em ser velho. Não sei pelo quê, mas parece-me ter vindo a pressentir já há anos, esta tua nova descoberta, cúmulo de delicadeza, e por isso não pode deixar de te felicitar e à Senhora D. Elvira o sempre Mtº Amº António Tavares Affonso e Cunha

Amº Egas: Estarreja, 28/5/1951

(IV)

Há muito que não tenho querido, com as minhas notícias, perturbar o ritmo da tua vida de constante trabalho. Hoje, porém, como que sinto o dever de abrir uma excepção. A propósito da próxima eleição para (a) Presidência da República27, correm já muitos 26 - Termo cunhado por Egas Moniz aquando da sua conferência inaugural (12.12.1944) como presidente da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, a qual dirigiu entre 1944 e 1946 e que se intitulou precisamente “Anciania” (cf. Antunes, 2011:264-265). Pelo teor da carta (ainda que o termo esteja escrito com minúscula), depreende-se que a mesma foi publicada e um exemplar oferecido ao seu signatário. Com efeito, o trabalho surge referenciado na bibliografia de Egas Moniz, entre os seus artigos científicos, como tendo sido editado em 1944 pela “Imprensa Médica” (idem: 351). 27 - Aquando das eleições presidenciais de 1951, na sequência da morte do marechal Carmona, em 18 de Abril desse ano, Egas Moniz foi “procurado por oposicionistas ao Estado Novo para se candidatar à presidência da República” (cf. Antunes, 2011:299). Egas, no entanto, viria a alegar falta de saúde para se poder lançar nesse desafio e não anuiu ao pedido. “Infelizmente, a minha falta de saúde é neste momento incompatível com o desejo”, disse. Declarou, no entanto, o seu apoio ao candidato almirante Quintão Meireles (idem:300). Este, por sua vez, acabaria por desistir…

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boatos, entre eles, da oposição liberal propor o Dr. Manuel Monteiro28, que não conheço, ou o teu nome. Dizem-me que o Exército se encontra dividido quanto ao actual regime republicano. Eu de maneira nenhuma tenho a pretensão de te dar conselhos, porque infelizmente nunca para mim próprio tive. Sendo o resultado da futura eleição consequência d’esta divisão, a recidiva é de temer. Sem perigo de receio, para qualquer outro presidente, contigo não acontecerá o mesmo… És naturalmente cidadão português de projecção mundial incomparável às máximas consagrações29, digo incomparável, o que deve despertar ódios dos concorrentes às máximas consagrações. A de Chefe de Estado, já em nada vem aumentar a celebridade que gozas, e não vale a pena pô-la a correr risco de ser denegrida pelo atentado político. Longe de prestigiar a vítima, a estupidez do crime pode afrouxar o brilho da luz irradiado da sua memória. Fazendo votos que esta minha maneira amiga de ver se transmita também ao pensamento da Senhora D. Elvira, da minha muito particular e respeitosa estima, não é ela senão a expressão sincera da muita amizade do Reconhecidíssimo António Tavares Affonso e Cunha (V) Amigo Egas: Não fui pagar-te as visitas, porque dia a dia estou a mexer-me menos. Acabo de ler, pela 2ª vez, as “Conferências Médicas e Literárias”. Não sei se já te agradeci a amabilidade das ofertas. Caso negativo, já está fora de prazo, e supõe-se. De grande elevação e beleza espiritual, encontro-lhe(s) o defeito de impressão dispersa como a todos os mais trabalhos em separata do mesmo género.

28 - Julgamos tratar-se do Dr. Manuel Joaquim Rodrigues Monteiro (1879-1952), primeiro governador civil de Braga após a implantação da República, deputado eleito por Barcelos (Partido Democrático), juiz do Supremo Tribunal Administrativo, ministro da Justiça e, depois, do Fomento, presidente da Câmara dos Deputados e Presidente do Tribunal Internacional de Alexandria (predecessor do Tribunal Internacional de Justiça, criado após a II Guerra Mundial, sediado em Haia, na Holanda). 29 - As palavras em itálico estão sublinhadas no original, pelo que se depreende tratar-se duma ressalva, que aliás as segue.

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Merecem, ainda que com algum sacrifício, a concentração em volume de estante, para de futuro não se perderem com facilidade, por descaminhos. Seria o que eu faria, é uma lembrança sem ideia de sugestão. Nunca tive bons conselhos para mim, e não pretendo de maneira nenhuma dá-los aos outros. Com os meus cumprimentos para a Senhora D. Elvira, abraça-te o Amº Estarreja, 13/11/1952 António Tavares Affonso e Cunha (Aos 83 anos) (VI) Amº Egas: Estarreja, 28/6/1955 Acabo de ter a notícia da morte do Álvaro30, que me fez passar um mau bocado de antigas recordações, e de ilusões desfeitas. A vaga aberta no quadro do pessoal serventuário d’essa tua casa, deve ocasionar-te dificuldades em ser substituído. Ao pranteá-lo associa-se-me também a lembrança do Joaquim31, a quem farás favor de transmitir este meu pesar, pela falta do companheiro de vida íntima (sic!). Ocorrência de tributo que todos temos de pagar, e que ao completar em 15 do corrente 85 anos, sinto agravar-se-me como nunca calculei. Há mais de um mês que permanecia na cama, sem diagnóstico (de) quando terminava. Sobreveio-me erisipela nos pés com dores, presentemente já muito atenuadas, o que me dá a esperança de que ainda escapo deste acidente. Se voltarei a poder andar, ainda que só sem sair de casa, ainda é problema sem equação. Vejo pelos jornais que continuas a estar presente à presidência das sessões da Academia das Ciências, prova garante de perfeita saúde espiritual.

30 - Criado de Egas Moniz, na Casa do Marinheiro. 31 - Idem.

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Quanto a mim, se por vezes sinto desânimo, outras anima-me a esperança de ainda assistir à sucessão deste Kalifado da vida nacional. Os meus respeitosos cumprimentos à Senhora D. Elvira, e para ti a estima de apertado abraço do Mtº Amº António Tavares Affonso e Cunha

Exmo. Senhor Dr. Egas Moniz Avenida Cinco de Outubro – 73 Lisboa

(Bilhete Postal)

Amº Egas: A noite passada, Compª de Lxª com a Revista “É de Gritos”. Casa à Cunha. Em cena faz-se referência a várias descobertas, e ao mencionar a de Egas Moniz, estalou espontânea, vibrante, e prolongada manifestação apoteótica. Não estive no teatro. Narrouma quem bem conhece o teu feitio afectivo. Se a ela tivesses assistido, senti-la-ias como das melhores prestações. Com a representação da autoridade local, algo contrariada por não adivinhar a surpresa, foi o que se chamou mais uma vez de acabamento do mundo. Felicito-te efusivamente. Estarreja, 25-11-1950. Antº Tavs. Affº e Cª NB: Todas as cartas, à excepção do Bilhete Postal, manuscrito a tinta, são redigidas em papel pautado, a lápis e também pela mão do signatário. Fontes Arquivo da Casa-Museu Egas Moniz. Arquivo Distrital de Aveiro. Arquivo da Família Tavares Affonso. Bibliografia Antunes, João Lobo. 2011. Egas Moniz – uma biografia, Lisboa, Gradiva (3ª Ed.). Cirne, Pe. Manuel Joaquim Tavares Cirne. 2006. “Achegas para a História do Bunheiro”, in O Concelho da Murtosa (Julho-Novembro). Cunha, José Tavares Afonso e. 1965. Notas marinhoas (Vol. I), Murtosa, Livraria Ramos.

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JULIANA CUNHA

AVIVAR MEMÓRIAS: AS TRADIÇÕES ORAIS COMO PATRIMÓNIO CULTURAL IMATERIAL DO CONCELHO DE ESTARREJA Juliana Cunha * “Reavivar continuamente a memória é fundamental para que o passado não seja esquecido, pois capacitanos a atualizar impressões ou informações, fazendo com que a história se eternize na nossa consciência e se transmita de geração em geração. Partilhá-la entre as diferentes gerações, diferentes comunidades e diferentes países contribui para a construção de um mundo mais esclarecido, mais tolerante e melhor.” In Jornadas Europeias do Património, 2018

O Património Cultural Imaterial está intimamente ligado às gentes. É às gentes da terra que está associado e são elas que garantem a sua existência, vivenciando-o e transmitindo-o às gerações vindouras.As fontes orais, as memórias e estórias das gentes são, por vezes, a única fonte que nos permite conhecer e perceber as tradições de um povo. O Património Cultural é muito mais que os edifícios, as coleções, a pintura, a escultura, a arquitetura, ou outros. O Património Cultural é também a imaterialidade, essa essência impalpável, que herdamos dos nossos antepassados. Além da imaterialidade, outra característica muito importante do Património Imaterial é o facto de as pessoas reconhecerem essas tradições como fazendo parte integrante da sua história e da sua cultura, dando-lhes um sentido de pertença a uma comunidade. No entanto, esta caraterística incorpórea do Património Imaterial torna-o, também, muito frágil, em constante transformação, naturalmente com as mudanças sociais e históricas da própria comunidade. Dada a fragilidade, a preservação é a palavra de ordem. Desta forma, conhecer, documentar e preservar o Património Imaterial é um desafio, de modo a assegurar que a sua preservação não dependa apenas da memória das pessoas e que, mesmo depois de desaparecer uma tradição, o seu conhecimento permanecerá acessível às gerações futuras. Além das fontes orais que aqui queremos dar enfoque, o Património Imaterial é também definido em práticas, expressões e representações manifestadas em tradições artísticas e performativas, práticas socias, rituais e festivas, saberes, técnicas, conhecimento e práticas tradicionais. “O Património Imaterial não se pode conservar como um edifício, no qual se fazem obras para evitar que caia em ruína. Também não se pode conservar do mesmo modo como os objetos, que normalmente guardamos em museus, em bibliotecas e arquivos, em condições de temperatura e humidade controladas, de modo a que continuem a existir por muitos séculos, ou que se restauram quando estão em mau estado de conservação”.1 E como * Licenciada em Ciência da Informação Arquivística e Biblioteconómica pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Técnica Superior da Câmara Municipal de Estarreja. 1  - In “Kit de Recolha do Património Imaterial”. Departamento de Património Imaterial; Instituto dos Museus e da Conservação, 2011.

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se conserva e preserva o Património Imaterial? O principal objetivo e o grande desafio deste tipo de património intangível é valorizar a sua importância. Dotar e encontrar ferramentas para a sua salvaguarda e procurar manter a continuidade das tradições ao longo das gerações. Por outro lado, é igualmente importante garantir o registo, seja ele documental, fotográfico ou videográfico, de modo a garantir que, quando uma determinada expressão cultural, tradição ou fonte oral se altere radicalmente ou desapareça, pela ausência de condições sociais indispensáveis à sua manutenção, esses registos permitam às gerações futuras ter conhecimento acerca dessas tradições. A nível internacional, o principal esforço para a valorização e a salvaguarda do Património Imaterial tem sido efetuado pela UNESCO2, que em 2003 elaborou a “Convenção para a Salvaguarda de Património Cultural Imaterial”. Esta convenção é um instrumento muito importante para a salvaguarda do Património Imaterial, e é seguida por muitos países em todo o mundo. Assim, o Património Imaterial, mais do que qualquer outro, pressupõe o efetivo envolvimento das comunidades, quer na sua concretização, quer na sua preservação. Todos nós, enquanto cidadãos, somos responsáveis pela sua sobrevivência. Através de histórias de vida, podemos conhecer determinadas experiências que uma pessoa vivenciou, ou que testemunhou, ao longo do percurso, permitindo-nos obter informações fundamentais para o estudo do Património Imaterial. Afinal, são as pessoas que fazem o Património Imaterial, e este existirá apenas enquanto as pessoas lhe derem importância e ele for importante para as suas vidas. Ciente da importância da preservação da memória e das fontes orais, o Município de Estarreja iniciou um caminho de recolha de histórias e memórias das gentes da terra. Pretende-se com este projeto recuperar memórias imateriais que de outra forma ficariam perdidas. Um reencontro com as estórias, disponibilizando-as e perpetuando-as no tempo, para que jamais sejam esquecidas. A aposta neste projeto e a sua disponibilização para todos visa recuperar as memórias, mas, igualmente importante, promover as relações entre as pessoas e o envolvimento da comunidade estarrejense. As palavras são o registo mais relevante, mas os gestos e as expressões, são também acréscimos que documentam o percurso de uma vida. O projeto “Avivar Memórias” – Recolha de Histórias e Memórias do Concelho de Estarreja consiste em identificar intervenientes, do Concelho, que possam contribuir, com as suas estórias e memórias para o enriquecimento da história local. Posteriormente, são previamente definidos os temas a abordar, assim como concretizada a recolha em vídeo e som. Por fim, são tratados os conteúdos, e usados para divulgação do projeto. Todos os intervenientes nesta recolha de memórias e testemunhos autorizam que o seu testemunho possa ser usado, divulgado e utilizado, no seu todo ou em parte pelo Município de Estarreja. Com o avanço deste projeto, foram dados os primeiros passos para a salvaguarda do Património Imaterial e das fontes orais do Concelho de Estarreja: valorizar a sua extrema importância e garantir o seu registo, documentando-o. 2 - Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura.

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JULIANA CUNHA

Com o projeto “Avivar Memórias”, foi possível envolver a comunidade, estreitar laços e redescobrir estórias e salvaguardar a imaterialidade das memórias. Este é um projeto que pretende mostrar a identidade de um povo, uma identidade que vai resistindo e que tem nas pessoas mais velhas os verdadeiros guardiões. É um incrível mundo de vivências e de memórias de momentos que não se repetem. Avivamos memórias e ouvimos as estórias na primeira pessoa e descobrimos muitos dos instrumentos e ferramentas que fizeram parte do dia-a-dia das comunidades. Além das fontes orais, com este projeto foi possível recuperar documentos e fotografias que vieram completar a história de Estarreja. Avivar Memórias – Ilda da Silva Ferreira (1921-2019)

1 - Ilda da Silva Ferreira, no âmbito do Projeto “Avivar Memórias” Recolha de Histórias e Memórias do Concelho de Estarreja.3

“A mercearia primeiro era da minha sogra e depois passou para nós, o meu sogro trabalhava na serração.” “Vendia tudo, tudo!” “A minha freguesia era sempre do esteiro…vivia lá muita gente.” “Tinha muita mercearia, não havia os supermercados.” “Fazia sopa para todos, ainda tenho ali umas panelas grandes de fazer a sopa.” “Apontava no livro todas as vezes que o freguês vinha, na frente do freguês.” “Tinha muitos fregueses... e muitos calotes!” “Gostei muito de trabalhar na mercearia, sempre foi a minha profissão desde pequena.” “Eram bons tempos, bons tempos…que eu ganhei muito dinheiro.”

Ilda da Silva Ferreira, In Projeto Avivar Memórias. Estarreja, 13 fevereiro de 2019

3 - Fotografia Projeto “Avivar Memórias”. Município de Estarreja, 2019.

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Quando este projeto de recolha de testemunhos e estórias foi idealizado, várias pessoas encabeçaram imediatamente a lista. Era urgente começar o trabalho, o tempo assim o ditava. E não foi por acaso que a primeira pessoa que entrevistamos no âmbito do “Avivar Memórias” foi a Dona Ilda da Silva Ferreira4. A 13 de fevereiro de 2019, a Dona Ilda, então com os seus 97 anos, recebeu-nos na sua mercearia centenária e tradicional – A Loja da Preciosa, nome da sua sogra e pelo qual é conhecida a casa. Estávamos em pleno inverno, a D. Ilda estava vestida de preto, com um lenço na cabeça e com um avental azul. Assim que chegámos e entrámos na mercearia, recuamos no tempo. A balança, as prateleiras com mercearia espalhada, os móveis antigos de madeira e o papel de parede tão peculiar. O cheiro característico da mercearia, as contas feitas à mão expostas no balcão frio, e por detrás dele, a D. Ilda movia-se vagarosamente. Ainda antes de começarmos, logo a mercearia se ocupou. Um cliente habitual, o Albino e uma cliente e amiga da Dona Ilda, a Maria Cardoso. E desta forma, estávamos perante o cenário ideal para esta recolha de estórias e memórias.

2 – Na fotografia, ao fundo, lado esquerdo,“A Loja da Preciosa”. 5

3 - Na fotografia, ao canto, lado direito,“A Loja da Preciosa”. 6 4  - Ilda da Silva Ferreira, nasceu a 2 de novembro de 1921, e faleceu a 22 de setembro de 2019. 5  - Arquivo Municipal de Estarreja. Fundo Fábrica de Descasque de Arroz, sem data. 6  - Idem.

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JULIANA CUNHA

A Dona Ilda da Silva Ferreira, viúva de Ernesto Nogueira Monteiro, herdou a loja dos seus sogros. Após a morte da sua sogra Preciosa, assumiu a gestão da loja, há mais de meio século. Na sua mercearia centenária vendia de tudo, conforme reforçou várias vezes. Além da venda de mercearia, contou-nos a D. Ilda que cozinhava muito: “chispe e feijão, uma espécie de feijoada e outras coisas!” “Cozinhava também sopa para todos, mas só ao meio dia.” A minha freguesia era daqui do Esteiro7, vivia lá muita gente”, e também da “Serração, do Descasque e do Amaral.”8 Antigamente tinha muitos fregueses, mas “os supermercados deram conta disto”, concluiu. Sempre trabalhou sozinha na mercearia. “E o meu marido quando vinha do emprego também me ajudava”. Na mercearia da D. Ilda não havia horários, “abria e fechava quando eu queria.” Com uma vida longa, carrega nos traços do rosto e na memória, muitos anos de estórias e histórias das gentes. Assistiu, a nível nacional e internacional, a muitos acontecimentos históricos que marcaram o país e o mundo. Mas foi sobre a história de Estarreja que nos debruçamos. Tocámos no assunto “Fábrica de Descasque de Arroz”, porque é um tema que investigamos, e gostámos particularmente de esmiuçar mais. Conheceu de perto muitos trabalhadores e até os patrões. “Tenho boas lembranças da Fábrica”, disse. “Os patrões eram boas pessoas. Primeiro era o velho Marques9, depois o Senhor Eurico, que era filho e o senhor Mário, que também era filho...já morreram todos, é assim!”, concluiu a D. Ilda. Sempre presentes neste “descascar de memórias”, o Albino e a Maria também iam dando o seu contributo e as suas achegas. Não raras as vezes, tínhamos de os lembrar que estava uma câmara a filmar. E assim continuámos. “E os famosos livros das mercearias, onde se apontava a despesa dos fregueses”? Perguntámos com entusiasmo já antecipando a resposta. “Tenho ali muitos!”, disse. Seguidamente, a Dona Ilda esboçou um sorriso e pediu à Maria para os ir buscar ao armário. Enquanto a Maria procurava os livros no armário de madeira escura, a D. Ilda observava e aguardava. “Aqueles compridos”, disse. De seguida, belos exemplares apareceram. “Tome lá os livros dos calotes”, ainda falou a Maria. Livros antigos, gastos pelo tempo, de capa dura e escura, todos manuscritos, a caneta. Bela caligrafia e uma forma de gestão peculiar, tão usual nas mercearias. De um lado, os nomes dos fregueses, do outro, a mercearia e o seu valor em escudos. No final, a soma total de todos os valores. “Era para apontar”, disse a Dona Ilda, e durante algum tempo, pegou e manuseou o livro, lendo o que lá tinha escrito e talvez recordando memórias do passado, rostos de gentes por detrás dos nomes. Porventura, alguns dos fregueses daquele belo livro já não estariam entre nós. Durante aquele tempo em que a D. Ilda se demorou nos seus pensamentos e a observamos com o livro na mão, recuamos mais uma vez no tempo. Uma mercearia centenária, uma mulher que dedicou grande parte da sua vida ao negócio e um livro manuscrito e gasto. E aí, percebemos que aquela senhora fora uma mulher de trabalho e profissional, assertiva nas suas contas. “Apontava todas as vezes que o freguês vinha, na frente do freguês”, e “assentava”, “depois quando era para pagar… é que era o diabo!”, concluiu a sorrir. Na verdade, em todas as mercearias há histórias e memórias de 7  Esteiro de Estarreja, porto comercial da então vila de Estarreja no século passado. O sal, oriundo das salinas de Aveiro, era um dos produtos mais movimentados. 8 A Serração Ideal, a Fábrica de Descasque de Arroz e os Transportes J. Amaral, três empresas estarrejenses próximas da Loja da Preciosa. 9 Carlos Marques Rodrigues, (1882-1976), foi o fundador da Fábrica de Descasque de Arroz – “A Hidro-Elétrica” de Estarreja.

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fregueses e de maus pagadores, e na mercearia da D. Ilda não foi exceção. Faz parte da história da loja, e para documentar, existem os famosos livros dos fregueses. Sobre o balcão de mármore da mercearia, encontrava-se a balança antiga com os seus vários pesos. De cor branca e imponente, é um objeto que merece atenção. Era nela, que a D. Ilda pesava a mercearia. “Feijão, farinha, batatas, cebolas, tremoços, azeitonas…tudo! vendia tudo!”. “E vinho!”, ripostou a Maria, e logo a D. Ilda apontou para cima e disse: “Estão ali as canecas antigas do vinho”. Durante toda a recolha de memórias, a Maria esteve sempre presente. É uma das clientes mais antigas da casa, porque vive em Estarreja há mais de cinquenta anos, mas é sobretudo uma amiga da D. Ilda.

4 - Ilda da Silva Ferreira e Maria Cardoso, no âmbito do Projeto “Avivar Memórias” recolha de histórias e memórias do Concelho de Estarreja.10

5 - Ilda da Silva Ferreira, Maria Cardoso e Albino na mercearia.11 10  - Fotografia Projeto “Avivar memórias”. Município de Estarreja, 2019. 11  - Fotografia de Rute Ferraz, 2017. Projecto de programação cultural em rede da CIRA - Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro, com a artista Camilla Watson e apresentado na II Edição do ESTAU – Festival de Arte Urbana.

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JULIANA CUNHA

6 – Ilda da Silva Ferreira à porta da mercearia.12

12  - Fotografia de Rute Ferraz, 2017. Projecto de programação cultural em rede da CIRA - Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro, com a artista Camilla Watson e apresentado na II Edição do ESTAU – Festival de Arte Urbana.

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Com o negócio, a D. Ilda aprendeu com o trabalho e com a vida toda a gestão da mercearia. Fez a instrução primária com distinção e ainda faz contas à mão, conforme pudemos comprovar com uns papéis que se encontravam ao lado da balança.Teve dois filhos, mas um faleceu ainda jovem num acidente rodoviário. Logo surgiram dois retratos em cima do balcão: um retrato do filho falecido, e outro do marido, também já falecido. Décadas passadas, ainda pudemos observar a saudade destas perdas no rosto enrugado da D. Ilda. “E gostou de trabalhar na mercearia? Foi feliz aqui?”, perguntámos em jeito de despedida enquanto agarramos a mão da D. Ilda. De seguida, ficou imóvel, como que a interiorizar a pergunta. Olhou-nos com carinho e emocionou-se. Os olhos da D. Ilda ficaram brilhantes, baixou a cabeça e limpou os óculos. Recompôs-se. “Gostou desta profissão?”, perguntámos. “Gostei muito! Ainda hoje gosto, mas não posso…gostei muito de trabalhar nesta profissão, sempre foi a minha profissão desde pequena”, concluiu. Desligámos a câmara, mas mantivemos ligada a memória. E naquele dia 13 de fevereiro do ano de 2019, despedimo-nos da D. Ilda. A pandemia que agora vivemos em 2020 ainda não tinha chegado e pudemos colocar na despedida alguns abraços. Ficamos gratos por ter sido a primeira pessoa que entrevistamos no âmbito do projeto “Avivar Memórias”. Saímos com um misto de sensações: de dever cumprido e que seria a última vez. E foi. A D. Ilda faleceu a 22 de setembro do mesmo ano. Com ela levou todas as memórias de uma vida. A mercearia centenária fechou as portas. Um pedaço de história encerrou. Desde 2017, na parede da mercearia estão perpetuadas em pedra rostos e memórias ligados à cultura do arroz e fábrica do Descasque, no âmbito do projeto de programação cultural em rede da CIRA - Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro, num trabalho da artista Camilla Watson apresentado na II edição do ESTAU – Festival de Arte Urbana de Estarreja. O património imaterial é sensível e frágil. E está intimamente ligado às histórias e memórias das gentes. A importância e salvaguarda das fontes orais ajudam a completar a história local. Nunca saberá a D. Ilda que alguém um dia escreveu sobre ela. É um rosto e um nome, que exemplifica todos aqueles que guardam na sua memória pedaços de história de Estarreja.

7 – Ilda da Silva Ferreira. Fotografia impressa em pedra na parede da mercearia.13 13 - Fotografia de Rute Ferraz, 2017. Projecto de programação cultural em rede da CIRA - Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro, com a artista Camilla Watson e apresentado na II Edição do ESTAU – Festival de Arte Urbana de Estarreja.

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8 – A Mercearia “A loja da Preciosa”, resultado final do trabalho da Camilla Watson.14

Fontes de Informação ARQUIVO MUNICIPAL DE ESTARREJA Fundo documental Fábrica de Descasque de Arroz. MUNICÍPIO DE ESTAREJA Documentos , videos e fotografias do Projeto “Avivar Memórias” – Recolha de hsitórias e memórias do Concelho de Estarreja.15

14  - Fotografia de Sara Pinheiro, 2017. II Edição do ESTAU – Festival de Arte Urbana de Estarreja. 15  - A equipa do referido projeto é construída pelas Técnicas Superiores da Câmara Municipal de Estarreja: Juliana Cunha e Sónia Campos.

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OS LIMITES HISTÓRICOS COMUNS DAS DIOCESES DO PORTO E DE COIMBRA

Marco Pereira*

INTRODUÇÃO As dioceses do Porto e de Coimbra possuem diferenças na sua origem e evolução. Contudo passaram igualmente por vicissitudes com certa similaridade, durante os seus primeiros séculos de existência. Atento esse período, a principal fonte para o estudo das dioceses bárbaras são as actas dos concílios desde a época romana, ao todo 37, e publicadas várias vezes. Na época em que Portugal se começava a configurar como reino independente (século XII), as duas dioceses estavam a recuperar a sua importância, após as dificuldades sofridas durante o período do domínio muçulmano, para o que contribuíram o dinamismo e a renovação proporcionada por bispos de origem francesa. Surgiram então os litígios fronteiriços entre as duas dioceses, com o Porto a querer avançar para o sul do Douro, dilatando-se à boleia da fronteira civil do território portucalense, e Coimbra a tentar manter no Douro a velha fronteira das províncias romanas e das dioceses suevas. 1. ORIGEM E EVOLUÇÃO DA DIOCESE DO PORTO Inicialmente a diocese de Braga possuía um território vasto, dela se tendo desmembrado as do Porto e de Tui, entre os anos de 561 e 5721. É no designado Paroquial Suevo, ou Actas do Concílio de Lugo, ocorrido no ano de 569 (cujas actas se julga redigidas nos anos 572-582, e que significou uma reorganização administrativa promovida pelo rei Teodomiro), que se noticia o momento da divisão da diocese bracarense. Foi então criado o espaço do Porto, que correspondia ao da civitas romana de Cale2, com sede «in castro novo»3. A sede da diocese era já em Meinedo (Lousada), aquando do III Concílio de Braga (572), no qual participou o seu mais antigo bispo conhecido, Viator: «Viator Magnetensis ecclesiae episcopus»4. Não se conhece mais nenhuma referência ao título episcopal magnetense. Portucale começou a adquirir importância durante o período suevo (séculos V e VI) e a diocese portucalense foi pois instituída depois da conversão dos suevos. No entender de Monsenhor J. Augusto Ferreira o bispado teve a sua Sé em Meinedo (Magneto), no tempo dos suevos, transplantada no tempo dos visigodos para o Porto (Portucale). Embora o Porto * Advogado 1  - COSTA, 1997, p. 377. 2  - MOREIRA, 1974, p. 22; AZEVEDO, 2001, p. 6. 3  - AZEVEDO, 2001, p. 5. 4  - ALMEIDA, 1967, p. 67; MOREIRA, 1974, pp. 22 (nota) e 23; AZEVEDO, 2001, p. 5; MARQUES, 2002, p. 30.

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tivesse então a mesma ou maior importância, situava-se exactamente na fronteira entre os dois reinos, aí se dando o combate final entre ambos, e aí sendo aprisionado e morto o último rei suevo. Deste modo, enquanto ponto fronteiriço (logo inseguro), não podia o Porto começar por ser o centro da diocese regional5. O rei visigodo Recaredo reuniu em 589 o III Concílio de Toledo, onde compareceram 63 bispos e se promoveu a concórdia na unidade da fé católica, por oposição ao arianismo que com esta concorria. Estiveram aí presentes dois bispos em representação do Porto (Portugalensis ecclesiae episcopus), um católico (Constâncio, provavelmente eleito no tempo dos suevos) e um ariano (Argiovito)6. É possível que a presença inicial do bispo em Meinedo, que era igreja de doutrina ortodoxa, se devesse ao domínio ariano no Porto não permitir a residência do prelado ali. O actual morro da Sé, como sede do bispo católico, acabaria por ganhar importância sobre a zona ribeirinha, de fixação mais antiga, a designada Valle Aritia, que seria ariana segundo Almeida Fernandes7. Com o início do domínio muçulmano a cidade do Porto foi em 716 destruída por estes invasores, refugiando-se o seu bispo nas terras asturiano-leonesas, como o fizeram outros seus pares das dioceses sitas em terras ocupadas. Porém uma boa parte da população rural permaneceu nas suas terras, vivendo cristã sob o jugo muçulmano (os moçárabes). Ocorreram várias incursões cristãs, como a de AfonsoI (739-757), reconquistando a cidade do Porto, mas só D. Afonso III (866-910) conseguiu que os domínios cristãos avançassem além-Douro, cabendo ao conde Vímara Peres a reocupação definitiva do Porto em 868. D. Gumado (899-900) foi bispo do Porto novamente na posse cristã, embora permanecesse ausente, provavelmente com outros bispos em Oviedo.A reconquista era precária e a fronteira oscilante, apesar da relativa paz inter-religiosa e da liberdade de culto. Após a tentativa de repovoação do século IX, sobreveio nova devastação muçulmana no século X, em cujo segundo quartel se documenta a extensão do termo Portucale, abrangendo uma região que acompanhava o avanço da reconquista. Sob o comando de Almansor, os muçulmanos entraram pelo reino leonês adentro em 998, chegando a destruir Santiago de Compostela8. Conhecem-se alguns prelados portucalenses deste período de reconquista, o último dos quais D. Sesnando, que foi bispo do Porto entre 1049 e 10709. Depois de D. Sesnando e até D. Hugo, foi o Porto Sé vacante e governada por arcediagos, mas mantendo-se a existência e a autonomia da diocese. A vacatura dever-se-ia em boa medida ao estado calamitoso das sés nesta época, e em parte à perturbação política entre os filhos de Fernando Magno10. 5  - MOREIRA, 1974, p. 24. 6  - ALMEIDA, 1967, p. 67; MOREIRA, 1974, p. 22 (nota); AZEVEDO, 2001, p. 5. 7  - AZEVEDO, 2001, p. 5. 8  - AZEVEDO, 2001, p. 6. 9  - OLIVEIRA, 1958, p. 96. 10  - AZEVEDO, 2001, p. 6.

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Possivelmente Braga superintenderia então no bispado do Porto. Em 1113 D. Hugo, que era de origem francesa e arcediago de Compostela, foi escolhido para bispo do Porto, restaurando em definitivo a cadeira episcopal, que governaria até à sua morte em 1136. A partir de então a história da cidade do Porto confunde-se com a da sua diocese, e esta relaciona-se muito proximamente com a do novo reino português em formação11. A rainha D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques, viria a fazer algumas doações importantes ao bispo do Porto. A primeira dessas doações incluiu o couto e o burgo do Porto, por carta de 8 de Abril de 1120, cuja autenticidade foi já posta em causa. Não tardou que D. Hugo desse foral à povoação, o que aconteceu em 14 de Julho de 1123. O foral contribuiu para o desenvolvimento do núcleo urbano, promovendo a fixação de novos habitantes e o dinamismo comercial. A administração civil e judicial ficou entregue a um maiorino, escolhido pelo bispo, e os portuenses haveriam de lutar contra os excessos dos poderes instituídos12. Cabe pois a D. Hugo o mérito de restaurar definitivamente a diocese do Porto, consolidando-a patrimonial e territorialmente (como adiante veremos), e fixando moradores na urbe. Senhor de hábil diplomacia e grande proximidade ao poderoso bispo de Compostela, D. Diogo Gelmires, conseguiu dilatar as fronteiras diocesanas do Porto e obter os favores das rainhas D. Teresa e D. Mafalda (respectivamente mãe e mulher de D. Afonso Henriques), que além do mais colaboraram na construção da nova Sé. 2. ORIGEM E EVOLUÇÃO DA DIOCESE DE COIMBRA Primitivamente a sede diocesana estava localizada em Conímbriga (Condeixa-a-Nova), remontando a sua origem a data anterior a 56113. Pierre David admitiu que a diocese de Conímbriga remonte a finais do século IV, mas sem prova conclusiva14. O primeiro bispo conhecido de Conímbriga é Lucretius, Lucentius ou Lucetius15, que antes fora prior do mosteiro de Lorvão, e assistiu aos concílios de Braga em 561 (onde formalmente se converteram os reis suevos) e 572, neste segundo como «Colimbriensis ecclesiae episcopus»16. Atendendo ao seu nome, era de presumível origem hispano-romana, mas os bispos conimbricenses que figuram nos concílios posteriores, até à queda da monarquia visigótica, possuem em regra nomes de origem germânica. 11  - AZEVEDO, 2001, p. 7. 12  - AZEVEDO, 2001, p. 7. 13  - MARQUES, 2002, p. 28. 14  - MARQUES, 2002, p. 30. 15  - No II Concílio de Braga (563) consta como Lucretius e Lucentius (MANSI, col. 780), e no III Concílio de Braga (572) como «Lucetius conimbriensis episcopus» ou Lucentius (MANSI, col. 841). 16  - ALMEIDA, 1967, p. 63; CARDOSO, 1980, p. 3.

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Na monarquia sueva (412-585) a diocese de Coimbra estendia-se aproximadamente do Douro ao Tejo, não existindo ainda as dioceses de Idanha (570), Lamego (569), Porto (572) ou Viseu (572), e muito menos Leiria (1545), Portalegre (1549) ou Aveiro (1774)17. Coimbra começou por ser sufragânea da metrópole de Mérida, na província romana da Lusitânia. Depois de territorialmente integrada no reino suevo, que não incluía Mérida, passou para a metrópole de Braga, assim integrando a arquidiocese que unia o reino suevo. Com a unificação da península sob a autoridade visigótica, Coimbra foi restituída à metrópole de Mérida, a pedido do bispo desta18. Dois centros religiosos principais pontificavam na diocese de Coimbra alti-medieval: Lorvão e Vacariça. Entre os anos de 569 (Concílio de Lugo) e 589 (III Concílio de Toledo), o bispo de Conímbriga e a sua Cúria, a sua gente e a população da cidade, mudaram-se para Eminio, seguramente por razões de segurança e melhor defesa. Aí fizeram da matriz da cidade (sanctae Mariae Colimbrigensis) a Sé episcopal. Nas actas do III Concílio de Toledo (589) Possidonius consta como «Possidonius eminiensis episcopus», o que se deve entender como residente em Eminio. Foi caso isolado, uma vez que de futuro os bispos voltam a referir-se a Conímbriga. Mas a memória da antiga cidade episcopal, e a maior grandeza do título a ela associado, levariam a que em breve Eminio tomasse o nome de Coimbra19. Diferente opinião é defendida por António Filipe Pimentel20, que admite que o poder político se mantivesse em Conímbriga, e esta fosse sede de diocese “quase certamente” até à conquista cristã de Hermenegildo Guterres (878). Diferendo para cuja solução poderá contribuir o onde, de entre as duas povoações, se cunhava principalmente moeda no período em causa. Entre 711 e 878 Coimbra esteve sob o domínio muçulmano, mas o cristianismo não sofreu perseguições significativas, continuando os cristãos sob o domínio muçulmano a praticar a sua religião (os moçárabes). As importantes comunidades religiosas de Vacariça e Lorvão também não eram inquietadas, contudo alguns dos bispos conhecidos desta época residiram temporariamente na corte do rei de Leão21. O conde Hermenegildo Guterres, ao serviço do rei D. Afonso III de Leão, conseguiu a primeira reconquista cristã de Coimbra em 878. A cidade conservar-se-ia integrada no reino de Leão por mais de um século22. Neste período, Nausto (862-912) foi o primeiro bispo de Eminio já chamada Coimbra23. No ano de 987 o célebre Almansor conquistou a cidade, saqueando-a, destruindo-a e arrasando as suas muralhas. Foram os próprios muçulmanos que a reconstruíram e 17  - CARDOSO, 1995, p. 28. 18  - ALMEIDA, 1967, p. 63; RAMOS, 2000, p. 387. 19  - CARDOSO, 1980, p. 3; RAMOS, 2000, p. 387. 20  - PIMENTEL, 2005, p. 188. 21  - CARDOSO, 1980, p. 4; RAMOS, 2000, p. 387. 22  - CARDOSO, 1980, p. 4; CARDOSO, 1995, p. 13; COSTA, 1997; RAMOS, 2000, p. 387. 23  - CARDOSO, 1980, p. 3.

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repovoaram em 99424. Durante a segunda ocupação muçulmana, que durou menos de um século, construiu-se a Alcáçova por razões defensivas (actual Reitoria e Faculdade de Direito, da Universidade de Coimbra), e apesar das maiores dificuldades para os cristãos houve bispos moçárabes, sendo o último Afonso (1018)25. A segunda e definitiva reconquista cristã data de 9 de Julho de 1064, pelas tropas do rei Fernando Magno de Leão. O moçárabe D. Sesnando ficou a partir daí como governador da cidade e de um vasto território, que incluía a Terra de Santa Maria a sul do Porto26. O primeiro bispo a ocupar a Sé de Coimbra após a reconquista cristã definitiva foi D. Paterno, que por razões de segurança só chegou em 1080, e ficou no governo episcopal até 108727. Entre o final do século XI e início do século XII a diocese de Coimbra afirmou a sua importância, beneficiada que foi com diversas doações. Primeiro recebeu a Sé de Coimbra os dois mosteiros mais importantes da região, fundados no século VI: o da Vacariça, doado por D. Raimundo e D. Urraca (1094), e o de Lorvão, doado por D. Henrique e D.Teresa (1109)28. Data de 28 de Junho de 1132 a fundação do mosteiro de Santa Cruz, extra-muros, no lugar dos Banhos de El-Rei29. A actualmente designada SéVelha seria construída a partir de 116230. Para além disto, no episcopado de D. Maurício Burdino (1099-1108), o papa Pascoal II concedeu os seguintes privilégios à diocese de Coimbra, por bula datada de 24 de Março de 1101: a) reintegração no seu bispado de todas as terras que antigamente lhe pertenciam e ainda estavam em poder dos muçulmanos, logo que fossem reconquistadas; b) continuação da posse do território desde Coimbra até ao Douro, conforme determinado desde o tempo dos suevos; c) administração das antigas dioceses de Lamego e Viseu, enquanto Coimbra não recuperasse tudo o que era seu ou elas não pudessem ter bispos próprios; d) confirmação da propriedade da Vacariça com todas as suas igrejas e outros bens. Refiram-se os termos da segunda destas concessões: «Ínterim a Colimbria usque ad Castrum antiquum, sicut Teodimiri regis temporibus ab episcopus diuisio facta est, ecclesie Colimbriensis possessio perseueret»31. De resto, a diocese de Coimbra estava já dividida em quatro arcediagados no século XII, sinal de que após a segunda reconquista cristã em 1064 o número de freguesias se deve ter multiplicado muito32. 3. DOS BISPOS EXILADOS AOS NOVOS BISPOS FRANCESES Durante o domínio muçulmano do território das antigas dioceses, não só não foram estas extintas como muitas vezes conservaram o seu bispo, ainda que este pudesse viver 24  - CARDOSO, 1980, p. 4; RAMOS, 2000, p. 387. 25  - OLIVEIRA, 1958, p. 96. 26  - CARDOSO, 1980, p. 4; CARDOSO, 1995, p. 13; RAMOS, 2000, p. 387. 27  - OLIVEIRA, 1956, p. 18; CARDOSO, 1980, p. 4; CARDOSO, 1995, p. 14. 28  - RAMOS, 2000, p. 397. 29  - CARDOSO, 1980, p. 7. 30  - RAMOS, 2000, p. 396. 31  - OLIVEIRA, 1956, pp. 18-19. 32  - CARDOSO, 1995, p. 32.

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exilado. Desde o século VIII até ao século XI os bispos de Braga residiram em Lugo33. No Porto, quando a cidade foi destruída pelos muçulmanos em 716, o seu bispo foi um dos que optaram por refugiar-se nas terras asturiano-leonesas. D. Gumado (899-900) foi prelado portucalense neste período de ausência, provavelmente em Oviedo. Apesar da intermitência política, foi uma fase de paz inter-religiosa, com liberdade de religião34. No caso de Coimbra, durante o primeiro período do domínio muçulmano (711-878) não houve perseguições significativas ao cristianismo, nem as comunidades religiosas da Vacariça e Lorvão eram inquietadas. Conhecem-se vários bispos desta época, alguns residindo temporariamente na corte do rei de Leão35. Em certos períodos, quer o Porto quer Coimbra foram Sés vacantes. Restauradas definitivamente as duas dioceses, foram encarregues do episcopado alguns prelados de origem francesa, que revelaram grande competência no cargo: D. Hugo (1113-1136) no Porto, D. Maurício Burdino (1099-1108) e D. Bernardo (1128-1146) em Coimbra. A Santa Sé sentia a necessidade de “romanizar” a península Ibérica, cuja prática cristã se encontrava afastada da oficial. Para o concretizar D. Bernardo, mais tarde arcebispo de Toledo e Legado do papa na península, trouxe à península monges franceses de Cluny, directamente nomeados pelo papa, que chegam na esteira de vários cavaleiros borgonheses (designadamente D. Raimundo e D. Henrique), os quais vinham combater os muçulmanos. Estão neste caso os dois meritórios bispos de Coimbra, D. Maurício (1099-1108) e D. Bernardo (1128-1146), ambos franceses e beneditinos36. Estes prelados procuraram reorganizar a diocese, sendo no episcopado de D. Maurício (futuro arcebispo de Braga) que se substituiu a liturgia visigótica/moçárabe pela romana37. 4. ORGANIZAÇÃO TERRITORIAL E TRADIÇÕES DIOCESANAS Inicialmente cada diocese tinha as suas próprias tradições e organização administrativa, distinguindo-se no território que ora nos interessa dois espaços principais, correspondentes a duas vastas dioceses: a norte do Douro a diocese de Braga (abrangendo as mais tardias do Porto e Tui), subdividida em paróquias de vici e pagi38, na antiga província romana da Galécia; entre o Douro e o Tejo a diocese de Coimbra, na antiga província romana da Lusitânia. Após as invasões godas, o que veio a ser o reino dos suevos correspondeu aproximadamente ao espaço destas duas dioceses. Os bispos suevos foram incumbidos pelo rei Teodomiro da reorganização diocesana do reino, que era demasiado extenso para tão pequeno número de dioceses. Reunido um concílio 33  - MOREIRA, 1974, p. 33. 34  - AZEVEDO, 2001, p. 6. 35  - RAMOS, 2000, p. 387. 36  - CARDOSO, 1995, p. 15; RAMOS, 2000, p. 387. 37  - CARDOSO, 1980, p. 7; CARDOSO, 1995, p. 15. 38  - MOREIRA, 1974, p. 23.

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em Lugo (569)39, nele se decidiu aumentar o número de dioceses para treze. Sendo arcebispo de Braga S. Martinho de Dume (569-579), no intuito de evitar litígios fronteiriços entre as dioceses, dividiram-se estas em 131 circunscrições, comarcas eclesiásticas, ou povos40. A memória dos limites diocesanos manteve-se através do domínio muçulmano e da reconquista. Mais de 150 anos após a queda do império visigótico, havia bispos de Braga, Porto, Coimbra e Lamego, embora residentes em Lugo, o que não abonava para o seu conhecimento capaz das dioceses que encabeçavam. Mas entre o clero e os fiéis conservava-se a memória da Sé a que obedeciam as suas igrejas, pois não terá chegado a haver completo ermamento41. As paróquias (paroécias) suevas, que constam das actas do Concílio de Lugo, eram muito extensas, sendo mais numerosas a norte do Douro e em pequeno número a sul do mesmo rio42. Distinguiam-se dois tipos de paróquias, que deviam ser muitas vezes regidas e assistidas por mosteiros paroquiais: as ecclesiae, que eram grandes paróquias urbanas; e os pagi, paróquias rurais que agrupavam povos dispersos. A diocese de Braga (e as do Porto e Tui, que dela se desmembraram) era a única que distinguia de facto as ecclesiae dos pagi43. Com o domínio muçulmano ruiu a organização administrativa e militar. Todavia manteve-se e desenvolveu-se a diocesana e paroquial do século VI, apesar das múltiplas dificuldades, exercendo os bispos os seus direitos no território, embora residissem em Lugo. Como bem notaram Pierre David e Avelino Jesus da Costa, recebiam pensões dos bens eclesiásticos, erigiam paróquias, e sagravam as igrejas por si ou seus delegados44. As paróquias suevas e visigodas estendiam-se, pois, por largos territórios, abrangendo povoados muito distantes. Pelo contrário as paróquias da reconquista são muito mais numerosas e pequenas, fruto da subdivisão que se esperava das originais. Do confronto entre as paróquias suevas e os arcediagados do pós-reconquista (civilmente chamados terras), verifica-se uma tendencial falta de correspondência45. Em sentido diferente defendeu Avelino Jesus da Costa a existência de correspondência entre as paróquias bárbaras e as Terras da reconquista, aludindo aliás a existência de igual número de 30, mas das quais apenas conseguiu obter correspondência em 1146. Tal como refere Miguel de Oliveira, as paróquias modernas (da reconquista), adensada a rede, correspondem regra geral a uma villa ou pequeno agrupamento de casais. De resto, «não consta que as primeiras reconhecessem senhorio diverso da autoridade eclesiástica, ao passo que a maior parte das segundas se encontram na dependência de padroeiros particulares»47. 39  - As actas do concílio de Lugo, das quais existem várias cópias (todas posteriores), são também conhecidas pelas expressões Paroquial Suevo ou Divisio Theodemiri. 40  - COSTA, 1997, p. 358. 41  - OLIVEIRA, 1956, p. 17. 42  - À semelhança da densidade populacional, que persistiu até aos nossos dias. 43  - COSTA, 1997, p. 68; AZEVEDO, 2001, p. 6. 44  - COSTA, 1997, p. 68. 45  - MOREIRA, 1974, p. 27. 46  - COSTA, 1950, p. 132 e ss. (com tabela de correspondências na p. 133). 47  - MOREIRA, 1974, p. 61.

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5. LITÍGIOS SOBRE OS LIMITES COMUNS DO PORTO E DE COIMBRA Como vimos mais atrás, a diocese do Porto foi constituída no século VI, no reino dos suevos, a partir de um território desanexado da diocese de Braga, não devendo ultrapassar o rio Douro para sul, que era o limite da antiga província romana da Galécia48. A diocese de Coimbra era mais antiga, ou do mesmo século ou, segundo alguns autores, remontando ao domínio romano, como atrás se explanou, e em meados do século VI estendia-se aproximadamente entre o Douro e o Tejo, sendo posteriores as dioceses de Idanha (570), Viseu (572) e Lamego (569)49. O Douro era, pois, a fronteira natural e antiga entre os dois espaços diocesanos, remontando a sua origem à divisão administrativa romana. O Porto, que se tornou cabeça de diocese com os suevos, ganhou importância como cidade depois da reconquista, e a designação “território portugalense” estendeu-se para além dos limites da diocese, abrangendo designadamente a Terra de Santa Maria50. No início do século XII era já considerado “territorium portucalense”, do ponto de vista civil, todo esse espaço entre os rios Douro e Antuã51. Embora os registos situem alguns prédios desta região no “território portugalense”, este deve ser entendido no sentido civil e não diocesano52. No entanto Almeida Fernandes admite, atento o Provincial Visigótico (DivisioWambae) do século VII, que nessa época a diocese do Porto já se estendesse até S. João de Loure (Albergaria-a-Velha)53. Somado o posterior domínio muçulmano e oscilações da fronteira política, é possível que até ao século XI as fronteiras diocesanas oscilassem também. Entretanto, no episcopado de D. Maurício Burdino (1099-1108) a Sé de Coimbra adquiriu o maior número de vilas e igrejas nesta região54. A Terra de Santa Maria, correspondendo ao entre Douro e Antuã, acabaria por ser objecto de uma longa disputa entre as duas dioceses, nos alvores da nacionalidade portuguesa, como veremos de seguida. Pela bula Apostolicae sedis, de 24 de Março de 1101, o papa Pascoal II determinou que o bispo de Coimbra (que à época era D. Maurício, depois arcebispo de Braga) administrasse também Lamego e Viseu, até que estas dioceses pudessem ter bispo próprio e fossem reconquistadas as terras de Coimbra sob domínio muçulmano55. A mesma bula atribuiu a Coimbra a região correspondente à Terra de Santa Maria56. Foi confirmado o governo de Viseu e Lamego por Coimbra pela bula Aequitatis et justitiae ratio, de 1 de Fevereiro de 1125, sendo então bispo conimbricense D. Gonçalo. Coube mais tarde a D. Afonso Henriques dar bispo a Lamego em 1144 e a Viseu em 114757. 48  - OLIVEIRA, 1956, p. 17. 49  - RAMOS, 2000, p. 390. 50  - OLIVEIRA, 1956, p. 19. 51  - MOREIRA, 1974, p. 31. 52  - OLIVEIRA, 1956, p. 18. 53  - MOREIRA, 1974, p. 30; AZEVEDO, 2001, p. 28. 54  - OLIVEIRA, 1956, pp. 18-19. 55  - CARDOSO, 1980, p. 7; CARDOSO, 1995, p. 29; RAMOS, 2000, p. 390. 56  - SANTOS, 1973, p. 22, nota. 57  - CARDOSO, 1980, p. 7; CARDOSO, 1995, p. 29.

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Surgiram igualmente no início do século XII os litígios fronteiriços entre as sés do Porto e de Coimbra, logo após a eleição de D. Hugo para bispo do Porto em 1113. D. Hugo era arcediago da Sé de Compostela e no novo cargo continuou colaborador próximo do bispo de Santiago, Diogo Gelmires, com ele mantendo estreita colaboração no seu projecto de conquista da dignidade metropolita58. O novo bispo portucalense veio encontrar a diocese quase totalmente desbaratada, pelas agressões a que fora sujeita durante as lutas contra os muçulmanos59. Desde logo aplicou particular empenho em valorizar a diocese e a disputa territorial com Coimbra é disso bom exemplo60. Com a expansão da diocese do Porto para sul relaciona-se igualmente a sua expansão para norte, às custas de Braga. O arcebispo de Braga, D. Maurício Burdino, revelou-se apoiante de D. Urraca após a morte de D. Afonso VI (1109), provocando a ira de D. Teresa e tendo mesmo sido suspenso da sua prelazia bracarense em 111461. A diocese do Porto conseguiu conquistar territórios à de Braga, num contexto em que o bispo desta segunda vinha perdendo força nas lutas episcopais da região e políticas leonesas, e acabou por se imiscuir nos assuntos da Santa Sé, coroando o Imperador Henrique V, o que lhe valeu a excomunhão e deposição em Braga. Em 1118 tornou-se mesmo antipapa, com o apoio de Henrique V mas não de Roma, caindo em desgraça. De resto a sua presença na cúria condal portucalense nunca foi regular. Em 1114 reuniu-se em Compostela um sínodo, convocado em nome do arcebispo de Toledo, D. Bernardo, metropolita de Coimbra e então legado apostólico na península. Junto do bispo local D. Diogo Gelmires compareceram os bispos de Tui, Mondonhedo, Lugo, Orense e Porto, avultando nesta confraternidade a oposição a Braga. O bispo D. Gonçalo de Coimbra foi então convidado a entender-se com D. Hugo do Porto sobre os limites das suas dioceses62. Após terem-se reunido em Compostela, D. Hugo e D. Gonçalo encontraram-se em Figueiredo (actual concelho de Oliveira de Azeméis), em 30 de Dezembro de 1114, onde teriam acordado os limites diocesanos. Mas um e outro legaramnos versões diferentes do que acordaram. Na versão do Censual do Cabido da Sé do Porto afirma-se que o bispo de Coimbra reconheceu ao do Porto tudo o que pertencia à diocese portucalense a norte e a sul do Douro (citra Dorium uel ultra Dorium). No texto do Livro Preto da Sé de Coimbra consta que o bispo de Coimbra prometeu ao do Porto não o perturbar a norte do Douro (trans Dorium) e o do Porto prometia não reclamar o sul do Douro (citra Dorium), senão o que o bispo de Coimbra por amizade lhe quisesse dar (nisi quantum dederit ei ex amicitia)63. Entretanto, as actas do sínodo de Compostela seguiram para o arcebispo de Toledo, com o pedido de interferência em favor de D. Hugo. O arcebispo de Toledo, na sua qualidade de legado da Santa Sé, foi consentâneo e no começo de 1115 escreveu ao 58  - OLIVEIRA, 1956, p. 20. 59  - SANTOS, 1973. 60  - OLIVEIRA, 1956, p. 20. 61  - AMARAL, 2012, pp. 278-279. 62  - OLIVEIRA, 1956, p. 21; AZEVEDO, 2001, p. 7. 63  - OLIVEIRA, 1956, pp. 21-22; SANTOS, 1973.

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abade de Santo Tirso, exortando-o a reconhecer como pertencentes aos limites da diocese do Porto todas as terras compreendidas entre os rios Vizela e Antuã (infra antiquos terminos Portugalensis diocesis, a Avicella scilicet in Antenonam)64. No verão de 1115 esteve D. Hugo em Roma, tratando de assuntos do bispo de Compostela, D. Diogo Gelmires, e aproveitou a estadia para defender os interesses da diocese do Porto. Expôs então ao papa Pascoal II que, devido à decadência da sua diocese durante as lutas contra os infiéis, os bispos vizinhos lhe haviam ocupado alguns territórios. O papa acreditou nas informações pouco correctas de D. Hugo e concedeu-lhe a bula Egregias quondam, em 15 de Agosto de 1115, que alargou os limites da diocese do Porto para o norte (Braga) e para o sul (Coimbra), fixando a fronteira sul pelo curso do rio Antuã, e declarou o Porto isento de metropolita e directamente subordinado à Santa Sé65. Poucos dias depois, a 20 de Agosto de 1115, o papa expediu ao bispo de Coimbra a bula Sicut tuis, mandando-o reconhecer como pertencentes à diocese do Porto as «ecclesiis que inter Antonanam et Dorium continentur»66. Mais alegou D. Hugo junto do papa que a Sé de Coimbra estava muito acrescida em terras, clero e povo, em situação desafogada. Não se justificava por isso que continuasse a administrar as dioceses de Lamego e Viseu, incapazes de ter bispo próprio, e em compensação dos territórios de Coimbra ocupados pelos infiéis. Por seu turno o Porto, após largo período de destruição e desolação, começava agora a levantar-se das ruínas, pelo que se pedia ao pontífice auxílio, unindo-lhe os réditos do bispado de Lamego67. Pascoal II anuiu, pela bula Apostolicae sedis, dada em Alba em 12 de Abril de 1116, que anexou a diocese de Lamego à do Porto, até que esta ficasse inteiramente restaurada ou aquela estivesse em condições de ter bispo68. Como seria de esperar D. Gonçalo, bispo de Coimbra, não ficou nada satisfeito. Enquanto o bispo do Porto regressava de Roma, para lá se encaminhou o de Coimbra69. D. Gonçalo foi encontrar o papa Pascoal II em Palliano e expôs-lhe que a diocese de Coimbra não só nada tinha recuperado, como havia mesmo perdido muito após a morte do rei Afonso VI de Leão (1109). De resto, desconhecia o papa a Divisão de Vamba ou de Teodomiro. Ficou sentido com a exposição das razões do bispo de Coimbra e lamentou que os bispos abusassem da sua boa fé, para obterem concessões que não eram pacíficas. Acabou pedindo a várias fontes que lhe fizessem chegar melhores informações, e mandou que Coimbra mantivesse os territórios em litígio70. Enfim, a bula a favor do Porto seria revogada em 18 de Junho de 111671. Depois disso, no concílio de Burgos, presidido pelo cardeal Boso, D. 64  - OLIVEIRA, 1956, p. 22; SANTOS, 1973, p. 23; MOREIRA, 1974, p. 35. 65 - OLIVEIRA, 1956, pp. 22-23; SANTOS, 1973; MOREIRA, 1974, p. 35; RAMOS, 2000, p. 390; AZEVEDO, 2001, p. 7. 66  - FERREIRA, 1923; OLIVEIRA, 1956, pp. 22-23; MOREIRA, 1974, p. 35. 67  - OLIVEIRA, 1956, p. 23. 68  - OLIVEIRA, 1956, p. 23; SANTOS, 1973; AZEVEDO, 2001, p. 28. 69  - OLIVEIRA, 1956, p. 23; SANTOS, 1973; RAMOS, 2000, p. 390; AZEVEDO, 2001, p. 28. 70  - OLIVEIRA, 1956, pp. 23-24; RAMOS, 2000, p. 390. 71  - AZEVEDO, 2001, p. 28.

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Hugo declarou renunciar aos privilégios que lhe foram concedidos, em documento lavrado em 18 de Fevereiro de 1118. Deixava assim, neste segundo acordo, de reivindicar as terras entre o Douro e o Antuã, e a administração da diocese de Lamego72. Entretanto faleceu Pascoal II também no início de 1118, seguindo-se um breve pontificado de um ano de Gelásio II. Em 2 de Fevereiro de 1119 foi eleito papa o arcebispo de Viena, Guido, que tomou o nome de Calisto II. O novo papa era irmão do conde D. Raimundo de Borgonha, portanto cunhado de D. Urraca e tio paterno de D. Afonso VII de Leão73. D. Diogo Gelmires, bispo de Compostela, viu no novo papa a possibilidade de alcançar a dignidade metropolitana, e estando impossibilitado de transferir para Compostela a de Braga, procurou a de Mérida que era cidade ainda em poder dos muçulmanos74. D. Hugo, bispo do Porto e que sempre se manteve colaborador próximo do de Compostela, disponibilizou-se a servir de seu procurador, viajando para França (onde o papa se encontrava) para advogar a causa de D. Diogo Gelmires. Entre o fim de 1119 e o início de 1120 D. Hugo encontrou-se em Cluny com Calisto II, conseguindo que em 26 de Fevereiro de 1120 este conferisse a Compostela a dignidade metropolitana, ficando-lhe provisoriamente por sufragâneos os bispados que antes dependiam de Mérida e andavam ultimamente anexados a Toledo. No dia seguinte o papa nomeou D. Diogo Gelmires legado apostólico nas províncias de Mérida e Braga75. Aproveitou D. Hugo a sua missão, e demorada estadia além-fronteiras durante cerca de um ano, para tentar e conseguir ampliar as fronteiras do seu próprio bispado, às custas de Braga e Coimbra76. Ocultando todos os episódios passados nos cinco anos anteriores, D. Hugo apresentou ao papa a bula Egregias quondam que havia obtido de Pascoal II em 1115. Conseguiu então que o papa lhe confirmasse as fronteiras diocesanas de 1115, pela bula Officii mei, datada de 2 de Março e 1120, dispondo agora os limites com mais pormenor, e continuando o Porto isento de qualquer metropolita77, além de serem especificados os mosteiros situados nesta área. Nos termos desta bula a diocese portucalense ficava demarcada por uma linha que começava na foz do Ave, seguindo o seu curso até ao rio Vizela, e depois pelo Vizela até ao arco de Pombeiro e à anta de Temone. Daí, pelo monte das éguas até ao monte farinha e monte Marão. Do Marão ao rio Campeã, por este até ao rio Corgo, e finalmente pelo Corgo até ao Douro. A sul do Douro ia da foz do rio Arda pelo monte de Meda até ao Nabal, seguindo depois o curso do rio Antuã até ao mar. Para assegurar a execução do disposto na nova bula, o papa enviou ao arcebispo de Braga, D. Paio, uma carta com data de 5 de Março de 1120, intimando-o a restituir ao bispo do Porto as igrejas e todas as suas pertenças que indevidamente retinha em seu poder. Mas nada resolveu. 72  - OLIVEIRA, 1956, p. 25; SANTOS, 1973; AZEVEDO, 2001, p. 28. 73  - FERREIRA, 1923, p. 158; OLIVEIRA, 1956, p. 26. 74  - OLIVEIRA, 1956, p. 24; OLIVEIRA, 1959, pp. 8-9. 75  - OLIVEIRA, 1956, p. 26; OLIVEIRA, 1959, pp. 8-9. 76  - OLIVEIRA, 1959, pp. 9-10. 77  - OLIVEIRA, 1956, p. 27; SANTOS, 1973; MOREIRA, 1974, p. 36; AZEVEDO, 2001, p. 28.

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D. Hugo estava a tirar partido das circunstâncias do tempo, favoráveis a uma tentativa de expandir a diocese do Porto para norte e para sul. Em Braga D. Paio Mendes foi administrador da diocese entre 1114 e 1118, vindo a ser sagrado bispo em 1118 e como tal reconhecido pelo Papa em 1121. Enquanto bispo, que o foi até 1137, manteve-se afastado da cúria condal, e chegou mesmo a ser preso às ordens da rainha D.Teresa em 112278, sendo pois distante do poder político como o seu antecessor. No caso de Coimbra, a presença do bispo D. Gonçalo (1109-1128) foi mais regular entre 1109 e 1113, e depois mais ausente, inclusive indo em peregrinação à Terra Santa em 1118 e 1119. Manteve-se igualmente cada vez mais afastado da cúria condal de D. Teresa. Da ausência de Coimbra criou-se até oportunidade para certa revolta no seio do cabido de Coimbra, o que possivelmente contribuiu para um focalizar da atenção aos problemas internos em detrimento dos externos. Seguiu-se o afastamento entre o bispo de Coimbra e D. Teresa, até ao final do governo desta79, o que poderá tem auxiliado nos sucessos do bispo do Porto. Entretanto, quando D. Hugo chegou a Compostela em 1120, D. Diogo Gelmires recebeu-o com extraordinária pompa e remunerou-o sumptuosamente, satisfeito que estava com o sucesso obtido na missão além fronteiras. É possível que tenha sido por influência do bispo de Compostela que a rainha D. Teresa concedeu a D. Hugo a doação do burgo e do couto portucalenses80, uma das recompensas pelos serviços prestados a D. Diogo Gelmires. Todavia a questão da fronteira entre as dioceses do Porto e Coimbra não ficou resolvida em definitivo, voltando a ser colocada no Concílio de Sahagún, sob a presidência do cardeal Boso (legado do papa Calisto II), em 25 de Agosto de 1121. D. Gonçalo, bispo de Coimbra, queixou-se aí de D. Hugo, acusando-o de não respeitar a delimitação que ficara decidida no Concílio de Burgos. O cardeal Boso confirmou o decidido em Burgos em 1117, forçando D. Hugo a renunciar às terras a sul do Douro, em 5 de Abril de 1122. Ficou nesta data acordado que o Porto ficaria com as terras entre o Douro e o Lima, e Coimbra com as terras entre o Douro e o Tejo. D. Hugo ainda não se conformou e apelou para o papa, que confirmou a decisão do cardeal Boso81. De qualquer o modo esta partilha era favorável a D. Hugo na demarcação a norte, com prejuízo para Braga. Teria tal sucedido por a rainha D. Teresa haver decidido prescindir do arcebispo de Braga no governo eclesiástico do país, mandando repartir o território português entre os bispos do Porto e de Coimbra, cabendo ao Porto tudo o que ficasse para norte do Douro. Foi o terceiro e último acordo entre os dois bispos, que em vida não voltaram a discutir a questão82. Se em 1122 o bispo de Braga tinha unidos contra si D. Teresa e os bispos do Porto e de Coimbra, a partir de 1128 a distância que antes tivera de D. Teresa transformou-se em proximidade com D. Afonso Henriques83, alterando-se as circunstâncias. 78  - AMARAL, 2012, pp. 279-280. 79  - AMARAL, 2012, pp. 284-285. 80  - OLIVEIRA, 1956, p. 28. 81  - OLIVEIRA, 1956, pp. 28-29; SANTOS, 1973, p. 27; MOREIRA, 1974, pp. 38-39; AZEVEDO, 2001, p. 29. 82  - OLIVEIRA, 1956, p. 30. D. Gonçalo viveria até 1128 e D. Hugo até 1136. 83  - AMARAL, 2012, p. 280.

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Acontece porém que a questão dos limites não ficou definitivamente resolvida e passou para os bispos que se seguiram em ambas as dioceses. A Terra de Santa Maria veio a integrar, de facto e em definitivo, a diocese do Porto, mas não se pode fixar com certeza a data em que a sua transferência se efectivou84. Miguel de Oliveira, baseando-se em D. Tomás da Encarnação, propõe que tenha sido entre os anos de 1132 e 1137 que a Terra de Santa Maria passou em definitivo para a jurisdição da diocese do Porto. Para este balizar, funda-se por um lado no facto de em 1132 D. Bernardo, bispo de Coimbra, ter doado as igrejas de Argoncilhe, Perosinho, Sezedo, Travanca, Travaçô e Eurol ao Mosteiro de Grijó. Por outro lado, em 26 de Outubro de 1137 o bispo do Porto, D. João Peculiar, confirmou a doação, afirmando no que respeita a Argoncilhe, Perosinho e Serzedelo «cum terra de S. Maria colimbrianae Diocesis esset»85. Ficou assim o esset a assinalar a jurisdição conimbricense como passado. No entanto, em 1144 o papa Lúcio II ainda mandou passar para Coimbra as mesmas terras86. A Terra de Santa Maria continuou a ser administrada pela diocese do Porto, mas Coimbra persistiu em não aceitar essa soberania como definitiva. Embora muito menos empenhada, por facto há muito consumado, insuficiente influência política e ter-se alastrado a diocese de Coimbra muito para sul, mercê da reconquista. Contudo Coimbra conseguiria, muito mais tarde, novas bulas favoráveis às suas pretensões, ainda que o Porto continuasse na prática a exercer jurisdição no território disputado, dada a influência dos seus bispos junto dos reis. Foi o que se passou em 15 de Maio de 1198, data em que Inocêncio III expediu a bula Exposuit nobis, na qual mandava o bispo do Porto cumprir a decisão de Burgos de 1117, restituindo ao de Coimbra a Terra de Santa Maria87. A ordem não teve sucesso. Muito mais tarde, em 20 de Agosto de 1245, Inocêncio IV concedeu outra bula confirmando a anterior, mas nada disso resultou88. O bispo do Porto de então, D. Julião Fernandes, foi defender a sua posse junto de Inocêncio IV, mostrando-lhe o rescrito de Pascoal II de 1115. Inocêncio IV anuiu, confirmando os termos de 1115, pela bula Provisionis nostrae, dada em Perugia em 12 de Setembro de 1253. Nesta altura a fronteira com o Porto já não era a única com controvérsia, pois à medida que ressurgiam outras dioceses avivavam-se disputas similares. Durante a primeira metade do século XIII arrastou-se um conflito entre as dioceses de Coimbra e Guarda (sucessora de Egitânia), a respeito da soberania diocesana sobre várias localidades, conflito só sanado em meados do século XIII89. Aconteceu também uma disputa territorial entre as dioceses de Coimbra e Lisboa, no início do século XIII90, e acerca da qual pouco se sabe. Acontece porém que o litígio com Lisboa foi em parte dirimido pelo bispo do Porto à época. Ora, 84  - OLIVEIRA, 1956, p. 31. 85  - OLIVEIRA, 1956, p. 38; MOREIRA, 1974, pp. 40-41; AZEVEDO, 2001, p. 9. 86  - MOREIRA, 1974, p. 41. 87  - FERREIRA, 1923, p. 204; SANTOS, 1973, p. 27; MOREIRA, 1974, p. 41; AZEVEDO, 2001, p. 29. 88  - SANTOS, 1973, p. 27; MOREIRA, 1974, p. 41; AZEVEDO, 2001, p. 29. 89  - MORUJÃO, 2010, pp. 60-64. 90  - MORUJÃO, 2010, pp. 64-65.

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quando deixou de estar na fronteira com o Islão, a diocese de Coimbra era já muito extensa, e nessa altura começava a desdobrar-se para dar espaço a outras dioceses que renasciam. O estabelecer dos limites poderá em parte ter dependido da negociação com as novas dioceses fronteiriças, reconhecendo-se ao Porto uma situação que há muito era de facto, em troca de apoio na definição de outras fronteiras mais recentes e indefinidas. De resto, numa já de si vastíssima diocese que se subdividia, afigurava-se inglório insistir no alargamento para norte, ocupando um território que era colado à cidade do Porto, e sobre o qual os seus bispos conseguiam exercer controlo contínuo havia mais de um século, pesem as divergências com Coimbra. CONCLUSÃO As dioceses do Porto e de Coimbra terão surgido no século VI sob o domínio suevo. A do Porto destacada então da de Braga, a mais organizada. A de Coimbra, aparentemente mais antiga que a do Porto, tendo a sua primeira sede em Conímbriga e transplantada depois para Eminum, que lhe herdou o nome. Entre uma e outra manteve-se durante o domínio muçulmano a fronteira que vinha das províncias romanas, isto é, o rio Douro. Enquanto estiveram sob o domínio muçulmano o Porto (716-868) e Coimbra (711-878 e 987-1064), persistiu a existência das suas dioceses. Contudo os seus bispos conhecidos mantinham-se regra geral exilados em Leão, onde recebiam proveitos das dioceses que encabeçavam. No início do século XII são as dioceses entregues a bispos de origem francesa, que introduzem alterações. Com efeito, cumprindo um objectivo da Santa Sé, nesta época o rito romano substituiu o bárbaro em Coimbra. Igualmente no início do século XII D. Hugo tornou-se bispo do Porto, então sede vacante, que procurou ampliar territorialmente. Beneficiando das conjunturas política e da administração eclesiástica do tempo, e com habilidade diplomática, ampliou os limites diocesanos do Porto às custas de Braga e de Coimbra. Para sul esta expansão contou com a boleia dada pelo dilatar da fronteira civil, portucalense, na reconquista. A Terra de Santa Maria ficou desde 1253 e sem mais disputa, pertencendo à diocese do Porto, que desde o início do século XII ali vinha exercendo jurisdição, ocupando um território que era tradicionalmente da diocese de Coimbra. O rio de Antuã fixou-se então como limite sul do bispado portucalense, e assim se manteve até 188291. Razão pela qual as paróquias dos concelhos de Estarreja e Murtosa, a norte do rio Antuã, pertenceram à diocese do Porto.

91  - FERREIRA, 1923, pp. 243-244; SANTOS, 1973, p. 27; MOREIRA, 1974, p. 41; CARDOSO, 1995, p. 29; RAMOS, 2000, p. 390; AZEVEDO, 2001, pp. 8 e 29.

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SÃO SEBASTIÃO António Cruz Leandro* Maria Clara de PaivaVide Marques** O presente artigo, meramente um pequeno contributo para o conhecimento e divulgação do património religioso do Concelho de Estarreja, incide sobre a análise das esculturas devocionais do Mártir São Sebastião, presentes nos retábulos existentes no interior das igrejas paroquiais concelhias. O imprevisível da existência, pautado pelo carácter omnipresente da fome, doença, desgraças, guerras e morte, levaram à obtenção de uma visão muito particular do mundo por parte do Homem que, na sua luta pela sobrevivência, vai formando e desenvolvendo conceitos, afetos e práticas, com os quais procura explicar a causa de tudo o que, bom ou mau, faz parte da sua vivência e lhe afeta o dia-a-dia. A fé e as diversas formas de religiosidade fazem parte do seu viver, ocupando espaços e tempos do seu quotidiano, manifestando-se em práticas que o tempo vai modificando, mas cujos legados, materiais ou imateriais, nos ficam como documentos. O santo, enquanto merecedor de devoção, assume-se como entidade protetora de algo ou de alguma função, sendo-lhe atribuídos poderes específicos, de domínio, e, portanto, de cura, afirmando-se inevitavelmente como uma figura omnipresente no dia-a-dia das gentes. Conhecido por antonomásia pelo Santo – ou o Mártir, por excelência1, São Sebastião encontra-se entre as entidades celestes que protegem e curam, especialmente invocado enquanto protetor contra a peste, a fome e a guerra, não podia deixar de figurar, desde tempos remotos, entre a multiplicidade de devoções das gentes de Estarreja. Mártir dos primeiros tempos do Cristianismo e um dos principais santos auxiliadores, em particular pela capacidade que lhe é conferido no socorro nas pestes e outros males, para além das representações em imagem, São Sebastião faz sentir a sua presença, em território estarrejense, na sagração de capelas sob a sua invocação, tendo no concelho capela própria em Avanca e Salreu, ambas referenciadas nas Memórias Paroquiais de 1758. De acordo com a informação do pároco memorialista de Avanca, o reitor António de Oliveyra Frayam, existiam na paróquia “sinco capéllas, ou ermidas antigas públicas e do povo della”, sendo uma delas a de São Sebastião, no lugar de São Sebastião2, topónimo criado, em volta deste espaço sagrado, em sua honra e acerca do qual narra o referido reitor: *Professor e Historiador ** Museóloga e Historiadora 1 - Nuno Resende, São Sebastião, n.º de catálogo 9, in Nuno Resende (coordenação) – O COMPASSO DA TERRA – A Arte enquanto Caminho para Deus. Lamego: Diocese de Lamego/ Câmaras Municipais de Lamego e Tarouca, 2006, vol. I- Lamego, p. 126. 2  - Américo Oliveira e Filomeno Silva, Estarreja e Murtosa nas Memórias Paroquiais de 1758, Estarreja, Fundação Soalheiro Madureira, 2009, p. 102

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Que suppôsto hé tradição confirmada com o que se contém na doação que o augustíssimo senhôr Dom Affonso terceiro do nome, e quinto rey destes Reinos de gloriosa memória fêz ao Real Mosteiro das Religiosas Bernardas da villa de Arouca, em que dizem se contém o segunte = Doámos as nossas villas de Antuán e Bánca = que athe o reinado do dicto senhôr houve nesta freguezia villa, e têrmo della, nome de que ainda se conserva a memória nestes parochianos; porque indo, ou vindo alguns deles do lugar de São Sebastião, em que há tradição esteve, dizem venho da bánca, ou vou para a bánca, o que nos dizem vinda, ou indo dos mais lugares da freguezia; o qual lugar depois com os tempos mudou o nome tomándo-o do dicto Santo, que se venéra em huma capélla sit no terreiro do mesmo lugar, e pública da freguezia, cuja festa se lhe celébra no seu próprio dia vinte de Janeiro; e de que proveyo o nome á freguezia corrupto o vocábulo da Banca, em o de Avanca (…)3.

Por sua vez na sua memória, o pároco de Salreu, Dionisyo Pereira Homem, informa que há na freguesia três ermidas “que são do povo”, entre as quais uma dedicada a “Sam Sebastiam”, no lugar do Santo4, topónimo que, criado à volta da ermida em sua honra, tem origem na antonomásia corrente de São Sebastião, tal como já referimos. Posteriormente, após a implantação da República, em 5 de outubro de 1910, vamos encontrar referências, ainda que sumárias a estas capelas, nos arrolamentos dos bens culturais da Igreja, realizados por determinação da Lei de Separação das Igrejas do Estado, de 20 de abril de 1911, onde no inventário da paróquia de Santa Marinha de Avanca foi arrolada a Capela de São Sebastião, “um edifício em bom estado de conservação (…) tem uma sineta e três imagens sendo duas pequenas e outra em ponto grande”5 e no inventário da paróquia de São Martinho de Salreu foi elencada a Capela de São Sebastião, “uma pequena Capela em mau estado (…) com um altar e duas imagens (…)6. No Inventário Artístico de Portugal, Nogueira Gonçalves faz menção à Capela de São Sebastião de Avanca, localizada “no sítio do Santo, locativo que designa por antonomásia o padroeiro”7, e à Capela de São Sebastião de Salreu, “na zona do couto no sítio do Santo”, topónimo criado à volta deste espaço sagrado, tal como acontece em Avanca8. A importância e popularidade do “Príncipe dos Mártires”, um dos principais taumaturgos do hagiólogo português em especial pelo poder intercessor que lhe é imputado nas questões relacionadas com as pestes, estão patentes, também, na instituição de confrarias sob a sua invocação. Associações voluntárias de indivíduos que, ao abrigo de um conjunto de regras ou normas compiladas sob a designação de estatutos ou compromissos, se propõem à prestação de auxílio mútuo, no campo material e principalmente no contexto 3  - Américo Oliveira e Filomeno Silva, Estarreja e Murtosa nas Memórias Paroquiais de 1758, p. 97. 4  - Américo Oliveira e Filomeno Silva, Estarreja e Murtosa nas Memórias Paroquiais de 1758, p. 140. 5  - Hugo Calão, Os inventários das Igrejas e Capelas das Paróquias dos Concelhos de Estarreja e Murtosa – Parte I, in Delfim Bismarck Ferreira (direção) – TERRAS DE ANTUÃ. Histórias e Memórias do Concelho de Estarreja. Estarreja: Câmara Municipal de Estarreja, n.º 4, ano 4, 2010, pp. 81-82. 6  - Hugo Calão, Os inventários das Igrejas e Capelas das Paróquias dos Concelhos de Estarreja e Murtosa – Parte I. p. 97. 7  - A. Nogueira Gonçalves, Inventário Artístico de Portugal – Distrito de Aveiro - Zona de Norte, Lisboa, Academia Nacional de Belas – Artes, 1981, p. 24. 8  - A. Nogueira Gonçalves, Inventário Artístico de Portugal – Distrito de Aveiro - Zona de Norte, p. 32.

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espiritual, as irmandades e confrarias desempenharam um importante papel assistencial, particularmente, na vivência diária das populações, desde a Idade Média. Associações de laicos, com uma forte vertente religiosa, no século XVIII estas organizações confraternais eram essencialmente dirigidas à assistência espiritual, zelando pela alma e à promoção do culto do religioso, nomeadamente do seu patrono, estando fortemente empenhadas na divulgação da fé e intensificação das práticas religiosas. Por essa época, em Estarreja, eram três as confrarias dedicadas a São Sebastião, instituídas nas igrejas paroquiais de Avanca, Beduído e Veiros. Segundo as Memórias Paroquiais de 1758 há uma “confraria do Senhor São Sebastião”9, em Beduído e uma “confraria de Sam Sebastiam”, em Veiros10. A referência à “Irmandade de São Sebastião” em Avanca está documentada na obra do P.e Luiz Cardoso, Diccionário Geográfico ou Notícia Histórica de todas as cidades, vilas, lugares e aldeias, rios, ribeiros e serras de Portugal e Algarve (1747-1751)11, não sendo referenciada pelo pároco memorialista, omissão assinalada por América Oliveira e Filomeno Silva: “causa estranheza que o P.e António de Oliveyra Frayam, reitor de Avanca, que a todo o Inquérito responde com rigor e desenvolvimento, tivesse omitido a resposta ao item”12. É, porém, a imaginária o núcleo mais representativo e expressivo das representações sebastianas no concelho, atestando a devoção de que é alvo no decurso dos séculos, bem como o facto de, no contexto e seguimento de uma tradição vinda dos inícios do cristianismo, as imagens religiosas funcionarem como forma de transmitir uma mensagem pedagógica orientada no sentido de encaminhar o comportamento dos devotos e de divulgar a fé cristã. Quanto às imagens veneradas nos templos concelhios, para além das que figuram nos altares das capelas sob a sua proteção, estão presentes a culto nas igrejas paroquiais de São Miguel de Fermelã, São Pedro de Pardilhó e São Bartolomeu de Veiros, as esculturas que importam para este trabalho, e nas quais observamos a sua figuração como jovem, a ser sagitado, segundo o modelo iconográfico do seu primeiro martírio, que dos tempos medievais até aos dias de hoje é o mais difundido, dominando nas suas representações escultóricas. A estas acrescem as imagens das matrizes de Santa Marinha de Avanca e São Tomé de Canelas, que não se encontram a culto, delas havendo notícia na obra de Nogueira Gonçalves13, que indica serem ambas esculturas datadas do século XVII, no caso da matriz Avanca esculpida em pedra de ança e na matriz de Canelas em madeira policromada14, que seguem o tipo iconográfico que evoca o momento do martírio pelas flechas. Na matriz de São Tiago de Beduído através do Inventário dos Bens Culturais de 1911 é confirmada a existência de uma imagem de São Sebastião, documentada através do arrolamento de “cinco 9  - Américo Oliveira e Filomeno Silva, Estarreja e Murtosa nas Memórias Paroquiais de 1758, p. 108. 10  - Idem, p. 143. 11 - P.e Luiz Cardoso, Diccionário Geográfico ou Notícia Histórica de todas as cidades, vilas, lugares e aldeias, rios, ribeiros e serras de Portugal e Algarve, tomo I, p. 662, cf. Américo Oliveira e Filomeno Silva, Estarreja e Murtosa nas Memórias Paroquiais de 1758, p. 75. 12  - Ibidem. 13  - A. Nogueira Gonçalves, Inventário Artístico de Portugal – Distrito de Aveiro - Zona de Norte, p. 19 e p. 26. 14  - A. Nogueira Gonçalves, Inventário Artístico de Portugal – Distrito de Aveiro - Zona de Norte, p. 19 e p. 26.

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setas de prata de São Sebastião”15, o que indica, também, tratar-se de uma escultura onde o Mártir é apresentado numa representação convencional decorrente do martírio das setas. Vida São Sebastião nasceu em Narbona, na Gália, no século III, mais foi criado e educado em Milão, no tempo dos imperadores Diocleciano e Maximiano. Mesmo professando a fé cristã, entrou para o exército romano, por volta do ano de 283, onde se veio a tornar oficial, capitão da Guarda Pretoriana, a guarda imperial dos imperadores16. No decurso das perseguições aos cristãos, ordenadas pelo Imperador Diocleciano, foi denunciado por reconfortar alguns cristãos, converter outros e por ser ele próprio cristão. Chamado à presença do Imperador recusa renegar a sua Fé, pelo que este ordenou que fosse supliciado atado a um poste, no centro do Campo de Marte, para o seu corpo ser usado como alvo para os arqueiros. Dado como morto pelos soldados que o abandonam, o seu corpo é recolhido por Santa Irene, viúva do santo mártir Castulo que, por compaixão, lhe quis dar sepultura. Porém, vendo que ele ainda estava vivo, levou-o para sua casa, onde tratou e curou as suas feridas. Restabelecido, Sebastião foi até à presença de Diocleciano onde denunciou as injustiças praticadas contra os cristãos. Este ordenou que o prendessem de novo e o flagelassem até à morte. O seu cadáver foi levado até à cloaca Máxima, para que os cristãos não lhe prestassem culto. Mais tarde, Sebastião apareceu em sonhos a Santa Lucila e, revelando onde estava o seu corpo, pediu-lhe para que os seus restos mortais fossem encontrados e depois sepultados nas catacumbas, «junto ao resto dos apóstolos Pedro e Paulo (vestigia Apostolorum)»17 . Culto São Sebastião é um dos grandes santos intercessores, popular em toda a Europa desde a Alta Idade Média, protetor da trilogia peste, fome e guerra, flagelos que, acrescidos, por fim, da morte, foram disseminados pelos quatro cavaleiros do Apocalipse18. O culto deste santo, que Réau considera o terceiro protetor de Roma19, a seguir aos apóstolos São Pedro e a São Paulo, teve como primeiro centro difusor o lugar da sua sepultura na Via Ápia, nas catacumbas onde se guardaram, até ao século IX, os restos mortais desses dois apóstolos. Por esta razão, passavam numerosos peregrinos pelo local do seu enterramento - noticiado no Coronógrafo do século IV e confirmado pelo Liber Pontificalis - tornando conhecida a memória 15  - Hugo Calão, Os inventários das Igrejas e Capelas das Paróquias dos Concelhos de Estarreja e Murtosa – Parte I. p. 61. 16  - Elizabeth Hallam, Os Santos, Lisboa, Centralivros, 1998, p. 86. 17 - Louis Réau, Iconografía de los Santos, P-Z/Repertórios, Barcelona, Ediciones del Serban, n.º 8. Tomo II/ vol, 5, 1997p. 194. 18  - Deolinda Maria Veloso Carneiro e José Manuel Flores Gomes – Os Santos Auxiliadores, in Deolinda Maria Veloso Carneiro e José Manuel Flores Gomes (concepção e coordenação) – OPERA FIDEI – Obras de Fé num Museu de História (Catálogo de exposição), Póvoa do Varzim, Câmara Municipal da Póvoa do Varzim - Museu Municipal de Etnografia e História da Póvoa do Varzim / Arciprestado de Vila do Conde - Póvoa do Varzim, 2002-2003, p. 171 19  - Louis Réau, Iconografía de los Santos, P-Z/Repertórios, p. 194.

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deste mártir, de tal modo que, aquando da edificação da basílica Apostolorum, no século IV, foi enquadrada em coligação uma capela em sua memória20. No século VII, época em que por sua intercessão, através de Deus, foram obtidos numerosos prodígios, o seu culto ganha novo vigor, atestado pela característica vontade de possuir as suas relíquias. Este facto levará à trasladação dos seus restos mortais, que permaneceram na BasílicaVaticana até 1218, altura em que por determinação do papa Honório III, a pedido dos monges cistercienses que guardavam a Basílica da Via Ápia, são restituídos21, onde se conservam na Basílica de São Sebastião Extramuros22. No decurso da Idade Média, as muitas lendas do seus milagres, alguns dos quais realizados ainda em vida, espalharam-se por toda a Europa, refletindo-se no aumentando do seu culto, tornando-o um dos mais poderosos taumaturgos, especialmente invocado contra os frequentes surtos pestíferos. A fama dos seus poderes taumatúrgicos, enquanto protetor contra a peste, será como refere Carlos A. Moreira Azevedo, foi o grande motivo para o crescimento espantoso do culto, havendo “quem atribuía ao tempo da Pandemia de Justiniano (542-610) o título de defensor pestilitatis23. Com efeito, o culto deste santo foi muito divulgado no Ocidente desde a Idade Média, época em que era invocado contra as epidemias. Em Portugal foi, igualmente, pela sua função de advogado contra a peste, que o culto se difunde nos séculos XIV e XV, época em que foram muito frequentes os surtos epidémicos. No século XVI, na sequência das muitas epidemias, que por diversas vezes assolaram o país, multiplicaram as ermidas e capelas sob a sua protecção, tal como as preces e as intercessões ao Santo Mártir, datando, ao que tudo indica, de inícios dessa centúria - cerca de 1505 - o voto que os cristãos de todo o Condado da Feira fizeram, prometendo a dádiva de um pão doce, a que chamavam fogaça, em troca de auxílio contra a peste, dando origem à secular Festa das Fogaceiras em honra de São Sebastião, celebrada anualmente, desde então, em Santa Maria da Feira24. Como nota refira-se que, à época, uma parte da paróquia de Avanca –na qual São Sebastião, com capela e irmandade própria, fazia parte das devoções maiores da paróquia – integrava o termo da Vila da Feira, sede do Condado. À medida que estes flagelos da fome, das epidemias e da guerra se vão dissipando e deixam de ser as grandes aflições do homem, o seu culto, celebrado a 20 de Janeiro, vai perdendo importância na memória colectiva das nossas gentes. Contudo, especial gratidão e confiança foram depositadas no Mártir, no período das guerras do Ultramar. O agradecimento do dom da vida, expresso pelos militares quando regressavam, fez recrudescer o culto a São Sebastião nessa altura25. 20 - AZEVEDO, Carlos A. Moreira, Contributo para o estudo do culto e da iconografia de São Sebastião em Portugal, in Carlos A. Moreira Azevedo (coordenação) – O Mártir: Corpo Ferido na Árvore (Catálogo da exposição comemorativa dos 500 anos da Festa das Fogaceiras em honra de São Sebastião), Santa Maria da Feira, Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, 2005, p. 9. 21  - Carlos A. Moreira Azevedo, Contributo para o estudo do culto e da iconografia de São Sebastião em Portugal, p. 10. 22  - Louis Réau, Iconografía de los Santos, P-Z/Repertórios, p. 194. 23  - Carlos A. Moreira Azevedo, Contributo para o estudo do culto e da iconografia de São Sebastião em Portugal, p. 10. 24  - Maria Clara de Paiva Vide Marques, São Sebastião. Memórias e Devoções na Terra de Cambra. Vale de Cambra: Paróquias do Concelho de Vale de Cambra, 2015, pp. 13-14. 25  - Carlos A. Moreira Azevedo, Contributo para o estudo do culto e da iconografia de São Sebastião em Portugal, p. 33.

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Iconografia A ampla devoção ao Mártir teve reflexos na arte. Como nos diz Carlos A. Moreira Azevedo, “a figura de São Sebastião, tão admirada pelo seu taumaturgo e tão fascinante pelas pitorescas e maravilhosas narrativas populares da sua vida tornou-se frequente na arte”26. As primeiras figurações, pré-românicas, “apresentam-no como mártir hierático, proporções robustas, vestido de toga, coroa na mão”27, difundindo-se, nos séculos VII e VIII, a figuraço de soldado mártir, segurando nas mãos uma cruz, uma palma ou uma coroa. Na Idade Média será um cavaleiro, sustendo um arco e uma flecha ou um jovem nobre, trajado à época, sustendo uma cruz e uma flecha, simbolizando esta última o atributo do seu primeiro martírio. Contudo, como refere Louis Réau, São Sebastião encontra-se maioritariamente representado como um jovem, quase sempre de pé, atado a uma árvore, a um poste ou a uma coluna, tendo como atributo as flechas28. A tendência para esta figuração do jovem Sebastião, cheio de beleza a ser sagitado vai impor-se a partir do século XIV, sendo promovida na época do Renascimento, que resgatando a imagem medieval de simples mediador militar, o humanizou, conferindo-lhe uma representação e uma simbologia que definirá doravante, e em grande medida, o significado deste “Príncipe dos Mártires”: (…) atado ao tronco de uma árvore, expondo o corpo sagitado, é metáfora das comunidades que se lhe dedicam, sendo o seu corpo, o conjunto dos seus habitantes e as flechas, o símbolo do martírio da peste, que a todos atinge sem distinção.

Atravessando os séculos, uma das singularidades do seu culto, advém justamente da «transversalidade temporal, segundo um modelo iconográfico medieval raro por permitir a quase total nudez do corpo»29, que será executado de acordo com as interpretações dos artistas, motivadas pelas correntes estéticas de cada época. A este propósito citam-se as palavras de Nuno Resende: Poucos mártires sobreviveram à luta da Fé com a civilização e o progresso, construindo-se e reconstruindo-se numa sucessão de símbolos e imagens moldadas segundo o indivíduo que as moldou e o Tempo em que este se encontrava. Outrossim, poucos foram os que resistiram ao crivo reformista da Igreja que foi erradicando dos santorais personagens cuja hagiografia pouco edificante parecia decalcada de mitologias pagãs30.

26  - Carlos A. Moreira Azevedo, Iconografia de São Sebastião, in Estudo de Iconografia Cristã, Vila Nova de Gaia, Fundação Manuel Leão, Colecção Artes & Artistas 5, 2016, p. 113. 27  - Carlos A. Moreira Azevedo, Iconografia de São Sebastião, p. 114 28  - Louis Réau, Iconografia de los Santos, P-Z/Repertórios, pp. 196 e 197. 29  - Susana Nogueira, São Sebastião, in ARTE SACRA NO CONCELHO DE CAMPO MAIOR-Inventário Artístico da Arquidiocese de Évora. Évora: Fundação Eugénio de Almeida, Setembro de 2013, p. 44. 30  - Nuno Resende, São Sebastião, n.º de catálogo 9, p. 126.

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Aqui se pode referir que, no concelho de Estarreja, é precisamente o tema do martírio por sagitação do Santo soldado romano, que se encontra nas suas representações, na continuação da tradição que, desde o século XV, é o modo mais corrente e predominante da sua figuração até aos dias de hoje. IGREJA DE SÃO MIGUEL ARCANJO Fermelã Na matriz de Fermelã, a imagem de São Sebastião, intercessor-guerreiro e “Príncipe dos Mártires”, tem a honra de figura no retábulo-mor, no lado Evangelho, ombreando com outro intercessor-guerreiro, o Arcanjo Miguel, “Príncipe das Milícias Celestes”, que como orago, sob cuja protecção e intercessão se coloca a paróquia, é o primeiro culto do lugar, presidindo no altar principal da igreja, no lado da Epístola, por ser prioritário em relação ao do Evangelho31.

31  - António Cruz Leandro e Maria Clara de Paiva Vide Marques, Fé e Esplendor. A Arte Retabular das Igrejas Paroquiais de Estarreja, Estarreja, Câmara Municipal de Estarreja, 2016, p. 62

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A imagem é um exemplo do momento da sagitação de São Sebastião, num tipo de figuração em conformidade com os modelos largamente repetidos desde os tempos medievos, que mostra o Mártir como um jovem imberbe, de pé, atado à árvore martirial, aqui figurada sob a forma de um tronco verdejante, de ramos decepados e pontuados com folhagem, que brota de uma plataforma rochosa, assente numa base quadrangular, marmoreada. Em posição frontal, o corpo esguio e bem proporcionado, revela um bom tratamento anatómico, visível nos vigorosos músculos, no tronco com as costelas bem definidas, na cintura fina e no ventre ligeiramente proeminente na zona inferior. A configuração longilínea é sublinhada pelos alongamentos impostos pelo braço direito, arqueado sobre a cabeça, preso pelo pulso por grossa corda, revelando tensão muscular e pelo braço esquerdo descaído ao nível da cintura e fletido, preso ao tronco junto ao ombro, na zona do antebraço, também, por grossa corda. O hieratismo da posse idealizada do jovem santo é quebrado também pela flexão da perna esquerda, avançada a sustentar o corpo, em contraposto à direita, que se encontra fletida e com o pé recuado para junto do tronco, conferindo ao corpo uma ligeira torção, formando gracioso movimento sepertinato. O rosto ovalado, emoldurado farta cabeleira de ondeado vincado e largos caracóis nas pontas, possui feições pueris e graciosas, de faces rosadas, pequena boca, nariz retilíneo e olhos amendoados direcionado para baixo. Contrastando com o suplício representado, a expressão suave e impassível não deixa transparecer a dor do momento. Enverga apenas um cendal branco descaído na zona do ventre, marcado por refegos e pregas requebradas, que se dispõe de forma dinâmica sobre o quadril, do lado esquerdo, enlaçado à cintura por corda, com a ponta caída num repuxado suspenso, escalonado e dinâmico. No corpo são visíveis as feridas ensanguentadas, abertas pelas cinco setas que perpassaram o seu corpo, um número preconizado e consistente com os cânones medievais, que estabelece um paralelismo com as cinco chagas de Cristo. [ 183 ]


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IGREJA PAROQUIAL DE SÃO PEDRO Pardilhó A imagem de São Sebastião da matriz de Pardilhó está colocada sobre mísula, do lado direito, no retábulo colateral do lado do Evangelho, consagrado a Nossa Senhora do Rosário32.

Numa repetição do modelo que evoca o passo do martírio pelas flechas, a presente imagem apresenta o jovem Sebastião de pé e em posição frontal, amarrado ao tronco do martírio, de tonalidades verdes e ramos truncados, que se eleva sobre base quadrangular, marmoreada. 32  - António Cruz Leandro e Maria Clara de Paiva Vide Marques, Fé e Esplendor. A Arte Retabular das Igrejas Paroquiais de Estarreja, p. 78

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O corpo apolíneo e anatomicamente proporcionado, de configuração alongada, sublinhada por caixa torácica saliente e cintura fina, assume ligeira torsão, provocada pela cabeça inclinada sobre o ombro esquerdo e pelo ténue avanço da perna direita, sustento o peso do corpo, em contraposto à flexão da perna esquerda, recolhida para trás, com o pé recuado junto ao tronco. Fixo no pulso por corda ao tronco, o braço direito encontra-se erguido ao nível da cabeça, arqueado e musculado devido ao esforço da postura, enquanto o esquerdo está caído e dobrado por trás da cintura, numa composição que justifica o recuo do pé, em perfeita correspondência, no lado oposto, com o desenho sinuoso do corpo, tirando o melhor proveito dos alongamentos, impostos pela posse idealizada. Tem o rosto voltado para cima, emoldurado por farta cabeleira de ondeado vincado e caracterizado pelas feições juvenis e graciosas, com pequena boca, nariz retilíneo e olhos amendoados direcionados para o Alto em contemplação mística. Como muitas vezes é comum, mostra um semblante sem sinais de sofrimento, exibindo uma expressão serena. Seminu, veste apenas um cendal branco, de acentuado barroquismo, marcado pelo volumoso e vincado pregueado, que enlaça à cintura por frondoso nó ligeiramente à esquerda, de sinuosas e angulares pontas caídas. O corpo do Mártir, ao contrário da expressão sem sofrimento da sua fisionomia, aparece trespassado por setas, que abriram chagas das quais fluem fios de sangue, sendo visíveis os estigmas deixados pelas cinco setas – o clássico número preconizado pelos cânones e usual nas suas representações imagéticas –, entretanto desaparecidas. [ 185 ]


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IGREJA PAROQUIAL DE SÃO BARTOLOMEU Veiros Na matriz de Veiros, a imagem de São Sebastião repousa sobre mísula, do lado esquerdo, no retábulo da nave, do lado do Evangelho, dedicado ao Sagrado Coração de Jesus33.

33  - António Cruz Leandro e Maria Clara de Paiva Vide Marques, Fé e Esplendor. A Arte Retabular das Igrejas Paroquiais de Estarreja, p. 107.

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Glosando na essência o arquétipo do modelo iconográfico da sagitação, a imagem em apreço apresenta o Santo mártir romano como um jovem imberbe, de pé, atado a um verdejante tronco martirial, de ramos podados, que brota de um montículo, também, verdejante, e que se eleva sobre base quadrangular, marmoreada. Em posição hierática, a estrita frontalidade da postura é quebrada pelo ligeiro avanço da perna esquerda, em contraposto à direita, com o joelho fletido e o pé voltado para o lado. No corpo apolíneo e robusto, o tratamento anatómico simplificado e sem definição pormenorizada, é atenuado pelo caixa torácica saliente e pelo retesar dos músculos na zona da garganta, articulados com o movimento da cabeça, virada para o Alto. Os braços, com esboço de musculatura condicionada pelo posicionamento, estão atados nos pulsos, por grossas cordas, a dois galhos do lenho, dispostos de modo a servir de esteio, estando o direito erguido, acima da cabeça, e o esquerdo para baixo, junto à cintura. Emoldurado por cabelo curto, trabalhado em ondeado a cair sobre os ombros, possui um rosto ovalado, de feições juvenis marcadas por pequena boca carnuda, faces rosadas, nariz retilíneo e olhos amendoados. De olhar dirigido para o Além, o Mártir deixa transparecer no semblante uma expressão de leve agonia, e em simultânea mística, atitude que contrasta com o suplício da sagitação representado. Traja somente um cendal branco, entrelaçado à cintura, do lado direito, por um volumoso nó, de amplas pontas escalonadas, a cair de forma sinuosa. O cendal é trabalhado em amplas pregas, vincadas e requebradas, que conferem algum dinamismo ao conjunto. O corpo aparece cravejado por seis flechas douradas, com haste fusiforme e duas plumas de núcleos estriados e incisos no sentido transversal, número que embora não consistente com os cânones preconizados, cinco, é também usual nas representações de São Sebastião.

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CONCLUSÃO Ontem, como hoje, o imprevisível da existência, marcado por guerras, fome, doença e epidemias, faz parte da vivência das comunidades, constituindo motivo para uma profunda religiosidade. São Sebastião é um dos principais taumaturgos do hagiólogo português em especial pelo poder intercessor que lhe era imputado nas questões relacionadas com as pestes, facto que explica a ampla devoção e popularidade, que perpassando os séculos é atestada pela abundância de imagens numa representação continuada até aos nossos dias, segundo modelos consagrados durante a Idade Média, que apresentando o tema do martírio por sagitação do Santo se mantiveram praticamente inalterados, fazendo sobressair o jovem oficial romano mártir, no contexto do hagiológico católico, por manter a quase total nudez do corpo. No concelho a imagem de S. Sebastião encontra-se a culto nas igrejas de Fermelã, Pardilhó e Veiros e em todas os escultores seguiram o este modelo de representação, sendo o Mártir prontamente reconhecível enquanto jovem, mesmo imberbe, desnudo, com o corpo apolíneo atado a uma árvore, a sofrer o suplício das flechas, martírio de que não pereceu, mas que se impôs nas suas representações. Igualmente nas três imagens, o rosto apresenta uma expressão de êxtase místico, numa iconográfica estabelecida de acordo com a aplicação essencialmente pedagógica e pragmática da imagem, que contradiz o sofrimento vivido pelo “Príncipe dos Mártires”. As variantes encontram-se no modo como está atado ao tronco martirial, estando preso com cordas pelos pulsos, nas imagens de Pardilhó e Veiros, e pelo pulso e pelo antebraço na de Fermelã. Quanto ao seu atributo peculiar, as flechas, observamos que nas imagens de Fermelã e Pardilhó são cinco as setas, que o feriram, número estabelecido pelo cânone vigente na sua iconografia, numa simbólica analogia com as chagas de Cristo, enquanto em Veiros são visíveis seis setas, cravadas em várias partes do seu corpo, número também muito habitual nas suas imagens e mais próximo da narrativa da Legenda Áurea que, relatando a conversão e martírios deste santo, afirma ter o Mártir ficado “crivado de setas a ponto de parecer uma paliçada”34. Refira-se, ainda, a propósito deste atributo que apenas o São Sebastião de Veiros conserva as flechas da sagitação, tendo já as imagens de Fermelã e Veiros perdido as setas que trespassavam o seu corpo.

34  - Tiago de Voragine, Legenda Áurea, Porto, Editora Civilização, 2004, Tomo I, pp. 126-130.

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ROSA MARIA RODRIGUES

EGAS MONIZ E O JOGO Rosa Maria Rodrigues* Egas Moniz1 deve ser incluído entre os grandes vultos da cultura portuguesa da 1ª metade do século XX. Para melhor ilustrar esta afirmação basta atender à extensíssima bibliografia2, com destaque para o prefácio3 do livro “História das Cartas de Jogar” do seu parceiro de Boston de toda a vida Henriques da Silva. É um notável trabalho de investigação sobre o tema, magnificamente ilustrado, publicado pela Ática em 19424 no qual é possível estudar e analisar as diferentes matérias que resultam das suas conclusões, reflexões ou considerações como médico, investigador, biógrafo ou mesmo crítico de arte, revelando minuciosa e apurada pesquisa bibliográfica, sensibilidade, sentido crítico e rigor histórico.

O prefácio de Egas Moniz desta obra, “rebusca” pela primeira vez, subsídios para a história das cartas de jogar em Portugal, os seus diferentes grafismos e as diferentes interpretações dos baralhos que passam pela crítica social e política, cartomancia, tendências musicais, entre muitos outros temas bem como analisa o progresso da sua impressão. Egas Moniz numa primeira parte evoca sua vida familiar e coimbrã, em jeito de autobiografia de jogador, bem como num discurso intimista, quase de confraria, relata o gosto de um grupo de amigos por este Jogo de cartas e faz uma narrativa minuciosa da história das cartas de jogar em Portugal, dos diplomas régios, dos fabricantes de cartas de jogar e como presta justa homenagem a parceiros de jogo já falecidos.5 * Licenciada em História. Diretora da Casa Museu Egas Moniz, com investigação e publicações na temática Moniziana 1  - António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz (1874-1955). Clínico, Político, Investigador, Ensaísta, Professor e Cientista, inventou a Angiografia Cerebral em 1927 e foi galardoado com o Prémio Nobel a 27 de outubro de 1949, pelos seus trabalhos no domínio da Leucotomia Pré-Frontal. 2  - Segundo João Lobo Antunes em “Egas Moniz: Uma Biografia”, na bibliografia científica e literária de Egas Moniz editada em 1963 pelo Centro de Estudos que tem o seu nome, constam 370 títulos. A breve nota introdutória a esta publicação salienta, avisadamente, que a divisão de obra multímoda de Egas “em diversos aspetos: científico, divulgação, biográfico, crítico de arte ou puramente literário será sempre um tanto arbitrária, de critério duvidoso e por vezes seguramente incorreta”. Egas escrevia bem e escreveu muito. Naturalmente são os seus trabalhos científicos, sobretudo os que se referem à angiografia cerebral, pela abundância e novidade da informação, os que mais interesse têm despertado aos estudiosos da sua obra. O que não é habitualmente salientado, é como aqueles são modelares na minúcia e na precisão das observações, na objetividade do relato, no rigor da prosa, por outras palavras, seja-me perdoada a franqueza, tão “anglo-saxónicos”. Mas é notável como Egas conseguiu escrever em vários e tão distintos registos: o do orador parlamentar, combativo na afirmação das suas ideias, do narrador bucólico, naturalista, à maneira de Júlio Dinis que ele tão bem estudou, o do académico palaciano e, como disse, do cientista enxuto de palavras, sem ornamentar factos ou observações. 3  - Este prefácio, tem a curiosidade de ocupar 196 páginas. 4  - Este volume (verdadeira edição de luxo), podia ser adquirido à data da sua publicação na sede da Editora Ática por 100$00 e enviado à cobrança pelo correio (incluindo porte e embalagem) para Continente e Ilhas Adjacentes, Colónias e Brasil, acrescido da importância de 5$00. 5 - Conselheiro Abel de Matos Abreu, General Alberto Carlos da Silveira, Dr. Alberto Pedroso, Dr. Álvaro Bettencourt, Dr. António de Almeida Dias, Conselheiro Artur Alberto de Campos Henriques, Dr. Artur de Carvalho, António Cirne,

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Na Infância Foi com o Tio Abade6 que Egas Moniz tomou gosto pelos jogos de cartas que foram sempre o seu passatempo favorito. O Tio Abade gostava de jogar o voltarete7e todas as semanas se deslocava a Avanca, dado em Pardilhó não haver parceiros para o mesmo. Nas partidas na Casa do Marinheiro participavam, entre outros, o Abade, o Padre que ensinava Miguel e o Dr. João Valente, licenciado no Porto. Desta fase ouçamos o seu relato: Passei a minha infância a ver jogar ao voltarete, o jogo predilecto dos meus velhos, todo cerimonioso nas falas, jogo de bom tom, muito apropriado para aldeia, por não precisar mais de três parceiros, embora se possa jogar com quatro, o que muitas vezes sucedia em casa dos meus pais. Quantas vezes eu e o meu irmão Miguel suportámos a noitada até que o sono ou as ordens maternais interrompessem a nossa atenção e interesse! Nada percebíamos do desenvolvimento da partida que rolava entre passes, licenças, preferências e voltes; mas tomávamos posição nos ganhos da jogatina, primeira aspiração da petizada a quem apenas interessa a finalidade. O meu pai não jogava, assistia e discutia as mãos. Meu irmão, dois anos mais novo do que eu, era pelo seu mestre primário, o padre Manuel; eu pelo meu tio e padrinho, abade Sá Freire, amigo devotadíssimo, pilar, mestre da minha educação que, desde a infância, tomou a seu cargo. Os exemplos frutificam e assim, com os criados e depois com o meu irmão, acamaradava em lutas renhidas de burro8, bisca9 de três, bisca de acuso e não sei que outras espécies de brinquedos infantis, primeiros passos dados na senda que me havia de levar a jogos de maior envergadura. Meu irmão faleceu adolescente e só eu pude aproveitar dessa primeira aprendizagem que imprime carácter. Não é indiferente esta prática no alvorecer da vida. Ainda hoje, mesmo entre bons jogadores, é fácil reconhecer os que tiveram este tirocínio dos que, só mais tarde, aprenderam a jogar, revelando, por vezes, vocação superior aos que na infância e na primeira mocidade gastaram baralhos. Uma pequena nota: os jogadores tardios, com pouca prática, prendem as cartas na mão esquerda com excessiva força, de sorte a vincá-las, o que não sucede aos profissionais de origem infantil. Conselheiro António Maria Vieira Lisboa, António Roque da Silveira, Dr. António Tavares Festas, Dr. Augusto Camossa Saldanha, Engenheiro Belchior Machado, Dr. Caetano Beirão, Dr. Francisco de Meireles Leite Pereira de Abreu e Sousa, Francisco Ribeiro da Cunha, General Francisco da Silva Reis, Almirante Higino de Mendonça, Guedes Infante, Coronel João Amável Granger, Dr. João Barral, Dr. Joaquim Crisóstomo da Silveira Júnior, Major José Alves Cabral Sacadura, Conselheiro José de Azevedo Castelo Branco, José Cândido Freire, Dr. José Osório Saraiva, Dr. José Rovisco Pais, General Lobo Alves, Coronel Lourenço Caldeira Lobo Cayola, Engenheiro Manuel Maria de Oliveira Belo, Almirante Martinho Montenegro, Dr. Mendonça David, Dr. Miguel Horta e Costa (Barão de Santa Comba Dão), Dr. Miguel dos Santos, General Paulino António Correia, Roberto Pegado, Dr. Sidónio Pais, Conselheiro Silvino da Câmara, General Tamagnini de Abreu, Virgílio Teixeira. 6 - Caetano de Pina Rezende Abreu de Sá Freire (Abade de Pardilhó), o responsável pela formação moral e intelectual de Egas Moniz. 7  - Segundo Fernanda Frazão na obra Fontes para a História dos Jogos em Portugal, o voltarete é um jogo de cartas em que o feito volta um trunfo ou o levanta da baralha ou o declara seu árbitro quando se faz só, sem ir à baralha. Este jogo sucedeu no tempo à arrenegada, ou renegado, e homem, tendo grande voga no século XIX. 8  - Segundo Fernanda Frazão na obra “História das cartas de jogar em Portugal e da Real Fábrica de cartas de Lisboa”, o burro é um jogo de cartas muito vulgar (burro em pé, burro deitado). 9  - Segundo Fernanda Frazão na obra Fontes para a História dos Jogos em Portugal, a bisca é um jogo de cartas e é o antepassado do besigue.

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ROSA MARIA RODRIGUES

Dos tempos de estudante de Coimbra diz-nos Egas Moniz10: Há meio século, Coimbra, sem os de hoje, tinha a vida animada das vésperas de feriado, às quartas e sábados, em que a Baixa regurgitava de capas negras e a alegria esfuziante dos rapazes do meu tempo se manifestava pelos diversos centros de reunião. Os viciosos do jogo, e só a estes quero referir-me, perdiam-se pelas casas de tavolagem onde já havia roletas a afastar os parceiros do Monte, jogo de azar do mais típico colorido português. Durante a cartada acudiam os provérbios adequados e as citações históricas, em que eram relembrados nomes dos frequentadores, de outras gerações, com tradição naquelas casas. Não se conhecem as origens do Monte11, a que vulgarmente sói chamar-se Batota12 mas ouvi dizer que Viseu e Vila Real disputam, de há muito, a sua paternidade. Seja qual for, o Monte formouse em Coimbra. Ali se doutorou, logrando o máximo aperfeiçoamento. Ou não fosse Coimbra a severa acrópole dos sábios, nas ciências e nas artes! Fui iniciado nas subtilezas deste jogo, levado pela mão duma amiga dum companheiro13 que professava o culto das suas belezas, até mesmo quando a sorte lhe adversa, numa casa vizinha da república, em que o velho Jacó carteava para os ingénuos num recinto recuado do seu modesto cafébilhar. Depois, acrescido em conhecimentos, frequentei os estabelecimentos do Salvador e do Pereira, um venerando cidadão de barbas e perfil aristocrático, que estanciava perto do Hospital. Todas as noites recebia os amigos e inimigos que desejassem entregar-lhe as mesadas. Servia primeiro a roleta como hors d’oeuvre, mas o grande torneio estabelecia-se em torno do alvor, nos saltos, nas barrigas e nos micos.Todos os interessados se mantinham atentos, presos da sucessão das cartas, com explosões, mais ou menos indiscretas, de bárbaras imprecações. O que o simpático Pereira ouvia dos que lhe tinham levado os paternais haveres não pode aqui ser relatado. Um dos interlocutores, que ainda hoje nos acompanha nas vicissitudes do Boston, fazia-lhe discursos de uma violência que excedia o mais cruel e descaroável libelo acusatório. Para fugir à tentação sempre funesta daqueles templos de perdição, muitos académicos, desiludidos daquelas lides, recolhiam-se à protecção dos jogos de vaza, em que se consumiam as vésperas dos feriados, e até das aulas, sem prejuízos comparáveis. Segui por esse caminho salutar, furtando-me, o mais possível, à frequência das casas de tavolagem. O jogo da vaza14 é um predicado que tem cotação na vida moderna. Deriva da educação que, muitas vezes, vem da infância, e outras das necessidades 10  - Texto extraido do Prefácio do Tratado do Jogo do Boston da autoria de Egas Moniz, páginas 12 a 14. 11  - Segundo Fernanda Frazão na obra Fontes para a História dos Jogos em Portugal, monte é um Jogo de azar em que o banqueiro coloca, abertas, sobre a mesa, quatro cartas tiradas do baralho, e os participantes apostam qual delas vai sair primeiro repetida na sequência do jogo. 12  - Segundo Fernanda Frazão na obra Fontes para a História dos Jogos em Portugal, batota é um jogo de azar proibido, todo aquele jogo em que não há lealdade. 13  - Dr. Alfredo Costa, falecido em Africa, espírito de rara elegância e dedicação. 14  - Segundo Fernanda Frazão na obra Fontes para a História dos Jogos em Portugal, vaza é em todos os jogos, quando a carta que eu jogo, é superior à dos outros jogadores.

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impostas pelas exigências da sociedade.Talvez seja exagero dizer-se que tem má velhice quem não sabe jogar, mas o que pode afirmar-se é que o jogo da vaza é um passatempo que concorre, e muito, para suavizar o desgaste causado pelo correr dos anos. O jogador de cartas que preze o seu bom nome tem de adquirir maneiras correctas e possuir o domínio de si próprio, qualidades utilizáveis na vida corrente. Sirva de compensação aos ásperos comentários, tantas vezes sofridos pelos que se deleitam com as combinações dos naipes e seus elementos. As partidas de Boston de Egas Moniz Segundo José Henriques da Silva15, em 1923, o Dr. António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, que se formou em Medicina na Universidade de Coimbra em 1899, ficando como professor da Faculdade, donde mais tarde passou para a Faculdade de Medicina de Lisboa, antigo deputado, ministro e representante de Portugal em Madrid, orador de grande distinção, várias vezes presidente da Academia das Ciências e que fora um dos frequentadores das Partidas do falecido Dr. Barral, teve para nós a felicíssima ideia de abrir os salões do seu esplêndido palacete na Avenida Luiz Bivar, que é um verdadeiro museu, rico de preciosidades, aos jogadores daquela Partida, para numa reunião semanal que tem sido sempre às sextas-feiras. Desde então a casa do Dr. Egas Moniz é a meca dos amadores de Boston, porque os que não são de Lisboa têm de lá ir pelo menos uma vez na vida (...) O Dr. Barral congregou um grupo de jogadores que não tinham ponto de reunião e assim salvou o Boston da extinção que os ameaçava. O Dr. Egas Moniz não só evitou a dispersão desse grupo como ainda faz esforços para assegurar a sua continuação com uma geração nova (…). Deve-se incontestavelmente a estes dois fervorosos amadores a sobrevivência do jogo do Boston em Lisboa. Pode dizer-se que não há Boston em Lisboa fora desta partida. Se se joga ocasionalmente noutra parte, é sempre com parceiros daquele grupo (...). Há na partida de Egas Moniz uma curiosidade que não distinguiu nenhuma outra, talvez porque se dava nela um fenómeno que as outras não conheceram. Todos os jogadores perdiam e se lastimavam e não ganhava ninguém Este insólito estado de coisas pedia averiguação e por isso em 1929, criou-se um Serviço de Estatística de Ganhos e Perdas (…) Mas não quero deixar sem especial referência as duas pequenas festas com que o Dr. Egas Moniz celebra a abertura e o encerramento de cada época graciosamente presididas pela sua Esposa, a Senhora D. Elvira de Macedo Dias Egas Moniz, por cuja bondade e encanto de maneiras os amigos do seu Marido lhe são respeitosamente gratos. Nessas ocasiões o Dr. Egas Moniz dispõe-nos em volta da sua mesa, adornada copiosamente com tudo o que a Arte tem inventado para estimular o apetite – e castigar alguns de nós com o suplício de Tântalo. Porque os anos, infelizmente, têm passado e já não são poucos os que, como eu ali se apresentam com um estômago que só vive de recordações.

15  - Silva, José Henriques, Edições Ática 1942, Tratado do Jogo do Boston

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Jogador exímio, Egas Moniz reunia semanalmente para uma partida de Boston16 com os seus parceiros17 “Numa fase de intenso trabalho a que me dediquei, era o repouso semanal obrigatório que me afastava uma noite, salutarmente, das lucubrações científicas. Se a partida fosse em casa amiga, muitas vezes faltaria absorvido em cogitações em que passava dia e noite. Este oásis de repouso semiforçado por ter de receber parceiros, trouxe-me grandes benefícios”18. Acerca destas partidas e da sua “magia” deixo este belíssimo texto, que Egas Moniz não leu (faleceu antes deste ser terminado), mas aqui fica como preito de homenagem a todos os companheiros de uma vida para o conhecimento de todos. VINTE E CINCO ANOS de “BOSTON” Disse eu um dia ao Prof. Egas Moniz que tencionava fazer um relato do que tinham sido, na sua casa, as partidas de “boston” desde que começara a tomar-se apontamento dos resultados, ou seja desde 1929, data em que passou a recolher-se a nota do que cada parceiro ganhava ou perdia, isto porque nem sempre coincidiam as informações com o que se procurava apurar no fim de cada partida. O Prof. Egas Moniz achou a ideia excelente e, de vez em quando perguntava se o trabalho ia adiantado. Na véspera de falecer – 12 de Dezembro de 1955 – disse-me pelo telefone: “Então, senhor secretário geral, quando aparece esse relatório?”. (Como sabem, chamava-me, na brincadeira, o secretário geral do “boston”). Prometi apresentá-lo dentro de quinze dias, mas o enorme desgosto que sofri umas horas depois tirou-me o ânimo para acabar o que começara com tanto entusiasmo. Estive, até, para inutilizar os apontamentos já coligidos. Mas ainda bem que o não fiz, pois que, embora mal alinhavado, o que aqui fica constituirá mais uma recordação do que foi o convívio que tivemos com o nosso querido Amigo.

16  - Todos os jogos têm a sua história, a do Boston sobreleva, porém, a todas as demais, porque assenta num facto bélico. Quando a cidade de Boston esteve cercada, na guerra da independência da América, os americanos resolveram não jogar o Whist por ser jogo inglês, e entreter as horas de ócio do cerco com outro da sua invenção. Assim nasceu o Boston, que se joga com um baralho de 52 cartas e quatro parceiros, da esquerda para a direita, quer dizer joga de mão o jogador sentado à esquerda do que dá as cartas. 17  - As temporadas de Boston ocorriam entre novembro e julho e realizavam-se à sexta feira e em 1955 estes eram os parceiros de Egas Moniz Prof. Dr. Aleu Saldanha Cruz, Eng.º Alfredo Rego Barata, Eng.º Aluino Martins da Silva, Dr. António Abranches, Dr. António Castanheira de Figueiredo, Eng.º António de Mello Arbués Moreira, Dr. António Pinto Basto, Cons.º Armando Cancella de Abreu, Eng.º Artur de Campos Henriques, Dr. Bernardo de Matos, Eng.º Boaventura Bello, Eng.º Carlos Alves, Prof. Dr. Carlos Pinto Trincão, Cons.º Francisco Patrício, Henrique Vieira da Silva, Eng.º Hermann Israelskerdjff, Dr. Jorge Metello, Eng.º José Custódio Nunes, Júlio Cayolla, Eng.º Luís de Castro Ferreira de Carvalho, Eng.º Luís Maria de Mello e Sabbo, Dr. Manuel Amador Valente, Manuel Tavares Festas, Dr. Paulo Cancella de Abreu, Dr. Paulo Menano, Prof. Dr. Pedro de Almeida Lima, Dr. Victor Teixeira, João Pedro de Saldanha Gouveia. 18  - Egas Moniz, Prefácio da História das Cartas de Jogar, página 17.

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oOo Estão na memória de todos as homenagens prestadas à figura do eminente sábio. Grande professor, hábil diplomata e ilustre académico. Justíssimas elas foram, porque notável foi a obra realisada pelo Prof. Egas Moniz em cada um desses sectores. A concessão do Prémio Nobel, se constitui a consagração universal do Mestre, foi também para nós portugueses, motivo do mais patriótico orgulho. Têm sido postas em relevo as várias facetas da sua inconfundível personalidade, sobretudo no campo científico e no meio literário. Não se ficou, porém, um outro atributo do seu tão apreciável modo de ser: - o do chefe de família, o do homem dentro da sua casa. Vou tentar fazê-lo e, se a isso atrevo, é porque estas despretensiosas linhas, ditadas pelo coração, se destinam a ser lidas só por duas dúzias de pessoas, que tantos são os parceiros que ainda existem. oOo O Prof. Egas Moniz, como poucos, o prazer de ver à volta de si e de sentar à sua mesa a sua reduzida família e da sua Mulher, a companheira que, com extrema dedicação, acarinhando-o nos momentos dolorosos e sentindo com êle as horas de satisfação e glória, soube torna-lo feliz. Aproveito o ensejo para, em nome de todos nós, lhe render as mais respeitosas homenagens. Mas não era só da família que o Mestre gostava de rodear-se. Quatro pessoas eram permanentemente convivas dos jantares das sextas feiras.Tivémos a boa sorte de fazer parte desse grupo: D. Maria Cândida Metello, Dr. Jorge Metello, seus sobrinhos, meu saudoso irmão Alexandre e eu. Os outros parceiros eram também convidados alternadamente, por forma a obsequiar todos. E, se era um grande prazer espiritual assistir a esses jantares, onde, em conversa cheia de interesse, pontificava a sua invulgar inteligência e vasta cultura, é de justiça também frisar que eles eram excelentes. É que o Dr. Egas, como acontecera ao também grande professor Babinsky, foi um “gourmet”, apreciando a fundo a boa comida e sabendo escolhê-la ao ponto de tornar a sua mesa uma das mais afamadas de Lisboa. Com a colaboração da Senhora D. Elvira, recebia fidalgamente na sua casa.Tinha sempre para os seus convidados um sorriso acolhedor, uma palavra amiga e uma boa disposição que até representava, por vezes, verdadeira coragem, pois havia momentos em que a terrível gota o atormentava com dores intensas. Conseguia, porém, disfarçar, para não incomodar os parceiros, e para todos mantinha o mesmo ar de simpatia e afecto. Não trocava as suas partidas das sextas feiras por qualquer outro divertimento, embora, raro e interessante. Só fóra desses dias ia a S. Carlos, a concertos e a outros bons espectáculos, que, aliás, muito apreciava. As sextas feiras eram exclusivamente para os seus parceiros de “boston”. De educação primorosa e, consequentemente, de trato muito fino, o Prof. Egas era encantador para os seus amigos, era, repito, um verdadeiro fidalgo. Com satisfação, embora algumas vezes com sacrifício da sua abalada saúde, aceitava os convites [ 197 ]


ROSA MARIA RODRIGUES

dos parceiros para um outro jantar no Aviz ou Avenida Palace, onde retribuindo as nossas saudações, discursava por forma a ter-nos, a todos, suspensos da sua palavra sempre interessante, conceituosa e correcta. Tudo isto recorda inolvidáveis momentos em que a intimidade com um homem de tal envergadura marcou, para nós, um raro privilégio que nos leva a consagrarmos à sua memória o sentido preito da nossa gratidão. A cada passo manifestava o maior interesse por tudo o que se referia ao “boston”. Havia em vista o incitamento com que quase obrigou o seu amigo dos tempos de Coimbra, Dr. Henriques da Silva, a fazer o respectivo tratado, e a esplendida colaboração (“Histórias das Cartas de Jogar”) com que valorizou a publicação da obra, editada por sua conta, esse precioso volume, de tiragem restrita e já esgotada, tem hoje grande valor, especialmente para os bibliófilos. Não era raro pedir informações sobre estatística dos ganhos e perdas, gostando de saber quem era o ganhão ou o “camisola amarela”, como dizia. Os elementos para essa estatística foram colhidos pelo Dr. Henriques da Silva, o mestre do “boston”, e só depois do seu falecimento, em 3-12-1948, vieram para a minha mão. É deles que vou socorrer-me para dizer o que se passou durante os 25 anos decorridos da época de 1929-1930 à de 1953-1954, adoptando também a designação que tinha sido atribuída aos que ganharam (“algozes”) e aos que perderam (“vitimas”). Não foi só durante esse período que se jogou o “boston” em casa do Prof. Egas Moniz. Na Avenida Luiz Bivar e depois na Avenida 5 de Outubro houve partidas durante mais de 30 anos. OOo Segue-se a nota a que me referi, da qual constam: A) – os nomes, por ordem alfabética, de todos os parceiros que, da época de 1929-1930 à de 19531954, compareceram nas partidas de “boston”, às sextas feiras, em casa do Prof. Egas Moniz; B) – os resultados gerais e a média anual de lucros ou de perdas de cada parceiro; C) – os maiores jogos marcados e cumpridos; D) – outras indicações que porventura surjam no decorrer deste trabalho e ofereçam qualquer interesse; E) – verbetes pessoais, também por ordem alfabética, de que constem os elementos que se tomaram em linha de conta. A - Frequentaram as partidas de “boston” de 1929 a 1954: ◊ Consº. Abel de Mattos Abreu, Juiz do Sup.Trib. de Justiça (f) ◊ Prof. Aleu Saldanha, Prof. da Faculdade de Medicina de Lisboa ◊ Alexandre Cancella de Abreu, Prof. Agregado da Faculdade de Medicina de Lisboa (f) [ 198 ]


TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

◊ Dr. Almeida Dias, Assistente da Faculdade de Medicina de Lisboa (f) ◊ Engº Aluino Martins da Silva, Capitão de Mar e Guerra e Prof. da Escola Náutica ◊ Dr. António Abranches, Juiz de 2ª. Instância do Tribunal das Execuções Fiscais ◊ Major Bernardino Ferreira, antigo Ministro do Interior (f) ◊ Dr. António Castanheira de Figueiredo, Magistrado do Mº Público ◊ António Duarte de Sousa, industrial e bibliófilo (f) ◊ Engº. António de Mello Arbués Moreira, Engenheiro da Casa Capucho ◊ Dr. António Pinto Basto (Tony), proprietário e industrial ◊ Dr. Arbués Moreira, médico, Director do Sanatório da Ajuda ◊ Conº. Armando Cancella de Abreu, Juiz do Tribunal de Contas ◊ Dr. Armando Marinho Cunha, Proprietário (f) ◊ Engº. Artur de Campos Henriques, Sub-Director da C. P. ◊ Dr. Augusto Canossa Saldanha, médico e proprietário (f) ◊ Engº. Augusto Cancella de Abreu, antigo Ministro das Obras Públicas e do Interior ◊ Conº. Ayres de Castro e Almeida, Juiz do Sup.T. de Justiça (f) ◊ Barão de Santa Comba Dão, Juiz do Sup.Trib. de Justiça (f) ◊ Dr. Bernardo de Mattos, Conservador do Reg. Com. em Lisboa ◊ Engº. Boaventura Bello, Chefe da Repartição dos Serviços de Comparticipação do Estado ◊ Boaventura de Mello, Inspector Escolar ◊ Engº. Carlos Alves, Presidente da Associação Industrial Portuguesa ◊ Carlos de Freitas Alzina, Presidente do Conselho de Administração do Banco Nacional Ultramarino (f) ◊ Dr. Carlos de Sousa Rêgo, advogado ◊ Prof. Carlos Trincão, Prof. do Instituto Superior de Medicina Tropical ◊ Dr. Custódio Teixeira, médico analista ◊ Dr. Eduardo de Oliveira, médico e proprietário (f) ◊ Prof. Egas Moniz, Prof. da Faculdade de Medicina de Lisboa, antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros, antigo Ministro de Portugal em Madrid e Prémio Nobel de Medicina (f) ◊ Engº. Eleutério Fernandes, industrial ◊ Consº. Francisco Antunes de Mendonça, Juiz do Supremo Tribunal de Justiça (f) ◊ Consº. Francisco Patrício, Juiz de 2ª. Instância e antigo Governador Civil ◊ Engº. Fred Alves, industrial ◊ Dr. Henrique Moutinho, médico oftalmologista ◊ Engº. Herman Israelskerdjeff, gerente da “Intercambio Mercantil” ◊ Dr. João Bastos, médico especialista ◊ Engº. João Mendes Leal ◊ João Mendes Leal (filho), empregado no Comércio ◊ Dr. João Pinheiro, advogado, antigo Governador do Nyassa (f) ◊ Dr. Jorge Metello de Napoles Manuel, Coronel da Aviação ◊ Engº. José Custódio Nunes, Presidente do Conselho de Administração da Cª. do Alto Alentejo ◊ Dr. José Gomes, médico especialista ◊ Dr. José Henriques da Silva, autor do “Tratado do Jogo do Boston” e antigo Cônsul de Portugal em Cardiff (f) ◊ Dr. José Osório Saraiva, proprietário (f) [ 199 ]


ROSA MARIA RODRIGUES

◊ Júlio Cayolla, jornalista e antigo Agente Geral do Ultramar ◊ Lourenço Cayolla, Coronel de Artilharia, jornalista e antigo deputado (f) ◊ Luiz de Atayde, funcionário dos C.T.T. ◊ Engº. Luiz Ferreira de Carvalho, da Direcção Geral dos Serviços Hidráulicos ◊ Engº. Luiz de Mello e Sabbo, Engenheiro Agrónomo ◊ Dr. Manuel AmadorValente, Chefe de Secretaria Judicial ◊ Manuel da Ascenção Espinho, Secretário de Finanças em Lisboa (f) ◊ Manuel Bravo Borges, Capitão do Exército (f) ◊ Manuel Metello, Funcionário Superior do Ultramar ◊ Manuel Tavares Festas, Funcionário Superior da “Shell” ◊ Miguel Pestana, proprietário ◊ Dr. Miguel dos Santos, médico especialista ◊ Dr. Paulo Cancella de Abreu, advogado e deputado ◊ Dr. Paulo Menano, industrial ◊ Prof. Pedro de Almeida Lima, Professor da Faculdade de Lisboa ◊ Engº. Pedro Joyce Diniz, Engenheiro-Chefe da C.P. ◊ Consº. Silvino da Camara, Director-Geral das Contribuições e Impostos (f) ◊ Dr.T. de Aguiar, proprietário ◊ Dr.Teixeira Dias, Juiz de 2ª. Instância ◊ Dr.Tomaz de Faria, médico (f) ◊ Dr.Victor Teixeira, médico e professor do Ensino Industrial ◊Visconde de Santa Margarida, antigo Oficial do Exército e proprietário (f) Destes 68 parceiros, faleceram 22; outros 22, por terem saído de Lisboa, por afazeres, doença, etc., deixaram de comparecer às partidas, vivem em Lisboa 23. Nem todos os que figuram na anterior relação jogaram durante 25 anos. As médias indicadas são, portanto, referentes aos períodos em que compareceram. Os veteranos, os de 1929, que, até 1954 não faltaram em época alguma, são só 7: - Engº. Campos Henriques, Engº. Boaventura Belo, Júlio Cayolla, Drs.Victor Teixeira, Bernardo de Mattos e Armando e Paulo Cancella de Abreu. Também completaram os 25 anos o Dr. Alexandre Cancella de Abreu, falecido em 21 de Fevereiro de 1955, e o Prof. Egas Moniz, falecido em 13 de Dezembro do mesmo ano. B - Resultados Gerais – GANHARAM (por ordem da respectiva importância) 1

Dr. José Henriques da Silva

7.577$60

2

Engº Boaventura Bello

5.902$90

3

Engº Artur de Campos Henriques

4.289$50

4

Cons.º Armando Cancella de Abreu

3.580$90

[ 200 ]


TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

5

Engº Aluino da Silva

3.254$20

6

Dr. Victor Teixeira

2.558$60

7

Cons.º Francisco Antunes de Mendonça

2.284$10

8

Engº Hermann Israelskerdjeff

1.726$10

9

Dr. Eduardo de Oliveira

1.160$00

10

Engº Luiz de Mello e Sabbo

568$20

11

Carlos de Freitas Alzina

259$40

12

Engº Luiz Ferreira de Carvalho

257$50

13

Dr. João Pinheiro

184$50

14

Coronel Lourenço Cayolla

184$20

15

Luiz de Atayde

178$50

16

Manuel Ascenção Espinho

164$20

17

Dr. Henrique Moutinho

160$30

18

Barão de Santa Comba Dão

155$00

19

Miguel Pestana

34$30

20

Dr. T. de Aguiar

22$00

21

Dr. Armando Marinho da Cunha

4$70

34.506$50 (por ordem da média anual, arredondada para escudos) 1

Engº Aluino da Silva

6 épocas

542$00

2

Dr. José Henriques da Silva

17 épocas

446$00

3

Engº Boaventura Bello

25 épocas

236$00

4

Engº Campos Henriques

25 épocas

171$00

5

Engº Hermann Israelskerdjeff

12 épocas

144$00

6

Cons.º Armando Cancella de Abreu

25 épocas

143$00

7

Cons.º Francisco de Mendonça

19 épocas

120$00

8

Dr. Victor Teixeira

25 épocas

102$00

9

Eng.º. Luiz de Mello e Sabbo

6 épocas

95$00

10

Dr. Eduardo Oliveira

17 épocas

68$00

11

Carlos de Freitas Alzina

7 épocas

37$00

12

Coronel Lourenço Cayolla

5 épocas

37$00

13

Miguel Pestana

1 época

34$00

[ 201 ]


ROSA MARIA RODRIGUES

14

Barão de Santa Comba Dão

5 épocas

31$00

15

Dr. João Pinheiro

7 épocas

26$00

16

Henrique Moutinho

7 épocas

23$00

17

Dr. T. Aguiar

1 época

22$00

18

Eng.º Luiz Ferreira de Carvalho

12 épocas

21$00

19

Luiz de Atayde

9 épocas

20$00

20

Manuel Espinho

12 épocas

14$00

21

Dr. Armando Marinho da Cunha

1 época

5$00

PERDERAM (por ordem da respectiva importância) 1

Prof. Egas Moniz

3.623$00

2

Prof. Almeida Lima

3.087$10

3

Prof. Alexandre Cancella de Abreu

2.722$40

4

Dr. Paulo Cancela de Abreu

2.415$30

5

Manuel Tavares Festas

1.894$30

6

Eng.º José Custódio Nunes

1.787$10

7

Visconde de Santa Margarida

1.778$10

8

Júlio Cayolla

1.681$60

9

Dr. Jorge Metello

1.613$30

10

Dr. Manuel Amador Valente

1.526$20

11

Dr. José Gomes

973$80

12

Dr. Arbués Moreira

961$40

13

Eng.º João Mêndes Leal

921$30

14

Cons.º Ayres de Castro e Almeida

890$00

15

Dr. Antº. Castanheira de Figueiredo

826$50

16

Cap. Manuel Bravo Borges

702$20

17

Prof. Carlos Trincão

691$60

18

Prof. Aleu Saldanha

614$50

19

Eng.º António Arbués Moreira

614$50

20

Eng.º Carlos Alves

538$50

21

Cons.º Silvino da Câmara

507$40

[ 202 ]


TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

22

Dr. António Pinto Basto (Tony)

503$40

23

Dr. Augusto Camossa Saldanha

489$60

24

Dr. João Manuel Bastos

486$20

25

Eng.º Augusto Cancella de Abreu

304$50

26

António Duarte de Sousa

270$80

27

Dr. Paulo Menano

246$60

28

Major Ant.º Bernardino Ferreira

230$70

29

Dr. Bernardo de Mattos

224$80

30

João Mendes Leal (filho)

187$20

31

Boaventura de Mello

156$20

32

Cons.º Francisco Patrício

154$50

33

Dr. António Abranches

138$40

34

Dr. Custódio Teixeira

115$80

35

Cons.º Abel de Mattos Abreu

106$70

36

Eng.º. Fred Alves

60$00

37

Dr. Miguel Santos

46$40

38

Dr. Tomaz de Faria

44$40

39

Dr. José Osório Saraiva

43$00

40

Alfredo Alves

35$40

41

Dr. Teixeira Dias

33$40

42

Manuel Metello

32$20

43

Dr. Almeida Dias

30$40

44

Eng.º Pedro Joyce Diniz

7$70

45

Eng.º Eleutério Fernandes

4$70

46

Dr. Carlos de Sousa Rêgo

2$70

34.326$00 Diferença (êrros) Soma Igual à dos lucros

180$50 34.506$50

[ 203 ]


ROSA MARIA RODRIGUES

PERDERAM (por ordem da média anual, arredondada para escudos) 1

Manuel Tavares Festas

4 épocas

474$00

2

Eng.º José Custódio Nunes

5 épocas

357$00

3

Prof. Almeida Lima

13 épocas

247$00

4

Visconde de Santa Margarida

9 épocas

198$00

5

Dr. José Gomes

6 épocas

162$00

6

Prof. Egas Moniz

25 épocas

145$00

7

Eng.º Antº. Arbués Moreira

5 épocas

123$00

8

Dr. Augusto Camossa Saldanha

4 épocas

122$00

9

Cap. Manuel Bravo Borges

6 épocas

177$00

10

Eng.º João Mendes Leal

8 épocas

115$00

11

Major A. Bernardino Ferreira

2 épocas

115$00

12

Prof. Alexandre Cancella de Abreu

25 épocas

109$00

13

Dr. Paulo Cancella de Abreu

25 épocas

97$00

14

João Mendes Leal (filho)

2 épocas

90$00

15

Cons.º Silvino da Câmara

6 épocas

85$00

16

Cons.º Ayres de Castro e Almeida

11 épocas

81$00

17

Dr. N. Amador Valente

19 épocas

80$00

18

Dr. Jorge Metello

20 épocas

80$00

19

Julio Cayolla

25 épocas

67$00

20

Dr. Arbués Moreira

16 épocas

60$00

21

Prof. Carlos Trincão

12 épocas

58$00

22

Eng.º Carlos Alves

9 épocas

58$00

23

Dr. João Manuel Bastos

9 épocas

54$00

24

Cons.º Abel Mattos Abreu

2 épocas

53$00

25

António Duarte de Sousa

6 épocas

45$00

26

Prof. Aleu Saldanha

14 épocas

44$00

27

Dr. Ant.º Pinto Basto (Tony)

12 épocas

42$00

28

Dr. Ant.º Castanheira de Figueiredo

20 épocas

41$00

29

Boaventura de Mello

4 épocas

39$00

30

Dr. Paulo Menano

9 épocas

27$00

[ 204 ]


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31

Dr. José Osório Saraiva

2 épocas

21$00

32

Eng.º Augusto de Abreu

16 épocas

19$00

33

Dr. Bernardo de Mattos

25 épocas

9$00

34

Dr. Almeida Dias

4 épocas

8$00

35

Cons.º Francisco Patrício

23 épocas

7$00

36

Manuel Metello

6 épocas

5$00

37

Eng.º Eleutério Fernandes

3 épocas

1$50

38

Dr. Carlos de Sousa Rêgo

8 épocas

$30

Jogaram só 1 época Dr. António Abranches

138$40

Dr. Custódio Teixeira

115$80

Eng.º Fred Alves

60$00

Dr. Miguel Santos

46$40

Dr. Tomaz de Faria

44$40

Alfredo Alves

35$40

Dr. Teixeira Dias

33$40

Eng.º Pedro Joyce Diniz

7$70

C - JOGOS MAIORES Houve, nos primeiros anos deste período, repetidas vezes, a marcação de 13 vazas, mais rara nas últimas épocas. É que, talvez até 1945, jogavam-se as 3 modalidades do “boston”: “revolução”, “passepasse” ou “mixórdia e ordinário”. Na primeira e na última é muito difícil conseguir-se tal jôgo, o que não acontecia com o “passe-passe”. Nêste, a troca de duas cartas com cada parceiro dava azo à formação de grandes jogos, pois que, por exemplo, se se tinha az, rei, dama e mais duas ou três cartas dum naipe, era quase certo que o resto dêsse naipe lhe ia parar às mãos, para serem logo 13 vazas descobertas. Os mestres (Alzina, Lourenço Cayolla, Drs. Henriques da Silva, Oliveira e Mendonça) não gostavam do “passe-passe”, que reputavam abatotado e falho de ciência, conseguindo suprimir essa modalidade, que aliás, tinha defensores. O caso é que, como se pode vêr nestes apontamentos, tornaram-se muito mais raros os jogos grandes desde que passou a jogar-se só “revolução” e “ordinário”. Os maiores que se marcaram e cumpriram durante o período em causa foram o de Carlos de Freitas

[ 205 ]


ROSA MARIA RODRIGUES

Alzina, que, no dia 5 de Junho de 1931, fez 13 vazas grandes descobertas; seguiram-se, com igual marcação, o Dr. Henriques da Silva (10-11-939), o Prof. Egas Moniz (30-6-944), ambos em “passepasse”, e Júlio Cayolla (4-6-48) em “revolução”. Mas como foram marcados, quase inteiramente, no tempo em que ainda se jogava o “passe-passe” ou “mixórdia”, devem ter resultado das trocas de cartas desta modalidade. Há, portanto, que considerar como mais raro o jôgo feito pelo Dr. Alexandre Cancella de Abreu, em 16-2-51, marcando, em “ordinário” (note-se bem, em “ordinário”) 13 vazas descobertas na favorita. O Prof. Egas, que jogou o “boston” durante mais de 60 anos, dizia nunca lhe constar que alguém tivesse marcado esse jogo. Repetindo: a marcação de 13 vazas grandes descobertas, em “revolução” ou “passe-passe”, é maior do que a de 13 vazas descobertas em favorita, em “ordinário”, mas esta é muito mais rara, só podendo ser suplantada por 13 vazas grandes descobertas na mesma modalidade. Mas não há memória de tal ter acontecido desde que se inventou o “boston”. Segue-se nota dos maiores jogos: 13 vazas descobertas

05 Junho 1931

“passe-passe”

Freitas Alzina

13 vazas descobertas

10 Novembro 1939

“passe-passe”

Dr. Henriques da Silva

13 vazas descobertas

03 Junho 1944

“passe-passe”

Prof. Egas Moniz

13 vazas descobertas

04 junho 1948

“revolução”

Julio Cayolla

13 vazas descobertas na favorita

16 Fevereiro 1951

“ordinário”

Dr. Alexandre Cancella de Abreu

13 vazas descobertas na favorita

1932-1933

“passe-passe”

Julio Cayolla

13 vazas descobertas na favorita

1933-1934

“passe-passe”

Prof. Egas Moniz

13 vazas descobertas na favorita

1934-1935

“passe-passe”

Dr. José Gomes

13 vazas descobertas na favorita

13 Dezembro 1940

“revolução”

Prof. Aleu Saldanha

13 vazas descobertas na favorita

9 Janeiro de 1942

“passe-passe”

Visconde de Santa Margarida

13 vazas descobertas na favorita

02 julho 1943

“passe-passe”

Dr. Armando Cancella de Abreu

13 vazas descobertas na favorita

02 Dezembro 1949

“revolução”

Eng. Aluino da Silva

13 vazas descobertas na 2ª côr

1929-1930

“passe-passe”

Cons. Francisco Mendonça

13 vazas descobertas na 2ª côr

1930-1931

“passe-passe”

Cons. Francisco Patrício

13 vazas descobertas na 2ª côr

15 Março de 1946

“revolução”

Cons. Francisco Patrício

Em fulo

1935-1936

“passe-passe”

Eng. Boaventura Bello

Na mesma época (1953-54), o Prof. Egas Moniz marcou 10 vazas na favorita, em “ordinário”, com 4 figuras; 11 em fulo, com 4 figuras, como lixo; 12 na favorita, em “revolução”; e um “petit-partout”, em “ordinário”. [ 206 ]


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Pode julgar-se, por esta nota, que o Prof. Egas foi um dos terríveis algozes. Mas não, pois perdia quase todas as noites, sendo apuramento geral, o nº1 das vítimas, lugar que ocupou durante 8 épocas. Só em 1931-32 foi o nº1 dos algozes. D - CURIOSIDADES e outras INDICAÇÕES Profissões dos 67 parceiros que frequentaram as partidas: 16 médicos 13 engenheiros 9 magistrados 6 oficiais do exército 6 proprietários 3 advogados 2 industriais 6 diversos o-O-o As partidas duravam normalmente, em cada época, da primeira 6ª. fª. de Novembro à primeira de Julho do ano seguinte, sendo, portanto, 33. É certo que, uma vez ou outra, e por motivos diversos, acontecia não haver reunião, mas, por serem raros esses casos, não andaremos longe da verdade dizendo que havia, pelo menos, 30 por época. Multiplicando esse número por 25, verifica-se que foram 750 as partidas. Nêste cômputo não estão incluídas as 4 do Carnaval, em casa ou, a maior parte das vezes, no Palace do Estoril, para que o Prof. Egas Moniz convidava três parceiros, a quem também oferecia o jantar. o-O-o Houve dois anos em que a média da comparência de parceiros, por partida, foi de 16 (4 mesas), mas o normal era aparecerem 14, em média. Acontecia haver só duas mesas, em noites frias e chuvosas de inverno, mas isso foi raro e era compensado por outros dias em que estavam 18, 20 e até mais de 25 (inaugurações das épocas).Tomemos, pois, como média de comparência o número 14, que, multiplicado por 750, dá 10.500 parceiros nos 25 anos. Como nem sempre se conseguia juntar quatro para mais um na mesa (estando, por exemplo, 11 ou 15), o número de mesas formadas não corresponde ao dos parceiros, podendo, no entanto, afirmar-se que passou de 2.250. o-O-o Jogava-se a 4 vezes a tabela, preço que era razoável e, como constado respectivo mapa, não dava lugar a grandes diferenças no fim da época. Em noite de grande azar, podia perder-se entre 150$ e 200$, e tanto que, de 1929 a 1954, só duas vezes esta última importância foi excedida: - o Dr.Victor Teixeira (1935-36) perdeu partida, 309$40, e o Dr. Castanheira de Figueiredo (1936-37) 200$40. Quanto a ganhos, foi também raro, mas não tanto, aquele limite, excedido, 1933-34, pelo Dr.Victor Teixeira (232$80); em 1935-36, pelo Dr. Bernardo de Mattos (344$00); em 1938-39 e 1943-44, pelo Prof. Egas Moniz (240$80) e 311$40, (respectivamente), em 1939-40, pelo Dr. Henriques da [ 207 ]


ROSA MARIA RODRIGUES

Silva (332$00); e em 1940-41, pelo Prof. Aleu Saldanha (263$20). Portanto, só 6 vezes se ganhou mais de 200$00 numa noite, sendo o “record” do Dr. Bernardo de Mattos com 344$00. As maiores importâncias, só por um jogo, (326$40), foram recebidas por Freitas Alzina, Dr. Henriques da Silva, Prof. Egas Moniz e Julio Cayolla, pelas 13 vazas grandes descobertas que cada um marcou. É um jogo tão excepcional que, durante 25 anos e com a comparência de 10.500 parceiros, só 4 o tiveram. o-O-o Como disse, o Mestre tinha sempre, nas sextas feiras, seis pessoas de fora. Assim, de 1929 a 1954, foram 4500 os convivas, sem contar com os dos também magníficos jantares “paulistanos” de inauguração e de encerramento de cada época, a que assistiam todos ou quase todos os parceiros. o-O-o Mais uma nota sentimental a apontar: durante esses 25 anos, encontramos sempre a servir-nos o mesmo pessoal. Isto, se significa serem bons os servidores; mostra também que os donos da casa eram ainda melhores e os tratavam tão bem, que eles não podiam deixar de se lhes dedicar profundamente. Há a destacar o Joaquim, exímio pasteleiro, impecável criado de mesa, e acima de tudo, um extraordinário enfermeiro, que assistia sempre ao Prof. Egas, especialmente nas crises da gôta deformante, que tanto o massacrava e algumas vezes o levou a situações gravíssimas. Armando Cancella de Abreu Junho de 1957

Convite para as Partidas de Boston de 1954

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Ementa do jantar dos parceiros de Boston em novembro de 1929

Folha de Agenda de 9 novembro de 1945

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ROSA MARIA RODRIGUES

Carta de parceiro do Boston de 1933, onde se lê: Uma impertinente bronquite impede-me com muita pena de assistir à inauguração das suas bem agradáveis partidas que todos os parceiros muito apreciam pela fidalga amabilidade e franqueza com que são acolhidos(….)Com os meus mais respeitosos cumprimentos para a Sua Senhora D. Elvira (…).

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Uma partida de Boston em 1942

Jantar dos Parceiros do Boston no Aviz em julho de 1948

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Jantar dos Parceiros do Boston no Aviz em julho de 1953

Mesa de Jogo, medalhas e colar Boston

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Regras do Jogo de Boston

Sobre a época de Boston de 1940-1941 RELATÓRIO Esperam os senhores um relatório Que lhes diga em frase eloquente Qual é o parceiro mais finório Qual é o parceiro mais competente. Podia também ter-me lembrado De focar outro ponto bem curioso: Dos velhos, qual está mais fatigado? Dos novos, qual é mais esperançoso? Mas sem senda tão perigosa não me afoito, Que eles são vinte e sete ou vinte e oito, E eu não posso lutar com tanta gente. Se censuro uma voz que foi mal dada, Se ponho em relevo alguma asneira, Quem de aturar o Senhor Teixeira E a sua linguagem floreada…

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ROSA MARIA RODRIGUES

O que digo vai cercado de cautelas. Receio dos parceiros a fera sanha, Receio a hoste numerosa dos Cancelas, E se não lhe agrada o meu relato, Receio que o Dr. Aleu Saldanha Venha um dia a tirar-me o retrato… ---------A época em poucas frases se resume. Veio o Visconde, o Arbués, o Oliveira, Veio a gente velha do costume, E veio também uma cara nova, Cortez, simpática, risonha, Que nos deu tão grande e dura sova Á terceira ou quarta noite que nos viu, Que eu tive vontade de o mandar …. Inscrever na classe dos veteranos, Destes que há mais de quarenta anos Queimam as pestanas a estudar Os portentosos arcanos Deste jogo egregio e sem par. Veio o Bernardo, veio o Belo, Veio o Jorge Metelo, E o Leal e o Moutinho; Enfim, veio toda a gente, E veio trez vezes o Valente. Veio o Chico, que é o Mendonça, Mais o Chico, que é o Patrício, Que São dois parceiros chiques, Veio o Campos Henriques Que chega sempre às dez e meia E não tem que vir mais cedo Para realizar os seus fins; É homem com tanta sorte Que leva a bolsa sempre cheia E ainda apanha transporte Para a Rua Sousa Martins. A fechar a procissão Veio também o Caiola; Vieram muitos, vieram todos Vieram todos quantos `stão E mais um que foi para Angola; E esse não volta cá tão cedo [ 214 ]


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Que o que ele em 4 meses fez ao Boston Não se paga com dez anos de degredo. Eu também, não preciso dize-lo. Nem a peste nem a guerra, Nem terrível furacão. Nem um tremor de terra Podem em mim ter mão E fazer que eu cá não venha, Pois deram-me alguns escudos, E o que tem mais valor: Deram-me o precioso calor De duas carradas de lenha. --------Noticias do Espinho, não da Praia, Mas da meza do Espinho, aquela meza, Onde não havia a certeza Do que era que ali se fazia. Era o Boston, soube-se um dia. Dava cada um quatro cartas Ao quarto, que tinha uma só; Era visível a rasão. Podiam dar só trez, Mas não; Davam quatro de cada vez Era a revolução. Também copiavam a mexordia E então era ver a concórdia, A amizade, a simpatia, Com que cada um dava aos outros O que aos outros mais convinha, Tanto que à última volta Onze vasas, pelo menos, Era o que cada um já tinha. Este sistema, afinal, Apezar de condenado, Tem um fundo de moral, Torna o jogo mais igual, Mais justo, equilibrado; O que não sei é como o jogo Não ficava sempre empatado. Era o Boston atenuado, [ 215 ]


ROSA MARIA RODRIGUES

Anémico, debilitado, Um Boston que acompanhasse O seu próprio funeral: Enterro de terceira classe Com a banda do seixal. Á meia noite dava a hora, Ia terminar a partida Como o que é bom na vida. Faziam as contas devagar Com receio das emoções, Pagavam dois meios tostões, E iam-se todos embora. Seja sete o epitáfio Daquela mesa saudosa Que em fresca noite de Abril A custo expirou, lacrimosa. Expirou não é forma verdadeira. A meza não morreu, diluiu-se, Quando era fortemente concentrada; Arriou ali a bandeira Até que o Destino a reúna, Mas anda por aí espalhada, Disfarçada em quinta coluna. ----------E nada mais aconteceu Que seja digno de referência; Camaradagem soberba, Agradável convivência: Porém o nível do jogo Deve andar muito arrastado A julgar tantas vezes Que o Castanheira tem ganhado. Isto assim tem pouco geito, Precisa de ser melhorado; Oxalá que para o efeito Não venha já tarde o Tratado. ------Lido no jantar oferecido pelo Professor Egas Moniz, em sua casa em Lisboa, aos 26 de junho de 1942.

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Universidade de Avanca – Relatório e Contas das partidas de Boston de 195419

19  - Dr. Egas Moniz – Tomou parte em 33 partidas. Marcou 3 vezes 10 vasas em favorita e cumpriu. Marcou 13 vasas descobertas e ainda se descartou de 4 cartas seguras. Perdeu 11 vasas em 2ª cor – Ganhou 32$60, Dr. António A. Freire – Tomou parte em 31 partidas, marcou 2 vezes 11 vasas em favorita e cumpriu. Marcou 10 vasas em favorita e fez 12 - Perdeu 75$00, Dr. Duarte de Oliveira – Tomou parte em 8 partidas. Marcou 10 vasas em favorita em ordinário e cumpriu – Perdeu 11$40, Dr. Victor Teixeira - Tomou parte em 3 partidas – Perdeu 21$40, Dr. Jorge Metelo – Tomou parte em 6 partidas – Ganhou 20$10, Boaventura Pereira de Melo – Tomou parte em 25 partidas. Marcou 12 vasas em 2ª cor e cumpriu, 11 em 2ª cor e 11 em fulo, 2 vezes 10 em favorita, 2 vezes 10 em 2ª cor tendo feito 12. Marcou 2 vezes 9 em ordinário com as 4 figuras – Ganhou 25$00, Dr. António A. A. Freire - Tomou parte em 29 partidas. Marcou 11 vasas em fulo, sendo lixo, 10 em favorita e fez 13, 10 em 2ª cor e fez 12, 10 em favorita e 10 em 2ª cor que cumpriu – Ganhou 30$10

[ 217 ]


ROSA MARIA RODRIGUES

REAL ORDEM DO “BOSTON” O Conselho dos Reis, Duques e Ases resolvem, depois de consultar a Assembleia-Geral das Cartas e após profundo estudo e meditação, fundar a “REAL ORDEM DO BOSTON”, destinada a galardoar os intrépidos pelejadores que tomam parte nas justas e torneios de tão venerável jogo e se distingam por feitos notáveis e, como tal, decreta: Art.º 1º - É criada a “REAL ORDEM DO BOSTON”. Art.º 2º - Foi escolhida para a fundação a data de 11 de Novembro de 1949, dia de S. Martinho, por ser dia de castanha e por, no intervalo dos “Rubbers”, haver sempre um armistício. Art.º 3º - Esta ordem será conferida aos parceiros que o Conselho julgar merecedores. Art.º 4º - As resoluções do Conselho são irrevogáveis e delas não há que prestar contas, nem sequer ao tribunal das ditas. Art.º 5º - Considerando que: a) – os parceiros necessitam protecção, b) – foram banidos os reis, as coroas… e os centavos, c) – é necessário simbolizar a entrada, a insígnia terá o feitio de um escudo. § Único – Não se destinando este escudo a circular, não terá a forma redonda, mas sim bicuda, em homenagem às situações críticas que por vezes surgem aos parceiros. Art.º 6º - Penderá de fita bicolor, encarnada e azul – cores representativas dos baralhos e, além disso, alusivas às colorações que os parceiros tomam, pois ficam “encarnados” quando perdem uma mão (por engano, evidentemente) ou “azuis” quando os parceiros os fazem perder (por imperdoável ignorância, indubitavelmente). Os condecorados serão obrigados a ostentar as insígnias em todos os actos solenes. § Único – São considerados actos solenes as aberturas e as fechaduras das partidas. Art.º 7º - Fica revogada a legislação em contrário, mesmo a inexistente. Paços do Conselho da R.O.B., Avenida Cinco de Outubro, nº 73 Sala das Pugnas, aos 11 dias do mês de Novembro de 1949 (P.C.N.).

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PARA QUE OS OLHOS SE LEMBREM Sérgio Paulo Silva* Nos anos que sopravam os ventos da minha adolescência, rapazes e raparigas ofereciamse fotografias e, recorrendo a uma frase feita, por falta de imaginação para melhor e com a parvoeira que só a idade desculpava, escreviam no verso “Para que os olhos se lembrem…” Entretanto, coisa que ouvi desde sempre, e que por certo tenho, dizia-se que uma imagem vale mais que mil palavras. O mundo conhece hoje a Civilização Egípcia (entre outras) por quanto nos deixaram escrito nos seus hieróglifos, depois que se decifraram. Mas também pelas fotografias do seu tempo que eram pinturas, esculturas… A muitos séculos ainda da descoberta da fotografia as pessoas, individual ou colectivamente, impunham a imagem como meio de comunicação e divulgação pelo desenho, pela escultura, pela pintura. As pinturas rupestres, as gravuras do Coa ou a estatuária grega podem servir de exemplo, como os “bonecos” de terra-côta dos chineses ou as máscaras de desaparecidas tribos. Não se detinha, contudo, o correr da areia na ampulheta de Deus e as palavras iam-se deixando domesticar até que Johannes Gutemberg fez delas o animal doméstico que hoje habita connosco. Aqui, à nossa medida, a Terras do Antuã número após número, vai dando a conhecer o que fomos, como somos, legados herdados e a legar. À palavra escrita, à palavra impressa se confia a memória, o registo, a divulgação para que já não se perca, na caminhada, nada de quanto se conseguiu reter na joeira. Lembro-me que havia, quando eu era criança, lá por casa umas gravuras, umas aguarelas de Roque Gameiro. E aquilo fascinava-me e ajudava-me muito no conhecimento de episódios da História de Portugal que então começava a estudar. Mais tarde alguns desenhos ensinaram-me também a perceber melhor a dimensão do Terramoto “de Lisboa”… Finalmente as fotografias deram em tudo um contributo decisivo, sobrando ainda o lado afectivo, a emoção do reencontro com momentos vividos e que já só distantes e desfocados a memória retinha. Rara, com o deslizar da areia, vulgarizou-se e hoje qualquer telefone portátil capta imagens, fixa numa fracção de segundo o que muitas palavras não lograriam escrever plenamente. Daí, talvez, a virulência com que velhas fotografias entraram, em catadupa, pelas redes sociais adentro. De quanto é nosso, de costumes nossos, de gente nossa há por * Autor Estarrejense

[ 219 ]


SÉRGIO PAULO SILVA

vezes numa imagem que nos ajuda, mentalmente transportando-nos para um passado que não nos foi dado viver/conhecer. Pode servir como exemplo que dos nossos afamados cantadores Marques Sardinha e Maria Barbuda as imagens que temos se contam pelos dedos duma só mão, sendo que, de alguns que com eles incendiaram arreiais com os seus descantes, nem uma só imagem herdámos, como é o caso da Deolinda do Couto que tanto cantou com o Sardinha. Daí talvez a responsabilidade com que todos e qualquer um devem ter na preservação e na divulgação das imagens que suportam (ou suportarão) esta Terra do Antuã que são a nossa pegada na areia que nos coube. E assim poderemos completar, apaixonadamente, no verso de cada fotografia “se o coração se esquecer”…

Ribeira da Aldeia, Pardilhó - Como era há mais de cinquenta anos (Fotografia do Eng. Rocha Soares)

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EMIGRAÇÃO ESTARREJENSE NO ANO DE 1909 Teresa Cruz Tubby* Valter Santos**

Dando continuidade aos anos anteriores, segue mais uma listagem de passaportes requeridos no ano de 1909. Nesse mesmo ano, Nilo Procópio Peçanha assume a presidência da República do Brasil, após o falecimento de Afonso Pena, ocorrido a 14 de Junho de 1909. Há a destacar, a 17 de Janeiro, a fundação da Universidade Federal do Amazonas e 14 de Julho a inauguração do Teatro Municipal do Rio de Janeiro; a primeira corrida de automóveis, realizada no circuito de São Gonçalo, a 19 de Setembro, e em Outubro o Cinematrographo Soberano, mais tarde chamado Cinema Íris. Belém e Manaus, cidades mais desenvolvidas e entre as mais prósperas do mundo, tiveram o seu apogeu entre 1890 e 1920, devido ao comércio da borracha, com a construção de praças, boulevards, zonas verdes, iluminação, transportes públicos, mercados, água encanada, rede de esgotos, assim como o aparecimento de grandes obras arquitectónicas, tais como o Teatro da Paz, o cinema Olímpia, o Palácio António Lemos, os mercados Francisco Bolonha, de São Brás e de Ferro. Manaus, uma cidade com características europeias, dado que vieram da Europa arquitectos, paisagistas, urbanistas e artistas que a transformaram. De salientar o Palacete Provincial, o Mercado Municipal Adolfo Lisboa, a Catedral Metropolitana de Manaus, a Igreja de São Sebastião, a Ponte Benjamim Constant, e Teatro Amazonas, e em 1909, a Alfândega de Manaus, entre outras obras de grande vulto. A maioria dos emigrantes, saindo dos campos, iriam encontrar cidades já muito avançadas e com melhores condições de vida… um mundo completamente diferente daquele em que cresceram.

1909 - Belém do Pará1 * Investigadora, autora das obras Quinta e Casa da Botica, Banda de Música de S. João da Madeira 1860/2005; Portugal e a Grande Guerra - a Participação dos Oficiais de Oliveira de Azeméis, co-autora da obra A Misericórdia da Vila de Cucujães, 1937 – 2012, A Banda de Angeja e revista Cucugianis, Histórias e Memórias do Couto de Cucujães. ** Investigador e jornalista, autor da obra Cucujães Antigo e Moderno; co-autor da obra A Misericórdia da Vila de Cucujães, 1937 – 2012, A Banda de Angeja e revista Cucugianis, Histórias e Memórias do Couto de Cucujães. 1 - https://www.google.com/search?q=imagens+de+Bel%C3%A9m+do+Par%C3%A1+em+1909&tbm=isch&ved=2ahU KEwjpjM-m88nqAhVFeRoKHYQvBHoQ2-cCegQIABAA&oq=imagens+de+Bel%C3%A9m+#imgrc=bzoyRRq7dxcx0M

[ 221 ]


TERESA CRUZ TUBBY | VALTER SANTOS

1909 – Rio de Janeiro2

AVANCA Nome e estado civil

Idade

Escolaridade e modo de vida

Data, destino e nº de passaporte

Filiação

Abel Lourenço Pires

22

NSE Lavrador

11-08-1909 Pará nº 592

José da Silva Pires e Maria Valente de Jesus

Agapito de Matos Almeida

20

NSE Lavrador

14-01-1909 Pará, nº 328

Exposto da freguesia de Avanca

Albino Dias de Matos

32

NSE Lavrador

09-10-1909 Pará nº 1021

António Dias de Matos e Maria Valente da Costa

Albino Valente, cº

41

NSE Jornaleiro

01-07-1909 Pará, nº 352

António Valente e Ana Maria

Ana Maria de Pinho

24

NSE Lavradeira

10-11-1909 Pará nº 1382

Manuel Caetano de Pinho Junior e Maria Joaquina

Ana Maria Valente, cª

63

NI

03-11-1909, Rio Grande do Sul nº 1286

NI

Viajou com o marido José Luis Valente

Angelina

8

Sabia escrever

20-03-1909, Rio Grande do Sul nº 37

António Dias e Maria da Trindade

Viajou com os pais e irmã Maria

António Augusto Alves

22

Sabia escrever Almocreve

12-10-1909 Pará, nº 1035

João Alves e Ana Rodrigues

2  - Foto gentilmente cedida por Saúl M. dos Santos

[ 222 ]

Notas


TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

António Augusto da Silva

23

Sabia escrever Lavrador

05-08-1909 Pará nº 561

Manuel Marques Cabeça e Maria da Silva

António Bernardino Valente Moutinho

12

Sabia escrever Lavrador

10-11-1909 Pará nº 1379

Manuel Valente de Abreu e Margarida de Bastos

António da Silva

17

Sabia escrever Lavrador

02-01-1909 Pelotas, nº 190

Joana da Silva, sª

António da Silva Tavares

18

Sabia escrever Lavrador

13-01-1909 Pará nº 321

Manuel da Silva Tavares e Maria Pereira Martins

António de Oliveira, cº

52

Sabia escrever Trabalhador

08-03-1909 Rio de Janeiro nº 953

José Joaquim de Oliveira e Ana Maria de Jesus

António Dias, cº

37

Sabia escrever Negociante

20-03-1909 Rio Grande do Sul nº 1110

Manuel Dias e Maria Pereira Martins

António Dias de Matos, cº

45

NSE Carpinteiro

03-11-1909 Rio Grande do Sul, nº 1300

Maria, sª

António Joaquim Pereira, vº

29

NSE Lavrador

13-12-1909 Pará nº 191

António Pereira e Margarida do Patrocinio da Silva

António José Dias da Costa

18

Sabia escrever Lavrador

11-01-1909 Rio de Janeiro nº 283

José Dias Vaz Caixeiro e Caetana Emília da Costa

António Lopes

28

NSE Padeiro

29-12-1909 Pará, nº 275

Maria Emília, sª

António Maria da Silva

17

Sabia escrever

6-11-1909, Baía, nº 1329

José Maria da Silva

António Maria Ferreira de Matos

20

Sabia escrever Lavrador

24-03-1909 Rio de Janeiro nº 1149

António Ferreira de Matos e Ana Pereira de Matos

António Valente

19

NSE Serviçal

14-10-1909 Pará nº 1080

Casimiro Valente e Joana Maria de Resende

Boaventura Zeferino da Costa, cº

22

NSE Carpinteiro

13-04-1909 Rio Grande do Sul, nº 1288

Albino da Costa e Albina Lopes

Francisco Joaquim Dias, cº

51

Sabia escrever Lavrador

01-03-1909 Rio de Janeiro nº 783

Manuel Dias e Bernarda de Jesus

Joana Rodrigues Pereira Martins

56

NSE Doméstica

03-09-1909 Rio de Janeiro nº 741

Manuel José Valente e Ana Pereira Rodrigues

João Augusto Calisto Gomes, cº

27

NSE Trabalhador

02-12-1909 Pará nº 113

José Gomes e Ana Rosa Pereira, também conhecida por Rosa Pereira

Irmão de Manuel Maria da Silva Tavares

Viajou com a mulher Maria da Trindade e os fºs Angelina e Maria

Viajou com o pai

[ 223 ]


TERESA CRUZ TUBBY | VALTER SANTOS

João da Silva Lopes

23

NSE Criado de servir

10-11-1909 Pará nº 1380

Manuel José Lopes e Maria Joana Valente Joana da Silva, também conhecida por Joana Maria de Oliveira Baillas

Joaquim Maria da Silva, cº

26

NSE Trabalhador

02-06-1909 Pará nº 188

Joaquim Marques de Oliveira

20

Sabia escrever Negociante

15-10-1909 Rio de Janeiro nº 1110

Ana Marques, sª

José Luis Valente, cº

62

Sabia escrever Proprietário

31-11-1909 Rio Grande do Sul nº 1286

António Luis Valente e Maria de Matos

José Manuel de Pinho, cº

21

NSE Lavrador

14-04-1909 Rio de Janeiro nº 1301

Matias de Pinho e Rosa Pereira

José Maria da Silva, cº

40

Sabia escrever Alfaiate

06-11-1909 Baía nº 1329

António da Silva e Marcelina Rosa Ferreira

José Maria da Silva

24

Sabia escrever Lavrador

01-07-1909 Pará, nº 351

José da Silva e Ana de Matos

José Maria Dias, cº

22

NSE Trabalhador

20-10-1909 Pará, nº 1267

João Dias e Maria de Jesus

José Maria Pinto

21

NSE Lavrador

11-01-1909 Rio de Janeiro nº 282

José Pinto e Antónia Pais de Abreu

José Maria Rodrigues da Fonseca, cº

41

Sabia escrever Proprietário

06-11-1909 Manaus nº 1319

António Valente da Fonseca e Luciana Augusta Pereira

José Maria Soares de Resende

20

NSE Lavrador

05-11-1909 Rio Grande do Sul, nº 1317

Joaquim Soares de Resende e Ana Soares de Jesus

José Maria Tavares

30

NSE Lavrador

10-11-1909 Pará nº 1381

José da Silva Tavares e Joaquina Maria Pereira

José Tavares de Almeida

54

Sabia escrever Trabalhador

13-07-1909 Rio Grande do Sul, nº417

Maria, sª

Júlio de Oliveira Rangel, cº

35

NSE Jornaleiro

20-03-1909 Rio Grande do Sul, nº 1108

António de Oliveira Rangel e Maria de Jesus

Manuel Américo Larangeira

18

Sabia escrever Carpinteiro

02-08-1909 Rio de Janeiro nº 541

Maria Joana da Silva Resende, sª

Manuel Anastácio Rodrigues

23

NSE Lavrador

03-11-1909 Pelotas nº 1299

Fº natural de Rosa Rodrigues, vª

Manuel Caetano de Pinho Junior

18

Sabia escrever Lavrador

10-11-1909 Pará nº 1383

Manuel Caetano de Pinho Junior e Maria Joaquina

[ 224 ]

Viajou com a mulher Ana Maria Valente

Viajou com o filho António Maria da Silva


TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

Manuel Caetano Dias da Silva

29

Sabia escrever Lavrador

13-02-1909 Rio de Janeiro nº 636

Francisco Dias da Silva e Maria Joaquina da Silva

Manuel da Silva de Matos

36

Sabia escrever Lavrador

08-10-1909 Rio de Janeiro nº 1008

José da Silva Matos e Joaquina de Oliveira

Manuel de Pinho

35

Sabia escrever Proprietário

02-03-1909 Manaus nº 797

Manuel de Pinho e Maria Rosa de Pinho

Manuel de Pinho Fragoso

23

Sabia escrever Jornaleiro

09-10-1909 Pará nº 1022

Joaquim de Pinho Fragoso e Maria Joaquina Valente

Manuel Lourenço Pires

22

NSE Lavrador

11-08-1909 Pará nº 592

José da Silva Pires e Maria Valente de Jesus

Manuel Maria da Silva Tavares

24

Sabia escrever Lavrador

14-01-1909 Pará nº 329

Manuel da Silva Tavares e Maria Pereira Martins

Manuel Maria Pais Chaves, cº

30

NSE Lavrador

02-06-1909 Pará nº 189

Domingos Pais Chaves e Maria Pais

Manuel Maria Pereira

21

NSE Lavrador

17-08-1909 Pará, nº 622

José Pereira e Maria Custódia

Manuel Maria Pires, cº

27

Sabia escrever Lavrador

17-08-1909 Pará nº 623

José da Silva Pires e Maria de Jesus

Manuel Maria Valente Nogueira, cº

36

Sabia escrever Proprietário

31-12-1909 Pará nº 306

Francisca, sª

Maria

7

Sabia escrever

20-3-1909 Rio Grande do Sul, nº 1110

António Dias e Maria da Trindade

Viajou com os pais e irmã Angelina

NI

Viajou com o marido António Dias e suas fªs Angelina e Maria

Maria da Trindade, cª Maria José, também conhecida por Maria Pereira Martins, cª Marinha da Silva

31

26 20

20-3-1909 Rio Grande do Sul nº 1110

Sabia escrever Doméstica

NSE Doméstica

14-01-1909 Pará nº 335

NSE Lavradeira

02-01-1909 Pelotas, nº 191

Irmão de António da Silva Tavares

Manuel da Silva Tavares e Maria Pereira de Jesus Joana da Silva, sª

BEDUÍDO Nome e estado civil

Idade

Escolaridade e modo de vida

Data, destino e nº de passaporte

Filiação

Agostinho José da Silva, cº

49

Sabia escrever Carpinteiro

13-04-1909 Pará, nº 1269

Ana Pereira, sª

António Marques Traqueia, cº

31

Sabia escrever Lavrador

23-01-1909 S. Paulo nº 431

Manuel Marques Traqueia Júnior e Ana Marques Figueira

Notas

[ 225 ]


TERESA CRUZ TUBBY | VALTER SANTOS

Domingos Marques Alegria, cº

52

Sabia escrever Proprietário

28-10-1909 Pará nº 1257

José Marques Alegria e Josefa Marques Couto

Francisco Leite de Azevedo

20

NSE Trabalhador

31-12-1909 Rio Grande do Sul nº 298

António Maria Leite de Azevedo e Maria Luiza da Silva Manuel Joaquim Rodrigues Garrido e Maria Antónia de Azevedo

Francisco Rodrigues Garrido

22

Sabia escrever Lavrador

08-02-1909 Pará nº 587

João José da Silva, cº

27

Sabia escrever Lavrador

13-11-1909 Pará nº 1435

Agostinho José da Silva e Maria Joaquina Marques Couto

Levou sua mulher Maria Marques Pereira

José de Melo, cº

23

NSE Jornaleiro

28-07-1909 Rio de Janeiro nº 526

Maria de Melo, sª

Vivia na freguesia de Avanca

José Maria da Fonseca, cº

29

Sabia escrever Alquilador

14-10-1909 Pará nº 1061

António Joaquim da Fonseca e Ana Rosa da Silva

Manuel Maria Tavares de Azevedo, cº

30

NSE Lavrador

14-10-1909 Pará nº 1083

Francisco Tavares de Azevedo e Ana da Silva

Manuel Marques Baptista

21

Sabia escrever Carpinteiro

28-07-1909 Rio de Janeiro nº 525

Caetano Marques Baptista e Maria Marques

Manuel Tavares Requinho, cº

32

NSE Lavrador

21-10-1909 Rio Grande do Sul, nº 1170

Manuel Tavares Requinho e Maria Marques

Maria Marques Pereira, cª

21

Sabia escrever Doméstica

13-11-1909 Pará nº 1435

NI

Narciso Lopes, cº

30

Sabia escrever Negociante

20-01-1909 Rio Grande do Sul, nº 378

José Lopes e Clara Marques

Nome e estado civil

Idade

Escolaridade e modo de vida

Data, destino e nº de passaporte

Filiação

Alfredo da Silva Vilar

17

Sabia escrever Alfaiate

24-09-1909 Pará nº 909

Manuel Joaquim da Silva Vilar e Ana Inácia Valente

André Lopes de Sousa, cº

38

NSE Lavrador

13-01-1909 Pará nº 326

Manuel Joaquim Lopes de Sousa e Ana Ermelinda da Silva

António Maria Madaleno, cº

36

Sabia escrever Carpinteiro

25-09-1909 Pará nº 922

António Joaquim da Silva e Maria José da Silva

António da Silva Garrido

19

Sabia escrever Lavrador

24-09-1909 Pará nº 908

Manuel António Lopes e Mariana da Silva

Foi com o marido João José da Silva

BUNHEIRO

[ 226 ]

Notas


TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

António Dias Pereira, vº

41

Sabia escrever Sapateiro

14-09-1909 S. Paulo nº 815

Mateus António Dias Pereira e Luisa Rosa de Jesus

António Joaquim da Silva Júnior

18

NSE Carpinteiro

24-09-1909 Pará nº 917

António Joaquim da Silva e Maria Joaquina da Silva

António Maria de Oliveira, cº

36

NSE Jornaleiro

13-01-1909 Pará, nº 323

Maria Caetana

Domingos Nunes dos Santos

12

Sabia escrever Estudante

27-01-1909 Pará nº 456

Rodrigo Luis Nunes e Maria Joaquina dos Santos

Francisco Tavares Ruivo

22

Sabia escrever Jornaleiro

08-07-1909 Pará nº 390

Joana Maria da Silva Tavares , sª

João Luis Rodrigues

25

NSE Lavrador

13-10-1909 Pelotas nº 1051

António Joaquim Rodrigues e Maria Trindade dos Santos

João Pedro Lopes

44

NSE Lavrador

26-06-1909 Pará nº 336

Manuel André Lopes e Ana Rosa Martinho

José dos Santos

24

Sabia escrever Alfaiate

08-07-1909 Pará nº 384

Agostinho dos Santos e Maria Rosalia da Silva

José Lopes da Silva Pereira

21

Sabia escrever Criado de servir

27-01-1909 Pará nº 459

Manuel Mateus Lopes da Silva e Felismina Pereira

José Maria Jorge de Oliveira, cº

33

NSE Jornaleiro

11-03-1909 Pará nº 977

Gonçalo António Fernandes e Maria António Rodrigues

José Maria Marques

18

Sabia escrever Caixeiro

16-06-1909 Pará nº 275

Manuel Maria Marques da Silva e Joana Maria da Silva

José Maria Tavares

15

Sabia escrever Trabalhador

10-03-1909 Pará nº 974

João Valentim Tavares e Figueiredo

Manuel da Silva Garrido, cº

25

Sabia escrever Lavrador

08-07-1909 Pará nº 389

Manuel António Lopes e Mariana da Silva

Manuel da Silva Trôxo, cº

22

Sabia escrever Padeiro

12-10-1909 Pará nº 304

António José da Silva Trôxo e Antónia Miquelina Fernandes da Silva

Manuel de Matos, cº

28

NSE Lavrador

13-05-1909 Pará nº 62

António Joaquim de Matos e Ana Rosa Pereira

Manuel José

14

Sabia escrever SP

16-06-1909 Pará nº 274

João Maria da Silva Saleiro e Maria Joana da Silva

Manuel Maria Arrojado

28

Sabia escrever Lavrador

30-03-1909 Pará nº 1188

Manuel Agostinho da Silva e Maria Rosália da Silva

[ 227 ]


TERESA CRUZ TUBBY | VALTER SANTOS

Manuel Maria Pereira

22

Sabia escrever Padeiro

25-09-1909 Pará nº 923

Manuel Joaquim Pereira e Ana Rosa Nunes Pereira

Maria Luciana

18

Sabia escrever Peixeira

26-10-1909 Pelotas nº 1231

José Maria Vaz de Oliveira e Amélia Fernandes Rendeiro

Pedro Pereira, cº

56

NSE Trabalhador

16-06-1909 Pará nº 272

Mateus António Pereira e Domingas Joaquina

CANELAS Nome e estado civil

Idade

Escolaridade e modo de vida

Data, destino e nº de passaporte

Filiação

António da Silva Figueiredo

21

Sabia escrever Trabalhador

23-03-1909 Pará nº 1141

António Maria de Figueiredo e Maria Rosa Esteves

António Dias Pereira

22

Sabia escrever Padeiro

23-12-1909 Pará nº 256

Manuel Joaquim Pires e Maria Rosa de Figueiredo

António Pires dos Santos, cº

29

Sabia escrever Proprietário

07-01-1909 Pará nº 239

António Pires dos Santos e Ana Pires

António Rodrigues de Figueiredo Almeida

24

Sabia escrever Lavrador

02-07-1909 Pará nº 357

António Rodrigues de Figueiredo e Maria de Almeida

Francisco Maria Rodrigues, cº

29

Sabia escrever Jornaleiro

17-08-1909 Pará, nº 624

João Rodrigues e Maria do Carmo

João Maria da Silva Neno, cº

20

Sabia escrever Lavrador

30-03-1909 Pará nº 1187

Gonçalo António Neno e Ana Tavares Bracinha

Joaquim Dias de Oliveira

25

Sabia escrever Lavrador

27-02-1909 Pará nº 761

António Dias de Oliveira e Joana de Jesus Serafim Domingues de Carvalho e Teresa Domingues da Conceição

Manuel de Jesus

29

NSE Lavrador

17-03-1909 Pará nº 1066

Manuel Domingues da Cruz e Silva, cº

38

Sabia escrever Lavrador

13-08-1909 Pará nº 611

António da Silva e Maria Domingues da Cruz

Manuel Domingues Piqueira, cº

26

Sabia escrever Lavrador

17-03-1909 Pará nº 1068

Manuel Domingues Piqueira e Ana Rosa Travôa

[ 228 ]

Notas


TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

ESTARREJA

Nome e estado civil

Idade

Escolaridade e modo de vida

Data, destino e nº de passaporte

Filiação

Notas

Agostinho Luís de Pinho Valente ? de Pinho Ramos

46

Sabia escrever Trabalhador

24-04-1909 ? nº 275

NI

Ver foto acima

José da Silva Ferreira, cº

51

NSE Pedreiro

22-11-1909 Rio de Janeiro nº 514

António da Silva Ferrreira

José Matias Afonso, cª

41

NSE Estucador

28-06-1909 Pará nº 1035

NI

Manuel da Silva

26

Sabia escrever Moleiro

06-07-1909 S. Paulo, nº 1111

José da Silva

Nome e estado civil

Idade

Escolaridade e modo de vida

Data, destino e nº de passaporte

Filiação

Abílio Dias de Oliveira

15

Sabia escrever Caixeiro

14-12-1909 Pará nº 210

António Dias de Oliveira e Ana Rosa da Silva

António da Silva Baptista

29

Sabia escrever Lavrador

21-05-1909 Manaus nº 114

Frsncisco da Silva Baptista e Joana Marques Oliveira

António Domingues Beirão

12

Sabia escrever SP

27-07-1909 Pará nº 524

António Domingues Beirão e Maria de Jesus

António Esteves de Sá Pires Júnior, cº

33

Sabia escrever Carpinteiro

11-12-1909 Pará nº 170

António Esteves de Sá Pires e Francisca Maria de Jesus

António José de Resende, cº

19

Sabia escrever Padeiro

05-11-1909 Pará nº 1323

João José de Resende e Ana Rosa da Silva Ribeiro

FERMELÃ Notas

Levou o fº Manuel Esteves de Sá Pires

[ 229 ]


TERESA CRUZ TUBBY | VALTER SANTOS

António Nunes Beirão

23

Sabia escrever Padeiro

31-12-1909 Pará nº 304

Julião Tavares da Silva e Maria Dias Larangeira

Caetano Marques Loureiro

26

Sabia escrever Lavrador

16-12-1909 Manaus nº 213

José Marques Loureiro e Isabel de Jesus de Almeida

Emilia de Oliveira Alvaro, cª

25

Sabia escrever Doméstica

18-10-1909 Pernambuco nº 864

NI

Francisco Simões dos Reis, casº

27

Sabia escrever Jornaleiro

07-12-1909, Pará, nº 136

Maria Ribeiro, sª

NI

Foi com o marido Julião Dias Alvaro

Foi com o marido Manuel dos Santos Capeleiro

Joana Maria de Jesus, cª

25

NI Doméstica

27-07-1909 Pará nº 523

Joaquim Nunes Beirão

13

Sabia escrever Lavrador

07-12-1909 Pará nº 138

João Nunes Beirão e Maria Rosa Ribeira Baptista

José António Dias Larangeira, cº

36

Sabia escrever Lavrador

23-01-1909 Pará nº 426

José António Dias Larangeira e Maria Rosa de Almeida Baptista de Resende

José de Almeida Navalhas Júnior, cº

31

Sabia escrever Lavrador

11-12-1909 Pará nº 174

José de Almeida Navalhas e Joana Ribeiro Baptista

José dos Reis, cº

29

Sabia escrever Negociante

21-07-1909 Manaus nº 459

Francisco Simões dos Reis e Maria do Rosário

José Rodrigues Onofre, cº

41

Sabia escrever Lavrador

210-07-1909 Pará nº 446

José Rodrigues Onofre e Maria do Rosário Domingues Esteves

Julião Dias Alvaro, cº

44

Sabia escrever Comerciante

18-09-1909 Pernambuco nº 864

António Dias Alvaro e Maria Marques de Oliveira

Manuel de Sousa Miguel, cº

32

Sabia escrever Padeiro

11-12-1909 Pará nº 172

Francisco de Sousa Miguel e Ana de Jesus

Manuel Dias da Silva, cº

24

NSE Padeiro

15-12-1909 Pará nº 193

João Dias da Silva e Maria Martins de Bastos

Manuel Domingues Piqueira

17

Sabia escrever Estudante

17-03-1909 Pará nº 1068

Daniel Domingues Piqueira e Joana Rodrigues Baptista

Manuel dos Santos Capeleiro, cº

25

Sabia escrever Comerciante

27-07-1909 Pará nº 523

António Maria Capeleiro e Maria Dias Capeleira

Levou mulher Joana Maria de Jesus

Manuel Esteves de Sá Pires

11

11-12-1909, Pará, nº 170

António Esteves de Sá Pires

Viajou com seu pai

Manuel Gonçalves de Melo

22

07-12-1909 Pará nº 137

José Gonçalves de Melo e Luisa Joaquina da Graça

[ 230 ]

Sabia escrever Sabia escrever Carpinteiro

Levou a mulher Emília de Oliveira Álvaro


TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

MURTOSA Nome e estado civil

Idade

Escolaridade e modo de vida

Data, destino e nº de passaporte

Filiação

Agostinho José Marques Caseiro, cº

29

NSE Pescador

30-12-1909 Pará nº 285

Pedro Marques Caseiro e Joaquina Rosa da Cunha

Alvaro Baptista da Silva Soares

11

Sabia escrever

14-10-1909 Pará, nº 1065

António José Soares dos Santos

Amélia das Dores Rendeiro, cª

20

Sabia escrever Costureira

03-05-1909 Pará nº 1500

Manuel Lourenço Fernandes Rendeiro e Ana Marcelina Rendeiro

Américo de Jesus da Silva Reverendo

20

Sabia escrever Carpinteiro

13-10-1909 Pará nº 1041

José Maria da Silva Reverendo e Maria Luisa de Oliveira

Américo Maria da Silva

24

Sabia escrever Pescador

29-10-1909 Pará nº 1266

José Maria da Silva e Joaquina Maria da Silva

Aniceto Bernardo Vaz, cº

44

NSE Pescador

12-03-1909 Pará nº 992

Francisco Vaz da Silva e Maria José da Silva

António Augusto

15

Sabia escrever Caixeiro

05-04-1909 Pará nº 1220

Joaquim Manuel Lopes Guiomar e Mariana Oliveira

António Augusto Pereira

23

Sabia escrever Pescador

14-04-1909 Pará nº 1295

António Joaquim Pereira e Maria José

António Joaquim da Cruz Vaz, cº

42

Sabia escrever Marítimo

27-01-1909 Pará nº 458

Manuel da Cruz Vaz e Maria Luisa Lopes

António Joaquim das Neves, cº

35

NSE Pescador

31-05-1909 Manaus nº 185

José Joaquim Soares dos Santos e Maria das Nesves

António Joaquim Lopes

13

Sabia escrever SP

17-04-1909 Pará nº 1355

Manuel José Lopes Júnior e Maria Clara Tavares da Fonseca

António José Soares dos Santos, cº

36

Sabia escrever Comerciante

14-10-1909 Pará nº 1065

Pedro José Soares dos Santos e Ana Joaquina

António Júlio da Cruz Neno

20

Sabia escrever Carpinteiro

13-10-1909 Pará nº 1044

Jacinto da Cruz Neno e Rosa Antónia Valente de Almeida

António Júlio Marinho, cº

30

NSE Mercantel

27-02-1909 Pará nº 778

Francisco José Marinho e Margarida Cardosa

António Luis dos Reis, cº

26

NSE Pescador

20-09-1909 Pará nº 891

Caetano Maria dos Reis e Maria Teresa de Oliveira

Notas

Viajou com seu pai

Levou o fº Álvaro Baptista da Silva Soares

[ 231 ]


TERESA CRUZ TUBBY | VALTER SANTOS

António Maria Brandão, cº

36

NSE Pescador

03-04-1909 Pará nº 4

António Rodrigues Brandão e Maria Joaquina Amadora

António Maria da Costa, cº

28

NSE Pescador

28-12-1909 Pará nº 266

José Maria da Costa e Maria José de Jesus

António Maria da Silva Rendeiro, cº

23

Sabia escrever Pescador

10-12-1909 Pará nº 164

João Pedro Rendeiro e Domingas José

António Maria Esteves, cº

38

NSE Pescador

27-04-1909 Pará nº 1433

Manuel José Esteves e Ana Joaquina da Silva

António Maria Lopes

25

NSE Pescador

30-08-1909 Pará nº 712

Manuel José Lopes e Maria Joaquina da Silva

António Maria Pereira, cº

26

NSE Moliceiro

06-09-1909 Pará nº 769

António Joaquim Pereira e Maria Rosa

António Maria Vaz

11

Sabia escrever Pescador

24-11-1909 Pará nº 38

Joaquim Vaz Pinho e Antónia Joaquina Marreca

António Maria Pereira de Pinho, cº

18

Sabia escrever Pescador

11-08-1909 Pará nº 584

Gonçalo António Pereira de Pinho e Carolina Amélia da Silva

Artur de Oliveira

18

Sabia escrever Empregado do comércio

27-01-1909 Pará nº 219

Manuel José de Oliveira e Albina Rosa Rodrigues

Cândido Augusto Rendeiro, cº

30

27-02-1909 S. Francisco, Califórnia nº 774

João José Fernandes Rendeiro e Apolónia Maria

David José de Campos

37

NSE Pescador

30-11-1909 Pará nº 84

Manuel Joaquim de Campos e Mariana Soares

David José Rendeiro, cº

35

Sabia escrever Negociante

24-11-1909 Pará nº 37

Gonçalo Dias Rendeiro e Maria de Jesus

Delfim dos Anjos Vieira,

13

Sabia escrever Estudante

08-11-1909 Pelotas nº 1361

José Maria de Oliveira e Maria José de Oliveira

Domingos António Vieira, cº

49

NSE Pescador

05-08-1909 Pará nº 654

Domingos António Vieira e Rosália Maria

Domingos Luis de Pinho, cº

21

Sabia escrever Mercantel

06-10-1909 Pará nº 996

António José de Pinho e Apolónia Maria

Domingos João Barbosa

29

NSE Lavrador

28-12-1909 Pará nº 265

Manuel Joaquim Barbosa e Maria Luisa de Oliveira

[ 232 ]

Sabia escrever Trabalhador


TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

Domingos José Rendeiro, cº

48

NSE Mercantel

30-11-1909 Pará nº 87

Inácio António Rendeiro e Maria Caetana

Francisco António Pereira, vº

41

NSE Pescador

01-04-1909 Pará nº 1203

Gonçalo António Pereira e Rosa Joana

Levou o fº José Maria Pereira

Francisco António ?, cº

23

NSE Trabalhador

25-10-1909 Pará nº 1214

Manuel Maria da Silva e Maria Rosália da Silva

Ver foto acima

Francisco Maria

19

Sabia escrever Moliceiro

23-12-1909 Pará nº 255

José Manuel Nunes Calado e Maria da Piedade Mansa

Francisco Maria Fernandes Rendeiro

25

NSE Marítimo

09-10-1909 Pará nº 1017

Lazario Fernandes Rendeiro e Maria Agostinho

Gonçalo António Amador, vº

50

NSE Proprietário

23-12-1909 Pará nº 257

Marcelino Amador e Ana Rosália da Silva

Gonçalo António da Silva, cº

44

NSE Pescador

06-04-1909 Manaus nº 1235

José António da Silva e Apolónia Maria

Gonçalo António de Matos, cº

45

NSE Pescador

11-11-1909 Pará nº 1397

Sebastião José de Matos e Ana Clara de Matos

Gonçalo António Rangel, cº

25

NSE Pescador

18-03-1909 Pará nº 1079

Manuel Joaquim da Silva Rangel e Maria José de Oliveira

Gonçalo Maria Fernandes Ruela

33

NSE Pescador

17-03-1909 Pará nº 1065

Manuel José Fernandes Ruela e Joaquina Maria Rebela

[ 233 ]


TERESA CRUZ TUBBY | VALTER SANTOS

Henrique José Loureiro da Silva

18

Sabia escrever Pescador

14-04-1909 Pará nº 1292

José Manuel Loureiro da Silva e Maria Rosália Nunes Pereira

Hilário Henriques Tavares

22

Sabia escrever Pescador

10-03-1909 Pará nº 976

Martinho José Tavares e Maria José Esteves

Inácio José Afonso Lopes, cº

28

NSE Lavrador

11-10-1909 Pará nº 1030

Manuel Joaquim Afonso Lopes e Maria Rosa Tavares

João Agostinho Leandro, cº

23

Sabia escrever Pescador

13-04-1909 Pará nº 1268

José Manuel Leandro e Ana luiza Vaz

João António Costeira, cº

41

Sabia escrever Moliceiro

30-11-1909 Pará nº 86

Manuel Pedro Costeira e Ana Joaquina

João Bernardo Pereira de Pinho

31

NSE Catraeiro

27-02-1909 Pará nº 773

Gonçalo António Pereira de Pinho e Maria Antónia

João Maria Caneira, cº

34

NSE Marítimo

04-10-1909 Manaus nº 34

António Joaquim Caneira e Domingas Antónia

João Maria, também conhecido por João Maria Soares Belo

17

Sabia escrever Negociante

20-12-1909 Pará nº 235

Joaquim Manuel Belo e Ana Luisa

João Maria de Matos, cº

21

Sabia escrever Pescador

18-08-1909 Pará nº 636

Domingos Joaquim de Matos e Ana Rosa

João Maria Ruela

25

Sabia escrever Mercantel

09-10-1909 Pará nº 1016

Gaudêncio José Fernandes Ruela e Maria Joaquina Nunes Pereira

João Maria Tavares da Cunha

22

NSE Lavrador

23-12-1909 Pará nº 254

Luis Pedro Tavares da Cunha e Maria Rosa Tavares

João Maria Tegeleiro

21

NSE Mercantel

10-09-1909 Pará nº 789

Manuel José Tegeleiro e Maria António de Pinho

João Maria Vieira «o Calisto», cº

36

NSE Alquilador

25-08-1909 Pará nº 694

Calisto Vieira e Maria Teresa da Silva

Joaquim Manuel Rebelo, cº

34

NSE Pescador

03-05-1909 Pará nº 5

Joaquim Manuel Rebelo e Maria Luisa Vaz

Joaquim Manuel Soares Vida, cº

49

NSE Pescador

31-12-1909 Pará nº 305

Domingos José Soares Dias e Ana Rebelo

[ 234 ]


TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

Joaquim Maria de Oliveira ?

28

Sabia escrever Trabalhador

17-03-1909 Pará nº 1060

António José da Silva e Maria Rosália de Oliveira

Joaquim Maria Fernandes da Cunha

20

Sabia escrever Moliceiro

20-12-1909 Pará nº 234

João Maria Fernandes da Cunha e Maria Rosália

Joaquim Maria Valente, cº

44

NSE Moliceiro

15-04-1909 Pará nº 1315

Manuel José de Almeida e Apolónia da Silva

José António de Matos, cº

30

NSE Pescador

17-02-1909 Pará nº 611

Constantino José de Matos e Maria Rosália

José António Neno, cº

24

NSE Pescador

06-12-1909 Pará, nº 125

Luis António Neno e Joana Rosa

José da Silva Pereira

13

Sabia escrever Estudante

29-12-1909 Pará nº 278

Gonçalo António Pereira Patusco e Domingas Maria Vieira

José Luís Gonçalves Rebelo, cº

32

Sabia escrever Pescador

04-10-1909 Manaus nº 982

Parcidonio Gomes Rebelo e Maria Joana

José Manuel de Oliveira, cº

25

NSE Alfaiate

04-03-1909 Pará nº 866

Agostinho José de Oliveira e Ana Antónia

José Manuel Soares Carinha, cº

37

Sabia escrever Marítimo

27-01-1909 Pará nº 457

Agostinho Soares Carinha e Maria Luisa Lopes

Ver foto acima

[ 235 ]


TERESA CRUZ TUBBY | VALTER SANTOS

José Maria da Cruz ?, cº

31

Sabia escrever Pescador

21-10-1909 Pará nº 1175

Manuel Luis da Cruz e Mariana da Cruz

José Maria da Cunha

38

NSE Pescador

02-06-1909 Pará nº 190

Francisco José da Cunha e Maria Rosália da Silva

José Maria Pereira

13

Sabia escrever

01-04-1909, Pará, nº 1203

Francisco António Pereira, vº André Vicente Rebelo e Maurícia da Apresentação Reverendo

José Maria Rebelo, cº

31

Sabia escrever Pescador

06-09-1909 Pará nº 768

José Maria Reverendo, cº

33

NSE Lavrador

29-12-1909 Pará nº 273

Joaquim Maria da Silva Reverendo e Rosa Cristina Fidalgo

José Maria Soares Carinha, cº

28

NSE Marítimo

05-02-1909 Pará nº 542

António Maria Soares Carinha e Maria Luisa Rebela

Lázaro José Costeira, cº

50

Sabia escrever Marítimo

02-12-1909 Pará nº 99

Domingos Costeira e Ana Maria de Matos

Manuel Augusto Tavares de Matos

20

Sabia escrever Mercantel

13-09-1909 Pará nº 796

Manuel Joaquim Tavares de Matos e Helena Rosa Afonsa

Manuel Inocêncio Fernandes Camarão

23

Sabia escrever Mercantel

31-12-1909 Pará nº 301

José Maria Fernandes Camarão e Isabel Bernarda da Silva

Manuel Joaquim Rebelo, cº

39

NSE Pescador

01-12-1909 Pará nº 90

Agostinho José Rebelo e Maria Rosália da Silva

Manuel Joaquim Rebelo dos Santos, cº

42

NSE Moliceiro

12-01-1909 Pará nº 298

Manuel Luis Rebelo dos Santos e Apolónia Rosa de Oliveira

[ 236 ]

Ver foto acima

Foi com seu pai


TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

Manuel João Nunes Azevedo, cº

43

NSE Pescador

29-09-1909 Pará nº 929

João Nunes de Azevedo e Joaquina Rosa da Silva

Manuel José Alípio

12

Sabia escrever SP

17-09-1909 Pará, nº 849

Manuel António Alípio e Ana Antónia

Manuel José Pereira, cº

37

NSE Pescador

06-09-1909 Pará nº 770

Venâncio António Pereira e Domingas Luisa Pereira

Manuel José Soares da Silva, cº

31

NSE Pescador

05-04-1909 Pará nº 1219

António Joaquim Soares da Silva e Apolónia Maria da Silva

Manuel Luis Afonso, cº

46

NSE Negociante

30-11-1909 Pará nº 88

João Agostinho Afonso e Maria José

Manuel Maria Loureiro da Silva, cº

27

Sabia escrever Comerciante

14-04-1909 Pará nº 1214

Manuel Loureiro da Silva e Maria Joana Nunes Pereira

Manuel Maria Mergulhão, cº

46

NSE Pescador

02-07-1909 Pará nº 355

Manuel José Mergulhão e de Rosa Maria

Manuel Maria Soares Belo, cº

38

Sabia escrever Mercantel

02-01-1909 Pará nº 189

Joaquim Manuel da Silva Paiva e Maria Joana

Martinho José Tavares, cº

46

NSE Pescador

10-03-1909 Pará nº 935

José Tavares Baldaia e Maria Victória da Silva

Rodrigo Luís Tavares, cº

26

Sabia escrever Alfaiate

01-10-1909 Pará nº 960

João Vicente Tavares e Maria João de Oliveira

Sebastião Maria Troia, cº

28

Sabia escrever Mercantel

03-05-1909 Pará, nº 1

José Rodrigues Tróia e Ana José

Valentim José Fernandes Rendeiro, cº

29

NSE Marítimo

04-01-1909 Pará nº 213

Lázaro António Fernandes Rendeiro e Maria Agostinho

Venâncio António Fernandes Rendeiro, cº

28

Sabia escrever Mercantel

27-01-1909 Pará nº 461

Manuel José Fernandes Rendeiro e Maria Rosália Tavares

Zacarias de Ascenção Alminha

12

Sabia escrever Pescador

13-09-1909 Brasil nº 797

José Joaquim da Silva Almeida e Ana Antónia

Nome e estado civil

Idade

Escolaridade e modo de vida

Data, destino e nº de passaporte

Filiação

Adelino da Silva e Pinho, cº

29

Sabia escrever Carpinteiro

13-05-1909 Pará, nº 65

Ana Joaquina, sª

Sabia escrever Padeiro

21-01-1909 Pará nº 396

PARDILHÓ

António da Silva Garrido, cº

34

Notas

Bernardo da Silva Garrido e Domingas Rodrigues Amador

[ 237 ]


TERESA CRUZ TUBBY | VALTER SANTOS

António da Silva de Matos

19

Sabia escrever Lavrador

16-07-1909 Pará nº 432

José da Silva de Matos e Maria Esteves dos Santos

António de Bastos, cº

41

Sabia escrever Padeiro

16-06-1909 Pará nº 271

Manuel Lourenço da Silva Carrelhas e Ana Rodrigues

António Joaquim da Fonseca, cº

58

NSE Carpinteiro

14-01-1909 Rio de Janeiro nº 331

Manuel Joaquim da Fonseca e Maria Valente de Almeida

António Joaquim da Silva Pereira

20

NSE Carpinteiro

14-01-1909 Rio de Janeiro nº 333

José António da Silva Pereira e Maria Luisa da Silva

António Lopes, cº

38

NSE Pescador

21-01-1909 Pará, nº 383

Rosa Lopes, vª

António Maria da Fonseca

28

Sabia escrever Padeiro

10-12-1909 Pará nº 168

Manuel Lourenço da Fonseca e Maria Albina da Silva

António Nunes da Silva

32

Sabia escrever Lavrador

02-08-1909 Pará nº 542

Bernardo Nunes da Silva e Mariana Nunes

António Trôxo

31

Sabia escrever Lavrador

13-01-1909 Pará nº 324

Calixto Pinto da Silva

19

Sabia escrever Empregado do comércio

10-09-1909 Manaus nº 788

João Pinto da Silva e Ana Rosa da Silva

Domingos Bento da Silva Esteves

20

Sabia escrever Padeiro

02-10-1909 Pará nº 967

João Maria Esteves e Maria Isabel da Silva Pereira

Domingos da Silva Trôxo

11

Sabia escrever SP

13-01-1909 Pará nº 325

Manuel Lourenço da Silva Trôxo e Ana da Silva Amadora

Feliciano Nunes da Silva, cº

35

Sabia escrever Empregado do comércio

02-08-1909 Pará nº 543

Bernardo Nunes da Silva e Mariana Nunes

Firmino de Pinho

20

Sabia escrever Ferreiro

13-01-1909 Pará nº 63

Francisco de Pinho e Clara Rosa Pereira

Francisco da Silva Fonseca

12

Sabia escrever SP

14-01-1909 Pará nº 330

Manuel Marques da Fonseca e Maria Piedade da Silva

Germano Domingues, cº

33

Sabia escrever Carpinteiro

08-07-1909 Pará nº 388

António Joaquim Domingues e Ana Joaquina da Silva

João Afonso, cº

34

NSE Carpinteiro

20-08-1909 Rio de Janeiro nº 650

António Joaquim Afonso e Ana Maria da Silva

Joaquim Dias Ministro, cº

23

NSE Moliceiro

13-02-1909 Pará nº 631

António Maria Dias e Maria Dias de Matos

[ 238 ]

Manuel Lourenço da Silva Trôxo e Ana da Silva Amadora

Irmão de Manuel da Silva Pereira

Irmão de Domingos da Silva Trôxo

Irmão de António Trôxo

Levou seu filho Júlio

Vivia na freguesia do Bunheiro


TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

Joaquim dos Santos Teixeira

42

Sabia escrever Empregado do comércio

22-14-1909 Pará nº 1395

Manuel António Teixeira e Maria da Silva Pinho

Joaquim Lopes da Silva

20

Sabia escrever Padeiro

11-12-1909 Pará nº 185

Manuel António Lopes da Silva e Maria Isabel de Resende

Joaquim Valente de Almeida

16

NSE Lavrador

06-12-1909 Pará nº 127

Joaquim Valente de Almeida e Maria Rosa Esteves

José da Silva de Pinho, cº

29

Sabia escrever Serrador

20-03-1909 Pará nº 1113

Alexandre da Silva de Pinho e Ana da Silva Tavares

José Jacques

26

NSE Lavrador

02-07-1909 Rio Grande do Sul nº 354

José Manuel de Matos Jacques e Madalena Ferreira

José Luciano Tavares Afonso e Cunha

29

Sabia escrever Padre

11-04-1909 Para viajar no Estrangeiro nº 1304

Miguel Tavares Afonso e Cunha e Ana Joaquina Valente Teixeira

Julião Rilho, cº

31

NSE Lavrador

30-11-1909 Manaus nº 85

Manuel Rodrigues Rilho e Maria Rosa Pereira

Júlio

11

Sabia escrever

8-7-1909 Pará, nº 388

Germano Domingues

Manuel António de Bastos, cº

41

Sabia escrever Padeiro

16-06-1909 Pará nº 271

Manuel Lourenço da Silva Carrelhas e Ana Rodrigues

Manuel da Silva Couto, cº

25

NSE Ferreiro

03-04-1909 Pará nº 1217

Francisco António da Silva Couto e Maria da Silva Pereira

Manuel da Silva Pereira

12

NSE Carpinteiro

14-01-1909 Rio de Janeiro nº 332

José António da Silva Pereira e Ana Luisa da Silva

Manuel de Oliveira, cº

23

Sabia escrever Trabalhador

12-03-1909 Manaus nº 996

João António de Oliveira e Maria Caetana Valente

Sabia escrever Carpinteiro

13-01-1909 Pará nº 322

Manuel António deAlmeida Ramos e Joana Maria dos Santos

Manuel Francisco de Almeida Ramos, cº Manuel Joaquim Valente de Almeida, cº

33

NSE Mercantel

19-07-1909 Pará nº 436

Luis Valente de Almeida e Isabel Maria da Silva

Manuel Lopes Ramos, cº

30

Sabia escrever Ferreiro

05-08-1909 Pará nº 552

José Lopes Ramos e Maria Joana da Silva Pereira

Manuel Pinto da Silva

16

Sabia escrever Serralheiro

10-09-1909 Manaus, nº 787

João Pinto da Silva e Ana Rosa da Silva

Manuel Valente Frazão

13

Sabia escrever Estudante

07-05-1909 Rio de Janeiro nº 30

Manuel Valente Frazão e Emília da Fonseca

Por via marítima

Viajou com o pai

Irmão de António Joaquim da Silva Pereira

Vivia em Espinho

[ 239 ]


TERESA CRUZ TUBBY | VALTER SANTOS

Miguel Maria de Resende, também conhecido por Miguel de Resende

35

NSE Serrador

19-02-1909 Pará nº 692

Gonçalo de Resende e Rosa Lopes

Umbelina Ferreira da Costa, cª

41

NSE Doméstica

26-06-1909 Pará nº 335

João António da Silva Amaro e Maria Ferreira da Costa

Morava no Bunheiro

Nome e estado civil

Idade

Escolaridade e modo de vida

Data, destino e nº de passaporte

Filiação

Notas

António de Almeida

28

NSE Lavrador

08-01-1909 Rio de Janeiro nº 255

Agostinho de Almeida e Maria Figueira

Bernardo da Silva Rainho, cº

33

Sabia escrever Comerciante

16-04-1909 Pará nº 1330

Manuel da Silva Rainho e Ana Tavares

Celestino Tavares Brandão, cº

19

Sabia escrever Trabalhador

22-06-1909 Rio de Janeiro nº 292

José Tavares Brandão e Margarida Bandeira

Daniel Rebelo

22

NSE Jornaleiro

24-11-1909 Pará nº 39

Francisco Rebelo e Maria de Jesus

Francisco Maria Simões

23

Sabia escrever Negociante

30-04-1909 Pará nº 1467

Francisco Maria Simões e Ana Rosa de Oliveira Rodrigues José Fortunato de Quadros Corte Real e Maria Cândida Vilhegas Pereira de Melo

SALREU

Guilherme Corte Real

38

Sabia escrever Proprietário

13-10-1909 Manaus nº 1040

Ildefonso Valente Marques, cº

30

Sabia escrever Proprietário

19-08-1909 Rio de Janeiro nº 543

José Valente do Marques e Ana de Oliveira Grulha

João da Silva

26

Sabia escrever Jornaleiro

21-10-1909 Rio Grande do Sul, nº 1169

Tomé da Silva e Carolina Valente de Almeida

João Marques, cº

25

Sabia escrever Pedreiro

10-03-1909 Rio de Janeiro nº 972

António Joaquim Marques e Maria da Anunciação

João dos Santos

11

Sabia escrever NI

29-11-1909 Pará nº 83

João dos Santos e Maria Valente Pires

Joaquim Maria Rendeiro, cº

44

Sabia escrever Carpinteiro

22-11-1909 Pará nº 12

Ricardo José Rendeiro e Joana Rodrigues

Joaquim Nunes Rodrigues, cº

32

Sabia escrever Carpinteiro

13-09-1909 Pará nº 800

José Nunes Rodrigues e Maria Rodrigues de Figueiredo

José Rodrigues

20

Sabia escrever Jornaleiro

12-06-1909 Pará nº 256

Manuel Rodrigues e Margarida Valente

[ 240 ]


TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

José Valente

28

NSE Lavrador

13-09-1909 Pará nº 799

José Rodrigues Marques Valente e Maria Gomes da Luz

Manuel de Almeida, cº

27

NSE Jornaleiro

28-04-1909 Rio de Janeiro nº 1448

José de Almeida e Ana de Jesus

Manuel Maria da Silva Tavares

23

Sabia escrever Empregado do comércio

13-12-1909 Pará nº 192

João Maria Tavares e Maria da Silva

Manuel Maria Nunes, cº

34

Sabia escrever Ferreiro

22-11-1909 Pará nº 10

Sebastião Nunes e Maria Rosa Valente

Manuel Tavares

30

NSE Jornaleiro

09-11-1909 Rio Grande do Sul, nº 1374

Manuel Bernardo Tavares e Maria da Silva

VEIROS Nome e estado civil

Idade

Escolaridade e modo de vida

Data, destino e nº de passaporte

Ana Joaquina Marques Valente, cª

53

Sabia escrever Doméstica

22-10-1909 Manaus nº 1184

António Caetano Ferreira da Silva

26

Sabia escrever Empregado no comércio

25-10-1909 Manaus nº 1218

António José Pereira de Sousa

21

Sabia escrever Lavrador

António Maria de Oliveira

21

Sabia escrever Jornaleiro

António Maria Marques Couto

22

NSE Lavrador

Diogo Maria Afonso da Silva

21

Sabia escrever Carpinteiro

Domingos Maria Marques

23

Sabia escrever Lavrador

02-11-1909 Manaus nº 1279

José Maria Marques e Maria Josefa da Silva

Francisco Lagoeiro

18

Sabia escrever Lavrador

13-09-1909 Pará nº 805

Joaquim Lagoeiro e Maria do Carmo Henriques

Gonçalo António Pais, cº

30

NSE Lavrador

08-02-1909 Pará nº 584

Remigio Afonso Pais e Maria João da Silva

João Augusto Pereira de Sousa

26

Sabia escrever Lavrador

11-12-1909 Pará nº 188

Agostinho Maria Pereira de Sousa e Maria Rosália Antão

11-12-1909 Pará nº 189 23-01-1909 Pará nº 434 06-11-1909 Santos nº 1330 19-10-1909 Pará nº 1136

Filiação

Notas

Manuel Joaquim Rodrigues e Maria Teresa Marques Valente Joaquim Maria Ferreira da Silva e Tomásia Valente de Almeida Agostinho Maria Pereira de Sousa e Maria Rosália Antão João Caetano de Oliveira e Ana Augusta Marques Traqueia Narciso António Marques Couto e Maria Teresa da Silva Manuel Joaquim Afonso da Silva e Maria José Pereira de Sousa

[ 241 ]


TERESA CRUZ TUBBY | VALTER SANTOS

João Baptista de Pinho, cº

23

NSE Alfaiate

13-02-1909 Pará nº 635

José Maria de Pinho e Maria José da Silva

João José Afonso da Silva

21

Sabia escrever Carpinteiro

14-05-1909 Pará nº 79

Gonçalo António Afonso da Silva e Custódia da Silva Nunes

João José Nunes da Silva, cº

48

Sabia escrever Alfaiate

Joaquim da Fonseca Ramos

33

Sabia escrever Alfaiate

Joaquim Nunes, cº

30

Sabia escrever Jornaleiro

José Luciano, cº

25

Sabia escrever Padeiro

32

NSE Carpinteiro

36

Sabia escrever Alfaiate

45

NSE Alfaiate

21

NSE Estucador

28

Sabia escrever Carpinteiro

35

Sabia escrever Proprietário

22-10-1909 Manaus, nº 1185

Manuel José Rodrigues dos Santos e Josefa Vitorina da Silva

36

Sabia escrever Alfaiate

14-06-1909 Pará, nº 421

Caetano José da Silva e Maria Antónia Nunes

Manuel José Valente, cº

31

NSE Lavrador

24-03-1909 Pará nº 1148

Mateus José Marques de Oliveira, vº

35

NSE Jornaleiro

25-08-1909 Pará nº 690

Plácido da Fonseca Ramos

13

Sabia escrever SP

13-12-1909 Pará nº 199

Sebastião José Valente e Maria Augusta da Silva Garganta Manuel Caetano da Silva Garganta e Delfina Marques de Oliveira António José da Fonseca Ramos e Maria José de Oliveira

José Manuel de Oliveira, cº José Maria da Silva Cativo, cº José Maria de Pinho, cº José Maria Pires, cº Manuel Augusto Nunes, cº Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos, cº Manuel José da Silva Captivo, cº

Siglas cª/º - Casada/o fas/º - Filhas/o

[ 242 ]

sª – solteira SP – Sem profissão

24-09-1909 Pará nº 906 15-10-1909 Manaus nº 1094 29-10-1909 Pará nº 1265 24-03-1909 Pará nº 1150 30-03-1909 Pará nº 1183 14-07-1909 Pará nº 421 23-01-1909 Pará nº 430 14-05-1909 Pará nº 80 05-04-1909 Pará nº 1221

António José da Silva e Joana Antónia Tavares

Vivia em Cacia, Aveiro

Joaquim da Fonseca Ramos e Cecília Rosa Nunes António Joaquim Nunes e Maria Joana Antão Joaquim Lapeiro e Maria do Carmo Henriques Manuel Maria de Oliveira e Joana Maria da Silva Caetano José da Silva e Maria Antónia Nunes Constantino José de Pinho e Inocência Maria da Fonseca João Maria Pires e Brigida Ermelinda de Jesus António José Nunes e Maria da Silva

vº - viúvo NI – Não indicada

NSE – Não sabia escrever


TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

VEIROS - SINOPSE PELAS REFERÊNCIAS DA SUA HISTÓRIA E SUAS GENTES Victor Bandeira* Mais de 800 anos passaram desde a primeira menção conhecida a Veiros, cujo território se compraz entre o “lado de cá dos pinheiros” (expressão usada pelos mais antigos) e a Ria de Aveiro. À luz do conhecimento actual, é na Idade Média, num aforamento colectivo em documento datado de 1210, que o topónimo desta localidade surge pela primeira vez. (Este aforamento determinava a divisão de terras públicas a particulares durante um longo período, mediante a obrigação de as amanhar e efectuar o pagamento de um foro anual ao proprietário, que neste caso era o rei.) Veiros deriva primitivamente de Veeyros, cujo termo nos remete para os veios de água que atravessam a freguesia em toda a sua extensão. Estes veios que entrecortavam terrenos de cultivo, as pastagens, a floresta primitiva que aqui verdecia, e mais tarde o casario que ao longo dos séculos foi expandindo a sua área de implementação, escoavam para a Ria as águas de enchente que se acumulavam sobre o solo de aluvião. Ajuíza-se, portanto, que estes veios e sulcos para drenagem, traçados com grande frequência na paisagem local, tenham sido os promotores e a origem do nome desta localidade. As terras baixas e planas deVeiros seriam maioritariamente ocupadas por zonas de matos, áreas pantanosas, pequenos bosques principalmente arborizados com salgueiros, amieiros, carvalhos, ou pinheiros, e por grandes extensões de juncais nas zonas mais salobras, as chamadas “marinhas”. Provavelmente, o povoamento de Veiros teve início em lugares próximos em torno dos braços da Ria de Aveiro, nos terrenos situados após os juncais que protegiam a terra fértil e a água doce da invasão das águas salobras da Ria. A relativa proximidade das casas à área aquática da Ria favorecia o acesso à via de comunicação mais veloz ao tempo, que eram os canais e os esteiros navegados pelos barcos. Um dos lugares mais antigos de Veiros será o dos Telhões, e contíguo a este, o da Igreja. Mas também, seus contemporâneos, os lugares de Santa Luzia e Mâmoa. De facto, seriam também os lugares mais habitados, a avaliar pela análise dos assentos paroquiais desde que há registos contínuos (ano de 1613). A densidade populacional foi aumentando e a emancipação deu origem aos restantes lugares. É interessante destacar que um dos lugares de Veiros, o Buchinho, outrora comum nos testamentos dos Veirenses, perdeu-se no tempo, tendo sido extinto em termos de terminologia, dado que actualmente não há ninguém que se lembre de ter ouvido falar de tal lugar, cuja área geográfica seria algures entre a Mamoa e os Lodeiros, onde hoje se denominam algumas áreas circunscritas pelos lugares das Senhoras do Rêgo, Fonte de Baixo e Madeiro. * Licenciado em Biologia, Mestre em Ecologia, Biodiversidade e Gestão de Ecossistemas, e doutorado em Biologia e Ecologia das Alterações Globais, exercendo actualmente a sua actividade profissional como biólogo no Departamento de Biologia e como investigador e membro integrado no CESAM, da Universidade de Aveiro. É autor e/ou co-autor de dezenas de publicações científicas na área da Biologia e Ecologia. Nos tempos livres procura conhecer melhor a história da freguesia de Veiros (e da região), com enfoque nos aspectos religiosos, tendo já publicado o livro “Memórias da Igreja de S. Bartolomeu de Veiros - Chão Sagrado” em 2018, estando no prelo o “Memorial da Igreja de Santa Marinha de Avanca”.

[ 243 ]


VICTOR BANDEIRA

Por outro lado, é agora conhecido o lugar mais recente de Veiros, tratando-se do lugar de S. Geraldo, que era ocupado nos inícios do século XVII por grande extensão de pinhal com solos mais arenosos, interceptado por um caminho curvilíneo (actualmente a Rua de S. Geraldo), que foi sendo alargado, conduzindo em meados do mesmo século, à Capela daquele santo. Em séculos mais remotos, o povo Veirense ocupar-se-ia da pesca, que ia obtendo da Ria de Aveiro, aliando este conduto aos produtos agrícolas que produzia nos campos e ao pão produzido primeiramente com o trigo e, mais tarde, no século XVI, com o milho proveniente do continente americano, tornando-se o cereal dominante nesta terra marinhoa. Estes cereais eram moídos em Veiros, em pelo menos dois moinhos movidos pelas águas da levada com origem nas lagoas, e ambos ainda se vislumbram assentes nas suas fundações antigas. A vinha tinha aqui algum relevo, quer nas latadas que envolviam as eiras e os limites das hortas, quer sobre os poços, servindo de sombra para as crianças que tocavam a vaca em seu torno para subtrair a água com a nora, a fim de regar os campos agrícolas. Muitos dos poços de Veiros ainda têm vestígios da existência das videiras, que crescem ao redor, mas agora como parte dos matos e silvados que se apoderam das paredes xistosas. Associadas às videiras, surgem as roseiras-bravas, ainda remanescentes nos poços e suas aliadas, porque serviam como indicadores biológicos, garantindo o tratamento atempado das videiras quando atacadas pelas pragas, já que as roseiras eram infestadas primeiramente. O agricultor, ao verificar a praga instalada na roseira, cuidava imediatamente do tratamento preventivo das videiras com os fitofármacos artesanais usados à época. Em Veiros também se produziu linho até à década de 70 do século XX, e os últimos rolos de pano de linho aqui produzidos foram devotamente oferecidos à Igreja para a confecção de toalhas para os altares. O processo de toda a laboração do linho era relevado para os serões ao luar, lembrando aos mais novos a importância de haver convivência entre todas as gerações. Os serões, nos quais antigamente as famílias passavam o tempo na eira ou na lareira, fazendo festa, conversando e rindo, ou laborando nalgum trabalho manual, são momentos saudosos que os avós e os pais de Veiros retêm na memória. Muitas das mulheres Veirenses teciam o linho para servir como jogos de cama, para fazer toalhas ou guardanapos, sacos de pão, aventais, e até mesmo para adornar os altares da igreja ou para as vestes litúrgicas, faziam renda e bordavam… num processo que, desde a sementeira à colheita das plantas do linho, do demolhar ao espadelar, do enovelar ao ensarilhar e ao tecer, envolvia muitos meses de trabalho árduo e paciente durante o serão. Os animais criados em casa, eram presença recorrente. Os cavalos e as vacas serviam como animais de tracção, para além de fornecerem carne, sendo criados também os porcos, dos quais, tudo era aproveitado, desde o focinho à extremidade da cauda. A matança do porco era um dia de festa em casa dos seus criadores, e a primeira refeição era constituída pelo fígado. Seguidamente, preparavam-se os rojões, derretiam-se as gorduras, enchiam-se e defumavam-se as chouriças, guardavam-se as carnes nas salgadeiras. As ovelhas e as cabras chegaram em tempos a ser muito frequentes nos terrenos, mas foram caindo em desuso. Quanto à criação de aves, eram por demais conhecidos os capões de Veiros (grandes galos), que serviam como pagamento de tributos, vindo mesmo descritos em documentos do século XIII. O aproveitamento dos [ 244 ]


TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

animais selvagens não era descurado, em virtude de os planaltos cobertos de erva verdejante serem promissores para a caça dos coelhos-bravos, que existiam em grande densidade, assim como as marinhas eram muito concorridas para as caçadas às codornizes. Mas, de facto, os peixes da Ria de Aveiro suplantavam o consumo de todos os tipos de carne doméstica ou selvagem. Os inúmeros canais e esteiros entre os juncais funcionavam (e ainda funcionam) como viveiros para enguias, robalos, taínhas, solhas e linguados, entre muitas outras espécies. A disponibilidade piscícola proporcionava alimento e conduto suficiente para muitas mesas Veirenses. O mar, mais tarde, também foi um aliado importante destes povos, que recebiam nas canastras das peixeiras a sardinha e o carapau, e mais raramente a cavala. Veiros é sobejamente conhecido pelas esteiras de bunho, um produto manufacturado com duas plantas, o bunho (ou baínho, ou ainda, buinho) e o junco-das-esteiras (para fazer o cordel que une os bunhos) pelas esteireiras, as mulheres que as fabricavam. As esteiras de bunho, produto tradicional de Veiros, elaborado com o baínho recolhido em Lagoas ou comprado em Fermentelos, e o junco recolhido nas marinhas, principalmente na Moitela, outrora era muito procurado, vendido e utilizado, dando trabalho a inúmeras pessoas da freguesia. Durante décadas, as crianças entrançaram os juncos para elaborar a “bracinha” que ataria os bunhos das esteiras, e todo este trabalho demorava horas e era feito manualmente. Ao serão, a família reunia-se sentada nas esteiras e recitava o terço em conjunto. Por curiosidade, uma esteira custava 5 tostões, no ano de 1942. Dependendo das épocas do ano, o ciclo produtivo das esteiras era constituído pela apanha do junco, pelo ripar do junco, a sua seca e demolha, a apanha do baínho e a secagem deste material vegetal, o entrançar do junco para elaborar a bracinha, o empedrar dos seixos, e a própria confecção das esteiras nos cavalos de madeira. Comummente, os caminhos lamacentos eram palmilhados por um grande número de mulheres que transportavam os molhos das esteiras à cabeça, que eram levadas a pé até às ribeiras, para serem transportadas nos barcos até outras freguesias, que as vendiam para proteger as hortaliças, para envolver o mobiliário e até mesmo para dormir a sesta. Figura 1 - Transporte do junco desde as marinhas da Moitela (Foto: Victor Bandeira)

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Figura 2 - Apanha do baínho em Lagoas (Foto: Victor Bandeira)

Figura 3 - Transporte do baínho com carro a tracção animal (Foto: Victor Bandeira)

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Figura 4 – Produção de esteira de bunho em Veiros (Foto: Victor Bandeira)

Mas, Veiros é ainda reconhecida como a “terra das cebolas”, que tão bem eram entrançadas pelas mãos das avós, para depois as pendurar e vender nas feiras mais próximas da região, como no S. Miguel em Fermelã e em Aveiro. Outrora em todas as casas de Veiros era comum encontrar-se a semente da cebola nas peneiras, o cebolinho nascido na caixa de madeira ou embrulhado na serapilheira para dispor, as cebolas acabadas de arrancar da terra em cima dos carros-de-mão antigos, as senhoras a enrestiar as cebolas. Pelas ruas, um grande número de mulheres com as cestas de cebolas à cabeça, as ceboleiras, com destino a outras terras e às feiras onde as vendiam.

Figura 5 – Enrestiar cebolas em Veiros (Foto: Victor Bandeira)

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Muito próximo da igreja de Veiros, existiu ainda uma pequena indústria artesanal de fabrico de fósforos de pau, que eram denominados de “espera-galegos”, mas que desapareceu por acção da Fosforeira Nacional que detinha todos os direitos sobre a produção e venda de tão precioso utensílio, concebido para provocar a ignição do lume das lareiras. A grande maioria dos Veirenses, durante os séculos XVII a XIX, eram lavradores e jornaleiros (trabalhadores à jorna), que produziam maioritariamente o milho grosso e representavam a maior força de trabalho e da actividade dos moradores, segundo os registos nos livros paroquiais. Contudo, é interessante destacar as profissões que rareiam nos ditos assentos. Deste modo, num assento de óbito do ano de 1654 surge um sapateiro, em 1671 um cardador, em 1684 um barqueiro, em 1687 um moleiro e um barbeiro. Na última década do século XVII surge um ferreiro, uma cardadeira, e um outro sapateiro. Contabilizaram-se no século XVIII dois capitães em 1701 e em 1786, um alfaiate em 1711, uma tecedeira em 1730, o moleiro que assistia aos moinhos da freguesia em 1740, um sangrador (uma espécie de cirurgião) em 1742, ou um oficial de justiça em 1794. Destacam-se ainda algumas actividades que desapareceram e que faziam parte do quotidiano da freguesia de Veiros, os moliceiros, isto é, os homens que apanhavam moliço na Ria de Aveiro com vista à fertilização orgânica dos campos, e houve-os às dezenas. Mas, evocar a História e o passado de Veiros não pode ser realizado sem o ponto de referência principal, a Igreja. É de facto a Igreja, o motor que alavanca o território de Veiros ao longo dos séculos. Os habitantes de Veiros viveram durante muitos séculos em função da Igreja Católica e da vida paroquial. O seu calendário pautava-se pelo toque dos sinos da torre. No entanto, ainda hoje, a Igreja continua a ser uma força viva que promove e gera a grande maioria das actividades que se desenvolvem nesta localidade. O apego fortemente enraizado à matriz religiosa é muito perceptível através da leitura dos assentos de óbito, os quais elencam, entre outras informações, os itens deixados em testamento. Distingue-se neles a preocupação em beneficiar o mais possível a alma após a morte, em que os testadores deixam quantias avultadas para a celebração de missas pela sua alma (trintários ou outras formas de celebrações), que muitas vezes ultrapassavam os milhares de reis, para além de valores e bens entregues às Confrarias e Irmandades locais, para prover a construção ou o restauro de edificações religiosas. Não esqueciam os pobres, que acabavam por adquirir algum proveito com os falecimentos, dado que eram os destinatários de vários bens. É claro que os herdeiros de diversos graus familiares não eram obliterados da herança. Com isto, pretende-se explicar que o povo vivia em função da Igreja, tudo quanto fazia e amealhava servia em grande parte para partilhar com a Igreja e a vida paroquial, desde os cortejos ao Menino Jesus por altura do Ano Novo e dos Reis, às festas religiosas dos santos venerados nesta terra como São Sebastião, São Brás, São José, Santo António, São João Baptista, São Bartolomeu, São Miguel, Nossa Senhora do Rosário, Santo André, Santa Bárbara, São Geraldo, Santa Luzia e as Festas ao Espírito Santo, ao Santo Nome de Jesus, e ao Santíssimo Sacramento, esta última em dia do Corpo de Deus. Partilhavam também os contributos sob a forma de oblata em dia de Páscoa, dia de Natal, mas também pelas colheitas no dia de S. Miguel (29 de Setembro). [ 248 ]


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Na Quaresma, as famílias participavam nos sermões que duravam tardes inteiras ao Domingo, feitas por pregadores convidados de outras paróquias.As confissões quaresmais da família inteira tomavam algumas horas em espera na igreja, aguardando a vez, sendo depois desarriscadas nos “livros da desarrisca”, em que o chefe de família, após a confissão de todos os elementos do agregado familiar ía à sacristia, junto do pároco, desarriscar os nomes e fazer o contributo para a indulgência da família. De seguida, a participação nas cerimónias da Semana Santa ocupava a maior parte do tempo, começando em Domingo de Ramos com a bênção dos raminhos de oliveira e alecrim, que eram depois queimados em alturas de trovoada; continuando com a Quarta-feira de Trevas, essencialmente participada pelas mulheres; a Quinta-feira Santa com a Noite de Endoenças, cuja procissão penitencial com o Santíssimo Sacramento, iluminada por centenas de braseiros dispostos na rua, era um momento de verdadeira contrição; passando pelas cerimónias da Paixão de Sexta-feira Santa; Sábado de Aleluia com aVigília Pascal pela noite dentro; e o Domingo de Páscoa com a alegria do repicar dos sinos em festa e a Visita Pascal que demorava dois dias para chegar a todas as casas. Em Maio e em Outubro participavam muitas mulheres e crianças na novena a Nossa Senhora do Rosário com a recitação do terço. No “mês das Almas” (Novembro) a vinda à igreja também era diária. Em Dezembro rezava-se a novena ao Menino Jesus, e claro, cada santo venerado na paróquia também era precedido pela sua própria novena. O quotidiano era vivido em função dos horários das cerimónias religiosas sempre em constante afluência. Na verdade, através do estudo dos testamentos, que são muito descritivos e minuciosos e dos respectivos assentos de óbito, foram colocados à luz do dia muitas passagens históricas e que se revelaram importantes acontecimentos do passado, até há pouco tempo desconhecidos. Contudo, foram igualmente referências importantes os assentos de baptismos e de casamentos, bem como as actas remanescentes de reuniões paroquiais e alguns documentos esquecidos em gavetas de mobiliário secular, que aliados à informação publicada anteriormente no volume II das Notas Marinhoas, pelo Dr. José Tavares Afonso e Cunha, ou nos escritos de Monsenhor Miguel de Oliveira vieram enriquecer a História que já se conhecia e unir pontas soltas de factos menos conhecidos. Muitos marcos e diversos acontecimentos históricos e religiosos de Veiros encontram-se assim desvendados e publicados no livro “Memórias da Igreja de São Bartolomeu de Veiros – Chão Sagrado”. Seguidamente, dá-se relevo às principais referências histórico-religiosas com maior simbolismo, ocorridas durante os primeiros séculos da autonomia de Veiros. Século XVII… a génese da autonomia de Veiros Veiros como comunidade autónoma da freguesia de S. Tiago de Beduído teve a sua génese logo no início do século XVII com a movimentação do povo e a congregação das gentes destes lugares, para a construção de um pólo agregador, que determinasse o início da sua emancipação de Beduído. Este elo seria a construção de uma igreja matriz. A génese da construção da igreja dedicada a S. Bartolomeu no início do século XVII encontra-se bem documentada através da “Nota Histórica” de Monsenhor Miguel de Oliveira, [ 249 ]


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que regista a vontade comum do povo de Veiros em constituir freguesia independente de São Tiago de Beduído e, para tal, era necessário construir uma igreja digna de receber os seus paroquianos. O pedido foi elaborado e dirigido ao Bispo do Porto, de cuja diocese o lugar de Veiros fazia parte, e D. Frei Gonçalo de Morais anuiu, com a condição de que construíssem o corpo da igreja e a capela-mor às suas próprias custas, assumindo todos os encargos inerentes à construção, livrando a Comenda da Ordem de Cristo (à qual o território pertencia) da edificação da capela-mor, que seria de sua tradicional obrigação. Assim, foi promovido um encontro no dia 13 de Dezembro de 1603, junto à ermida de Santa Luzia, com o intuito de formar uma comissão com os poderes necessários, a fim de edificar a nova igreja com as respectivas despesas inerentes. No dia 31 de Maio de 1604, o contrato com o construtor António Gomes, da Arrifana (Santa Maria da Feira), foi assinado, estipulando-se o custo da obra na importância total de 375$000 reis. A nova igreja de Veiros teria como modelo arquitectónico e litúrgico a igreja de Santa Maria de Válega, em Ovar (que já não existe, tendo sido substituída pelo templo que se encontra hoje aberto ao culto). Os fiadores eram moradores de Avanca: António Vaz e Afonso Jorge. A escritura foi redigida e assinada nos paços do concelho de Estarreja pelo tabelião António da Cunha. A obra teria que ser iniciada no dia 24 de Junho de 1604 e terminada exactamente um ano depois, tal como enunciado por Monsenhor Miguel de Oliveira. Mas derrapou no tempo, e as datas de início e de término avançaram para os anos de 1608 e 1612, respectivamente, conforme se lê nas Notas Marinhoas, na memória histórica do Padre António José Marques e de seu sobrinho Vitorino José Marques. Quando a obra terminou e tudo apontava para o início da paróquia, eis que o Reitor da igreja de São Tiago de Beduído, o Reverendo Padre Gaspar Botelho, não quis aceitar a desagregação do antigo lugar de Veiros, da sua Reitoria de Beduído. Só depois de muita determinação e persistência dos Veirenses é que o convenceram a ir ver a nova igreja de Veiros, no dia 4 de Dezembro de 1612, segundo explica Monsenhor Miguel de Oliveira. Ali se deu o encontro do clérigo com o juiz da nova igreja, Afonso João, com os eleitos Tomé Dias e João Gonçalves Coresma, e com muitos Veirenses em apoio, e naquele lugar redigiram um documento de entendimento entre as partes. A nova igreja foi benzida no dia 12 de Dezembro de 1612 por um reitor de Santa Maria de Arouca e, no dia seguinte, a 13 de Dezembro de 1612, foi celebrada a primeira eucaristia, tendo assim nascido a nova Paróquia de São Bartolomeu de Veiros, subordinada da igreja-mãe da Comenda de São Tiago de Beduído. A obra terá custado no final 300$000 reis. A nova igreja veio a ser construída sobre o lugar de uma antiga ermida dedicada a São Bartolomeu e a Santa Bárbara, que se encontrava localizada onde hoje existe a capelamor. Nela estava o Santíssimo Sacramento para alguma necessidade paroquial, porque os sacramentos eram todos ministrados na igreja de Beduído. O Reitor de São Tiago de Beduído, a quem o lugar de Veiros pertencia até então, “obrigava-se a dar aos moradores de Veiros, para a sua igreja, coadjutor idóneo com todos os poderes [ 250 ]


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para administrar os sacramentos, sem que este precisasse de lhe pedir licença alguma”. O primeiro pároco de Veiros, Padre André Antão, assinava como coadjutor, já que a paróquia fora recentemente criada. Os párocos seguintes continuaram a assinar como “coadjutores” até ao quarto pároco, inclusivé. A partir de 1638, o pároco, Padre Pantaleão Gomes, assina como “cura”, assumindo-se assim um pouco mais independente do pároco de São Tiago de Beduído, talvez porque os Veirenses tenham decidido pagar o cura às suas custas, conforme estava estipulado no documento de entendimento inicial. Até ao ano de 1638, estaria a nova paróquia de São Bartolomeu de Veiros e seus párocos num período de “experiência” sob tutela dos reitores de São Tiago de Beduído, de onde era filial. Durante os primeiros anos da existência da paróquia de Veiros, a visita por parte dos reitores de São Tiago de Beduído à igreja de São Bartolomeu de Veiros seria regular, sendo por vezes os próprios que presidiam aos sacramentos. E o próprio Bispo do Porto, D. Rodrigo da Cunha, aqui veio crismar em Julho de 1621, tendo sido a primeira visita do bispo diocesano a esta igreja de que há registo, averbada no Rol dos Crismados de 1621.

Figura 6 - Igreja de São Bartolomeu de Veiros (Foto: Editores Leitão & Andrade, 1916 - Junta de Freguesia de Veiros)

No início do século XVII, as únicas duas Capelas existentes em Veiros é a já referida ermida dedicada a São Bartolomeu e a Santa Bárbara, que entre 1608 e 1612, deu lugar à igreja de São Bartolomeu de Veiros; e a Capela de Santa Luzia, mais antiga que a igreja, porque foi lá que se reuniram, no dia da sua festa no ano de 1603. Mais tarde, surge uma nova capela, a Capela dedicada a S. Geraldo, assomando pela primeira vez, na paróquia de Veiros, um registo escrito relativo a este santo, datado de [ 251 ]


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3 de Setembro de 1658 no assento de óbito de Francisco da Silva. Na “manda verbal” deixada por este testador, pede o mesmo que lhe dissessem “mais hua missa a S. Geraldo”. E, continuam a partir desta data os legados deixados a este intercessor. Finalmente, Maria João, pelo seu falecimento a 26 de Outubro de 1665, vem confirmar que a Capela de São Geraldo é mais recente que a igreja de São Bartolomeu, em virtude de constar no seu assento de óbito a seguinte vontade: “… mais deixo pa. ajuda da irmida de S. Giraldo pa. a licença da primeira Misa a minha ametade da leira q tenho no chão de mateus João q parte do sul com o p A.o e do mar con Anto Amador”. Ora, este pequeno excerto do assento de óbito de Maria João, do ano de 1665, pode ajudar a confirmar que a Capela de São Geraldo terá sido construída após a edificação da Igreja de São Bartolomeu de Veiros (1608-1612), talvez a partir do ano de 1658, data em que surge o primeiro registo relativo à devoção ao santo arcebispo de Braga na paróquia de Veiros. E talvez já estivesse concluída em 1665, quando a dita Maria João deixou a metade da leira para ajudar a custear a licença da primeira missa na Capela de S. Geraldo. Com isto, muito provavelmente, a Capela de S. Geraldo terá sido construída entre os anos de 1658, quando se encontra o primeiro registo relativo à devoção a S. Geraldo em Veiros, e o ano de 1665, quando surge o registo relativo à licença para a primeira missa na Capela. Certo é que em 1673 já se celebravam missas na Capela de São Geraldo, dado que uma outra devota Maria João, viúva de João Annes, sepultada a 8 de Setembro de 1673, fez testamento deixando nele escrito que “… e mais quem pesoir a terra do barcadouro lhe mandase dizer hua misa na ermida de são geraldo…”. Contudo, o Dr. José Tavares Afonso e Cunha, no volume II das Notas Marinhoas refere que na Capela de S. Geraldo esteve o Santíssimo Sacramento enquanto se edificou a igreja matriz. E tanto quanto se compreende, poderá ter obtido esta informação a partir da memória escrita pelo sobrinho do Padre António José Marques, durante a época do Padre Manuel da Silva Laranjeira, enquanto paroquiou Veiros entre 1881 e 1897. Refere mesmo o Dr. José Tavares Afonso e Cunha que “os apontamentos deixados por Vitorino José Marques são de merecimento muito desigual” no que toca às memórias e vivências das épocas de que ele não foi contemporâneo. E, de facto, até 1658, não se encontraram registos quanto à devoção a S. Geraldo em Veiros, nem consta no Catálogo dos Bispos do Porto de 1623. Esta informação acaba por ser confirmada através do testamento de Maria João, em 1665, quando a dita testadora oferece metade de uma leira para a licença da primeira missa na Capela, e para a ajuda desta ermida, o que significa que ainda lá não se tinha iniciado o culto. Também se deve referir que até esta data (1665) não há qualquer assento em que conste o lugar de S. Geraldo. A primeira vez que um registo faz referência a alguém que tenha residido na área próxima à Capela de São Geraldo é o assento de óbito de Domingas João, falecida a 18 de Junho de 1702, a qual era “moradora junto a S. Giraldo”. Mais tarde, e pela primeira vez, surge referência ao “Caminho de S. Giraldo”, onde morava Maria André, esposa de Domingos André Reis, que faleceu a 13 de Janeiro de 1706. Só em 1732, se reconhece o lugar de São Geraldo, com o registo de óbito de Apolónia Antão, esposa de António da Fonseca, de São Geraldo, falecida no dia 9 de Junho. Conclui-se, portanto, que a Capela de São Geraldo não existia antes de 1623 [ 252 ]


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e, como tal, não existiu antes de a igreja ser construída. O sobreiro que vive no adro da Capela de S. Geraldo é testemunha secular da passagem dos anos e da história da paróquia, conheceu todos os párocos e sacerdotes, e as gentes que aqui viveram. Em 1996 foi classificada como árvore de Interesse Público, cujo teor foi publicado no Diário da República, II Série, n.º 101 de 30/04/1996. Esta informação consta na placa informativa colocada defronte desta árvore monumental, juntamente com os nomes científico e vernáculo, a estimativa da idade, além da observação de que consta no brasão da freguesia. No final deste século XVII, por volta do ano de 1690, a Paróquia de “S. Bertholomeu de Veyros”, com o título de Curado, já contabilizava 353 casas, 1054 adultos e 250 crianças, segundo o censo da população que consta no livro das Constituições Sinodais do Bispado do Porto. Surge neste século a primeira referência que se conhece à Fonte do Cavalo que é de cariz antiquíssimo dado que surge num assento de óbito referente a José João, falecido a 6 de Maio de 1688, que indica ser “da fonte do lugar das Cabeças”, depreendendo-se ser a Fonte do Cavalo, da qual já brotava água no final do século XVII. Século XVIII… a pacata aldeia é o centro das atenções com o aparecimento de uma imagem miraculosa de Cristo Crucificado O século XVIII traz para Veiros um novo fôlego e um novo esplendor. Os negócios e as minas de alguns conterrâneos instalados no Brasil fazem surgir uma capela particular, a Capela de Nossa Senhora da Ajuda, a primeira deste âmbito em Veiros. E, o aparecimento de uma imagem de Cristo Crucificado, de cariz miraculoso, por uma rapariga chamada Isabel, vem alterar o centro religioso e a vida desta pacata aldeia, gerando nova devoção em Veiros, desta feita, com a edificação da Capela do Senhor da Ribeira, junto a um dos fragmentos da Ria que desembocam na freguesia. A Capela de Nossa Senhora da Ajuda foi mandada edificar, tanto quanto se apurou, antes do ano de 1732, pelo Padre Manuel João Vaz, do clero diocesano, para acolher os seus restos mortais bem como os dos familiares que se lhe seguissem. Este sacerdote faleceu a 21 de Julho de 1746 e como testara foi sepultado na capela sob a invocação de Nossa Senhora da Ajuda, que lhe pertencia, e a mandara fazer com licença do bispo da diocese. Foi sepultado junto do altar, do lado do Evangelho, dentro de uma câmara. Da sua sepultura ainda existe a pedra tumular, que se encontra próxima do local onde se erguia a dita Capela. O Padre Manuel João Vaz terá estado emigrado pelo Brasil, sendo proprietário de algumas minas. Analisando o testamento percebe-se que alguns escravos faleceram nessas mesmas minas, mas outros trouxe-os para Portugal. Deixou a seus sobrinhos três escravos, como se de bens se tratassem, testando que não teriam o direito de os poder vender. [ 253 ]


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Figura 7 - Pedra tumular da sepultura do Padre Manuel João Vaz, que se encontrava dentro da extinta Capela de Nossa Senhora da Ajuda (Foto: Victor Bandeira)

Entre outros familiares do fundador da capela, foi sepultado o Cónego Manuel José Vaz, seu sobrinho do lado materno, que faleceu no dia 23 de Novembro de 1790. Pertencia ao clero diocesano e era bacharel formado em Cânones pela Universidade de Coimbra, tendo sido cónego penitenciário da Sé de S. Paulo e vigário-geral desse bispado, no Brasil. Foi governador do bispado por duas vezes em substituição dos bispos, a primeira vez por nomeação e a segunda por eleição. Regressou a Portugal onde veio a falecer na sua terra natal e ficou para memória e recordação a pedra tumular da sua sepultura, a qual permanece embutida no chão do jardim que actualmente existe sobre o local do extinto templo setecentista, em frente a uma pequena capela/nicho com a mesma invocação a Nossa Senhora da Ajuda. Na epigrafia da pedra encontra-se: “AQUI JAS O MT RDO CONEGO DOVTOR MEL JOZE VAZ PELA SVA ALMA P N A M ANO 1790” (Aqui jaz o muito Reverendo Cónego Doutor Manuel José Vaz, pela sua alma Pai Nosso e Avé Maria. Ano 1790). [ 254 ]


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Figura 8 - Pormenor da pedra tumular da sepultura do Cónego Manuel José Vaz, com a seguinte inscrição: “AQUI JAS O MT RDO CONEGO DOVTOR MEL JOZE VAZ PELA SVA ALMA P N A M ANO 1790” (Foto: Victor Bandeira)

Na Capela de Nossa Senhora da Ajuda era cantada uma missa pela sua festa, todos os anos no dia 15 de Agosto, dia da Assunção de Nossa Senhora. Como anteriormente referido, esta capela foi demolida no início dos anos 80 do século XX por já se encontrar ao abandono e em ruína.

Figura 9 - Capela de Nossa Senhora da Ajuda nos anos 70 do século XX (“O Concelho de Estarreja” n.º 3653, 24.08.1974, página 1) (Foto: Marco Pereira)

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Quase na metade do século XVIII dá-se um fenómeno inaudito e inesperado… a descoberta de uma imagem de Cristo Crucificado com fama de milagrosa, que vem mudar os dias desta paróquia, cujo relato dos acontecimentos se encontra aprofundadamente explicado no documento da Fundação da Capela do Senhor da Ribeira de Veiros, o qual chegou aos nossos dias. O testemunho relata a primeira visitação efectuada pelo visitador diocesano, em que lhe é contado o aparecimento (“invenção”) da imagem de metal do Cristo Crucificado, as características da dita imagem, o modo como foi recolhida e conservada na casa de Isabel, a rapariga solteira que a encontrou. De seguida, narra os feitos e curas atribuídos nos anos seguintes ao Cristo milagroso, a propagação desta devoção, bem como a edificação de uma capela de madeira que a acolheu. São ainda referidas as várias visitações consequentes e a forma como a paróquia e os seus sacerdotes foram lidando com a ermitoa Isabel, com a afluência de peregrinos, esmolas e ofertas ao longo do tempo, para além da projecção de uma capela maior e mais digna que pudesse agregar toda esta devoção. Seguidamente, o mesmo documento expõe a escritura da construção da Capela que hoje se encontra no local da Ribeira, com toda a descrição das características e dimensões do templo, terminando com o património doado para a capela, que consistia em dois terrenos, o da Ribeira e um nos Telhões, doados perpetuamente pelos Padres João Marques, da Póvoa (Beduído), e pelo Padre Manuel da Silva, de Veiros. Pelo que consta na respectiva escritura, a Capela do Senhor da Ribeira teve o seu início em Setembro de 1753 e o documento do Auto de Património da Capela do Senhor da Ribeira, datado de 2 de Outubro de 1761, vem de certa forma confirmar a conclusão da construção deste templo, enquanto era pároco o Reverendo José Afonso. Nos primeiros tempos, a concorrência de devotos a este santuário foi muito grande. Mas, volvido um século, a devoção ao Senhor da Ribeira tinha decaído muito, e em 1880 estava praticamente extinta… talvez porque o envolvimento da população na reconstrução da igreja pósincêndio tenha voltado de novo as atenções para a Igreja Matriz. Em 1905, aquando da tomada de posse do novo pároco, Padre Manuel Marques Capeleiro e Silva, esta capela estava completamente abandonada. Os paramentos, toalhas, jarras e outros utensílios do culto tinham sido retirados para a Igreja. A capela permanecia fechada, com os vidros das janelas partidos, e o telhado bastante deteriorado. Conta-se que estaria recheada de ex-votos dedicados ao Senhor Crucificado e aqui venerado, dos quais restam apenas nove exemplares. Os ex-votos encontram-se tecnicamente descritos no artigo “Pinturas de milagres, histórias e memórias de esperança e fé”, na Revista Terras de Antuã, n.º 10 (2016). Isabel terá encontrado a imagem de Cristo, que deu origem à construção da Capela do Senhor da Ribeira, enquanto sachava milho, junto à Ribeira, durante o Verão de 1742, tinha 12 anos. Passados cerca de 7 anos, a imagem com fama de ter feito alguns milagres e algumas curas de doentes já é muito visitada e venerada na sua própria casa, tinha Isabel cerca de 19 anos. Quando tinha 22 anos teve que a trasladar para uma pequena capela provisória em madeira, que permitisse ao povo acudir à dita imagem no local onde apareceu, junto à Ribeira. O volume de ofertas e a afluência de romeiros era tão elevada, tendo ultrapassado até a do Senhor das Barrocas em Aveiro, que a Igreja decidiu pela construção de um templo [ 256 ]


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definitivo, materializando-se na actual Capela do Senhor da Ribeira. Aos 24 anos, Isabel já se vestia com hábito de religiosa, servindo a capela existente como ermitoa, missão que cumpriu até ao final da vida, que terminou no dia 23 de Junho de 1794, tinha Isabel 64 anos de vida e 40 anos de entrega ao Senhor da Ribeira.

Figura 10 - Pormenor da Imagem do Senhor da Ribeira (Foto: Victor Bandeira)

Nos primórdios, a festa ao Senhor da Ribeira era realizada a cada 14 de Maio, dia consagrado na Igreja à Festa da Santa Cruz, mas mais tarde passou a ser festejado a 3 de Maio. Neste século XVIII, segundo as Memórias Paroquiais de 1758, a Paróquia de Veiros tinha 503 casas, mais 150 casas construídas num período de 68 anos, e um total de 1332 pessoas, tendo-se mantido a densidade populacional desde 1690. Segundo o relator destas Memórias, a Paróquia não padeceu de qualquer ruína com o terramoto de 1 de Novembro [ 257 ]


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de 1755. Ao mesmo inquérito, respondeu o Padre José Afonso à questão sobre a existência de fontes, ou de lagoas, e respectivas virtudes, que existem em Veiros duas fontes, a do Esquinto e a do Cavalo. Explicando ainda que a Fonte do Cavalo é assim chamada porque havia memória de “ser antigamente chafariz dos cavallos dos Mouros beberem”, mas que as águas não tinham qualidade especial. É interessante que esta lenda foi substituída mais tarde pelos “cavalos das invasões francesas”. É neste século que surge pela primeira vez num testamento, uma referência às Lagoas de Veiros, o qual nomeia uma terra deixada em Lagoas no dia 8 de Abril de 1712. Regista o pároco nas mesmas Memórias Paroquiais de 1758 a existência de um regato que corre durante o Inverno, fazendo trabalhar as duas casas de moinhos que moem no tempo das chuvas, que tem início numa lagoa, “chamada Lagôas”, nesta freguesia, e que termina espalhando-se “pellas terras de criar ervas”. Faz ainda referência a “hum Rio de água quieta”, “feito por Arte”, que desagua na Ria de Aveiro, com cerca de um quarto de légua, “por donde se servem os barcos pequenos a tirar moliços”, referindo-se à Ribeira. Século XIX… o incêndio devorador da igreja matriz Memória relevante da freguesia de Veiros durante o século XIX é o seu maior e mais drástico evento, o incêndio que destruiu a igreja matriz. Através das actas das sessões de junta de paróquia, presididas pelo pároco, no ano de 1855, lêem-se os principais acontecimentos ocorridos e as decisões tomadas, percebendo-se que a paróquia precisava de acudir a obras de reparação na igreja, havendo alguma discórdia entre os elementos decisores, que se prendia com a prioridade a dar a cada assunto que envolvia a dignificação da igreja e do culto litúrgico. Na acta datada de 7 de Agosto de 1855, é relatado um pedido feito por um paroquiano para que se prescindisse das obras que também eram necessárias na igreja, em favor da compra de um conjunto de paramentos ricos a serem utilizados para o Santíssimo Sacramento durante as suas festas, havendo troca de argumentos entre as partes, mas ficando no ar a ideia de que a freguesia deVeiros era pobre e não conseguiria suportar tais despesas com as obras pretendidas. Na segunda acta, relativa à reunião que ocorreu dois dias depois, é dada a conhecer a decisão deste organismo, optando-se pelas obras da igreja em vez da compra dos paramentos. Mais tarde, a 2 de Outubro de 1855, foi deliberada a obrigatoriedade em ajudar a acarretar os materiais necessários para as obras da igreja, cada paroquiano com o seu carro de tracção animal, mas de forma gratuita, para se poder cumprir com os encargos financeiros, que eram muito altos. A distribuição do trabalho seria feita equitativamente por todos os lavradores, sem prejuízo de algum deles. No mesmo dia, mas em momento posterior, foi deliberada a troca das chaves do cofre, saindo da posse de um paroquiano e indo para a posse de outro, por haver incompatibilidade entre eles. Verifica-se que uma das pessoas que guardava a chave do cofre não comparecia para se poder efectuar o pagamento das obras da igreja, mas também não tinha mandado a chave por ninguém, nem tinha intenção de a entregar, tal como ficou decidido na reunião anterior. Por este motivo, entenderam nesta reunião abrir o cofre à força e restaurar a chave. [ 258 ]


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Logo após estes desentendimentos, “na noite de 25 para 26 de Novembro de 1855, por volta da uma da manhã, a igreja deVeiros foi tomada por um incêndio, que terá tido início próximo da porta principal, do lado do Norte. As chamas tinham tanta intensidade que em pouco tempo fizeram desabar a totalidade do tecto, tendo ardido as imagens, altares, tribuna, sacrário com as hóstias consagradas, não havendo oportunidade de salvar o que quer que fosse, embora se tenham esforçado para isso. O vigor das labaredas fez rachar portas, as pias de água benta situadas em cada entrada, o baptistério e as colunas de granito que sustentavam o côro-alto. Só não ardeu a torre da igreja, a sacristia e os anexos à igreja dos mordomos, porque combateram a chegada das chamas com água e terra. Houve até quem tivesse observado este fenómeno noutras terras. E foi um morador do Bunheiro que, ao passar da azenha àquela hora, alertou os moradores. Concretamente, nunca se apuraram as causas que originaram o incêndio, embora as tivessem atribuído à cal que possa ter ficado a queimar junto às madeiras.” Este acontecimento foi registado pelo Padre António José Marques contemporâneo deste fenómeno apocalíptico, tendo a idade de 19 anos (ainda era seminarista). O incêndio na Igreja terá sido o evento mais recordado e falado nesta paróquia, durante o século XIX, tais foram as perdas materiais e os danos causados à igreja, que tinha à data 242 anos de existência, assim como originou uma reorganização total no culto litúrgico, nos sacramentos, sepultamentos, bem como na própria moral dos viventes. A vida comunitária paroquial passou a funcionar na Capela do Senhor da Ribeira, que veio substituir a igreja paroquial durante o período em que teve de ser recuperada. Logo após o incêndio, foi colocado um “taboado para tapar as portas da Igreja”. A Junta de Paróquia de novo instituída após o fogo de Novembro de 1855, tornou o templo da Ribeira mais digno para acolher as celebrações enquanto a igreja não estivesse reconstruída e toma a decisão de proceder ao restauro da igreja, por não ser possível reunir todo o Povo de Deus na Capela do Senhor da Ribeira. Tendo consciência da pobreza da paróquia, decidiram mesmo assim utilizar os parcos bens monetários amealhados nas confrarias ao longo dos tempos. A obra de reedificação da igreja foi arrematada por “um conto setecentos e setenta mil reis” a Manuel da Silva Ribeiro, de Pinheiro da Bemposta. Quase três anos depois do incêndio, ainda a igreja não estava concluída e pronta para poder reiniciar-se o culto litúrgico, pois embora as obras estivessem muito próximas da sua conclusão, faltava ainda a tribuna, a pia baptismal... Para ser possível acorrer a estas despesas decidiu-se realizar um peditório pela freguesia depois das colheitas, isto é, depois do dia de S. Miguel, quando as pessoas tinham mais disponibilidade económica para poder ajudar. Na Primavera de 1859 verifica-se que as obras do edifício da igreja estavam concluídas, mas faltavam os altares para se poder retomar o culto. Decidiu-se pelo menos mandar fazer a tribuna e o altar-mor, já que, por enquanto, não seria possível mandar fazer todos os altares, por falta de verba. Reabriu-se a igreja a 26 de Agosto de 1860 com grande solenidade. A 11 de Junho de 1864, embora o edifício da igreja e todos os altares já lá estivessem colocados, faltava-lhes o douramento, assim como ainda não existiam paramentos ricos e mais dignos. E, por fim, já se constacta o esmorecimento da devoção ao Senhor da Ribeira, cujo culto estava àquela data confinado a uma missa por ano (e, nem sempre) em dia de Santa Cruz, 14 de Maio. Durante o período em que se procedeu à reconstrução da igreja, após o incêndio de 1855, foi a Capela do Senhor da Ribeira que serviu de igreja paroquial entre 27 de Novembro de 1855 e 25 de Agosto de 1860. [ 259 ]


VICTOR BANDEIRA

A 4 de Setembro de 1866 deliberou-se a suspensão das festividades que não fossem as principais, como a do Santíssimo Sacramento, Nossa Senhora do Rosário, São Bartolomeu, as dos oragos das Capelas, e por excepção, dada a sua grande devoção, a de São Sebastião. As importâncias economizadas com esta suspensão reverteriam a favor da compra de vários objectos ainda em falta devido ao incêndio, desde já, as bandeiras, e até as imagens dos santos para a igreja que ainda faltavam. Somente a 1 de Março de 1874 é que se entregou o douramento do altar-mor, sanefa do arco-cruzeiro, banqueta do mesmo altar e os dois altares colaterais, a Joaquim de Souza Reis, da freguesia de S. Martinho de Argoncilhe (Santa Maria da Feira) e a 7 de Novembro de 1874 estava concluído o douramento solicitado, mas não estava ainda concluído o douramento dos dois altares laterais, de algumas tocheiras e do púlpito. Passados 19 anos do grande incêndio na igreja, ainda esta não se tinha recomposto, na totalidade, dos estragos provocados pelo fogo. Nas Notas Marinhoas, o Dr. José Tavares Afonso e Cunha escreve que através da mão do juiz da Confraria do Santíssimo Sacramento, que à época era o Dr. João Carlos Assis Pereira de Melo, foi possível reconstruir a igreja, não se tendo poupado a esforços para o fazer, tendo até promovido uma grande festa na inauguração das obras. Continua citando as palavras com que o Padre António José Marques, passados alguns anos, orgulhosamente descreveu o resultado da reconstrução da igreja: “Esta igreja acha-se já completamente reedificada e em tais condições de beleza e asseio que será difícil encontrar-se, em aldeia, templo que com ela possa rivalizar. Sobressaem, ali, muito o seu leve mas bonito estuque, os seus altares, sanefa do arco-cruzeiro e, principalmente, o elegante trono, tudo de moderna e mimosa talha dourada. Importou toda esta obra em três contos e tantos mil reis. Em 26 de Agosto de 1860, celebrou-se a primeira missa, trasladando-se para aqui, da capela do Senhor da Ribeira, que serviu de matriz por estes cinco anos, o Santíssimo Sacramento. Houve ‘Te-Deum’ e uma tão grande solenidade religiosa como não há memória por estes sítios.” Lendo-se ainda nas Notas Marinhoas que D. João da França Castro e Moura, Bispo do Porto, “Visitou a igreja, crismou no dia seguinte”, “ficando muito satisfeito, o que não aconteceu por outras partes, pelo bom estado em que achou as coisas da igreja, devido tudo ao zelo do ilustrado pároco desta freguesia”. Em 1880, pela mão do pároco, Padre António JoaquimValente de Oliveira, foi comprado um conjunto de paramentos novos, que incluíam uma “cazula, dalmáticas, véu de hombros, capa de asperges, frontal do altar, pano do púlpito, bolsa e véu do cálix e almofada do missal” por 10$000 reis. Estes paramentos foram benzidos pelo Cardeal D. Américo Ferreira dos Santos Silva, Bispo do Porto. Encerrou-se assim o ciclo pelo qual se tinha iniciado a discussão sobre a compra dos paramentos ao invés do restauro da igreja matriz no Verão de 1855, cujo incêndio veio alterar os planos de ambas as facções. Concluindo, a igreja teve que ser reconstruída quase na totalidade em vez de ser restaurada e os paramentos acabaram por ser adquiridos 25 anos depois do incêndio.

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Fontes e Referências Fontes Fontes manuscritas Affonço, Pe. Joze (1761). Património de Capella. Autos de Patrimonio da Capella do Senhorde Ribra; cita na frga. de Veyros Coma. da Feyra, deste Bpdo. Arquivo Episcopal do Porto. Capeleiro e Silva, Padre Manoel Marques (1938). Fundação da Capela do Senhor da Ribeira de Veiros. da Cunha, D. Rodrigo (1623). Catálogo dos Bispos do Porto. 2.ª edição. Porto. Junta de Parochia (1870). Livro das contas da Junta de Parochia da freguezia de Veiros 1855 – 1870. Junta de Parochia (1872). Livro de Juramentos, eleições, actas de sessões da Junta e autos de arrendamento das terras do Senhor da Ribeira 1850 – 1872. Junta de Parochia (1886). Actas de Sessões da Junta de 1849 a 1886, Eleições de Confrarias. Livros Paroquiais de Veiros (1612-1911). Arquivo Distrital de Aveiro. Memórias paroquiais (1758). Vol. 39, n.º 120, pág. 681 - 686. Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Fontes hemerográficas Correio Paulistano (1938). Relação dos Vigários Capitulares da Archidiocese de São Paulo. Edição 25367, de 18 de Novembro de 1938. São Paulo, Brasil. (http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=090972_08&pagfis=26689) de Oliveira, P.e Miguel (1964). Nota Histórica - Origens da freguesia de Veiros. Jornal de Estarreja, 10 de Dezembro de 1964, n.º 3178, pp. 1 – 2. Referências Bibliográficas Afonso e Cunha, José Tavares (1972). Notas Marinhoas – Notícias históricas do concelho da Murtosa e das duas freguesias marinhoas do concelho de Estarreja. Volume II. Edição do Autor. Bandeira V. (2018). Memórias da Igreja de São Bartolomeu de Veiros – Chão Sagrado. Aveiro: Tempo Novo Editora. 461 pp. Pires de Lima, J.H. (1960). O distrito de Aveiro nas habilitaçoes do Santo oficio. Revista do Arquivo de Aveiro. Pereira M. (2010). A Terra Marinhoa na Idade Média. Veiros: Junta de Freguesia de Veiros. 84 pp. Pereira, M. (2017). Beduído e Veiros – Património Construído. Junta de Freguesia da União de Freguesias de Beduído e Veiros. de Sousa, D. João (1690). Constituições Sinodais do Bispado do Porto. Zanon, D. (2002). Os bispos paulistas e a orientação Tridentina no século XVIII. História: Questões & Debates, Curitiba, n.º 36, p. 219-250. Editora UFPR.

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SAUDADES | ADOLFO VIDAL

BIORIA, O SUSTENTÁVEL CONVÍVIO ENTRE A NATUREZA E O HOMEM AdolfoVidal* “Saudade” de algo que tem 15 anos pode soar a algo prematuro, ainda mais se tivermos em linha de conta as pretéritas edições da Revista Terras de Antuã. Daí que, lançado o desafio pela Dra. Rosa Maria Rodrigues, não fugindo ao “tema”, optei por uma descrição mais ou menos cronológica do mesmo, mas principalmente por fazer a ponte entre o projeto Bioria e o papel do Homem através da agricultura e essencialmente da cultura do arroz neste imenso, fértil e extraordinário território denominado Baixo Vouga Lagunar.

I. O PROJETO BIORIA O Município de Estarreja desenvolveu nas 2 últimas décadas um conjunto de projetos e ações cujo denominador comum é o regresso (e aprofundamento) ou (re)descoberta da relação com a Ria de Aveiro, sob a ideia de “Virar o Concelho para a Ria”, valorizando 1/3 do território municipal esquecido ou desconhecido na nomeadamente na última década e meia do século anterior. Estes projetos e ações avançaram em paralelo com ações entretanto já encetadas na “remediação” do passivo ambiental histórico do Complexo Químico de Estarreja através de alterações nas técnicas de produção industrial e da aposta no saneamento industrial e urbano, salvaguardando a Ria de Aveiro. Conjugadamente, estas iniciativas contribuíram para mudar a notoriedade negativa de Estarreja, de um Município ligado à indústria química pesada e altamente poluente para um Município com uma imagem e dinâmicas ligadas à conservação ambiental e ao desenvolvimento sustentável. Projetos como o pioneiro BIORIA, o Eco-Parque Empresarial, o Parque Urbano do Antuã e a recuperação dos cais da frente lagunar, em conjunto com o programa POLIS da Ria de Aveiro, são o exemplo vivo dessa dinâmica. * Natural de Salreu e antigo produtor de arroz

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O Património Natural de Estarreja, fruto da privilegiada localização geográfica, nem sempre foi reconhecido pela sua riqueza e biodiversidade. O desafio de reavivar a sua identidade perdida no tempo, valorizando este ecossistema natural, foi conseguido através do BIORIA, projeto pioneiro de conservação da natureza e biodiversidade da Câmara Municipal de Estarreja. O Projeto foi subdividido em três candidaturas a apoios comunitários que foram aceites num valor global de investimento que ultrapassou os 700.000,00 euros ao longo destes 20 anos.

Primeiro desdobrável do BioRia

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Em 2005 foi criado o primeiro percurso: o de Salreu com cerca de 8km.

Mapa Ilustrado do Percurso de Salreu (2005)

Em 2009, foram criados os percursos do rio Jardim, Bocage e Antuã. Ainda em 2009 entrou em funcionamento o Centro de Interpretação Ambiental do BIORIA, uma edificação em madeira, localizada no início do percurso de Salreu. Em 2011 foram criados novos percursos – Ribeiras de Veiros, Ribeiras de Pardilhó e Rio Gonde. [ 264 ]


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Em 2013 foi criado o percurso de Fermelã, ficando assim alargada a todas as freguesias do Concelho a rede de percursos do projeto BIORIA.

Mapas Percursos Totais

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Conhecer para aprender a valorizar e conservar foi a máxima que norteou o Projeto BIORIA que, através da requalificação de paisagens ambientalmente degradadas, permitiu a criação de uma Rede de Percursos Pedestres e Clicáveis. Dotados de painéis informativos e estruturas de apoio, possibilitam ao visitante de forma prática, cómoda e divertida conhecer as principais potencialidades da região privilegiando simultaneamente o contacto direto com a Natureza. A criação da marca “BIORIA” permitiu mobilizar esforços no sentido de convergir meios e sinergias na conservação e valorização do património natural, de forma a contribuir decisivamente para o bem-estar da população através do usufruto de um espaço único. Ao mesmo tempo contribui para tornar Estarreja um destino de referência a nível nacional e internacional no Turismo de Natureza. São vários os parceiros que têm contribuído para a notoriedade deste projeto pioneiro, que contou, desde o início, com a extinta Rota da Luz e com a componente científica da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. Atualmente destaca-se a Universidade de Aveiro e o PACOPAR - Painel Consultivo Comunitário do Programa Atuação Responsável de Estarreja, formado pelas empresas do Complexo Químico de Estarreja e por várias entidades sociais e administrativas locais, além de outras Universidades, Escolas de Formação Profissional e o Turismo do Centro. Com vista a uma correta promoção Turística, a Câmara Municipal de Estarreja tem apostado em várias vertentes, nomeadamente na requalificação e infraestruturação, no conhecimento científico orientador, capital humano qualificado, eventos de sensibilização ambiental para toda a comunidade, desenvolvimento de diversos produtos de merchandising, novas tecnologias, equipamentos e produtos inovadores que têm permitido atrair cada vez mais visitantes. A utilização consciente e sustentável dos recursos turísticos tem sido orientada por diversos pareceres solicitados ao Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) e por estudos científicos que contribuíram para um aumento do conhecimento sobre a área, possibilitando determinar quais as melhores soluções de conservação da natureza e de desenvolvimento turístico, assentes numa perspetiva de sustentabilidade dos recursos. São diversas as parcerias estabelecidas com empresas de turismo de natureza, redes hoteleiras e agências de viagens. Ao longo do ano são várias as reportagens e participações em programas de televisão que garantem uma divulgação em grande escala, associando a este tipo de divulgação contactos que permitem uma cobertura das principais atividades e acontecimentos do Projeto. Os percursos estão estrategicamente localizados na zona baixa do concelho, inseridos na Zona de Proteção Especial da Ria de Aveiro, em contacto com uma grande frente lagunar, onde se salienta o facto de ser uma área completamente plana e, por conseguinte, com um grau de dificuldade reduzido ou inexistente para o pedestrianismo. Os caminhos de acesso aos percursos e os próprios trilhos, sobretudo de terra batida, apresentam usualmente excelentes condições, considerando que todos os anos o Município de Estarreja faz um elevado investimento na sua conservação, especialmente em zonas que sofram períodos de alagamento durante o inverno ou danos por vias das regulares “marés vivas”. [ 267 ]


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O Novo Centro de Interpretação Ambiental (CIA), estrategicamente localizado no início do Percurso de Salreu, é a porta de entrada na Ria de Aveiro, ponto de receção dos visitantes, e um polo de dinamização de inúmeras atividades de sensibilização ambiental.

Edificios no Ribeiro de Salreu

O Birdwatching, vertente do Turismo de Natureza, encontra em Estarreja um dos locais mais propícios para esta atividade pela existência de várias espécies com maior representação a nível nacional e internacional. A presença dos arrozais mais a norte do país e a grande diversidade de habitats que se concentram nesta área abrangida pelos percursos tornam este local um paraíso para espécies como a Garça-vermelha, Águia-sapeira, entre outras, numa lista de cerca de centena e meia de espécies. O BIORIA apresentou resultados que superaram largamente as expetativas e os objetivos inicialmente propostos, não só pelo facto de ter conseguido mudar progressivamente a imagem que mesmo as populações locais tinham do próprio Concelho, mas também por dar a conhecer a área e a sua rica biodiversidade a muitos milhares de visitantes (39.000 em 2019), potenciando a economia local, num projeto integrado de Desenvolvimento Sustentável. [ 268 ]


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Associado ao projeto BIORIA, e paralelamente à componente de inovação e valorização ambiental, importa também dar aqui lugar de destaque à valorização das atividades tradicionais, a agricultura, nomeadamente, tendo em conta que estamos perante um território extremamente fértil em termos agrícolas, cuja ação permite, por exemplo, a existência dos arrozais mais a norte do país (e do hemisfério norte) e que propicia aqui condições únicas de nidificação da Garça Vermelha, espécie emblemática da região e que se encontra em vias de extinção. O nível freático elevado, mesmo em época de estio, dos terrenos na zona lagunar e no denominado “Bocage” (F:Acts!, 2013), permite que ocorra um elevado nível de produção forrageira e ainda que uma raça bovina autóctone da região – raça Marinhoa – tenha condições únicas de produção. Há, no entanto, uma ameaça presente de intrusão da cunha salina por efeito do avanço das marés, por um lado e a falta de controlo do nível de água doce em período de inverno, na malha reticular de valas hidráulicas que percorre o território, por outro. A relevância da riqueza existente ao nível da biodiversidade na zona lagunar do Município de Estarreja é de uma dimensão esmagadora e permitiu, nomeadamente desde o aparecimento do projeto BIORIA, que como atrás foi referido, a atividade de observação de aves (birdwhatching), principalmente, tenha ganho uma relevância enorme na dimensão do número de pessoas que aqui se deslocam com esse fito.

Birdwatchers no Percurso de Salreu

A riqueza da biodiversidade induz ainda a realização regular de um elevado número de estudos científicos, tornando a zona um autêntico laboratório natural, onde se destacam naturalmente os trabalhos científicos promovidos pela Universidade de Aveiro sobre a inesgotável fauna e flora da região. [ 270 ]


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Este território é possuidor de enorme valor na dimensão tradicional mais ligada à agricultura, na dimensão ambiental pelo imenso potencial que a conservação ambiental desenvolvida traz em termos de atratividade externa e pela componente científica induzida pela extraordinária biodiversidade desta zona. Pode, também, ter igualmente um potencial muito relevante em termos económicos com impactos relevantes ao nível da economia local. Neste contexto, foram desenvolvidos desde 2014, 2 atividades marcantes na projeção externa do BIORIA: a Feira ObservaRia, uma extensão da Feira ObservaNatura, realizada bianualmente em conjunto com o ICNF e a BIORACE CHALLENGE, a maior corrida de obstáculos da Europa, realizada integralmente na nossa área do Baixo Vouga Lagunar e que, na edição de 2019 teve mais de 3.850 participantes.

ObservaRia

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BioRace

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I. O HOMEM A E NATUREZA NO BIORIA: A CULTURA DO ARROZ Uma das grandes virtudes da implementação em 2005 do projeto BIORIA foi o efeito “colateral” que teve no retomar do cuidado com a nossa frente lagunar. Desde os inícios da década de 90 do veículo passado, que, fruto de uma brutal invasão de água salobra sobre os terrenos do “Campo” em Salreu, (era assim tratado pelas nossas gentes e assim o continuo a tratar) nomeadamente na área mais a sul (nos locais denominados como “Póvoa” e “Salreu Velho”), confinantes com o Rio Jardim, mas também em toda a faixa que bordeja o esteiro de Salreu, ocorreu um abandono quase completo da atividade agrícola… até o corte do “mato” (que foi ao longo dos anos ganhando progressivamente terreno à área de cultivo do arroz) para “estradura” do gado se reduziu imensamente. Os caminhos atingiram níveis de degradação extrema e até a circulação de máquinas agrícolas se tornou impossível em muitos locais. O projeto BIORIA e a criação do primeiro percurso (o de Salreu) veio requalificar por completo não só esse percurso que “circunda” o Campo de Salreu como todos os caminhos adjacentes; efeito igual teve sobre o estado dos percursos sucessivamente criados e na criação de uma regular intervenção por parte da Câmara Municipal e das Juntas de Freguesia na preservação do estado dos caminhos agrícolas no seu global. A cultura do arroz representou papel relevante em determinado momento da vida da nossa região e particularmente das freguesias de Salreu e Canelas. Esse papel nos tempos de antanho, nomeadamente dos anos 40 aos anos 70 do século passado, está retratado superiormente por Sérgio Paulo Silva no livro “Salreu, uma aldeia em papel de arroz” (2010), a quem presto a devida vénia e me desculpo desde já pelo atrevimento de usar alguma da informação que naquela publicação foi sublimemente retratada.

Capa livro Sérgio Paulo Silva

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Na década oitenta houve uma aceleração da mecanização da cultura do arroz, com a criação primeiro de uma sociedade de agricultura de grupo para a cultura do arroz em Salreu (que infelizmente durou poucos anos), e depois com a aquisição de nova e mais moderna maquinaria e alargamento da área da cultura do arroz para zonas abandonadas desde os naos 50 (“Baixas da Caneira e “Roçadas Velhas”, por exemplo).

Ceifeira-debulhadora Tramagal a cortar arroz na zona das “silveiras”

Ceifeira-debulhadora Tramagal deslocando-se nos caminhos hoje integrados nos Percursos do BioRia

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Nessa altura, com a Hidroeléctrica de Estarreja já em curso descendente de atividade, o arroz colhido era vendido às 2 fábricas então existentes em Ul e a moleiro particulares como o Augusto Santa de Canelas. Ao tempo, a cultura do arroz “rajado”, tradicional na nossa zona e cuja descrição é feita no livro do Sérgio Paulo Silva, era residual, tendo o “carolino” ocupado o seu lugar com a sub-casta “pritz” em destaque pela resistência que apresentava ao “arejo”. E durante a maior parte dessa década, o “lucro” da cultura do arroz era interessante o suficiente para a co-existência por exemplo de 2 máquinas ceifeiras debulhadoras de grande dimensão a trabalhar na campanha da colheita do arroz (setembro/outubro). No final da década de 80, com a abertura de fronteiras comerciais aos produtos agrícolas de outros países europeus, o arroz espanhol, já descascado e colocado nas fábricas em Portugal, ficava mais barato que o arroz “em casca” de Salreu (e Canelas, embora aqui em muito menor escala de produção). E com essa nova realidade reverteu-se (de novo) a aposta na cultura do arroz até praticamente ter desaparecido durante a década de 90, situação agravada pela atrás referida invasão de água salobra. Na primeira década do novo século, dá-se uma retoma tímida da cultura, quase exclusivamente centrada num produtor (do vizinho lugar de Soutelo que começou por conhecer o Campo de Salreu pelo transporte para os proprietários, na década de 80, do arroz colhido pelas máquinas acima referenciadas).

Essa cultura “unipessoal” foi em crescendo até atingir o “pico” em 2012 ou 2013. De então para cá, começa a ocorrer o progressivo abandono da atividade por parte do produtor em causa. Em 2019, por exemplo, não foi colhido um grão de arroz em Salreu! [ 275 ]


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Mas, em Canelas, o abandono que, entretanto, tinha ocorrido, já nesta década dá lugar a uma nova dinâmica de cultura, primeiro centrada num produtor e agora já com 2 produtores que, de mote e iniciativa própria recuperaram a cultura, terrenos e, com o apoio da Câmara Municipal e da Junta de Freguesia de Canelas na recuperação das infra-estruturas hidráulicas, tem já um circuito de produção e comercialização “de nicho” estabilizado e com resultados muito interessantes.

Colheita do arroz de Canelas em 2019 e 2020

Já neste ano de 2020, depois de investimentos sucessivos da Câmara Municipal e da Junta de Freguesia de Salreu nos caminhos e infra-estruturas hidráulicas, esta Junta incentivou e apoiou alguns produtores no sentido de voltarem à cultura, iniciativa coroada de êxito que se espera venha a frutificar. Na ocasião foi feita uma interessante recreação de uma parte do modo de colheita do arroz nos anos 60 e 70 do século passado.

Cultura e colheita de arroz em Salreu - 2020

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Este território é o exemplo vivo da convivência e integração plenas entre o Homem, na sua atividade agrícola, e a natureza, nas suas diversas dimensões. Sempre assim foi e, atrevo-me a dizer, sempre assim será. Importa preservar e desenvolver sustentadamente o território. E não deixar nunca de considerar a atividade e presença do Homem como indissociável do correr da Natureza.

Aérea do Baixo Vouga

De resto, sobre tudo o aqui fomos falando, “Saudades”? Só do futuro. Não podia terminar sem fazer a homenagem a quem tanto me ensinou sobre a cultura do arroz (o meu pai, Rafael Vidal) e a 2 pessoas que sobre a matéria (e tantas outras) teimam em ser um repositório de inesgotável sabedoria e conhecimento: o Sérgio Paulo Silva e o Manuel Marques da Silva (“Neca” da Pires). A devida nota também às Páginas do Facebook do “Arroz de Canelas” e do “Arroz de Salreu” pelas imagens ali disponibilizadas e que aqui utilizei.



TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

[ N.º1 | Ano I | 2007 ] SUMÁRIO: HOJE, POR ONTEM, PARA AMANHÃ, José Eduardo de Matos; EDITORIAL, Delfim Bismarck Ferreira; ARTIGOS: EM SALREU, A “CASA DO SANTO” OU “A CASA DO FERRAZ”, Amaro Neves; O PATRIMÓNIO NAVAL NA FREGUESIA DE PARDILHÓ, Andreia Vidal Leite; CARTOFILIA ESTARREJENSE - A 1.ª metade do século XX, António Augusto Silva; DIVAGAÇÕES A PROPÓSITO DE UM VELHO RETRATO - Rostos da Fontinha, António Pedro de Sottomayor; MOINHOS E MOLEIROS DO CONCELHO DE ESTARREJA, Armando Carvalho Ferreira; A INTERVENÇÃO ARQUEOLÓGICA NA CAPELA DE SANTO AMARO, Beduído - Estarreja, Carlos A. Brochado de Almeida e Pedro Brochado de Almeida; OS REGEDORES DAS FREGUESIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA, Delfim Bismarck Ferreira; UMA FAMÍLIA DE ESTARREJA - Notas genealógicas sobre o ramo materno da família de D. Frei Caetano Brandão, Bispo do Pará e Arcebispo Primaz de Braga, Francisco M. Ponces de Serpa Brandão; HISTÓRIA DO ENSINO PRIMÁRIO NO CONCELHO DE ESTARREJA, Marco Pereira; O COUTO DE ANTUÃ E AVANCA NO FINAL DA IDADE MÉDIA - O impacto da crise dos séculos XIV e XV segundo três cartas de sentença, Rafael Marques Vigário; A IMPORTÂNCIA DA REDE VIÁRIA NA ESTRUTURAÇÃO DA DIOCESE VISIGÓTICA DE COIMBRA: Antuane como uma das suas paróquias, Sónia Filipe; SAUDADES. [ N.º2 | Ano II | 2008 ] SUMÁRIO: COMO É RICA A NOSSA HISTÓRIA, José Eduardo de Matos; EDITORIAL, Delfim Bismarck Ferreira; ARTIGOS: O BISPO DE COCHIM - Alguns apontamentos para o seu conhecimento, António Augusto Silva; LEITURA DE FEIRA E NÃO SÓ, António de Pinho Nunes; ESTARREJA NA IDADE MÉDIA - Documentação dos séculos X a XIII, Delfim Bismarck Ferreira; O LIVRO DE EXCOMUNGADOS E LEMBRANÇAS DA IGREJA DE SÃO MIGUEL DE FERMELÃ, Hugo Calão; OS MEUS ANTEPASSADOS DE ESTARREJA, José Manuel Nunes Liberato; O ASSOCIATIVISMO AGRÁRIO NA SUB-REGIÃO DE AVEIRO (1854-1923) - Contributo para o seu estudo, Manuel Ferreira Rodrigues; MONARQUIA DO NORTE [ou Traulitânia] - Ocupação monárquica de Estarreja (24.1.1919-11.21919), Marco Pereira; O ESTÁBULO DA IGREJA PAROQUIAL DE BEDUÍDO, Maria Clara Paiva Vide Marques; LIVROS PAROQUIAIS DE AVANCA - Uma fonte por explorar, Maria Palmira da Silva Gomes; BANDA BINGRE CANELENSE: PELA MÚSICA HÁ 140 ANOS, Teresa Bagão; O CONCELHO DE ESTARREJA E OS SEUS EMIGRANTES ENTRE OS ANOS DE 1900 E 1905, Valter Santos; SAUDADES, ADENDAS E CORRECÇÕES: Novos Subsídios para a História da Capela de Santo António, Marco Pereira.

[ N.º3 | Ano III | 2009 ] SUMÁRIO: A AVANTURA CONINUA, José Eduardo de Matos; EDITORIAL, Delfim Bismarck Ferreira; ARTIGOS: JORNAIS E JORNALISTAS NA TERRA DA MADEIRA ATÉ 1925, António Augusto Silva; A CONSTRUÇÃO NAVAL NO NORTE DA RIA DE AVEIRO: DA ÁREA DE INFLUÊNCIA DO CONCELHO DE ESTARREJA AO BICO DA MURTOSA, António Vítor N. de Carvalho; CASA DOS MORGADOS DE SANTO ANTÓNIO DA PRAÇA, EM ESTARREJA, Delfim Bismarck Ferreira; A CHEGADA DA ENERGIA ELÉCTRICA AO CONCELHO DE ESTARREJA: 1925-1930 - BREVES APONTAMENTOS HISTÓRICOS, Diana Cunha & Susana Temudo Silva; EPISÓDIO DA VIDA PLOÍTICA DE HÁ CEM ANOS, José Augusto Tavares Gurgo e Cirne; INVASÕES FRANCESAS NOS CONCELHOS DE ESTARREJA E MURTOSA, Marco Pereira; AS CONVERSAS COM A TIA ROSA, Margarida Castro; RETÁBULO DA CAPELA DE SANTA BÁRBARA EM BEDUÍDO, Maria Clara PaivaVide Marques; MANUEL FIRMINO D’ALMEIDA MAIA (1824-1897), Maria Manuel de Vilhena Barbosa; EGAS MONIZ - O PRÉMIO NOBEL, Rosa Maria Rodrigues; FAMILIARES DO SANTO OFÍCIO RELACIONADOS COM ESTARREJA, Teresa Cruz Tubby; O CONCELHO DE ESTARREJA E OS SEUS EMIGRANTES ENTRE OS ANOS DE 1882 E 1887, Valter Santos; SAUDADES.

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MUNICÍPIO DE ESTARREJA

[ N.º4 | Ano IV | 2010 ] SUMÁRIO: CEM ANOS DA REPÚBLICA E MAIS DE MONARQUIA, José Eduardo de Matos; EDITORIAL, Delfim Bismarck Ferreira; ARTIGOS: ALBERTO FERREIRA VIDAL - Notável Estarrejense, António Augusto Silva; EGAS MONIZ, das origens telúricas à celebração internacional, António Macieira Coelho; “MULTIPLICAR OS PEIXES E POUPÁ-LOS QUANDO SE REPRODUZEM…” - O debute parlamentar de um filho de Estarreja, António Pedro de Sottomayor; O “RESTAURO” DA BANDEIRA DA MONARQUIA - Tratamento de Conservação e Restauro da bandeira da Câmara Municipal de Estarreja, Eva Armindo; OS INVENTÁRIOS DAS IGREJAS E CAPELAS DAS PARÓQUIAS DOS CONCELHOS DE ESTARREJA E MURTOSA, Hugo Calão; OS ÚLTIMOS TEMPOS DA MONARQUIA E A IMPLANTAÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, com as suas consequências em Estarreja, de acordo com as memórias de Francisco de Moura Coutinho de Almeida d’Eça, Luís Augusto Eça de Matos; NOTAS PARA A HISTÓRIA DA PRIMEIRA REPÚBLICA NO DISTRITO DE AVEIRO: Alberto Souto administrador do concelho de Estarreja, Luís Souto de Miranda; DA COBERTURA DE COLMO À TELHA DE FONTELA, Marco Pereira; SÃO MIGUEL ARCANJO - PADROEIRO DE FERMELÃ, Maria Clara PaivaVide Marques; OS CAMINHOS DA CIRES - o seu 50.º aniversário, Maria Elvira Callapez; DOMINGOS JOAQUIM DA SILVA, Visconde de Salreu (1854-1936) - Parte I, Maria de Jesus Sousa de Oliveira e Silva; INTERVENÇÃO DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO DA PEDRA DE ARMAS DO BISPO DE COCHIM, Patrícia Mestre Marques de Carvalho; RECUPERAÇÃO DOS MOINHOS DE MEIAS - Quinta do Marinheiro, Casa-Museu Egas Moniz, Ricardo Matos, Luís Loureiro e Nuno Matos; AVANCA - DOS ÚLTIMOS ANOS DA MONARQUIA ATÉ À IMPLEMENTAÇÃO DA REPÚBLICA, Telma Marília Assunção Correia; O CONCELHO DE ESTARREJA E OS SEUS EMIGRANTES (1888-1892), Valter Santos; SAUDADES, ADENDAS E RECTIFICAÇÕES. [ N.º5 | Ano V | 2011 ] SUMÁRIO: NÃO REFORMAMOS A HISTÓRIA!, José Eduardo de Matos; EDITORIAL, Delfim Bismarck Ferreira; ARTIGOS: A SAGA DO NAVIO MARIA DAS FLORES, O Lugre Maria das Flores - o bota-abaixo, Ana Maria Lopes; CAETANO FERREIRA - Notável Estarrejense, jornalista errante e viajante, António Augusto Silva; PASSADO PATRIMÓNIO E FUTURO - Primeiros elementos para uma carta arqueológica do concelho de Estarreja, António Manuel S. P. Silva & Gabriel Rocha Pereira; CASA DO OUTEIRO DE PAREDES EM AVANCA, Delfim Bismarck Ferreira e Maria Palmira da Silva Gomes; A ARQUEOLOGIA NA REDE PRIMÁRIA DE TRANSPORTE DE GÁS: A passagem pelo distrito de Aveiro, João Muralha; O FUNDADOR DE ESTARREJA, Joaquim Lagoeiro; ORIGEM DA CASA DO COUTO, SALREU, ESTARREJA, Jorge Barbosa Montenegro; CONSELHEIRO FRANCISCO LOURENÇO DE ALMEIDA - Participante na transição da Monarquia Absoluta para a Monarquia Liberal, na primeira metade do século XIX, Marco Pereira; OS VALENTES DE ALMEIDA DE PARDILHÓ, Maria HelenaValente Pinto; AS ELITES LOCAIS E SUA INFLUÊNCIA NOS FINS DO SÉCULO XIX E PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX - UM EXEMPLO: Domingos Joaquim da Silva,Visconde de Salreu (1854-1936) - Parte II, Maria de Jesus Sousa de Oliveira e Silva; AFORAMENTOS DE SANTO AMARO,TORREIRA E OUTROS (1780 a 1950) - PROCESSOS EM ARQUIVO, Norvinda Leite; O PAPEL DAS MULHERES NAVIDA DE EGAS MONIZ, Rosa Maria Rodrigues; OS CINETRATOS NO DISTRITO DE AVEIRO - Materialização de um programa em Rodrigues Lima, Susana Constantino; O CONCELHO DE ESTARREJA E OS SEUS EMIGRANTES (1893-1894), Valter Santos e Teresa Cruz; SAUDADES; NOTAS SOLTAS: ORDENANÇAS E MILÍCIAS NO CONCELHO DE ESTARREJA (1866); ARQUITECTURA NA FEIRA DE SANTO AMARO; ADENDAS E RECTIFICAÇÕES [N.º6 | Ano VI | 2012 ] SUMÁRIO: A IMPORTÂNCIA DO RITUAL, José Eduardo de Matos; EDITORIAL, Delfim Bismarck Ferreira; ARTIGOS: EMBARCAÇÕES TRADICIONAIS DE CANELAS, Ana Maria Lopes; Dr. TAVARES DA SILVA - Figura incontornável do Desporto Nacional do séc. XX, António Augusto Silva; O PATRIMÓNIO CINÉFILO DO CONCELHO DE ESTARREJA, António Costa Valente; O CASTRO DE SALREU (ESTARREJA): RESULTADOS DA PRIMEIRA CAMPANHA DE ESCAVAÇÕES ARQUEOLÓGICAS, António Manuel S. P. Silva, Gabriel R. Pereira & Paulo A. P. Lemos; ANTÓNIO MOTA GODINHO MADUREIRA - Um esboço biográfico, Delfim Bismarck Ferreira; MIGRAÇÕES ARQUITECTÓNICAS - O popular e o histórico na hora de Francisco Farinhas, Domingos Tavares; O PATRIMÓNIO E O SEU PAPEL CULTURAL NO CONTEXTO LOCAL E REGIONAL, José Mattoso; FÁBRICAS DE LACTICÍNIOS NOS CONCELHOS DE ESTARREJA E MURTOSA, Marco Pereira; SACRÁRIOS DAS IGREJAS PAROQUIAIS DO CONCELHO DE ESTARREJA, Maria Clara Vide Marques; ESTARREJA - Sua origem como topónimo, Maurício António Fernandes; O CONCELHO DE ESTARREJA E OS SEUS EMIGRANTES (1895), Teresa Cruz Tubby e Valter Santos; SAUDADES; NOTAS SOLTAS: ESTARREJA E AS SUAS ACTUAIS FREGUESIAS (1853); CONCELHO DE ESTARREJA (1875); ESTADO ACTUAL DA INDÚSTRIA CERÂMICA (1905); ESTARREJA (1912); ANTUÃ: Paróquia Sueva; 8 DIAS DE “LIBERDADE” … CONDICIONADA; REVISTAS TERRAS DE ANTUÃ.

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TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

[ N.º7 | Ano VII | 2013 ] SUMÁRIO: EU SOU QUE SEI, José Eduardo de Matos, A HISTÓRIA VAISE FAZENDO, Diamantino Sabina, EDITORIAL, Delfim Bismarck Ferreira, ARTIGOS: HENRIQUE LAVOURA - construtor naval de nomeada, Ana Maria Lucas, CÓNEGO REBELO DOS ANJOS - Capelão de militares e Civis, António Augusto Silva, O CÓNEGO BARBOSA E O DOGMA DA IMACULADA CONCEIÇÃO, António Pedro Sotto Mayor, O VINCULO DA CASA DO COUTO EM SALREU (1755), Delfim Bismarck Ferreira, MEMÓRIAS DO QUOTIDIANO - os Painéis dos Barcos Moliceiros, José Gurgo e Cirne, INVENTÁRIO DO ESPÓLIO DE CONSTRUÇÃO NAVAL DO MESTRE HENRIQUE LAVOURA - PARDILHÓ, Juliana Cunha, REVOLTAS POPULARES EM ESTARREJA E MURTOSA, Marco Pereira, FRANCISCO MARQUES RODRIGUES, Maria Almira de Oliveira Rodrigues Barata e Manuel Oliveira Rodrigues, RETÁBULOS DA IGREJA DE SÃO BARTOLOMEU DE VEIROS, Maria ClaraVide Marques e António Cruz Leandro, OS ELEITOS DA CÂMARA DE ESTARREJA REFERÊNCIAS NAS ATAS DE 1860-1910,Norvinda Leite, NOTA SOBRE A IDENTIFICAÇÃO DE UMA PEÇA ARQUEOLÓGICA DE VALE CASTANHEIRO, SALREU, Paulo Morgado, MEMÓRIAS DA CONSTRUÇÃO NAVAL, Sérgio Paulo Silva, A EMIGRAÇÃO NO CONCELHO DE ESTARREJA (1896), Teresa Cruz eValter Ramos, SAUDADES, REVISTAS “ TERRAS DE ANTUÔ [ N.º8 | Ano VIII | 2014 ] SUMÁRIO. VIAJE COMIGO POR TERRAS DE ANTUÃ, Diamantino Sabina, EDITORIAL, Rosa Maria Rodrigues, ARTIGOS: AS DESCOBERTAS DE EGAS MONIZ E O SEU CONTEXTO HISTÓRICO, Álvaro Macieira Coelho, A CONSTRUÇÃO NAVAL LAGUNAR E A MUSEOLOGIA - Mestre Esteves - Pardilhó Ana Maria Lopes, OS 90 ANOS DOS BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DE ESTARREJA, Andreia Tavares, PATRIMÓNIO MUSICAL DE ESTARREJA - Um contributo, António Augusto Silva, A FAMÍLIA BANDEIRA EM ESTARREJA E SALREU DESDE O SÉCULO XVIII, Delfim Bismarck Ferreira, MEMÓRIAS DO QUOTIDIANO - Os Painéis dos Barcos Moliceiros, José Gurgo e Cirne, CRÓNICAS DE UM PASSADO PRESENTE - Alguns apontamentos para o estudo geral deste Concelho de Estarreja, José Teixeira Valente, OS ACTUAIS CONCELHOS DE ESTARREJA E MURTOSA NO SÉCULO XIII, Marco Pereira, PINTURAS DEVOCIONAIS DOS ALTARES- MORES DO CONCELHO DE ESTARREJA, Maria Clara Paiva Vide Marques e Sylvie Ferreira, FRANCISCO AUGUSTO DA SILVA ROCHA E A CASA DE FRANCISCO MARIA SIMÕES - Um novo padrão de Beleza, Maria João Fernandes, OS ELEITOS DA CÃMARA MUNICIPAL DE ESTARREJA - REFERÊNCIAS NAS ATAS (CONT) - 19102013, Norvinda Leite, DEAMBULANDO PELAS RUAS, Sérgio Paulo Silva, O CONCELHO DE ESTARREJA E OS SEUS EMIGRANTES - ANO DE 1897 TRILHOS DOS AMAZONAS, Teresa Cruz e Valter Santos, SAUDADES - OS 50 ANOS DO MERCADO MUNICIPAL DE ESTARREJA João Alegria REVISTAS “TERRAS DE ANTUÔ [ N.º9 | Ano IX | 2015 ] SUMÁRIO, E VÃO NOVE, Diamantino Sabina, EDITORIAL, Rosa Maria Rodrigues, PINTORES DE EMBARCAÇÕES LAGUNARES, Ana Maria Lopes, 150 ANOS DEDICADOS À MÚSICA, OS EXECUTANTES DA BANDA BINGRE CANELENSE DESDE A SUA FUNDAÇÃO, Ana Paula Almeida, CARNAVAL DE ESTARREJA: DAS COMEMORAÇÕIES POPULARES ÀS BATALHAS DAS FLORES, Andreia Tavares, DR. MANUEL FIGUEIREDO. MÉDICO DE LARGO SENTIDO HUMANO, António Augusto Silva, A OBRARETABULAR DA IGREJA DE SÃO PEDRO DE PARDILHÓ, António Cruz Leandro e Maria Clara de Paiva Vide Marques, PATRIMÓNIO - LUGAR DE MEMÓRIA E DE IDENTIDADE, Carla Ferreira, O DESEMBRAGADOR DR. JOSÉ HOMEM CORRÊA TELES, Delfim Bismarck Ferreira, CONTRIBUTO PARA UM INVENTÁRIO HISTÓRICO DA COLETIVIDADE CONCELHIA” O CENTRO” - CENTRO RECREATIVO DE ESTARREJA CRE NA CELEBERAÇÃO DOS 105ºANIVERSÁRIO, José Fernando Correia, MEMÓRIAS DO QUOTIDIANO. OS PAINÉIS DOS BARCOS MOLICEIROS, José Gurgo e Cirne, A LEITURA PÚBLICA EM ESTARREJA, Juliana Cunha, PRIMEIRA REFERÊNCIA ESCRITA A SALREU (1076/1106), Marco Pereira, FRENTE LAGUNAR DE ESTARREJA E OS SEUS TESOUROS, Norberto Monteiro, JORNAL “ O CONCELHO DE ESTARREJA” 1901-2014 DO SOTÃO PARA O MUNDO DIGITAL, Norvinda Leite, BANDA VISCONDE DE SALREU, 1 DE OUTUBRO DE 1925-1 DE OUTUBRO DE 2015 DO PASSADO AO PRESENTE UM SÓ CAMINHO, A MESMA ENTREGA À MÚSICA E À ARTE DE BEM FAZER, Raquel Maria Rodrigues de Jesus, SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE ESTARREJA 80 ANOS AO SERVIÇO DO CONCELHO DE ESTARREJA, Rosa de Fátima Figueiredo, CASA MUSEU EGAS MONIZ - RECANTOS DO MARINHEIRO, Rosa Maria Rodrigues, ESCOLA SECUNDÁRIA DE ESTARREJA: UM PERCURSO COM MEIO SÉCULO, Teresa Bagão, EMIGRAÇÃO ESTARREJENSE NO ANO DE 1898, Teresa Cruz Tubby e Valter Santos, SAUDADES - CINE TEATRO DE ESTARREJA 65 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS, João Carlos Alegria

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MUNICÍPIO DE ESTARREJA

[ N.º10 | Ano X | 2016 ] A NOSSA CASA BRANCA, Diamantino Sabina, EDITORIAL, Rosa Maria Rodrigues, ROTA LAGUNARES, Ana Maria Lopes, CARNAVAL DE ESTARREJA:1930 A 1974, Andreia Tavares, RANCHO FOLCLÓRICO DE VEIROS - AS PRIMEIRAS DANÇAS: 1939-1947, António Augusto Silva, TRABALHOS ARQUEOLÓGICOS EM 2016 NO CRASTO DE SALRE ESTARREJA - BREVE NOTÍCIA António Manuel Silva, Gabriel R. Pereira, Paulo P. Lemos e Sara Almeida e Silva, A PEDRA DE ARMAS DA CASA DA FONTINHA, EM BEDUÍDO, ESTARREJA, Delfim Bismarck Ferreira, CASAS COM TORRE, Domingos Tavares, MEMÓRIAS DO QUOTIDIANO - OS PAINEIS DOS BARCOS MOLICEIROS José Gurgo e Cirne, A BIBLIOTECA PRIVADA DE EGAS MONIZ - CASA DO MARINHEIRO EM AVANCA, Juliana Cunha, O VÍNCULO DA CAPELA DE S. SIMÃO DO BUNHEIRO NO CONCELHO DE ESTARREJA, DISTRITO DE AVEIRO, Luís Miguel Pulido Garcia Cardoso de Menezes, PESOS E MEDIDAS NA HISTÓRIA DE ESTARREJA E MURTOSA, Marco Pereira, PINTURAS DE MILAGRES, HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE ESPERANÇA E FÉ…, Maria Clara de Paiva Vide Marques e António Cruz Leandro, EDIFÍCIO DOS PAÇOS DO CONCELHO DE ESTARREJA - UM PERCURSO PELAS FONTES DE 120 ANOS DE HISTÓRIA, Norvinda Leite, UM OUTRO OLHAR SOBRE O PATRIMÓNIO EDIFICADO DA ANTIGA FREGUESIA DE BEDUÍDO: A TERRA COMO FORMA DE CONSTRUÇÃO Susana Temudo e Diana Cunha Santos EMIGRAÇÃO ESTARREJENSE NO ANO DE 1899, Teresa Cruz Tubby e Valter Santos SAUDADES - NOS 20 ANOS DO FESTIVAL INTERNACIONAL DE CINEMA DE AVANCA, António Costa Valente e Rita Capucho [ N.º11 | Ano XI | 2017 ] “ROSTO EDIFICADO”, Diamantino Sabina, EDITORIAL, Rosa Maria Rodrigues, CARLOS PINTO DE SOUSA - Um autodidacta do crescimento cultural, António Augusto Silva, UMA ALDEIA DE HÁ DOIS MIL ANOS UM SÍTIO ARQUEOLÓGICO E A SUA INVESTIGAÇÃO, António Manuel Silva, Gabriel R. Pereira, Sara Almeida e Silva e Paulo. P. Lemos, A PEDRA DE ARMAS DA “CASA DO COUTO”, EM SALREU, Delfim Bismarck Ferreira, PALACETES EM ESTARREJA, Domingos Tavares, MEMÓRIAS DO QUOTIDIANO - Em busca do tempo perdido, José Gurgo e Cirne, O PATRIMÓNIO BIBLIOGRÁFICO DE ANTÓNIO MADUREIRA - Casa-Museu Marieta Solheiro Madureira em Estarreja, Juliana Cunha, TAVARES RESENDE DA CASA DE S. BERNARDO DA CONGOSTA EM AVANCA - Estarreja, Aveiro, Luís Cardoso Menezes, OS CONCELHOS DE ESTARREJA E MURTOSA NA PRIMEIRA GRANDE GUERRA (1914-1918), Marco Pereira, ESCULTURA DEVOCIONAL NA IGREJA MATRIZ DE AVANCA, Maria Clara de Paiva Vide Marques, António Cruz Leandro e Luís Alberto Casimiro, FORAL DO ANTUÃ: DOCUMENTOS AUTÊNTICOS QUE O TROUXERAM ATÉ HOJE, Norvinda Leite, UMA CARTA, Sérgio Paulo Silva, JOAQUIM MARIA LEITE, Teresa Cruz Tubby, EMIGRAÇÃO ESTARREJENSE NO ANO DE 1906, Teresa Cruz Tubby e Valter Santos, SAUDADES - EGAS MONIZ - UM PERCURSO - 90 Anos da Angiografia Cerebral (1927-2017), Rosa Maria Rodrigues [ N.º12 | Ano XII | 2018 ] MEMÓRIAS, Diamantino Sabina, EDITORIAL, Rosa Maria Rodrigues, MANIFESTO DA COMISSÃO ELEITORAL OPOSICIONISTA DO CONCELHO DE ESTARREJA, Andreia Tavares, UMA SIMPLES CONVERSA E AS PRIMEIRAS PRISÕES POLÍTICAS EM ESTARREJA, António Augusto Silva, TRABALHOS ARQUEOLÓGICOS NO CASTRO DE SALREU BREVE CRÓNICA DA INTREVENÇÃO DE 2018, António Manuel Silva, Gabriel R. Pereira, Sara Almeida e Silva e Paulo A.P. Lemos, AS CASAS DO MATO (SALREU) E DA FONTE CHÃ (BEMPOSTA) NOS OFÍCIOS CONCELHIOS ANTUANOS SUBSÍDIOS PARA A HISTÓRIA DOS REGISTOS DE NOTARIADO NO CONCELHO DE ESTARREJA – 1ª PARTE DE D. JOÃO II A FILIPE II, António Pedro de Sottomayor, OS MOINHOS DE MEIAS, Armando Carvalho Ferreira, A FAMÍLIA QUADROS EM SALREU DESDE O FINAL DO SÉCULO XVIII (PARTE I), Delfim Bismarck Ferreira, CONSTRUÇÃO NAVAL TRADICIONAL NO MUNICIPIO DE ESTARREJA – QUE FUTURO?, Etelvina Resende Almeida, MEMÓRIAS DO QUOTIDIANO – DOS MÉRITOS DO PRIMITIVISMO INGÉNUO José Gurgo e Cirne, CARLOS MARQUES RODRIGUES:O FUNDADOR DA FÁBRICA DE DESCASQUE DE ARROZ – A “HIDRO-ELÉTRICA” DE ESTARREJA, Juliana Cunha, OS BISPOS PORTUGUESES ORIGINÁRIOS DO CONCELHO DE ESTARREJA, DISTRITO DE AVEIRO NO SÉCULO XX, Luís Cardoso Menezes, A PNEUMÓNICA, OU GRIPE ESPANHOLA. EM ESTARREJA (1918-1919)Marco Pereira, PRISIONEIROS DO CONCELHO DE ESTARREJA DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL NA FRENTE OCIDENTAL – 1917-1918, Maria Clara de Paiva Vide Marques, António Cruz Leandro, UMA OBRA DO PINTOR FRANCISCO PINTO COSTA (1826-1869) NA CASA MUSEU EGAS MONIZ, Susana Moncóvio, EMIGRAÇÃO ESTARREJENSE NO ANO DE 1907, Teresa Cruz Tubby e Valter Santos SAUDADES - 50 ANOS DA CASA MUSEU EGAS MONIZ, Rosa Maria Rodrigues, REVISTAS TERRAS DE ANTUÃ

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TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

[ N.º13 | Ano XIII | 2019 ] 500 ANOS DO FORAL DE ANTUÃ, Diamantino Sabina EDITORIAL, Rosa Maria Rodrigues SOCIEDADE DE REPRESENTAÇÕES DA BEIRA LITORAL LDA, Andreia Tavares FREI GONÇALO MARIA TAVARES – Do clero secular para o regular, António Augusto Silva O CASTRO DE SALREU, UM DOS POVOADOS PROTO-HISTÓRICOS ATLÃNTICOS DO ENTRE DOURO E VOUGA, António Manuel Silva, Edite Martins de Sá, Jorge Fernando Salvador, Paulo A. P. Lemos e Sara Almeida e Silva, AS CASAS DO MATO (SALREU) E DE FONTE CHÃ (BEMPOSTA) NOS OFÍCIOS CONCELHIOS ANTUANOS - SUBSÍDIOS PARA A HISTÓRIA DOS REGISTOS DE NOTARIADO NO CONCELHO DE ESTARREJA – 2ª PARTE DE D. FILIPE II A D. JOÃO V, António Pedro de Sottomayor, A FAMÍLIA QUADROS EM SALREU DESDE O FINAL DO SÉCULO XVIII (PARTE II), Delfim Bismarck Ferreira, OLHARES POR DENTRO DO MUNICÍPIO DE ESTARREJA – ITINERÁRIOS POR ÁGUA, Etelvina Resende Almeida, A ODIOSSÍSIMA MORTE DO LÁZARO José Gurgo e Cirne, CARLOS MARQUES RODRIGUES: O IMPULSIONADOR DA EDIFICAÇÃO DA CENTRAL DE ENERGIA ELÉTRICA - A TURBINA DE ESTARREJA, Juliana Cunha, ESTARREJENSES ILUSTRES: O 1º MARQUÊS DE TERENA - SEBASTIÃO CORREIA DE SÁ (1766-1849), Luís Cardoso Menezes, MILITARES DOS CONCELHOS DE ESTARREJA E MURTOSA MORTOS EM ÁFRICA (1961-1974), Marco Pereira, ESTARREJA NA GRANDE GUERRA MILITARES FALECIDOS NA FRENTE OCIDENTAL (1917-1918), Maria Clara de Paiva Vide Marques, António Cruz Leandro, Teresa Cruz Tubby, A SOMBRA DO MOSTEIRO DE AROUCA RAIZES LONGAS DE ANTUÃ, Norvinda Leite e Carlos Pinho, COISAS DE CANTADORES, Sérgio Paulo Silva, EMIGRAÇÃO ESTARREJENSE NO ANO DE 1908, Teresa Cruz Tubby e Valter Santos, SAUDADES - 70 ANOS DO PRÉMIO NOBEL EGAS MONIZ, Rosa Maria Rodrigues REVISTAS TERRAS DE ANTUÃ

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TERRAS DE ANTUÃ | HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO CONCELHO DE ESTARREJA

AUTORES

TA 1

TA 2

TA 3

TA 4

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TA 6

TA 7

TA 8

TA 9 TA 10 TA 11 TA 12 TA 13 TA 14

Abel Cunha

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Adolfo Vidal

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Alvaro Macieira Coelho Amaro Neves

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Ana Maria Lopes

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X

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X

Ana Paula Almeida Andreia Tavares Andreia Vidal Leite

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António Augusto Silva

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António Costa Valente

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António Manuel S. P. Silva

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António de Pinho Nunes

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António Vítor N. Carvalho

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Carlos Pinho Delfim Bismarck Ferreira

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Diana Cunha

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Etelvina Resende Almeida

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Eva Armindo

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Gabriel Rocha Pereira

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João Alegria

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João Muralha

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Joaquim Lagoeiro

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José Fernando Correia

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José F. Salvador

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Jorge Barbosa Montenegro

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José Gurgo e Cirne José Manuel Nunes Liberato

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Domingos Tavares

Hugo Cálão

X

X

Domingos Tavares

Francisco M. Pontes de S. Brandão

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Carla Ferreira Carlos A. Brochado de Almeida

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António Macieira Coelho

Armando Carvalho Ferreira

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António Cruz Leandro

António Pedro de Sottomayor

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X

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X

José Mattoso

X

José Teixeira Valente

X

Juliana Cunha

X

Luís Augusto Eça de Matos

X

Luís Loureiro

X

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MUNICÍPIO DE ESTARREJA

AUTORES

TA 1

TA 2

TA 3

TA 4

TA 5

TA 6

TA 7

TA 8

TA 9 TA 10 TA 11 TA 12 TA 13 TA 14

Luís Cardoso Menezes Luís Souto de Miranda Manuel Ferreira Rodrigues

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Margarida Castro

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Maria Almira de Oliveira R.

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Barata Maria Clara Vide

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Maria Elvira Callpez

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Maria Helena Valente Pinho

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Maria de Jesus Sousa de O. e

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Silva

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Maria João Fernandes

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Maria Manuel de Vilhena Barbosa

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Maria Palmira da Silva Gomes

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Maurício Antonino Fernandes

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Norberto Monteiro

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Norvinda Leite

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Nuno Matos

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Paulo Morgado X

Pedro Brochado de Almeida

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Rafael Marques Vigário

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Raquel Rodrigues de Jesus

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Ricardo Montes

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Rita Capucho

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Rosa Figueiredo

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Rosa Maria Rodrigues

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Sara Almeida e Silva

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Sérgio Paulo Silva

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Sylvie Ferreira

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Susana Temudo Silva

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Telma Marília Assunção Correia

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Teresa Cruz Tubby

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Susana Moncóvio

Vitor Bandeira

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Susana Constantino

Valter Santos

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Patrícia Mestre M. Carvalho

Teresa Bagão

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Paulo A. P. Lemos

Sónia Filipe

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Manuel de Oliveira Rodrigues Marco Pereira

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