Revista Jurídica MPT/MS - nº6

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Revista do MinistĂŠrio PĂşblico do Trabalho do Mato Grosso do Sul

Campo Grande - MS


COMISSÃO EDITORIAL Presidente: Simone Beatriz Assis de Rezende Procuradora do Trabalho Membros: Ana Raquel Machado Bueno de Moraes Procuradora do Trabalho Cândice Gabriela Arosio Procuradora do Trabalho Rosimara Delmoura Caldeira Procuradora do Trabalho Anete de Oliveira Freitas Analista de Documentação/Biblioteconomista Keyla Borges Tormena Gusmão Assessora de Comunicação


Ministério Público do Trabalho Procuradoria Regional do Trabalho da 24ª Região

Revista do Ministério Público do Trabalho do Mato Grosso do Sul

Campo Grande – MS n. 6 - 2012

ISSN 1981-3457 R. do Min. Púb. Trab. do MS

Campo Grande-MS

n.6

p.1-349

2012


Revista do Ministério Público do Trabalho do Mato Grosso do Sul. -- V. 1, n.1 (abr. 2007)-. -- Campo Grande: PRT 24ª, 2007V. Anual ISSN 1981-3457 1. Direito do Trabalho. 2. Direito Previdenciário. 3. Direito Constitucional. 4. Direito Processual. CDD 341.6 CDU 349.2

Os artigos publicados são de responsabilidade dos seus autores. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Procuradoria Regional do Trabalho da 24ª Região www.prt24.mpt.gov.br Sede Campo Grande/MS Rua Pimenta Bueno, 139 Bairro Amambaí CEP 79005-020 Fone/Fax: (67) 3358-3000

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Capa: Gravura do artista plástico Alberto Dolores Filho - Don Dolores. Tiragem: 1.875 exemplares Impressão: Obra Impressa Gráfica e Editora Ltda. - Curitiba/PR


Ministério Público do Trabalho Procurador-Geral do Trabalho Luís Antônio Camargo de Melo Procuradoria Regional do Trabalho da 24ª Região Procurador-Chefe da 24ª Região Celso Henrique Rodrigues Fortes Procurador-Chefe Substituto Odracir Juares Hecht Procuradores Campo Grande Cícero Rufino Pereira Hiran Sebastião Meneghelli Filho Jonas Ratier Moreno Leontino Ferreira de Lima Júnior Paulo Douglas Almeida de Moraes Rosimara Delmoura Caldeira Simone Beatriz Assis de Rezende Corumbá Rafael de Azevedo Rezende Salgado Dourados Cândice Gabriela Arosio Jeferson Pereira Três Lagoas Ana Raquel Machado Bueno de Moraes Larissa Serrat de Oliveira Cremonini



SUMÁRIO Apresentação da presidente da Comissão Editorial. Simone Beatriz Assis de Rezende..........................................................9 ARTIGOS O dilema da diferença e a jurisprudência do TST diante do adoecimento do trabalhador. Adriane Reis de Araujo......................................................................15 O direito ao trabalho da pessoa com deficiência. Ana Raquel Machado Bueno de Moraes.............................................35 Direito internacional dos direitos humanos: o trabalho infantil e a fronteira. Cícero Rufino Pereira..........................................................................65 Trabalhe trabalhe trabalhe mas não esqueça: vírgulas representam pausas. Heiler Ivens de Souza Natali e Sandro Eduardo Sardá......................83 Caracterização jurídica do trabalho escravo por equiparação: análise do artigo 149, § 1º, do Código Penal Brasileiro. José Claudio Monteiro de Brito Filho................................................113 A erradicação do trabalho escravo contemporâneo como política pública de direitos humanos. Larissa Serrat de Oliveira Cremonini...............................................127 A monetização da saúde do trabalhador pelo adicional de insalubridade. Melissa Restel de Carvalho Silva.......................................................157 A atuação do Ministério Público do Trabalho no combate ao tráfico de pessoas. Rafael de Azevedo Rezende Salgado...................................................185 As formas de remuneração dos cortadores de cana-de-açúcar e suas implicações. Salumiel Marcelino da Costa............................................................217


PEÇAS PROCESSUAIS Ação civil pública. Cota de aprendizagem: Brasil BRF Foods. Jun. 2010. Paulo Douglas Almeida de Moraes.................................................................245 Recurso ordinário. Cota de aprendizagem: Brasil BRF Foods. Jan. 2012. Jeferson Pereira............................................................................................261 Acórdão. Cota de aprendizagem: Brasil BRF Foods. Jul. 2010. Tribunal Pleno do TRT da 24ª Região...........................................................277 Ação civil pública. Fiscalização dos contratos de prestação de serviços nas obras da Estrada Parque no Pantanal de Corumbá: Agência de Regulação dos Serviços Públicos de Mato Grosso do Sul (Agesul). Jul. 2012. Rafael de Azevedo Rezende Salgado............................................................287 Ação civil pública. Responsabilização dos aliciadores de adolescentes explorados no tráfico de drogas. Abr. 2012. Simone Beatriz Assis de Rezende...................................................................331


Apresentação A Comissão Editorial apresenta, com satisfação, a Revista n. 6 do Ministério Público do Trabalho do Mato Grosso do Sul. Seu conteúdo formulado apenas com colaboração de Membros e de ex-estagiários do Ministério Público do Trabalho confere-se peculiar, e não voluntária, característica, pois reflete, muito além dos entendimentos jurídicos, a postura institucional assumida com a advento da Constituição Federal de 1988. Temas diversos encontram-se à disposição do leitor, desde o trabalho infantil e da pessoa com deficiência, perspassando por também candentes questões como adoecimento do trabalhador, a necessidade de pausas, a monetização da saúde do trabalhador e remuneração do cortador de cana-de-açúcar, o trabalho escravo e atuação do MPT no tráfico de pessoas. Outro diferencial da Revista n. 6 refere-se à inclusão de um poema intitulado MPT concebido por um trabalhador na área de vigilância que, após dois meses de trabalho da Procuradoria do Trabalho do Município de Dourados, conseguiu vislumbrar a essência da vocação institucional: “Defendem as causas dos injustiçados com fervor! Dos desprovidos, dos desamparados, dos aborrecidos!”. Todavia, manteve-se a tradição de estampar na capa da Revista obra de artista regional com pertinência temática com a atuação do órgão, que nesta edição traz gravura de Alberto Dolores Filho, com alusão ao trabalho dos indígenas no corte de cana-deaçúcar desde os seus primórdios. Sinceros agradecimentos aos colaboradores e, parafraseando o poeta, rendo homenagens “aos trabalhadores em geral, que constroem esse país, derramando o seu suor”, desejando boa leitura a todos!!! Simone Beatriz Assis de Rezende Presidente da Comissão Editorial



MPT Geraldo Sanguina1 Um caso sério! Ronda os ministérios, não é mistério! As denúncias, fiscalização, orientação, processo, execução, multa ao patrão para correção, em favor do peão! Há décadas não se admite, trabalho escravo, a escravização de humanos por patrões tiranos!

serviram de agasalho, âncora e proteção! Tem audiência com frequência. Competência? É uma exigência! Para verificação da essência! Atrapalho? A exploração e a discriminação no trabalho!

Nas convocações, quantos movimentos dos patrões! Sendo convocados Ministério Público do Trabalho, para prestar esclarecimentos Ministério Público da União! sob pena de serem multados Uniram forças em suas funções, se não for muito bem explicado, procuradoria regional, estarão encrencados. procuradoria federal, Ao proteger o procuradoria geral! meio ambiente, São representantes legais ou defender os inocentes do pessoal, da exploração infantil, 1 Geraldo Sanguina é poeta sul-mato-grossense, natural de Ponta Porã. Sua poesia é inspirada em histórias e fatos de sua vida. Em junho e julho de 2012, prestou serviços na unidade do Ministério Público do Trabalho em Dourados, como vigilante, e conheceu mais de perto a atividade cotidiana da instituição. O seu olhar sobre a atuação do MPT está registrado nas linhas de sua poesia aqui reproduzida. Segundo ele, o interesse em escrever sobre esse tema vem da inconformidade com a exploração humana e injustiças praticadas em face dos trabalhadores.


a instituição se tornou a mais forte, a mais eficiente do Brasil! Cumprir e fazer cumprir a lei não deveria ser obrigação! Ela foi feita para ser cumprida por toda a vida! Com orgulho e satisfação por todos os indivíduos, do milionário empresário ao pobre labutário! Doutor procurador e doutor promotor! Defendem as causas dos injustiçados com fervor! Dos desprovidos, dos desamparados, dos aborrecidos! Advogados! Usam de argumentos nos julgamentos! Testemunhas confirmam em juramentos que estão por dentro do assunto do momento! O juiz usa de interrogação ou da interpretação! Apela para o bom senso, às vezes à condenação ou absolvição do cidadão. Trabalhador de fazenda, trabalhador rural, trabalhador braçal, trabalhador em geral! Labuta sem descanso,

trabalha como um animal! O exagero é desproporcional! Derrama o seu suor, molha a terra, só ao anoitecer a luta se encerra! Comprometem as suas saúdes, não têm direito de se proteger do duro batente! Mesmo sentindo doer, segue em frente, tem que sobreviver! Batendo no peito, orgulhoso do que foi feito! Trabalho pouco valorizado! Sacrifício dobrado para ganhar um trocado! Muitas vezes o que já é pouco! Os seus direitos lhe são negados! Rendo minhas homenagens transmitindo essa mensagem, aos trabalhadores em geral, que constrói esse país, derramando o seu suor, multiplicando o capital do seu senhor! Qualificação profissional! Faça parte dessa mudança fenomenal, necessidade pedestal! Tem que se reciclar! Deve se capacitar! Se modernizar, vai precisar para sua vida melhorar!


Doutrina



DILEMA DA DIFERENÇA E A JURISPRUDÊNCIA DO TST DIANTE DO ADOECIMENTO DO TRABALHADOR

Adriane Reis de Araujo1 Palavras-chave: Isonomia. Discriminação. Adoecimento. Soropositivo. Ônus da Prova.

Reintegração.

1 A DIFERENÇA COMO VALOR A ciência comprova que todos os homens são diferentes entre si, a começar pelo código genético inserido no interior de nossas células (DNA). As diferenças se exteriorizam em nossos traços físicos: cor dos olhos, cabelo, pele, sexo, estatura, compleição física, ou impressão digital, capacidade sensorial etc. Sobrepõemse a esse quadro de distinções as diferenças culturais, as quais se percebem nas diversas religiões, etnias, hábitos e muitas vezes dentro do mesmo grupo social, decorrente por exemplo dos diversos níveis socioeconômicos. Tanto as diferenças naturais como as culturais, tão logo verificadas pelo indivíduo ou grupo social, sofrem valorações, sendo objeto de tratamento diferenciado favorável ou não. No dizer de Antonio Flávio Pierucci, Diferenças coletivas ou grupais são componentes inevitáveis das sociedades humanas, resultantes de um processo de estratificação que, segundo Ralph Dahrendorf, é sempre um processo dúplice, de diferenciação e avaliação (Dahrendorf, 1 Procuradora Regional do Trabalho em Brasília. Coordenadora de Ensino da Escola Superior do Ministério Público da União 2000/2004. Mestre em Relações Sociais pela PUC-SP. Doutoranda em Direito na Universidad Complutense de Madrid. E-mail: adriane.araujo@ mpt.gov.br.

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1968; Bourdieu, 1979). Ao se pôr a diferença, no ato mesmo de notá-la ou reconhecê-la, ei-la desde logo valorizada ou desvalorizada, apreciada ou depreciada, prezada ou desprezada. Porquanto não há diferença, nos quadros culturais de qualquer sociedade, que não esteja sendo operada pelo ‘valor’, como ‘diferença de valor’ (Dumont, 1979; 1983; cf. Heilborn 1993; Curate, 1986).2

A valoração da diferença no seio social, sem maiores reflexões, gera estereótipos e preconceito. Estereótipo é o lugarcomum, a ideia preconcebida resultante da falta de conhecimento efetivo sobre o tema. É o rótulo com que se costuma classificar certas pessoas no seio da sociedade e se expressa principalmente por meio de anedotas, contos populares etc. Já o preconceito é o julgamento prévio, favorável ou desfavorável, concebido sem exame crítico, ou maior conhecimento, ponderação ou razão, que se faz sobre o indivíduo. Normalmente vincula-se à ideia de preconceito a julgamento negativo. Embora se possa afirmar como raízes subjetivas do preconceito a ignorância, a educação domesticadora, a intolerância e o medo, o preconceito, “além de introduzir a discriminação, restringe a liberdade, acarreta a perda de respeito pela pessoa humana, introduz a desigualdade e a injustiça”3. As pessoas estigmatizadas por estereótipos são as mais frequentes vítimas do preconceito e discriminação. A discriminação arbitrária, inúmeras vezes, configura o preconceito em prática, o preconceito materializado. Ela cassa oportunidades dos grupos atingidos, alimenta a estratificação social ou seja, a distribuição desigual de bens e serviços, direitos e obrigações, poder e prestígio -, imobilizando socialmente o grupo atingido. Com a estratificação social consolidada, mais preconceito e discriminação sofrem as suas vítimas, formando um ciclo vicioso. Dessa forma, a promessa do capitalismo de ascensão social, baseada no mérito, fica completamente comprometida e a própria vítima acaba por se sentir culpada e merecedora de sua condição.

2 PIERRUCCI, 2000. p. 105. 3 ARNS, 2000, p. 13-14.

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2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE O primeiro marco da História do Direito a romper esse ciclo vicioso e combater de forma expressa os privilégios obtidos em razão de diferenças arbitrárias foi o princípio da igualdade, trazido pela Revolução Francesa. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: “Art. 1º Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum”. O objetivo dos legisladores franceses era romper com o Antigo Regime que concedia privilégios, desde o nascimento, à nobreza e ao clero, em detrimento da maioria da população, sem qualquer motivação ou relação aos fins visados. A igualdade que se tinha em mira, portanto, não era uma igualdade material e absoluta entre todos os homens, de forma a suprimir as desigualdades encontradas nos mais variados planos. “O que repugnava os revolucionários eram as vantagens de privilégio e hierarquia que davam à aristocracia e aos monarquistas o controle do governo e de todas as posições sociais desejáveis. Os revolucionários insistiam em que os benefícios, o poder e as posições deveriam ser adjudicados àqueles cujo talento, engenho e trabalho merecessem recompensa. Igualdade significava competição justa, em que nenhuma pessoa, ou grupo de pessoas tivesse vantagens predeterminadas”.4

Nasce assim a chamada igualdade formal, em que a lei deve ser igual para todos, sem distinção de qualquer tipo. Todos os privilégios são abolidos. Essa espécie de igualdade prevaleceu em Estados Liberais do século XVIII. Porém, a igualdade formal se mostrou insuficiente ao combate efetivo das desigualdades. Basta exemplificar para tanto, o caso de Olympe de Gouges, a qual, em 1789, no auge da Revolução Francesa, apresentou uma “Declaração dos Direitos da Mulher”, buscando a igualdade entre os sexos, e pouco tempo depois, em 1793, foi guilhotinada, ficando proibidas as organizações femininas pelo novo regime. A evolução do constitucionalismo mostrou que o princípio da igualdade deveria ter a sua interpretação ampliada para 4 Watins & Kramnick. apud MENEZES, 2001, p. 19-20.

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não apenas assegurar a igualdade perante a lei, voltada ao momento de sua aplicação, como também inspirar leis que reconheçam situações concretas distintas, a fim de lhes dispensar tratamento diferenciado, ou seja, igualdade na lei. A igualdade na lei se dirige ao próprio legislador. Ela tem como objetivo permitir o tratamento desigual para os desiguais, restabelecendo o equilíbrio rompido socialmente pela situação de debilidade ou inferioridade de certo grupo. Dá-se assim mais um passo rumo à igualdade efetiva, também denominada de igualdade material. O tratamento igual àqueles, ainda que não o sejam de fato, somente é admitido em situações concretas em que os indivíduos possam ser considerados iguais porque suas diferenças não são relevantes. Esta noção é consagrada no Estado Social de Direito. Por fim, chegamos ao presente, em que a meta do Direito é então a igualdade real. Sendo insuficiente o tratamento igual perante a lei e na lei, busca o operador do Direito obter a igualdade como realidade, abolindo-se as desigualdades encontradas por meio de medidas corretivas, legislativas ou administrativas, utilizando-se o conceito de “discriminação positiva”. A expedição de normas gerais e abstratas cede para considerar hipóteses concretas. A limitação do legislador ou administrador é que o critério adotado não pode ser arbitrariamente discriminatório. “Trata-se, como diz GUILHERME MACHADO DRAY, de conceber o princípio de igualdade, ‘como uma concretização da ideia de justiça social, como um ponto de chegada e não um ponto de partida’”5.

3 O PRINCÍPIO DA NÃO-DISCRIMINAÇÃO O princípio da igualdade tem como vertente negativa o chamado princípio de não-discriminação, pois da afirmação de igualdade decorre a proibição de diferenciar arbitrariamente e também o dever de respeitar a diversidade: Tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Este princípio expressa um segundo momento no desenvolvimento do princípio de igualdade, tendo em vista que o “momento lógico” da não-discriminação é posterior ao da afirmação da igualdade. 5 ROMITA, 2000, p. 185.

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O ordenamento jurídico permite e incentiva a distinção entre pessoas apenas quando esta é razoável e não arbitrária. Razoável é aquela diferença estabelecida sobre fundamento razoável. Sua dimensão é bastante subjetiva. No dizer de Luis Roberto Barroso, “É razoável o que seja conforme à razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar.”6 Por outro lado, arbitrária é a medida “que trata desigualmente situações objetivamente iguais ou igualmente situações objetivamente desiguais, sem que haja uma razão que justifique a diferença ou a identidade de tratamento”.7

3.1 Discriminação direta, indireta e oculta A discriminação pode ser direta, indireta ou oculta. A discriminação direta é o tratamento desigual fundado em razões proibidas. A discriminação indireta aquela aparentemente fundada em normas neutras, mas que produz um efeito prejudicial sobre determinado grupo. Já, na discriminação oculta existe a intenção de discriminação direta, disfarçada sobre outro motivo. Tanto na discriminação direta como na oculta há a intenção do sujeito ativo de discriminar. Na primeira, há direto vínculo causal entre a ação e o motivo ilícito, pois o critério elegido é a raça, sexo, idade, religião etc. Na segunda espécie, afastado o falso fundamento, revela-se o motivo determinante proibido. A discriminação indireta é a que desperta maiores questionamentos. Aqui é irrelevante a intenção do sujeito ativo de discriminar, sendo suficiente a comprovação do resultado negativo para determinado grupo, o qual não está pautado em nenhuma justificativa legal. Nessa hipótese são aceitos como prova simples dados estatísticos. Para se esquivar dessa situação, o empregador deverá comprovar a necessidade real da conduta adotada ou então a existência de providências alternativas. Necessidade real, segundo o Tribunal de Justiça da Comunidade Européia, é “uma exigência efetiva para a empresa e a que seja idônea e necessária para a consecução dos objetivos estabelecidos.” Segundo a jurisprudência americana, a 6 BARROSO, 2000, p. 29. 7 ROMITA, 2000, p. 186.

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exigência de necessidade real “pode ser relaxada somente quando a medida de efeito adverso ocorrer em trabalhos que afetem a saúde e a segurança públicas.” As medidas alternativas ou acomodação razoável pode ser conceituada como “a alegação de que (o empregador) se esforçou por acomodar os empregados atingidos pela medida apontada como indiretamente discriminatória até o ponto em que isto não lhe acarrete constrangimento excessivo”.8 A discriminação indireta foi acolhida pelo Tribunal de Luxemburgo pela primeira vez em 13 de maio de 1986 (C-170/84). No direito americano, a decisão pioneira foi proferida pela Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Griggs C. Duke Power, em que se afastou a aplicação de testes de aptidão e exigência de diplomas de estudos para o emprego policial, pois, além de serem injustificados, resultavam na exclusão desproporcional dos negros.

4 A DISCRIMINAÇÃO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO: CONVENÇÃO N. 111 DA OIT E CONSTITUIÇÃO FEDERAL Discriminação, segundo a Convenção n. 111 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil em 26.11.1965 (Decreto n. 62150, de 19.01.1968), compreende toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão.

A enunciação dos critérios não é exaustiva. A intenção do sujeito ativo da discriminação muitas vezes é irrelevante, mesmo porque de difícil configuração. O destaque se volta ao efeito por ela gerado, o qual é destrutivo ou desigualador das oportunidades ou tratamento relacionados a um ofício, em qualquer momento de sua configuração, antes mesmo do seu exercício. A norma antes citada esclarece que “as distinções, exclusões ou preferências fundadas em qualificações exigidas para um 8 PEDREIRA, 2001, p. 405.

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determinado emprego não são consideradas como discriminação” (artigo 2º). Claramente, a vedação da discriminação não implica o exercício de todo e qualquer ofício por todas as pessoas, como lhes aprouver. Algumas profissões, dado o seu alto grau de aperfeiçoamento e especialização, exigem formação específica para o seu exercício. Essa exigência se volta à tutela do bem jurídico obtido ou relacionado ao exercício daquele ofício (como no caso da Medicina, que envolve a saúde humana), e não à defesa de interesse do grupo envolvido ou de privilégios pessoais. Entre as normas nacionais se destaca a Constituição Federal, a qual inclui entre seus princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação (art. 3º, IV). Em âmbito internacional, estabelece como princípio a prevalência dos direitos humanos e o repúdio ao terrorismo e racismo (art. 4º, II e VIII). Os princípios fundamentais podem ser chamados de fonte das demais normas constitucionais ou infraconstitucionais produzidas dentro de um Estado, ao qual sempre se reportam as demais normas. Para Gomes Canotilho, constituem-se dos princípios definidores da forma de Estado, dos princípios definidores da estrutura do Estado, dos princípios estruturantes do regime político e dos princípios caracterizadores da forma de governo e da organização política em geral.9

Vemos aqui a ênfase dada ao legislador constituinte, ao fixar a dignidade humana como fundamento geral e, especificamente, a não-discriminação e o repúdio ao racismo, como princípios dessa envergadura. O princípio da igualdade vem inscrito logo no início dos direitos e deveres individuais e coletivos, art. 5º, caput, o que leva muitos doutrinadores a afirmar a sua prevalência em face de conflito com outros princípios constitucionais, bem como a sua influência na aplicação dos demais.10 No capítulo dos Direitos Sociais, temos 9 SILVA, 2000, p. 98. 10 Diz a Constituição: Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens

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como dispositivos sobre o tema, os incisos XVIII, XX, XXV, XXX e XXXI do art. 7º.11 O princípio da isonomia é um direito fundamental e assegura vantagens e benefícios diretos e imediatos ao seu titular.

5 DISCRIMINAÇÃO POSITIVA E INVERSA Segundo Aldacy Rachid Coutinho, as medidas legislativas puramente igualitárias de combate à segregação no mercado de trabalho têm eficácia diante de discriminações diretas, mas não contra tratamentos desiguais tomados a partir de estereótipos e segregação cultural que individualizam o sujeito para além de suas características pessoais, habilidades e capacidade12.

A ação afirmativa então nasce como uma ferramenta para superar a discriminação arbitrária, combatendo os estereótipos e preconceitos, alterando o quadro social dos desfavorecidos e, em consequência, a estratificação social. Esta medida tem como finalidade atingir a igualdade concreta, no mundo dos fatos, ultrapassando a igualdade formal. As ações afirmativas surgiram nos Estados Unidos da América, no governo de John F. Kennedy, em 1961, e visavam ao aumento da participação de trabalhadores negros no mercado de trabalho. Assim, as empreiteiras contratadas pelo Poder Público Federal tinham obrigação de garantir empregos, sem qualquer discriminação de raça, cor, religião, sexo ou nacionalidade, enquanto estivessem a seu serviço. Foi instituída então a Equal Opportunity Comission, cuja função era fiscalizar as empresas nas “práticas discriminatórias” e e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; (...)XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; 11 Art.7º - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; (...) XX - proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei; (...) XXV - assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até seis anos de idade em creches e pré-escolas; (...) XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; ... XXXI - proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do portador de deficiência; 12 COUTINHO, 2000, p. 23.

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estabelecer penalidades em caso de descumprimento. No início, as empresas deveriam envidar esforços nos processos de admissão e promoção dos trabalhadores a fim de assegurar a igualdade de oportunidades, refletindo a representatividade de todos os grupos minoritários integrantes da sociedade. Os procedimentos a serem adotados envolviam treinamento, estabelecimento de gratificações utilizando o gênero como critério e o estabelecimento de um sistema de quotas para garantir a seleção automática dos representantes de grupos minoritários. Em 1965, o Presidente Lyndon Johnson assina a Norma Executiva n. 11.246, a qual determina a adoção de ações afirmativas pelas empreiteiras para elevação da quantidade de trabalhadores minoritários, de forma mais impositiva. Conceitua-se ação afirmativa como o conjunto de estratégias, iniciativas ou políticas que visam favorecer grupos ou segmentos sociais que se encontram em piores condições de competição em qualquer sociedade em razão, na maior parte das vezes, da prática de discriminações negativas sejam elas presentes ou passadas. Colocandose de outra forma, pode-se asseverar que são medidas especiais que buscam eliminar os desequilíbrios existentes entre determinadas categorias sociais até que eles sejam neutralizados, o que se realiza por meio de providências efetivas em favor das categorias que se encontram em posições desvantajosas.13

Cumpre romper com alguns mitos relativos a essa medida. Em primeiro lugar, os procedimentos afirmativos são bastante variados, não se restringindo ao mero sistema de quotas. Em segundo lugar, as ações afirmativas não se limitam a iniciativas governamentais, uma vez que boa parte das ações afirmativas, hoje, são promovidas por entidades privadas. Em terceiro lugar, as ações afirmativas não estão vinculadas a medidas jurisdicionais. Essa aparência decorre do seu surgimento no Direito Americano, cujo sistema da Common Law, permite certo protagonismo da Suprema Corte Americana no estabelecimento das diretrizes e paradigmas dessas políticas. Atualmente o debate gira em torno à natureza da justiça obtida na ação afirmativa: se compensatória ou distributiva. Para os que a vêem como compensatória, a ação representa um ressarcimento por danos causados no passado, pelo Poder Público ou pessoas físicas 13 MENEZES, 2001, p. 27.

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ou jurídicas, a um grupo social identificado ou identificável. Alguns defensores dessa corrente preconizam inclusive o ressarcimento apenas àquelas pessoas lesadas, as quais devem ser individualizadas. Para os que a vêem como distributiva, a simples existência de desigualdades sociais arbitrárias é suficiente para justificar essa medida, pois a sua finalidade é o alcance de uma igualdade proporcional, “com a distribuição de direitos, privilégios e ônus entre os membros da sociedade.”14 Não há uma corrente dominante. Mesmo na Suprema Corte Americana, há magistrados filiados e decisões com influências das duas correntes de pensamento. Por fim, é importante ressaltar que as ações afirmativas devem ser temporárias para serem legítimas. A temporariedade pode se manifestar através de uma limitação temporal específica ou, ao menos, de metas claras a serem alcançadas. A criação da ação afirmativa trouxe dois novos conceitos de discriminação: discriminação positiva e discriminação inversa. Discriminação positiva é a adoção de regras jurídicas que preveem um tratamento desigual para certos grupos minoritários desfavorecidos ou pessoas vítimas de segregação, com fito de garantir-lhes igualdade de oportunidades na estrutura social15.

A expressão discriminação inversa diz respeito ao eventual efeito perverso da discriminação positiva quando utilizada erroneamente ou desproporcionalmente, causando discriminação injusta a grupo majoritário. Sua conotação é negativa. A discriminação inversa e os limites para a ação afirmativa têm sido suscitados continuamente junto aos tribunais americanos. O caso mais famoso é o Regents of the University of California v. Bakke (1978). Alan Bakke era um engenheiro, branco, com 37 anos de idade, e que tinha servido na Marinha. Ao tentar mudar de profissão, pleiteou uma vaga na Universidade da Califórnia para Medicina. Referida universidade possuía um programa especial de admissão para minorias, reservando-lhes 16 das 100 vagas para o curso. Ao ser reprovado, Bakke postulou junto às cortes californianas o seu ingresso na universidade alegando que tinha obtido maiores notas do 14 Ibid., p. 38. 15 COUTINHO, 2000, p. 27.

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que os alunos do referido programa, havendo no caso discriminação inversa. O caso chegou à Corte Suprema Americana, cuja decisão por maioria – 5 a 4 -, reconheceu o direito de Bakke a ser admitido na Faculdade de Medicina, pois o Título VI do Civil Right Act de 1964 foi desrespeitado, entretanto decidiu também não haver impedimento legal para que, observadas determinadas condições, a raça ou a etnia fosse adotada como critério seletivo em programas elaborados para beneficiar certos grupos sociais. Destaco aqui a opinião de dois dos ministros julgadores filiados à tese vencedora: Ministro Brennan e Ministro Blackmun. O Ministro Brennan entendeu que apesar de existirem algumas divergências, as classificações raciais estabelecidas em favor dos interesses de determinadas minorias poderiam ser, em diversas circunstâncias, desvantajosas para as pessoas brancas. Mas, para ele, não havia motivos para defender essa maioria branca com a aplicação do exame rigoroso (strict scrutiny), que, pelas suas exigências, impediria potencialmente, a adoção de qualquer programa dessa natureza, até porque esse tratamento diferenciado não maculava os membros dessa classe, no plano social, nem os colocava em uma posição de inferioridade.16

O Ministro Blackmun foi mais enfático, destacou que: Para irmos além do racismo, precisamos primeiro reconhecer o racismo. Não existe outra maneira. E para tratar algumas pessoas com igualdade, precisamos tratá-las diferentemente. Não podemos – não ousamos – permitir que a ‘equal protection clause’ (princípio da isonomia) perpetue (a supremacia racial).17

Esta decisão gerou intensa controvérsia nos Estados Unidos. Ronald Dworkin, porém, ressalta de forma otimista que esta decisão assegura a legitimidade da ação afirmativa firmada sobre os critérios de raça e etnia, ainda que atendidas algumas condições.18

6 A DISCRIMINAÇÃO DIANTE ADOECIMENTO DO TRABALHADOR

DO

16 MENEZES, 2001, p. 104. 17 Ibid., p. 105. 18 DWORKIN, 2000, p. 453-469.

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O Direito brasileiro reconhece algumas poucas hipóteses de estabilidade temporária no emprego (art. 7º, XVIII, e art. 8º, VIII, da CF; art. 10, II, a) e b) do ADCT, entre outros). A possibilidade geral de o empregador romper unilateralmente o contrato de trabalho, mediante o pagamento de módica indenização, retrata um desequilíbrio entre as partes contratantes incompatível com os princípios do texto constitucional, principalmente no enfrentamento de casos difíceis em que o trabalhador se encontra mais vulnerável. Em consequência, o Tribunal Superior do Trabalho rotineiramente tem sido chamado a marcar alguns limites ao exercício legítimo do poder empresarial fora das hipóteses expressamente previstas em lei. Os casos mais paradigmáticos são aqueles em que se constata a prática da discriminação contra trabalhador acometido por doença grave, como HIV, cardiopatia ou câncer19. 6.1 Doenças graves É certo que o Direito brasileiro determina a estabilidade no emprego para o trabalhador que tenha sofrido acidente de trabalho ou tenha sido afastado por doença profissional (art. 118 da Lei n. 8.213/91). Entretanto, existem situações limítrofes em que o trabalhador sofre uma enfermidade grave, estranha à relação de emprego, mas que compromete o seu rendimento laboral e resulta em aumento das suas despesas pessoais. Nessas hipóteses, o Tribunal Superior do Trabalho tem determinado a reintegração no emprego do trabalhador em face da presunção de discriminação odiosa sofrida pelo trabalhador. Os requisitos para o acolhimento do pedido são dois: que o empregador tenha conhecimento da doença e que a dispensa seja arbitrária, ou seja, que não esteja fundada em motivo disciplinar, técnico, econômico ou financeiro. Nesse caso, inverte-se o onus probandi, pois a inversão se constitui em uma proteção suplementar à pessoa discriminada, oferecendo ao mesmo tempo um efeito 19 A matéria pertinente a esse artigo foi sumulada pelo C. TST, em 14 de setembro de 2012, cujo teor é o seguinte: DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. PRESUNÇÃO. EMPREGADO PORTADOR DE DOENÇA GRAVE. ESTIGMA OU PRECONCEITO. DIREITO À REINTEGRAÇÃO. Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato o empregado tem direito à reintegração no emprego. Súmula 443,TST.

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dissuasivo.20 A fundamentação jurídica para a determinação de reintegração tem se pautado em diversos princípios e normas constitucionais, como, por exemplo, a função social da propriedade (art. 170, III), a proteção contra a despedida arbitrária (art. 7º, I), a dignidade humana e os valores sociais do trabalho (art. 1º, III e IV). De toda sorte o quadro da doença deve ser incontroverso ou robustamente comprovado e grave. O exame demissional realizado por médico da empresa, que atesta a aptidão laboral do trabalhador, pode ser invalidado por atestado de médico do INSS, contemporâneo à dispensa, em que se registre a incapacidade para o trabalho. Nesse sentido são emblemáticas as seguintes decisões: RECURSO DE REVISTA - DISPENSA DISCRIMINATÓRIA - EMPREGADO PORTADOR DE CARDIOPATIA GRAVE - RISCO DE MORTE SÚBITA - REINTEGRAÇÃO. Muito embora não exista, no âmbito infraconstitucional, lei específica asseguradora da permanência no emprego de empregado portador de cardiopatia grave, a reintegração em face de dispensa arbitrária e discriminatória, devido à ausência de motivo disciplinar, técnico, econômico ou financeiro, não afronta o art. 5º, II, da Constituição Federal. Recurso de revista não conhecido. - (RR - 1890065.2003.5.15.0072, Relator Ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, 1ª Turma, DEJT 06/08/2010) REINTEGRAÇÃO. DOENÇA GRAVE. CÂNCER. Embora não exista lei específica relativa à garantia de emprego ao portador de doença grave, diante dos elementos fáticos consignados no acórdão regional de que o reclamado tinha conhecimento da doença, pois o diagnóstico do câncer que acometeu a reclamante ocorreu um ano antes da sua dispensa, e de que a injusta demissão não passou de procedimento discriminatório, tendo em vista a ausência de motivo disciplinar, técnico, econômico ou financeiro, não há falar em violação aos dispositivos de lei apontados. - (RR - 171300-82.2005.5.02.0031, Relator Ministro João Batista Brito Pereira, 5ª Turma, DEJT 15/10/2010) AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE 20 A Comissão de Peritos da OIT, ao analisar a aplicação da Convenção n. 111, defende a inversão do ônus da prova porque a discriminação é na maioria das vezes uma ação ou atividade presumida e não, patente (RR 61600-92.2005.5.04.0201, Relator Ministro Lélio Bentes Correa, 1ª Turma, DEJT 01/07/2011).

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REVISTA. DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. ESCLEROSE MÚLTIPLA. Não configurada violação direta e literal de preceito da lei federal ou da Constituição da República, nem divergência jurisprudencial válida e específica, nos moldes das alíneas -a- e -c- do artigo 896 da CLT, inviável o trânsito da revista e, consequentemente, o provimento dos agravos de instrumento. (AIRR-18110030.2010.5.03.000, Reladora Ministra Rosa Maria Weber Candiota da Rosa, 3ª Turma, DEJT 01/07/2011) [...] REINTEGRAÇÃO - DANOS MORAIS DESCONTOS FISCAIS E PREVIDENCIÁRIOS. As alegações da Reclamada de que o Empregado não se desincumbiu do ônus que lhe competia de comprovar a doença diabetes, a discriminação no ato de sua dispensa e a presença do dolo ou culpa da Empregadora, não condizem com o quadro fático delineado pela Corte de origem, que, fundada em avaliação oftalmológica e em atestado de saúde ocupacional, concluiu que o Reclamante apresentava alteração refracional devido à descompensação da glicemia, alterações visuais decorrentes da diabetes, o que acarretoulhe afastamentos concedidos pelo INSS por um período total de aproximadamente dois meses e meio, tendo retornado ao trabalho em 21 de janeiro de 2008, dada a impossibilidade de dirigir. Restou consignado, ainda, que o Autor, depois de haver trabalhado para a Ré por dezoito anos, teve o seu contrato de trabalho rescindido poucos meses após haver retornado ao trabalho, do qual esteve afastado por haver desenvolvido a referida doença que o impediu de realizar a mesma função até então cumprida. Recurso não conhecido. (RR 786000-64.2008.5.09.0653, Relator Ministro Carlos Alberto Reis de Paula, 8ª Turma, DEJT 17/06/2011)

6.2 O trabalhador soropositivo A hipótese do trabalhador soropositivo está melhor resguardada. A Síndrome da Imunodeficiencia Adquirida tem como particularidade a sobreposição da vulnerabilidade física do trabalhador com o preconceito social. Como esta doença esteve em seu início vinculada a um quadro de comportamento de risco das pessoas de opção sexual minoritária - homossexuais e bissexuais – é certo que o seu portador sofre uma maior carga discriminatória. Ciente dessa realidade, a Organização Internacional do Trabalho preconiza maior proteção na Recomendação n. 200/2010, que trata de “HIV e AIDS e o Mundo do Trabalho”. Esta 28

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Recomendação veda a discriminação de trabalhadores soropositivos, e estabelece, entre outras obrigações dos Estados Membros da OIT, a de assegurar que os trabalhadores não sejam discriminados ou estigmatizados com base no seu status - real ou suposto - de portadores do vírus HIV (artigo 3, c), nem que essa condição sirva de base a condutas discriminatórias que impeçam o recrutamento ou a continuidade no emprego (artigo 10) ou importem o término da relação de trabalho (artigo 11). A OIT recomenda, assim, que os Estados Membros promovam a manutenção do emprego e a contratação de pessoas que vivem com o vírus HIV (artigo 22), bem como assegurem o acesso e fruição, por todos os trabalhadores e suas famílias, dos serviços de prevenção, tratamento, atenção e apoio em relação ao HIV e AIDS, salientando que o empregador deve ser um facilitador no acesso a esses serviços - (artigo 3, e). A discriminação do trabalhador vinculada à presunção de “inadequado comportamento sexual” permite com maior tranquilidade a subsunção das práticas empresariais desfavoráveis às hipóteses contidas na Lei n. 9.029/95. Desse modo, fica proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso e manutenção da relação de emprego por motivo de sexo ou situação familiar (art. 1º). A ruptura contratual baseada em discriminação é nula e importa a reintegração do trabalhador ou a percepção em dobro da remuneração devida no período de afastamento (art. 4º). Aqui também prevalece a inversão do ônus da prova. Caso comprovado que a dispensa decorreu de motivo de ordem econômica, técnica, financeira ou disciplinar, o ato do empregador pode ser considerado legítimo (RR 8603000-95.2003.5.04.0900, Relator Ministro Rider de Brito, 5ª Turma, DEJT 12/03/2004) ou não, quando se compreende que os motivos objetivos em realidade revestem uma discriminação indireta (E-RR 439041/1998, Relator Ministro João Oreste Dalazen, SBDI-1, DJU 23/05/2003). Como casos paradigmáticos, foram selecionadas, entre inúmeras outras, as decisões abaixo: EMPREGADO PORTADOR DO VÍRUS HIV. DISPENSA IMOTIVADA. ATITUDE DISCRIMINATÓRIA PRESUMIDA. REINTEGRAÇÃO. 1. A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que se presume discriRevista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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minatória a dispensa do empregado portador do vírus HIV. Desse modo, recai sobre o empregador o ônus de comprovar que não tinha ciência da condição do empregado ou que o ato de dispensa tinha outra motivação, lícita. 2. Entendimento consentâneo com a normativa internacional, especialmente a Convenção n.º 111, de 1958, sobre Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação (ratificada pelo Brasil em 26.11.1965 e promulgada mediante o Decreto n.º 62.150, de 19.01.1968) e a Recomendação n.º 200, de 2010, sobre HIV e AIDS e o Mundo do Trabalho. 3. Nesse contexto, afigura-se indevida a inversão do ônus da prova levada a cabo pelo Tribunal Regional, ao atribuir ao empregado o encargo de demonstrar o caráter discriminatório do ato de dispensa promovido pelo empregador. 4. Recurso de revista conhecido e provido. (RR 61600-92.2005.5.04.0201, Relator Ministro Lélio Bentes Correa, 1ª Turma, DEJT 01/07/2011) RECURSO DE REVISTA. REINTEGRAÇÃO. EMPREGADO PORTADOR DO VIRUS HIV. PRESUNÇÃO DE DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. Presume-se discriminatória a ruptura arbitrária, quando não comprovado um motivo justificável, em face de circunstancial debilidade física causada pela grave doença em comento (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida - AIDS) e da realidade que, ainda nos tempos atuais, se observa no seio da sociedade, no que toca à discriminação e preconceito do portador do vírus HIV. A AIDS ainda é uma doença que apresenta repercussões estigmatizantes na sociedade e, em particular, no mundo do trabalho. Nesse contexto, a matéria deve ser analisada à luz dos princípios constitucionais relativos à dignidade da pessoa humana, à não-discriminação e à função social do trabalho e da propriedade (art. 1º, III, IV, 3º IV, e 170 da CF/88). Não se olvide, outrossim, que faz parte do compromisso do Brasil, também na ordem internacional (Convenção 111 da OIT), o rechaçamento a toda forma de discriminação no âmbito laboral. É, portanto, papel do Judiciário Trabalhista, considerando a máxima eficiência que se deve extrair dos princípios constitucionais, a concretização dos direitos fundamentais relativamente à efetiva tutela antidiscriminatória do trabalhador portador de doença grave e estigmatizante, como a AIDS. Pesa ainda mais a presunção de discriminação, no caso concreto, o fato de a Reclamada cessar o contrato de emprego com base em teste de produtividade, no qual o Reclamante certamente seria prejudicado em virtude do debilitado estado de saúde e do tratamento a que se submetia, ainda que tivesse sido facilitado pela Reclamada. Recurso de revista conhecido 30

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e provido. (RR 317800-64.2008.5.12.0054, Relator Ministro Mauricio Godinho Delgado, 6ª Turma, DEJT 10/06/2011) [...] DESPEDIDA DISCRIMINATÓRIA. EMPREGADO PORTADOR DO HIV. REINTEGRAÇÃO. Esta Corte tem-se posicionado no sentido de que, quando da dispensa imotivada do portador do HIV, ciente o empregador da doença, resta presumida a ocorrência de discriminação. Precedentes. Agravo de instrumento conhecido e desprovido. (TST-AIRR-195740-92.2008.5.02.0434, Rel. Min. Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, 3ª Turma, DEJT 03/09/2010) RECURSO DE EMBARGOS EM RECURSO DE REVISTA. EMPREGADO PORTADOR DO HIV. DESPEDIDA DISCRIMINATÓRIA. PRESUNÇÃO RELATIVA. REINTEGRAÇÃO. A ordem jurídica pátria repudia o sentimento discriminatório, cuja presença na voluntas que precede o ato da dispensa implica a sua ilicitude, ensejando a sua nulidade. O exercício do direito potestativo de denúncia vazia do contrato de trabalho encontra limites na hipótese de ato discriminatório, assim em função do princípio da função social da propriedade (art. 170, III, da CF), bem como da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho (art. 1.º, III e IV, da CF), por incompatibilidade dessa prática com a prevalência e a realização desses princípios. A jurisprudência desta Corte Superior evoluiu na direção de se presumir discriminatória a dispensa sempre que o empregador tem ciência de que o empregado é portador do HIV, e não demonstrou que o ato foi orientado por outra causa. Recurso de embargos não conhecido. (TST-E-ED-RR 76089/2003-900-02-00; Ac. SBDI-1; Rel. Min. Rosa Maria Weber Candiota da Rosa, DJU de 30/11/2007).

A análise da jurisprudência citada demonstra que o Tribunal Superior do Trabalho está afinado com os reclames sociais, implementando plena efetividade aos direitos fundamentais dos trabalhadores. Nesse sentido, os arestos analisados seguem a orientação do Enunciado n. 2 incisos I, II e III, aprovado na 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, em 23.11.2007, sobre a força normativa e proteção judicial dos direitos fundamentais: Enunciado n. 2 - I - ART. 7º, INC. I, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. EFICÁCIA PLENA. FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO. DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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DEVER DE PROTEÇÃO. A omissão legislativa impõe a atuação do Poder Judiciário na efetivação da norma constitucional, garantindo aos trabalhadores a efetiva proteção contra a dispensa arbitrária. II - DISPENSA ABUSIVA DO EMPREGADO. VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL. NULIDADE. Ainda que o empregado não seja estável, deve ser declarada abusiva e, portanto, nula a sua dispensa quando implique a violação de algum direito fundamental, devendo ser assegurada prioritariamente a reintegração do trabalhador. III - LESÃO A DIREITOS FUNDAMENTAIS. ÔNUS DA PROVA. Quando há alegação de que ato ou prática empresarial disfarça uma conduta lesiva a direitos fundamentais ou a princípios constitucionais, incumbe ao empregador o ônus de provar que agiu sob motivação lícita.

7 CONCLUSÃO Antonio Flávio Pierucci traz à lume o “dilema da diferença” que acompanha o legislador, administrador ou julgador na prática jurídica contra a discriminação: Mostrar ou esconder, eis o “dilema da diferença”. Chama a atenção para este dilema a jurista feminina americana, Martha Minow, que o enuncia do seguinte modo: ‘o estigma da diferença pode se repor, tanto no ignorá-la quanto no enfocá-la’ (Minow, 1990:20). Tratar as pessoas diferentemente e, assim fazendo, enfatizar suas diferenças pode muito bem estigmatizá-las (e então barrá-las em matéria de emprego, educação, benefícios e outras oportunidades na sociedade), do mesmo modo que tratar de modo igual os diferentes pode nos deixar insensíveis às suas diferenças, e isto uma vez mais termina por estigmatizá-los e, do mesmo modo, barrálos socialmente num mundo que foi feito apenas a favor de certos grupos e não de outros. Ser diferente é um risco de qualquer maneira [...].21

Este dilema serve de alerta e como medida de ponderação para as práticas jurídicas voltadas ao combate da discriminação na relação de emprego, evitando-se a discriminação inversa. Encontrar o equilíbrio não é tarefa fácil e seguramente tampouco alcançará o status de um fim acabado, pois como afirma Arion Romita: 21 PIERUCCI, 2000, p. 106.

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O princípio da igualdade não é um produto da razão, imutável no tempo e indiferente à lição da História. Pelo contrário. Baseado essencialmente na afirmação da dignidade do homem, revela-se no curso da história como uma ideia dinâmica, constantemente adaptada às exigências da evolução da sociedade.22

BIBLIOGRAFIA ARNS, Cardeal Dom Paulo Evaristo. Para que Todos Tenham Vida. In: Discriminação: estudos. VIANA, Márcio Tulio; RENAULT, Luiz Otávio Linhares; CANTELLI, Paula Oliveira. (Cord.). São Paulo: LTr, 2000. BARROSO, Luis Roberto. Razoabilidade e Isonomia no Direito Brasileiro. In: Discriminação: estudos. VIANA, Márcio Tulio; RENAULT, Luiz Otávio Linhares; CANTELLI, Paula Oliveira (Coord.). São Paulo: LTr, 2000. COUTINHO, Aldacy Coutinho. Relações de Gênero no Mercado de Trabalho: Uma Abordagem da Discriminação. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, v. 34, 2000. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. MENEZES, Paulo Lucena de. A Ação Afirmativa (Affirmative Action) no Direito Norte-Americano. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001. PEDREIRA, Pinho. Discriminação Indireta. Revista LTr, v. 65, n.4, São Paulo, 2001. PIERRUCCI, Flávio Antonio. Ciladas da Diferença. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2000. ROMITA, Arion Sayão. Acesso ao trabalho das pessoas deficientes perante o princípio da igualdade. Revista Gênesis, Curitiba, fev. 2000. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

22 ROMITA, 2000, p. 184.

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O DIREITO AO TRABALHO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA1 Ana Raquel Machado Bueno de Moraes2 RESUMO Esse artigo aborda que a garantia do direito ao trabalho abarca uma série de outros direitos fundamentais previstos constitucionalmente e que devem ser cumpridos pelo Estado e pela sociedade, sob pena de violação do pleno exercício da cidadania por parte das pessoas com deficiência. Para este fim, foi realizada análise das Convenções internacionais, especialmente a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, e da legislação nacional que rege a matéria, percorrendo-se desde os antecedentes históricos relacionados à pessoa com deficiência até a alteração do paradigma conceitual. Palavras-chave: Direito ao trabalho. Pessoa com deficiência. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU. Acessibilidade. Inclusão social.

INTRODUÇÃO De acordo com o Relatório Mundial sobre Deficiência elaborado pela ONU3 mais de um bilhão de pessoas no mundo possuem algum tipo de deficiência. É de se destacar os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)4, relativos ao censo de 2010, que 1 Trabalho de Conclusão do IX Curso de Ingresso e Vitaliciamento do Ministério Público do Trabalho. 2 Procuradora do Trabalho, Coordenadora da Procuradoria do Trabalho no Município de Três Lagoas, formada na Fundação de Ensino Eurípides Soares da Rocha (em Marília/SP), com pós-graduação em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na mesma faculdade. 3 Disponível em: <http://www.onu.org.br/mais-de-um-bilhao-de-pessoas-no-mundo-temalgum-tipo-de-deficiencia-informa-relatorio-da-onu/>. Acesso em: 30 out. 2011. 4 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – Censo Demográfico 2010. Dis-

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demonstram que o Brasil tem uma população de 45 milhões de pessoas com alguma deficiência, o que corresponde a 24% da população total. No entanto, nos anos de 1999 a 2003 os indicadores demonstram que apenas 537 mil pessoas com deficiência encontravamse incluídas no mercado de trabalho5. O comando constitucional principiológico, previsto no artigo 3º da CF/88, no sentido de promover o bem de todos, sem qualquer tipo de discriminação, deveria nortear a atuação de todos. Porém, infelizmente, não é isso o que ocorre. Ainda há uma forte exclusão, com origem na histórica marginalização, no preconceito, na pobreza, na falta de educação básica e na falta de acesso ao mercado de trabalho, como comprovam os números. E para que ocorra a mudança dessa situação de exclusão social, faz-se necessária a proteção e garantia do direito ao trabalho da pessoa com deficiência. Isso porque é por meio do trabalho que o indivíduo tem condições de suprir suas necessidades básicas, sua subsistência e a da sua família, além de se integrar na sociedade de modo pleno, oportunizando condições dignas de vida. Nesse contexto, a garantia do direito ao trabalho abrange uma série de outros direitos fundamentais previstos constitucionalmente e que devem ser cumpridos pelo Estado e pela sociedade, sob pena de violação do pleno exercício da cidadania por parte das pessoas com deficiência. E é exatamente sobre a proteção e garantia do direito ao trabalho das pessoas com deficiência, com vistas à sua inserção junto ao mercado de trabalho, mediante a aplicação de normas vigentes no ordenamento jurídico brasileiro e na legislação internacional, que iremos abordar neste estudo.

ponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/resultados_preliminares_amostra/default_resultados_preliminares_amostra.shtm>. Acesso em: 20 nov. 2011. 5 Cf. GUGEL, 2007, p.17.

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1 HISTÓRICO As pessoas com deficiência constituem um grupo minoritário historicamente discriminado, excluído e marginalizado nas diversas civilizações. O preconceito, a discriminação e a segregação sempre estiveram presentes na história dessas pessoas. Num breve relato e de acordo com a lição de Fonseca (2001), na Antiguidade, entre os povos primitivos, o tratamento destinado às pessoas com deficiência possuía duas formas diferentes: alguns os exterminavam, por considerá-los grave empecilho à sobrevivência do grupo; e outros os protegiam e sustentavam para buscar a simpatia dos deuses, ou então como gratidão pelos esforços dos que se mutilavam na guerra. Na Roma antiga, a Lei das XII Tábuas autorizava o pai a matar o próprio filho quando este nascia disforme. Em Esparta, os cidadãos deveriam estar a serviço do exército e por essa razão deveriam ser fortes e saudáveis, aptos a defender o Estado. Aqueles que possuíssem qualquer tipo de deficiência eram lançados do alto de um abismo. Situação parecida ocorria em Atenas, considerada por muitos o berço da civilização. No caso do nascimento de algum bebê com deficiência, o próprio pai deveria matá-lo. Na civilização hebraica a discriminação estava evidente nas próprias leis. Em “Levítico”, Moisés escreveu que o homem com deformidade corporal não poderia fazer oferendas a Deus e nem se aproximar de seu ministério. Os antigos hebreus viam a deficiência como sinal de impureza, dívida de pecados antigos, interferência de maus espíritos e das más forças da natureza. Em Roma, já ao tempo das conquistas, multidões de soldados começaram a retornar das batalhas com amputações. Com o surgimento do Cristianismo, a visão de homem foi modificada, passando a ser concebido como um ser individual e criado por Deus. A nova doutrina, voltada para a propagação da caridade e amor entre as pessoas, combateu, assim, dentre outras práticas, a da eliminação da pessoa com deficiência. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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Nesse contexto, a partir do século IV, os cristãos conseguiram alterar as concepções romanas, período em que começaram a surgir os primeiros hospitais de caridade que abrigavam indigentes e pessoas com deficiência. Já sob a influência do Cristianismo, durante a Idade Média, os senhores feudais amparavam os deficientes e os doentes, em casas de assistência por eles mantidas. Mas ainda existia uma alternância na concepção de deficiência por parte da sociedade, sendo que uma parte da população encarava a deficiência como castigo de Deus ou como atuação de maus espíritos e do demônio, e outra parte como desígnios divinos. A Revolução Francesa, até o século XIX, trouxe uma nova visão das pessoas com deficiência, caracterizando a deficiência como questão médica e educacional, encaminhando tais pessoas para viver em conventos e hospícios. O assistencialismo foi por muito tempo a solução encontrada pelo Estado e pela sociedade para proteger e amparar a pessoa com deficiência. Porém, com o Renascentismo, o assistencialismo reinante foi substituído pela integração da pessoa à comunidade, com o objetivo de permitir a participação ativa da pessoa com deficiência no meio social. A Revolução Industrial e, posteriormente, as duas Grandes Guerras foram eventos que contribuíram para o despertar desta nova visão. A Revolução Industrial foi um fator marcante pois, diante das péssimas condições laborais, o trabalho nas fábricas acarretou uma infinidade de acidentes de trabalho, deixando milhares de mutilados. Já as duas Guerras Mundiais foram um marco em razão de terem proporcionado um aumento significativo no número de pessoas com deficiência, o que exigiu do Estado uma posição de agente protetor. Os soldados mutilados, que retornavam da guerra como heróis, precisavam de uma atividade remunerada que lhes 38

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proporcionasse uma vida digna. Por essa razão, foi estimulado o desenvolvimento da reabilitação científica. A ocorrência das Grandes Guerras Mundiais, especialmente a Segunda, foi fator determinante na internacionalização dos direitos humanos, pois, diante das atrocidades e dos horrores cometidos6, percebeu-se a necessidade de se positivar direitos fundamentais da pessoa humana que se projetassem em um âmbito global e não apenas local. Apesar do avanço na proteção dos direitos humanos trazidos pelas Guerras Mundiais, em nosso país, o número elevado de pessoas com deficiência não tem a mesma causa dos países que sofreram diretamente com as consequências das grandes guerras. No Brasil, o número elevado se deve principalmente aos acidentes de trânsito, aos acidentes de trabalho, à carência alimentar, aos problemas congênitos, à violência urbana, a uma falta de política pré-natal e sanitária, dentre outros fatores. E a realidade com que se deparam as pessoas com deficiência é a de uma luta diária para tentar usufruir seus direitos fundamentais básicos, constitucionalmente garantidos: o direito ao trabalho, à saúde, à educação, ao lazer, o direito de ir e vir. O índice de desemprego e de falta de acesso à educação para as pessoas com deficiência é muito mais elevado; o direito à saúde, que já é precário de uma forma geral, para essas pessoas é ainda mais inadequado e insuficiente; a baixa qualidade de vida, a pobreza e a desnutrição são mais acentuadas nessas pessoas. A pobreza e a marginalização social, econômica e cultural atuam de forma ainda mais severa sobre as pessoas com deficiência. Segundo dados do Banco Mundial, da população mundial que possui algum tipo de deficiência, 80% vive abaixo da linha da miséria em países em desenvolvimento. 6 Conforme Flávia Piovesan: “Contudo, a verdadeira consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos surge em meados do século XX, em decorrência da Segunda Guerra Mundial. Nas palavras de Thomas Buergenthal: ‘O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte destas violações poderiam ser prevenidas se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse.”(PIOVESAN, 2010, p.121).

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Os problemas enfrentados pelas pessoas com deficiência, que geram a sua discriminação e segregação do mundo do trabalho, bem como a sua exclusão social são, dentre outros: a histórica marginalização; a pobreza; o preconceito; a concepção da incapacidade para o trabalho e a mentalidade de que a pessoa com deficiência é um encargo e que não é capaz de produzir satisfatoriamente no competitivo e capitalista mercado de trabalho; a concepção de que essas pessoas devem ser alvo exclusivo de tratamento caridoso e assistencialista; a falta de acessibilidade dos ambientes e meios de transporte; a falta de acesso ao direito à saúde; a ausência de tratamento especializado; a falta de educação básica, com dificuldades de acesso e permanência no ambiente escolar; a falta de possibilidade de qualificação profissional. Como se pode ver, infelizmente, a pessoa com deficiência sempre está em uma posição de desvantagem. E o pior: na maioria das vezes, perde na competição implacável e desigual do mundo atual. Genaura Maria da Costa Tormim7, pessoa com deficiência, em artigo publicado na Internet, expõe em seu relato a realidade da situação enfrentada pelas pessoas com deficiência: Como toda minoria, são relegadas a segundo plano, visto não existir uma consciência popular valorativa sobre os seus potenciais, como se a cabeça estivesse na disfunção de um membro locomotor ou no atrofiamento de um braço. Ter um defeito físico, andar numa cadeira de rodas, geralmente significa ser inválido, estar cerceado do sagrado direito de auto-sustentar-se com o fruto do próprio trabalho. É a chamada rotulagem despreziva que tanto mal nos faz. Os órgãos estatais fecham as portas. E, para qualificar-se, nem se fala, pois as barreiras arquitetônicas das escolas relegam o aluno, logo no primeiro dia de aula, bem como o mobiliário das cidades e o transporte coletivo, que não são planejados para esses “imperfeitos seres”. A discriminação, por parte da própria família, que tem por tradição esconder os seus deficientes, é a mais crucial, numa amostragem, sem dúvida, de desumanidade. É o retrato de um país que não encara os seus problemas, não sabe transformá-los, aceitando, apenas, os fortes, perfeitos e vencedores. A sociedade não sabe conviver com essas pessoas. Ainda não conseguiu entender que o maior potencial humano é a mente 7 Disponível em: <http://www.apriori.com.br/forum/node/332>. Acesso em: 7 set. 2011.

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e, se essa está ilesa, a vida é possível e o trabalho é digno dentro da capacitação. A informação e o espírito de solidariedade ainda são muito pequenos entre nós. Nunca paramos para pensar como é o dia-a-dia de uma pessoa que tem por pernas quatro rodas de uma cadeira. Estamos sempre ocupados com os nossos próprios problemas, esquecendo-nos de que as fatalidades não avisam, nem escolhem status. Quando deparamos com alguém de muletas ou cadeira de rodas, a ideia é de que está aposentado ou aposentando, embora sirvam as pernas, apenas, para cumprir a simples missão de andar. E, se a pessoa for do sexo feminino, principalmente, presume-se logo que jamais encontrará companheiro, ou, se a sequela for recente, fatalmente será abandonada por ele. É como se, de repente, o ser humano se transformasse num objeto sem valor. (TORMIM, 1998).

No passado, as pessoas com deficiência limitavam-se a aceitar o mínimo que o Estado e a sociedade lhes ofereciam. Mas, hoje, o cenário é outro. Há uma ampla proteção legal no que concerne aos direitos da pessoa com deficiência e que deve ser implementada com o objetivo de se tornar efetivo o direito ao usufruto pleno da cidadania e de condições mínimas para uma vida digna, para se tentar, de certa forma, resgatar essa dívida social há muito tempo exigida. alerta:

Com extrema percepção, Carlos Henrique Bezerra Leite Vale destacar que todos somos portadores de alguma deficiência e que a mais cruel de todas as deficiências é aquela que nos faz pensar que existem pessoas melhores que outras ou que alguns indivíduos não merecem ser titulares de direitos. (LEITE, 2010, p.31).

2 O DIRETO AO TRABALHO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA 2. 1 O direito fundamental ao trabalho A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, em seu Preâmbulo, proclamou o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais. E declarou em seu artigo XXIII que toda pessoa tem direito ao trabalho. Em 1993 foi proclamada, pela Conferência Mundial de Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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Direitos Humanos, a universalidade de todos os direitos fundamentais, nos seguintes termos: “Todos os Direitos Humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve considerar os Direitos Humanos, globalmente, de forma justa e equitativa, no mesmo pé e com igual ênfase. Embora se deva ter sempre presente o significado das especificidades nacionais e regionais e os diversos antecedentes históricos, culturais e religiosos, compete aos Estados, independentemente dos seus sistemas políticos, econômicos e culturais, promover e proteger todos os Direitos Humanos e liberdades fundamentais”.8. O direito interno brasileiro também consagrou o princípio da universalidade9, assegurando a todos a inviolabilidade dos direitos e garantias declarados na Constituição e nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil. E dentre os direitos fundamentais reconhecidos por nosso sistema constitucional encontra-se o direito ao trabalho, arrolado ao lado de outros direitos sociais no artigo 6º da Constituição Federal de 1988.10 Como pode ser visto, o direito ao trabalho é um Direito Humano universal assegurado desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Cumpre destacar a importância do trabalho, pois é a partir dele que o ser humano conquista sua independência econômica e pessoal, busca sua afirmação perante a sociedade e perante si próprio, elevando sua autoestima, valoriza-se como cidadão pela sua capacidade produtiva e pela sua contribuição perante a sociedade. Pode-se afirmar, assim, que o direito ao trabalho assegura o exercício de outros direitos que materializam a dignidade da pessoa humana. Dessa forma, o direito ao trabalho é uma das bases centrais que possibilitam a afirmação de outros direitos fundamentais. E para as pessoas com deficiência a importância é ainda maior, pois além de todos os valores inerentes, já mencionados acima, 8 Artigo 5º da Declaração e Programa de Ação de Viena. 10 Artigo 6º, da CF/88: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

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o trabalho é um dos mais efetivos mecanismos de inclusão social. 2.2 Convenções Internacionais Já na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) estava prevista a missão de combate a todas as formas de discriminação: “Art. VII. Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.” E mais adiante, a Declaração busca garantir o direito fundamental ao trabalho, de livre escolha da pessoa e em condições favoráveis: “Artigo XXIII. 1. Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego”. A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948) proclama que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, e que os direitos e liberdades de cada pessoa devem ser respeitados sem qualquer distinção. A edição da Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho, concernente à Discriminação em Matéria de Emprego e Profissão, ratificada pelo Brasil em 1965, foi um marco para a sociedade mundial, pois pela primeira vez uma convenção internacional traz o conceito claro do termo “discriminação”. Ainda, compromete os Estados-Partes para a formulação e aplicação de uma política nacional que tenha por fim promover a igualdade de oportunidades e de tratamento em matéria de emprego e profissão, com o objetivo de eliminar qualquer discriminação. No início dos anos 90, o Brasil ratificou a Convenção nº 159 da Organização Internacional do Trabalho, referente à Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes, que tem como finalidade permitir que a pessoa com deficiência obtenha e conserve um emprego digno e progrida no mesmo, e que se promova, assim, a integração ou a reintegração dessa pessoa na sociedade (art. 1 e 2). Ao mesmo tempo, a norma compromete os Estados-Partes a estabelecerem políticas de igualdade de oportunidades entre os trabalhadores com deficiência e os trabalhadores em geral. Ainda, os Estados-Partes se comprometem a adotar as medidas necessárias Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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para aplicação dos objetivos acima relatados, mediante legislação nacional e por outros procedimentos. Em 1999, a Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, também chamada de Convenção da Guatemala, ratificada pelo Decreto nº 3.956, de 8/10/2001, manifestou a preocupação com a discriminação de que são objeto as pessoas em razão de suas deficiências, propondo medidas para preveni-las e eliminá-las, com o objetivo de propiciar a sua plena integração à sociedade. Além disso, a Convenção prioriza a educação e a formação educacional como forma de garantir o melhor nível de independência e qualidade de vida para as pessoas com deficiência. Recentemente, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi promulgada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas (ONU), no dia 03 de dezembro de 2006, sendo ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 09 de julho de 2008. 2.3 A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU Essa foi a primeira Convenção sobre direitos humanos do século XXI e, como foi ratificada pelo Brasil após a EC 45/2004, ingressou no ordenamento jurídico brasileiro com força normativa de emenda constitucional, nos termos do § 3º do artigo 5º da Constituição Federal. Por essa razão, o Decreto Legislativo nº 186 não necessita do decreto presidencial para entrar em vigor no Brasil, tendo em vista que os tratados internacionais de direitos humanos, além de apresentarem o status constitucional, têm aplicação imediata, por força do artigo 5º, §§ 1º e 2º, da CF/88. Flávia Piovesan fundamenta seu posicionamento, afirmando que: se as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais demandam aplicação imediata e se, por sua vez, os tratados internacionais de direitos humanos têm por objeto justamente a definição de direitos e garantias, conclui-se que tais normas 44

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merecem aplicação imediata. (PIOVESAN, 2010, p. 85).

Quanto ao conteúdo disposto, a Convenção ora focalizada ratifica os direitos já previstos em outras declarações e constituições. Em razão de as pessoas com deficiência continuarem sendo alvo de discriminação, segregação e marginalização em todo o mundo, a principal finalidade desta Convenção é enfatizar e reafirmar que as pessoas com deficiência são titulares de direitos humanos. Leite:

Sobre essa constatação, afirma Carlos Henrique Bezerra Os Estados-partes reconhecem que esta Convenção era necessária devido ao fato de as pessoas com deficiência continuarem a representar um dos mais marginalizados grupos da sociedade, cujos direitos são muitas vezes ignorados ou negados em muitos países. (LEITE, 2010, p. 31).

Em suma, constata-se que esse tratado não tem por objetivo criar direitos específicos, mas, sim, garantir que os direitos da pessoa humana sejam plenamente exercidos pelas pessoas que possuem algum tipo de deficiência. Para tanto, encontram-se entre os princípios inspiradores da Convenção: a) o respeito à dignidade inerente a todo ser humano, à independência pessoal e à autonomia individual, inclusive para fazer suas próprias escolhas; b) a não-discriminação; c) a plena e efetiva participação e inclusão na sociedade; d) o respeito pelas diferenças e aceitação da pessoa com deficiência como parte da diversidade humana; e) a igualdade de oportunidades; f) a acessibilidade; g) a igualdade entre o homem e a mulher; h) o respeito pelas capacidades em desenvolvimento de crianças com deficiência e respeito pelo direito a preservar sua identidade. A Convenção reconhece que as pessoas com deficiência não tiveram acesso a essas liberdades individuais e, por isso, reescreveu os direitos todos, mas de forma adequada a esses indivíduos. O item “e” do Preâmbulo introduz uma importante inovação no conceito de pessoa com deficiência, ao reconhecer que “a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.” Em consequência, a Convenção conceitua em seu artigo 1º que “pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.” Como pode ser observado, a Convenção alterou o paradigma da visão da deficiência no mundo, positivando um conceito que reconhece que as limitações físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais são consideradas apenas atributos das pessoas e que eventuais restrições de acesso aos direitos não são causados pelos impedimentos que possuem, mas, principalmente, em razão das barreiras existentes na sociedade. Nesse contexto, frisa-se que a Convenção em análise incorporou a valorosa percepção de que a deficiência está presente na sociedade11, que não assegura o acesso ao pleno exercício da cidadania às pessoas com deficiência. Na lição de Laís Vanessa Carvalho de Figueiredo Lopes: A base conceitual desta Convenção é a mudança de paradigma da perspectiva médica e assistencial para a visão social dos direitos humanos. Segundo o modelo médico, a deficiência é um incidente isolado e do indivíduo, uma experiência do corpo a ser ‘combatida’ com tratamentos como diz Cláudia Wernewck (2005, p. 25). Para o modelo social, a deficiência é resultante de uma equação que tem duas variáveis, quais sejam, as limitações funcionais do corpo 11 Ricardo Tadeu Marques da Fonseca denomina como revolucionário o conceito adotado pela Convenção da ONU: “O conceito é revolucionário, porque defendido pelos oitocentos representantes das Organizações não Governamentais presentes nos debates, os quais visavam a superação da conceituação clínica das deficiências (as legislações anteriores limitavam-se a apontar a deficiência como uma incapacidade física, mental ou sensorial). A intenção acatada pelo corpo diplomático dos Estados Membros, após longas discussões consiste no deslocamento do conceito para a combinação entre esses elementos médicos com os fatores sociais, cujo efeito é determinante para o exercício dos direitos pelos cidadãos com deficiência. Evidencia-se, então, a percepção de que a deficiência está na sociedade, não nos atributos dos cidadãos que apresentem impedimentos físicos, mentais, intelectuais ou sensoriais.” (Fonseca, 2008).

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humano e as barreiras físicas, econômicas e sociais impostas pelo ambiente ao indivíduo. Assim sendo, a deficiência em si não ‘descapacita’ o indivíduo mas, associa uma característica do corpo humano com o ambiente inserido. É a própria sociedade que coletivamente cria a ‘descapacidade’. (GUGEL; COSTA FILHO; RIBEIRO, 2007, p. 55).

Flávia Piovesan (2010, p. 224) elucida que “de ‘objeto’ de políticas assistencialistas e de tratamentos médicos, as pessoas com deficiência passam a ser concebidas como verdadeiros sujeitos, titulares de direitos.” E conclui (2010, p. 225): “a inovação está no reconhecimento explícito de que o meio ambiente econômico e social pode ser causa ou fator de agravamento de deficiência.” Portanto, as pessoas com impedimentos ou limitações terão assegurados o pleno exercício de seus direitos humanos a partir do momento em que as sociedades removerem as barreiras físicas, tecnológicas, culturais, ambientais e atitudinais. Quando isso ocorrer cada pessoa terá acesso a seus direitos e caberá a cada um, à sua livre escolha, optar pela forma e oportunidade de exercê-los. Mas isso será uma opção da pessoa com deficiência e não um impedimento causado pela sociedade. Quanto ao trabalho e emprego, está reconhecido no artigo 27 da Convenção, o direito das pessoas com deficiência ao trabalho, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. Esse direito abrange o direito à oportunidade de se manter em um trabalho de sua livre escolha ou aceitação no mercado laboral, em ambiente de trabalho que seja aberto, inclusivo e acessível a pessoas com deficiência. Ainda, proíbe a discriminação baseada na deficiência; assegura o acesso à formação profissional, justo salário em condição de igualdade com qualquer outro cidadão, condições seguras e saudáveis de trabalho, sindicalização, garantia de livre iniciativa no trabalho autônomo, empresarial ou cooperativado, ações afirmativas de promoção de acesso ao emprego privado ou público, garantia de progressão profissional e preservação do emprego, habilitação e reabilitação profissional, proteção contra o trabalho forçado ou escravo, dentre outros. Ainda, o artigo 3º traz um importante princípio: o de Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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que a deficiência deve ser concebida como algo inerente à diversidade humana (“d. O respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade”). Esse princípio leva à conclusão de que a deficiência deve ser vista como algo inerente à condição humana, como é a raça, sexo, cor, orientação sexual etc. A diferença entre indivíduos é fundamental para a construção de uma sociedade verdadeiramente humana. A deficiência deve ser vista como algo inerente à diversidade humana, pois toda pessoa, pela sua própria condição de ser humano, tem deficiência. Todo e qualquer indivíduo possui dificuldades e limitações. As pessoas são todas iguais por natureza e todas possuem o mesmo valor, mas cada uma tem suas particularidades, com suas características próprias e preferências individuais. O essencial é estabelecer uma sociedade onde todos possam ter respeitadas suas diferenças e limitações. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, no item “m” de seu Preâmbulo, demonstra a importância da plena participação da pessoa com deficiência na sociedade: m) Reconhecendo as valiosas contribuições existentes e potenciais das pessoas com deficiência ao bem-estar comum e à diversidade de suas comunidades, e que a promoção do pleno exercício, pelas pessoas com deficiência, de seus direitos humanos e liberdades fundamentais e de sua plena participação na sociedade resultará no fortalecimento de seu senso de pertencimento à sociedade e no significativo avanço do desenvolvimento humano, social e econômico da sociedade, bem como na erradicação da pobreza.

A esperança é que esta Convenção sirva de importante instrumento de transformação social, pois uma sociedade mais justa, igualitária e inclusiva é direito de todos os seus membros. 2.4 Ordenamento jurídico brasileiro A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a erigir o postulado da igualdade entre os direitos fundamentais (art. 5º, caput), apresentando grandes avanços no que tange à consagração dos 48

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direitos de pleno exercício da cidadania pelas pessoas com deficiência. A Constituição de 1988 rompeu com o modelo assistencialista, até então dominante, assegurando-se a igualdade de oportunidades. Com isso, o tratamento da pessoa com deficiência passou a ter um enfoque muito mais preocupado com a inclusão social. Em seu artigo 1º, incisos III e IV, a Constituição Federal estabelece como fundamentos do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho. Ainda, dispõe como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, III e IV, CF/88). Seguindo essas diretrizes gerais, no campo do trabalho, o legislador constituinte especificou, no artigo 7º, XXXI, da CF/88, a proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência. Além disso, a ordem econômica está fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social, com enfoque na busca do pleno emprego (art. 170 da CF/88). O artigo 193 da Carta constitucional disciplina que a ordem social tem como base o primado do trabalho e como objetivo o bem-estar e a justiça social. do § 1º:

Ainda, o artigo 227 da CF/88 dispõe em seu inciso II § 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos. II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação.

Todos esses dispositivos constitucionais visam garantir Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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materialmente o acesso ao direito fundamental ao trabalho (art. 6º da Constituição Federal de 1988), sem qualquer distinção ou preconceito. Além dos dispositivos constitucionais, há diversas leis que buscam assegurar o direito de acesso ao mercado de trabalho às pessoas com deficiência. A Lei n° 7.853/89 determina a adoção de medidas que garantam a reserva de mercado de trabalho a pessoas com deficiência e sua inclusão social e profissional (art. 2°, parágrafo único, inciso II, alíneas “c” e “d”). Destaque-se que o § 2° do artigo 1° da Lei n° 7.853/89 impõe a tomada de medidas que afastem “as discriminações e os preconceitos de qualquer espécie”, devendo ser “entendida a matéria como obrigação nacional a cargo do Poder Público e da sociedade”. Já o artigo 2° descreve, dentre os “direitos básicos” da pessoa com deficiência, o “pleno exercício” do direito “ao trabalho” e à “previdência social”. A Lei 8.213/91, por sua vez, em seu artigo 93 determina que “a empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas” na proporção estabelecida na citada lei. O artigo 37, VIII, da Constituição Federal de 1988 determina que a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão. Por sua vez, a Lei 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, dispõe, em seu artigo 5º, §2º, que “às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso.” Como pode ser constatado, há inúmeras leis que dispõem sobre a inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho. O que falta é a implementação de políticas públicas por parte do Poder Público e a conscientização da sociedade para a efetivação 50

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dessas leis, com a finalidade de se buscar uma real concretização do direito ao trabalho.

3 AÇÕES AFIRMATIVAS: A RESERVA DE POSTOS DE TRABALHO O princípio da igualdade é um dos princípios basilares da Constituição Federal de 1988, configurando-se como um dos pilares de sustentação de qualquer Estado Democrático de Direito. A Constituição Federal dispõe, no “caput” do artigo 5º, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Esse princípio, também chamado de princípio da isonomia, é analisado sob dois ângulos: o da igualdade formal e o da igualdade material. A igualdade formal é aquela positivada na Constituição Federal, em seu artigo 5º, quando dispõe que todos são iguais “perante a lei”. Dessa forma, a igualdade formal é a igualdade perante o texto seco da lei. Ela consubstancia a aplicação da lei, qualquer que seja o seu conteúdo. Já a igualdade material é o instrumento de concretização da igualdade formal, tendo em vista que retira o sentido da letra fria da lei para viabilizá-lo no mundo prático. A igualdade material busca impedir tratamento igual para pessoas que se encontram em situações desiguais. Ela permite que as pessoas recebam tratamentos diferenciados segundo a sua peculiaridade. Ela é consubstanciada na existência de uma sociedade livre, justa e solidária. Busca também que sejam tomadas medidas compensatórias com o objetivo de reduzir as desigualdades concretas. Ainda nos dias de hoje, é indiscutível a existência de discriminação para acesso ao mercado de trabalho por pessoas com deficiência e reabilitadas pelo sistema previdenciário. É notório que as pessoas com deficiência estão em nítida desvantagem em relação aos demais membros da sociedade, especialmente no mercado de trabalho. Por essa razão há necessidade de adoção de medidas Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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“positivas” ou “ações afirmativas”, com o objetivo de se tentar reduzir as inúmeras desigualdades que atingem as pessoas com deficiência na sociedade. As ações afirmativas reúnem medidas que envolvem a supressão das desigualdades de fato, capazes de restringir as oportunidades de acesso ao mercado de trabalho das pessoas com deficiência, razão pela qual é plenamente sustentável o tratamento protetivo aplicado. Assim, o que são vedados são os tratamentos arbitrários. Maria Aparecida Gugel explica que: A discriminação positiva, por meio da ação afirmativa, exige do Estado e da sociedade a construção de um ordenamento jurídico que mostre os fins sociais, a proteção dos valores da justiça social e do bem comum, de forma a implementar os comandos pragmáticos constitucionais do Art. 3, III – erradicar [...] e reduzir as desigualdades sociais [...]; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos [...] e quaisquer formas de discriminação; Art. 170, VII – redução [...] das desigualdades regionais e sociais. (GUGEL; COSTA FILHO; RIBEIRO, 2007, p. 212).

Determina-se ao Poder Público e à sociedade a obrigação de conferir tratamento diferenciado às pessoas com deficiência por intermédio de medidas, ações e princípios constantes nos diversos preceitos constitucionais e legais. Dessa forma, incumbe ao Poder Público, a seus órgãos e à toda a sociedade assegurar às pessoas com deficiência o pleno exercício do seu direito ao trabalho, conforme preceito contido no artigo 2º da Lei 7.853/89, fornecendo instrumentos para que o arcabouço legislativo existente sobre a matéria se transforme em realidade. O objetivo das ações afirmativas é claro: promover a inclusão da pessoa com deficiência por meio da ação comum do Poder Público e da sociedade para, com isso, fornecer a esses indivíduos os meios que minimizem e até excluam as desvantagens encontradas no contexto social de natureza educacional, de trabalho, de saúde, de lazer, de acessibilidade urbana e de transporte, de moradia e outros de ordem social. E a luta pelo alcance deste objetivo traz como finalidade 52

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o pleno exercício dos direitos e da dignidade das pessoas com deficiência. Ainda, proporciona a participação na vida econômica, social, cultural e política de suas sociedades, sem discriminação e em situação de igualdade com os demais cidadãos. Nesse passo, vale transcrever a lição de Ricardo Tadeu Marques da Fonseca: A dedicação conferida aos grupos vulneráveis faz-se necessária para que aqueles direitos universais de natureza individual e social encontrem instrumentos jurídicos hábeis a torná-los eficazes. […] Defender as minorias, significa, portanto, preservar os Direitos Humanos de todos, para que a maioria democrática não se faça opressiva e possa legitimar-se pela incorporação das demandas de cada grupo, preservando-se a ideia de igualdade real a ser assegurada pelo Direito. (FONSECA, 2008, p. 263)

4 ACESSIBILIDADE E ADAPTAÇÃO AMBIENTES DE TRABALHO

DOS

A acessibilidade plena é um direito que está assegurado na Constituição Federal de 1988, que prevê a garantia ao total desenvolvimento dos cidadãos, sem qualquer configuração de discriminação, proporcionando a todos, indistintamente, as mesmas oportunidades e condições de vida digna. Nesse contexto, a Constituição da República garante, em seu artigo 5º, XV, o direito de ir e vir, livremente, de todos os cidadãos. O direito à garantia de uma livre locomoção dentro de seu Estado também pode ser encontrado na Declaração dos Direitos Humanos da ONU, que dispõe em seu artigo XIII que “1. Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado.” Ainda, a Convenção da Guatemala, em seu artigo III, impõe o trabalho prioritário dos Estados-Partes na capacitação das pessoas com deficiência de forma a “garantir o melhor nível de independência e qualidade de vida” (item 2.b) e a exigência de adaptação dos edifícios, veículos e instalações (item 1.b). A acessibilidade, como direito das pessoas com Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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deficiência, também está garantida nos artigos 227, § 2º e 244, da CF, bem como no artigo 2º, V, da Lei 7.853/89. O artigo 2º, V, da Lei n. 7.853 de 24 de outubro de 1989 estabelece que a lei objetiva a adoção e a efetiva execução de normas que garantam a funcionalidade das edificações e vias públicas, que evitem ou removam os óbices às pessoas com deficiência, permitam o acesso destas a edifícios, a logradouros e a meios de transporte. A questão da acessibilidade também foi tratada nas Leis n 10.048/00 e 10.098/00. Ainda, neste contexto, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU traz em seu artigo 3, “f ”, como um de seus princípios, a acessibilidade, determinando aos Estados-Partes o compromisso de realizar ou promover a pesquisa e o desenvolvimento de produtos, serviços, equipamentos e instalações com desenho universal que exijam o mínimo possível de adaptação e cujo custo seja o mínimo possível, destinados a atender às necessidades específicas de pessoas com deficiência, a promover a sua disponibilidade e seu uso e a promover o desenho universal quando da elaboração de normas e diretrizes. No que se refere ao direito ao trabalho, cumpre ressaltar que, além das previsões constitucionais e legais acima citadas, que já abarcariam a garantia do direito a um ambiente de trabalho acessível, há previsão constitucional específica, que garante a acessibilidade do meio ambiente do trabalho. A Constituição Federal garante, em seu artigo 225 da CF/88, a proteção ao meio ambiente, incluindo nesta concepção também o meio ambiente do trabalho (art. 200, VIII). Ainda, a Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê em seu artigo XXIII que “toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego”. O mencionado artigo, ao estabelecer que toda pessoa tem o direito de exercer seu trabalho “em condições favoráveis”, busca garantir o direito a um meio ambiente do trabalho acessível. Dessa forma é assegurado, a todo e qualquer trabalhador, o direito de exercer seu labor em um meio ambiente do trabalho 54

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adequado, seguro, acessível e saudável. Se essa proteção é dirigida a todos os trabalhadores, maior observância desse direito deve ser dada quando se tratar de trabalhador com deficiência. Por todo o exposto, é indiscutível que a questão da acessibilidade ao meio físico, incluindo o meio ambiente do trabalho, se consagra como direito social. Vale ressaltar que, quanto à acessibilidade, é de suma importância que a pessoa com deficiência tenha autonomia, segurança e independência para utilizar os ambientes e meios de transporte, sem qualquer restrição, impedimento ou dificuldade à sua mobilidade e sem a necessidade de qualquer ajuda de terceiros. Oportuna é a lição de Lauro Luiz Gomes Ribeiro: Nesta senda, a autonomia deve ser interpretada como o domínio absoluto do espaço físico e/ou dos sistemas e meios de comunicação, com independência, liberdade de escolha e dignidade, o que se antagoniza com qualquer pretensão reducionista a esta ‘liberdade com dignidade’, como por exemplo o usuário de cadeira de rodas sujeitar-se (ou depositar toda confiança) de ser descolado (carregado) escada acima/abaixo por funcionários de uma repartição pública (alguém estranho), porque o local tem barreiras arquitetônicas de difícil superação, com todos os riscos que uma queda pode ocasionar... (GUGEL, COSTA FILHO, RIBEIRO, 2007, p.36).

A acessibilidade permite ao indivíduo o usufruto de seus direitos, fazendo com que a pessoa possa gozar a sua vida de forma independente e em igualdade de condições com os demais cidadãos, participando plenamente da sociedade. Como afirmou Rebecca Monte Nunes Bezerra: Aí aparece a acessibilidade como um fator positivo de inclusão social e equiparação de oportunidades, ocasionando sua falta a exclusão do indivíduo da sociedade, tolhendo-o de desenvolver o seu potencial ou até mesmo atividades que naturalmente seriam executadas se as pessoas estivessem diante de espaços acessíveis, ou tivessem acesso a ajudas técnicas, por exemplo. (GUGEL, COSTA FILHO, RIBEIRO, 2007, p. 293).

Dessa forma, a busca pela acessibilidade efetiva e real deve ser um dos objetivos prioritários por parte do Estado e da Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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sociedade, de forma a garantir o melhor nível de independência e qualidade de vida das pessoas com deficiência. Um ambiente de trabalho acessível, em condições satisfatórias para incluir a pessoa com deficiência, torna possível sua permanência, progresso, autonomia e independência pessoal e financeira, oportunizando o pleno usufruto da cidadania e condições de vida digna a essas pessoas. Em suma, a busca pela acessibilidade é de primordial importância, pois um ambiente não acessível, incluindo a inadequação do meio ambiente do trabalho, é fator que contribui ainda mais para a exclusão, o preconceito e a segregação das pessoas com deficiência. A acessibilidade proporciona a inclusão social, econômica e cultural, a igualdade de direitos e oportunidades e o exercício da cidadania para todas as pessoas.

5 POSSIBILIDADE DE A PESSOA COM DEFICIÊNCIA EXERCER QUALQUER OFÍCIO OU PROFISSÃO A pessoa com deficiência tem direito de ingressar no mercado de trabalho, tendo a mesma oportunidade dos demais candidatos ao emprego. Quanto à reserva de cargos e empregos às pessoas com deficiência há em nossa legislação duas equivocadas concepções que violam o direito à igualdade. A primeira delas, constante do artigo 5º, § 2º da Lei 8.112/91 e do artigo 37 do Decreto nº 3.298/99 estabelece que às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargos “cujas atribuições sejam compatíveis” com a deficiência de que são portadoras. A segunda delas, constante no artigo 38, II, do Decreto nº 3.298/99, dispõe sobre a não aplicabilidade da reserva mínima de 5% em face da classificação obtida quando se tratar de cargo ou emprego público que exija “aptidão plena” do candidato. Essas concepções, que restringem o acesso das pessoas com deficiência para o exercício de determinadas funções junto à Administração Pública, acabam irradiando-se para as relações de 56

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trabalho em geral. No entanto, a exigência da aptidão plena, quando utilizada em prévia definição pelo administrador público ou pelo empregador, excluindo o candidato com deficiência sob a alegação de que o cargo ou emprego não é compatível com a deficiência, viola um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil que é a promoção do bem de todos, livre de qualquer preconceito (art. 3º, IV); viola o princípio fundamental do direito à igualdade (art. 5º, caput); confronta o artigo 193 que disciplina que a ordem social tem como base o primado do trabalho; fere mortalmente a busca do pleno emprego (art. 170); choca-se com os princípios da acessibilidade (art. 37, I) e de concurso público (art. 37, II) e o direito de não discriminação no tocante a critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência (art. 7º, XXXI). Ainda existem preconceitos em relação à capacidade contributiva da pessoa com deficiência, especialmente em razão do pensamento competitivo que norteia o mercado atual. As pessoas com deficiência são vistas, equivocadamente, como incapazes de serem produtivas e eficientes. O que falta às pessoas com deficiência não são aptidões ou capacidades, mas, sim, oportunidades de desenvolvimento de todo o seu potencial. Isso porque, na maioria das vezes, as dificuldades encontradas pelas pessoas com deficiência para exercerem seu trabalho estão relacionadas à falta de adaptação do ambiente. E os empregadores utilizam de forma constante a “desculpa” da falta de “aptidão plena” e “atribuições compatíveis com a deficiência”, buscando, com amparo na própria legislação, uma forma de justificar o descumprimento de suas obrigações legais. combatida.

Mas essa conduta, totalmente discriminatória, deve ser

A pessoa com deficiência, como qualquer outra pessoa, deve ser avaliada por sua qualificação e capacitação profissional. Esse é o único critério a ser utilizado no momento da contratação, como bem observado por GUGEL: No momento da contratação, a decisão do empregador Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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sobre ´quem contratar´ não poderá conter nenhum critério ou requisito discriminatório. Uma única exigência é possível e esperada: a de que o trabalhador tenha qualificação profissional para o cargo, demonstrando habilidades e competências para o exercício das atividades. (GUGEL, 2007, p. 109).

Como visto, a princípio, e dentro das limitações pertinentes, nenhuma atividade de trabalho é vedada à pessoa com deficiência. Ao contrário, é preciso reconhecer as potencialidades e possibilidades das pessoas com deficiência e a sua capacidade de superar as limitações e de encontrar soluções próprias de desenvolver as atribuições de seu cargo ou ofício. É preciso valorizar os potenciais, talentos e capacitações de cada pessoa. A pessoa com deficiência, ainda que possua qualquer tipo de limitação ou impedimento é, como todas as outras pessoas, merecedora de todo o respeito e dignidade. É inadmissível que uma pessoa com deficiência seja impedida de ter acesso a bens da vida que em nada dependem de sua limitação natural. Nas palavras de Ricardo Tadeu Marques da Fonseca (2007, p. 249): “...se verifica que a limitação não está nelas e sim na capacidade da humanidade em lhes propiciar oportunidades.” Todos os homens devem receber tratamento igualitário, sem distinção em razão de qualquer característica física ou psíquica, pela simples condição de “pessoa”, de ser humano.

6 IMPORTÂNCIA DA INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO MERCADO DE TRABALHO A noção básica de cidadania está ligada à ideia de acesso, por qualquer pessoa, a uma ordem de valores e direitos fundamentais, que possibilitem a sua existência digna e a sua participação efetiva na vida social e política de sua comunidade. A pessoa com deficiência, como qualquer indivíduo, tem direito ao trabalho. E nesse direito estão compreendidos vários outros direitos fundamentais, dentre eles o da dignidade da pessoa humana. 58

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Isso porque é através do trabalho que o indivíduo pode ter garantida a sua subsistência e a da sua família, oportunizando condições dignas de vida. Além disso, o trabalho é o principal meio de inclusão social, econômica e cultural, pois é por intermédio dele que o ser humano pode relacionar-se com outras pessoas; sentir-se valorizado e útil; além disso, o trabalho oportuniza o reconhecimento do indivíduo perante a sociedade e seu próprio reconhecimento, elevando sua autoestima; favorece um planejamento de vida; possibilita o crescimento dos valores humanos. É incontestável a importância do valor-trabalho na construção da sociedade brasileira, tanto assim que foi elevado à condição de fundamento do Estado Democrático de Direito pelo constituinte originário (art. 1º, IV, CF/88), juntamente com a livre iniciativa. Ainda, a valorização do trabalho humano foi alçada à categoria de elemento fundante da ordem econômica nacional (art. 170, caput, CF/88). A integração da pessoa humana dentro de um contexto social e produtivo e sua valorização enquanto membro ativo e produtor de riquezas na sociedade representa a autoafirmação do indivíduo perante a coletividade. O trabalho proporciona a participação do indivíduo como cidadão, fazendo com que ele reconheça seu indispensável papel para maior engrandecimento de todos e da sociedade. A autonomia da pessoa com deficiência é essencial para a garantia de sua liberdade, igualdade e dignidade. Chama a atenção o desabafo de Hugo Nigro Mazzilli: Grandes empresas alegam que, se tiverem que contratar 5% de trabalhadores deficientes, teriam de demitir igual número de não deficientes… Mas o argumento é irreal, pois que, na rotatividade normal dos empregos, basta ir cumprindo a lei gradualmente, que em pouco o problema resta resolvido, sem que se ponha alguém na rua. Outros alegam que não há condições de transporte ou acesso adaptado para recebêlos… Mas o que está tardando são essas adaptações! De todos, o mais indigno é o argumento de que se deveria criar uma contribuição de cidadania, para as empresas que, não querendo manter o percentual, pagassem um valor a um Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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fundo, o que as dispensaria de contratar pessoas portadoras de deficiência… Ou seja, pagariam uma taxa para poder discriminar! É preciso deixar claro que não se trata de um ato de caridade que o Estado ou as pessoas devem em relação a alguns dos membros da sociedade. Ao contrário. A pessoa portadora de deficiência - qualquer que seja ela, motora, sensorial, intelectual - essa pessoa é inteira, no que diz respeito à dignidade e direitos. (MAZZILLI, <http://saci.org.br/?mo dulo=akemi&parametro=4453>.)

É preciso estabelecer uma sociedade em que o respeito às diferenças entre os indivíduos será resguardado com base na simples concepção de que, apesar das diferenças existentes entre as pessoas, todos são iguais em direitos.

CONCLUSÃO Há no Brasil um arcabouço normativo que dispõe sobre a proteção do direito ao trabalho digno da pessoa com deficiência, o que representa um avanço, mormente diante da herança histórica dessas pessoas, marcada pelo preconceito e pela exclusão. Ocorre que a falta de conscientização do Poder Público e de toda a sociedade para a implementação dessas leis representa um óbice para que as pessoas com deficiência possam se inserir na sociedade e concretizar todos os direitos humanos que lhe são inerentes. Recentemente, a Convenção da ONU sobre as Pessoas com Deficiência trouxe uma mudança do paradigma da visão da deficiência no mundo, reconhecendo que a deficiência é na verdade uma falta de adequação da sociedade para atender todas as necessidades e virtualidades humanas. Sob este enfoque, todas as barreiras existentes na sociedade (físicas, tecnológicas, atitudinais) não permitem que as pessoas com deficiência exerçam plenamente seus direitos, inclusive o direito social ao trabalho. Há necessidade urgente de se cumprir a legislação pátria, bem como os instrumentos internacionais sobre o tema, com o fito de superar quaisquer obstáculos que impeçam o pleno exercício 60

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de direitos humanos. A efetiva inclusão da pessoa com deficiência só se operará com a disponibilização de condições que realmente viabilizem o pleno exercício da cidadania a todas as pessoas.

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DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS: O TRABALHO INFANTIL E A FRONTEIRA1

Cícero Rufino Pereira2 Para qualquer pessoa e em qualquer faixa etária, a primeira manifestação da cidadania se dá quando a pessoa exerce o direito de não ser violada em seus direitos fundamentais.3

1 INTRODUÇÃO Direitos humanos são direitos sem os quais não há que se falar em vida digna, são conjuntos de direitos atrelados à dignidade das pessoas. Os direitos humanos não são direitos naturais, pois são atemporais, fruto de conquistas históricas, não decorrem de algo natural. Na sua origem, os direitos humanos surgiram como direitos naturais, mas em decorrência de um processo histórico foram (e são) debatidos e positivados. Uma das características dos direitos humanos é a universalidade, a qual desloca a proteção da pessoa no plano interno de um país, para o âmbito global, por isso é importante se verificar o efeito da universalidade peculiar de tais direitos na fronteira, de modo 1 Texto originalmente apresentado no Seminário sobre Direitos Humanos em 2010. 2 Procurador do Ministério Público do Trabalho – MPT – em Mato Grosso do Sul. Professor Universitário (de graduação e pós-graduação). Mestre em “Estudos Fronteiriços”, pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campus de Corumbá. Autor do livro “Efetividade dos Direitos Humanos Trabalhistas: O Ministério Público do Trabalho e o Tráfico de Pessoas”, pela Editora Ltr, São Paulo. 3 Edson Sêda, advogado, educador e membro da equipe redatora do Estatuto da Criança e Adolescente, citado por Antônio José Angelo Motti, na obra coletiva “Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes e tráfico para os mesmos fins: contribuições para o enfrentamento a partir de experiências de Corumbá-MS”, organizada por Anamaria Santana da Silva, Esther Senna e Mônica de Carvalho Magalhães Kassar, OIT, 2005, pg 51.

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que se demonstre e se efetive entre os Estados fronteiriços a coesão social entre tais povos, buscando o bem estar das populações nestas zonas mais sensíveis e desprotegidas. Por isso se fala em “direitos internacionais dos direitos humanos”, pois estes pairam em âmbito global, internacional, não se restringem a fronteiras culturais, econômicas ou territoriais. A Declaração Universal dos Direitos da Criança (DUDC), adotada pela Assembleia das Nações Unidas em 20 de novembro de 1959, em seu 9º Princípio prega que a criança deverá estar protegida contra quaisquer formas de crueldade, negligência e exploração. Da mesma forma, a Convenção sobre Direitos da Criança (promulgada, no Brasil, pelo Decreto 99.710/90), em seu art. 34, determina aos Estados-signatários a assunção dos compromissos de proteger a criança contra todas as formas de exploração e abuso sexual e, para tanto, impõe-lhes a tomada, em especial, de todas as medidas de caráter nacional, bilateral e multilateral que sejam necessárias para impedir: a) o incentivo ou a coação para que uma criança se dedique a qualquer atividade sexual ilegal; b) a exploração da criança na prostituição ou outras práticas sexuais ilegais; c) e a exploração da criança em espetáculos ou materiais pornográficos. A prevenção e a sanção ao “tráfico internacional de menores” está revelada pela “Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores”, assinada na Cidade do México, em 18 de março de 1994 (no Brasil foi promulgada pelo Dec. 2.740/98). Com base nestas normas internacionais, dentre outras normas nacionais, toda criança e adolescente tem direito a um saudável desenvolvimento sexual, importando, pois, a exploração sexual comercial infanto-juvenil, grave violação aos direitos humanos e à dignidade da pessoa humana. Aliás, a Convenção nº 182, bem como a correlata Recomendação n. 190, ambas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto 3.597/2000, considera como uma das piores formas de trabalho infantil “a utilização, o recrutamento ou a oferta de crianças para a prostituição, a produção de pornografia ou atuações pornográficas” (art. 3º, “b”, da Conv. 182, da OIT). 66

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Por sua feita, a Constituição Brasileira (art. 227), albergando a doutrina da proteção integral e prioridade absoluta, assegura ser “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Não descura de tratar do tema o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei Federal nº 8.069/1990), ao tipificar como crime a submissão de criança ou adolescente à prostituição ou à exploração sexual, bem como determina, em seu art. 5°, que nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão, punido na forma na lei, qualquer atentado, por ação ou omissão de seus direitos fundamentais. Fruto do processo de democratização no país, a Constituição Federal Brasileira de 1988 (CF/88) trouxe grandes avanços na seara de proteção e efetivação dos direitos humanos, visando, inclusive, compatibilizar a ordem constitucional brasileira com as exigências principiológicas de proteção aos direitos humanos no âmbito internacional (art. 1º, III, art. 4º, II e parágrafo único, dentre outros dispositivos constitucionais da Carta Magna de 1988, principalmente aos parágrafos 1º a 3º, de seu artigo 5º). O Brasil, ao ratificar vários e relevantes tratados internacionais de direitos humanos, permitiu a consolidação de sua democracia, inclusive perante a Comunidade Internacional. Em feliz síntese, José Cláudio Monteiro de Brito Filho afirma: “definimos Direitos Humanos como o conjunto de direitos necessários à preservação da dignidade da pessoa humana”.4 Dignidade da pessoa humana é um conjunto de prerrogativas dessa mesma pessoa, visando garantir-lhe uma existência digna (respeitar-se e sentir-se respeitada por seus semelhantes), a qual deve ser preservada, como condição essencial para a justiça e paz, tanto na seara nacional, quanto internacional. 4 BRITO FILHO, 2004, p. 37.

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Nas relações de trabalho, é exemplo de grave desrespeito à dignidade da pessoa humana a prática do trabalho escravo e do trabalho infantil, inclusive na modalidade de Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes (ESCCA); os quais são, em última análise, espécies do gênero “Tráfico de Pessoas” (ou de seres humanos), o qual comporta outras espécies ou subespécies (como venda e remoção de órgãos humanos e diversas formas de servidão). Trata-se, aqui, na verdade, de Direitos Humanos Fundamentais Trabalhistas. Oscar Ermida Uriarte, citado por Arion Sayão Romita, entende que “os direitos humanos fundamentais do trabalhador integram o patrimônio jurídico da humanidade, expressão que identifica claramente o conjunto de direitos humanos que constituem a ordem pública internacional”.5 Então, pode-se dizer que o grande gênero de crime organizado internacional, que é o Tráfico de Pessoas, é passível de ser dividido, entre outras, em duas espécies umbilicalmente interligadas (senão quase sinônimas): o Trabalho Escravo e a Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes (ESCCA), a qual, por sua vez, é uma subespécie da espécie principal, que é o Trabalho Infantil (este considerado da maneira mais ampla possível). Aliás, esta é a opinião, do ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal e internacionalista respeitável, Francisco Rezek, ao prefaciar a obra “Tráfico de Pessoas”, de coordenação de Laerte I. Marzagão Júnior: Em rigorosa síntese, pode-se dizer que (o tráfico de pessoas) é a vertente da escravidão nos dias atuais. É a humilhação absoluta do ser humano, explorado, física e moralmente, seja pela indústria do sexo, seja por mecanismos ainda mais sórdidos que o sujeitam ao trabalho forçado ou a retirada de órgãos para comércio.6

Refere ainda o Ministro Rezek, no mesmo prefácio, que o tráfico de pessoas é um sacrifício intolerável da vida e da dignidade da pessoa humana, sendo dever da comunidade internacional (atrevo-me a acrescentar: e principalmente toda a sociedade e órgãos e entidades 5 ROMITA, p. 101. 6 MARGAZÃO JÚNIOR, 2010, p.7.

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públicas e privadas brasileiras) garantir que a ordem jurídica priorize o trato dessa patologia.

2 TRABALHO INFANTIL

O princípio vetor de interpretação do Direito do Trabalho está estampado no respeito acentuado ao trabalho, a teor da Constituição Federal/88, no artigo 1º, inciso IV (valor social do trabalho, como fundamento da República), e 170 (a ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano). Donde, bem se vê que a dignidade faz o ser humano, enquanto trabalhador (mas não apenas nesta condição) é princípio basilar de interpretação da CF/88 e da lei infraconstitucional; fazendo-o merecedor de um mínimo de direitos, sendo seu atributo inalienável e irrenunciável, atributo este que, no campo das relações humanas trabalhistas, é o cerne dos Direitos Humanos Trabalhistas. No contexto determinado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem-DUDH, a par de outras legislações nacionais e internacionais anteriores, foi adotada pela ONU, em 20 de novembro de 1989, a Convenção sobre os Direitos da Criança, a qual, por seu turno, visa a dar à criança e ao adolescente o respeito a seus direitos humanos, externando o Princípio da Prioridade Absoluta e da Proteção integral ao ser humano infantojuvenil e, portanto, o respeito absoluto à sua dignidade de ser humano especial, por estar ainda em desenvolvimento físico, mental e social. Da mesma forma, a OIT (Organização Internacional do Trabalho) também, entre diversos documentos internacionais, trouxe para o ordenamento jurídico internacional a Convenção nº 138 (e recomendação 146), a qual regulamenta a idade mínima para o trabalho, bem como a Convenção nº182 (e recomendação 190), a qual regulamenta a “Proibição das Piores Formas do Trabalho Infantil e Ação Imediata para sua Eliminação”. Em decorrência dos Princípios da Prioridade Absoluta e da Proteção Integral, a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana (respeito à sua dignidade, direito à educação, direito à profissionalização e à proteção no trabalho, direito à aprendizagem, bem como às especificidades do trabalho no meio rural e direito à saúde e atendimento prioritário, Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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dentre outros), sem prejuízo da proteção integral que lhe é devida com absoluta prioridade (esta deve ser assegurada pela família, comunidade e entidades públicas e privadas), porque pessoa em desenvolvimento (Constituição Federal, artigo 227, e Estatuto da Criança e do Adolescente, artigos 3°, 4º e 5°). O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n° 8.069/90, em seu artigo 67 dispõe:

Ao adolescente empregado, aprendiz, em regime familiar de trabalho, aluno da escola técnica, assistido em entidade governamental ou não-governamental, é vedado o trabalho: I – noturno, realizado entre as vinte e duas horas de um dia e as cinco horas do dia seguinte; II – perigoso, insalubre e penoso; III – realizado em locais prejudiciais à sua formação e ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social; IV – realizado em horários e locais que não permitam a frequência à escola.

Bem se vê que qualquer descumprimento às normas aqui referidas (além de outras, que, em cada caso concreto), poderá gerar consequências nas órbitas trabalhista, previdenciária, civil, criminal, administrativa etc, será passível de caracterização do trabalho infantil urbano, rural, doméstico e da ESCCA.

A CLT traz, principalmente, em seus artigos 402 a 441, diversas peculiaridades do trabalho do adolescente, inclusive determinando, em muitos casos, a responsabilidade dos pais e patrões pela proteção e atendimento ao trabalhador adolescente, ao qual, repita-se, somente é permitido trabalhar a partir dos 16 anos, a não ser na condição de trabalhador aprendiz, nos exatos termos da lei (principalmente do artigo 7º, XXXIII da CF/88: proibição de trabalho noturno, penoso ou insalubre, para o menor de 18 anos e de trabalho em geral, para o menor de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos; bem como nos termos do artigo 428 e seguintes da CLT: trabalho do aprendiz). O artigo 4º do ECA, ao dar corpo legislativo ao Princípio da Prioridade Absoluta, determina, em seu parágrafo único, alíneas “c” e “d”, a preferência da criança e do adolescente na “formulação e execução de políticas sociais e públicas” e a “destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção da infância e da juventude”. 70

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Andréa Rodrigues Amin, em seu artigo “Princípios Orientadores do Direito da Criança e do Adolescente”, no livro “Curso de Direito da Criança e do Adolescente - Aspectos teóricos e Práticos”, coordenado por Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel”, pag. 26, é contundente: Assim, na elaboração do projeto de lei orçamentária deverá ser destinado, dentro dos recursos disponíveis, prioridade para promoção dos interesses infanto juvenis, cabendo ao Ministério Público e demais agentes responsáveis em assegurar o respeito a doutrina da proteção integral fiscalizar o cumprimento da lei e contribuir na sua elaboração.7

E transcreve a seguinte ementa (parcial): AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ECA. Conselho Tutelar. Órgão criado com base na Constituição Federal para dar a seus destinatários especial atenção, cabendo aos municípios dotá-lo de indispensável estrutura com inclusão de proposta orçamentária, na lei orçamentária municipal para cumprir os seus fins. Legitimidade do Ministério Publico. A legitimidade do ministério público para manejar ação civil é notória e indiscutível, e, sem duvida, cabível o controle do Poder Judiciário (da legalidade e constitucionalidade dos atos do Poder Executivo)... Recurso desprovido. (TJRJ – AI 2004.002.09361 – Rel. Des. Ronaldo Rocha Passos – j. 07/06/05).

Veja-se que a atuação do Conselho Tutelar é imprescindível e inafastável, por força do artigo 136, IX, do ECA, nos planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente; sendo exemplo de atuação preventiva em prol da criança (pessoas até 12 anos de idade incompletos) e do adolescente (entre 12 e 18 anos de idade: art. 2º do ECA). Questão tormentosa é a possibilidade do trabalho infantil excepcionalmente “autorizado” para menores de 14 anos, como, por exemplo, os chamados “atores ou apresentadores mirins” (participantes de novelas ou de programas de televisão, por exemplo). Em casos como este, tanto o artigo 149 do ECA (em seu item II, permite, mediante alvará, fundamentado e específico do juízo da infância e juventude, a participação de crianças e adolescentes em “espetáculos públicos e certames de beleza”, desde que se observem 7 MACIEL, 2008, p. 26.

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instalações adequadas, a natureza do espetáculo e os princípios de proteção à infância), quanto o artigo 406 da CLT (o qual permite, mediante autorização judicial para o caso concreto e com critérios específicos certos tipos de trabalho que, normalmente, não seria permitido à criança e adolescente, desde que deste trabalho não possa advir “nenhum prejuízo à sua formação moral”.

3 O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E A FRONTEIRA A doutrina costuma diferenciar direitos humanos de direitos fundamentais, mas na verdade, ambos se entrelaçam na mesma ideia; o que os diferencia é a órbita em que são reconhecidos: os direitos fundamentais são reconhecidos na ordem interna do Estado (e positivados), já os direitos humanos são reconhecidos internacionalmente, pairando em âmbito global. O direito internacional dos direitos humanos provocou importantes alterações no direito internacional, elevando o ser humano à condição de sujeito de direitos na seara transnacional; passando o ser humano a ter garantido direitos e deveres na esfera internacional. A exploração da mão de obra infantil também perpassa na fronteira do Brasil com outros países, por exemplo, com o Paraguai. Têm-se notícias que crianças e jovens paraguaios são atraídos por brasileiros para virem trabalhar no Brasil, com a promessa de pagamento em dinheiro ou outro tipo de ajuda, como fornecimento de roupas ou comida. O efeito social dessa mobilidade do trabalho infantil pela fronteira entre Brasil e Paraguai é devastador, eis que tais crianças ingressam no Brasil de maneira irregular, clandestina, ficando sujeitas a qualquer tipo de prestação de serviços que seus “patrões” brasileiros as submetem, como, por exemplo, o trabalho doméstico ou a exploração sexual, sendo levadas para outras cidades do Brasil, sem direitos, segurança ou garantia de sobrevivência. Para se observar o efeito fronteiriço no caso em tela, fazse necessária uma definição clara de “Exploração Sexual Comercial 72

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de Crianças e Adolescentes” - ESCCA – a qual é trazida por Mônica Carvalho de Magalhães Kassar et al. exploração sexual comercial de crianças e adolescentes refere-se ao processo de tirar proveito sexual de pessoas com menos de 18 anos. A utilização de crianças ou adolescentes como objeto sexual ocorre como uma relação de exploração de trabalho (formalizado ou não). Este é um aspecto que diferencia a exploração sexual comercial do abuso sexual.8

Bem se vê, pelas palavras da pesquisadora do Centro de Referência de Estudos da Infância e da Adolescência (CREIA/ UFMS), que a grande distinção entre o abuso sexual (e outros crimes sexuais conexos) e a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes está no caráter “mercadológico” do crime. No abuso sexual e congêneres, não há o intuito de “lucro”, “ganho” (quer para a criança ou adolescente, quer para qualquer pessoa); já na ESCCA, a relação de mercado, o sexo como “moeda”, “valor” de troca é característica marcante, condição sine qua non. Tal “venda” pode ser por dinheiro, favores, presentes, serviços, chantagem etc. FALEIROS, E. T.S e Campos (2.000)9 entende que a Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes é um “comércio que tem atividades onde é vendida a própria relação sexual (prostituição), a imagem do corpo e de relações sexuais ao vivo...” Note-se que não é a prostituição, a qual, aliás, não é crime; o que é crime é o “favorecimento à prostituição ou outra forma de exploração sexual”: art. 228 do CP, ou art. 218-B do mesmo código, quando se tratar de menor de 18 anos ou “vulnerável”, como vítima; cometendo este mesmo crime quem “pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso” com adolescentes, nas mesmas condições aqui descritas: art. 218-B, § 2º, I, do CP. Entende-se como exploração sexual o abuso sexual, formas de prostituição, tráfico e venda de pessoas, intermediação e lucro com base na oferta e demanda de serviços sexuais das pessoas, turismo sexual e pornografia infanto-juvenil. O Protocolo Facultativo à Convenção sobre Direitos da Criança relativo à venda de crianças, prostituição e pornografia 8 SILVA, 2005, p.36. 9 FALEIROS, 2000.

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infantis, em seu art. 2º, define que a venda de crianças é qualquer ato que transfira uma criança para outra pessoa ou grupo, “contra remuneração ou qualquer outro tipo de retribuição”; sendo prostituição infantil a utilização de criança em atividades sexuais “contra remuneração ou qualquer outra retribuição”. Então, para fins deste Instrumento Normativo Internacional, o caráter mercadológico estará presente, tanto na “venda de crianças”, quanto na “prostituição infantil” (na verdade, é preferível a expressão “exploração” da prostituição infantil, porque o infante, aqui, é vítima e “prostituição”, em si, não é crime, mas sim a sua “exploração”). Ora, numa análise multidisciplinar e integrada do tema, pode-se entender que toda vez que exista o cunho monetário, de troca, de ganho ou de qualquer forma de vantagem ou “lucro”, estaremos diante da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, quer sob a forma de venda de crianças, de exploração da prostituição infantil, de turismo sexual, ou de pornografia (registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornografia: art. 240 do ECA, com redação da Lei 11 829/08; ou, oferecer, trocar divulgar por qualquer meio, inclusive sistema de informática, fotografia... ou vídeo, cena de sexo explícito ou pornografia envolvendo criança ou adolescente: art. 241-A, com redação da Lei 11 829/08). Em uma palavra: o gênero, que é o abuso sexual de crianças e adolescentes, poderá ter diversas espécies ou formas de exploração, conforme acima tratado; porém se houver o intuito de qualquer forma de vantagem ou lucro, existirá, ainda que não seja para efeitos estritos de tipificação penal, a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes (ESCCA). O art. 231 do CP passou a ter como tipo penal o “Tráfico Internacional de pessoa” “para fim de exploração sexual” (promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro), detalhando-se hipóteses de aumento de pena. Consoante ensina o professor universitário e delegado de polícia civil de São Paulo, Laerte I. Marzagão Júnior, no livro Tráfico de Pessoas, p. 100 (obra citada): 74

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Em se tratando de tráfico internacional, a competência para investigação será da policia federal, o ajuizamento da ação pelo Ministério Publico Federal e, como não poderia deixar de ser, o julgamento pela justiça federal, consoante regra do art. 109, V, da Constituição da República.10

Finalmente, o art. 231-A do CP trata do Tráfico “Interno” de Pessoas “para Fim de Exploração Sexual”, o qual, conforme se pode depreender da leitura do mesmo, tem sua principal diferença, em relação ao crime do art. 231 do mesmo CP, o fato de ocorrer entre pontos do território nacional. Citado por Laerte Marzagão, na obra citada, ensina Luiz Regis Prado11: se o agente leva a vítima de uma região a outra do mesmo país, não se caracteriza o delito em epígrafe [tráfico internacional], que pressupõe tráfico internacional e não interestadual. Nesse caso, configurado estará o crime do art. 231-A (tráfico interno de pessoas).

Este ensinamento faz-nos pensar acerca de como é ainda mais preocupante o Tráfico de Pessoas, tanto na sua modalidade “trabalho escravo”, quanto na subespécie “exploração sexual comercial de crianças e adolescentes” (como no caso do tráfico “internacional” de pessoa para fim de exploração sexual), na região da Fronteira Internacional Brasileira. No caso do tráfico “interno” de pessoa, a atribuição para o inquérito penal é do Ministério Público Estadual, sendo a Justiça Comum Estadual a competente para a ação penal. Releva notar que os crimes aqui referidos estão albergados no Título VI do CP: “Dos Crimes contra a Dignidade Sexual” (alteração também trazida pela lei 12015/2009) e que tanto o artigo 231 (tráfico “internacional” de pessoa “para fim de exploração sexual”), quanto o artigo 231-A (tráfico “interno” de pessoa “para fim de exploração sexual”), têm, em seus respectivos parágrafos 3º, acrescentada a pena de multa, se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica.

10 Art. 109 - Aos juízes federais compete processar e julgar: V - os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente. 11 PRADO, 2008, p. 709.

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Estes atributos e características da responsabilização penal indicam a reflexão, baseada em estudiosos do tema, tornando necessária uma corajosa e sempre polêmica interface e complementaridade entre a referida responsabilização penal (com critérios e institutos próprios) e a responsabilização trabalhista/civil do fenômeno sócio-econômico-jurídico que é a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. O ponto de partida, mas não o único, deve ser a dignidade da pessoa humana, que perpassa os dois tipos de responsabilização do delito em tela. Porém instrumentos jurídicos internacionais, ratificados pelo Brasil, também nos levam a debater o tema. De fato, a começar pelo multicitado “Protocolo de Palermo”, em seu artigo 3º, “a”, define Tráfico de Pessoas, in verbis: A expressão ‘tráfico de pessoas’ significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.12

Diz ainda, o mesmo artigo 3º do citado Tratado Internacional (que é o “Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças”), que o consentimento da vítima de tráfico de pessoas será irrelevante, se se tiver utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea “a”. Que, ainda que tais expedientes não tenham sido utilizados, mas o recrutamento, transferência ou acolhimento seja de uma “criança”, já estará configurado o crime de tráfico de pessoas. E que o termo “criança” significa “qualquer pessoa” com idade inferior a dezoito anos. Bem se vê que a Lei nº 12015/2009 veio trazer para o 12 Art. 3º “a” do Decreto nº 5.017/04.

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direito penal brasileiro adaptações ao que já dizia o Protocolo de Palermo. Por sua feita, a já referida Convenção 182 da OIT (ratificada pelo Brasil, através do Decr. 3597/2000), a qual trata da “Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e a Ação Imediata para a sua Eliminação”, também em seu artigo 3º, é peremptória ao determinar que, “in verbis”: Para efeitos da presente Convenção, a expressão “as piores formas de trabalho infantil” abrange: a) todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, tais como a venda e tráfico de crianças, a servidão por dívidas e a condição de servo, e o trabalho forçado ou obrigatório, inclusive o recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados; b) a utilização, o recrutamento ou a oferta de crianças para a prostituição, a produção de pornografia ou atuações pornográficas; c) a utilização, recrutamento ou a oferta de crianças para a realização de atividades ilícitas, em particular a produção e o tráfico de entorpecentes, tais como definidos nos tratados internacionais pertinentes; e, d) o trabalho que, por sua natureza ou pelas condições em que é realizado, é suscetível de prejudicar a saúde, a segurança ou a moral das crianças.

Ora, comparando-se o conteúdo destacado em negrito, tanto do Protocolo de Palermo (combate ao tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças), com a Convenção 182 da OIT (proibição das piores formas de trabalho infantil e ação imediata para a sua eliminação), bem como o artigo 149 (crime de redução à condição análoga a de escravo), 231 (tráfico internacional de pessoas para fim de exploração sexual) e 231-A (tráfico interno de pessoas para fim de exploração sexual), todos do código penal brasileiro, pode-se chegar à conclusão de que o tráfico de pessoas, na espécie “trabalho escravo” e na espécie “trabalho infantil” (nesta incluindo a subespécie “exploração sexual comercial de crianças e adolescentes”) são ilícitos que também podem/devem exigir uma responsabilização “trabalhista” (se considerar a vítima como empregado) e/ou cível (se considerar a vítima como trabalhador autônomo). Afinal, se entre as piores formas de trabalho infantil, relacionadas no artigo 3º da Convenção 182 da OIT, estão todas Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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as formas de escravidão, a venda e o tráfico de crianças, o trabalho forçado, a utilização e oferta para a prostituição ou para realização de atividades ilícitas e o trabalho suscetível de prejudicar a saúde, a segurança ou a moral das crianças; então, a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes é uma forma de trabalho infantil, assim como o são a venda e o tráfico de crianças e todas as formas de escravidão.

4 CONCLUSÃO De tudo quanto neste estudo referido e analisado, trazemos à baila, para fins de discussão e informação, a preocupação em se estudar, no âmbito da fronteira, as interatividades não só econômicas, mas também as sociais entre os povos envolvidos, bem como a mobilidade de mão de obra infantil existente entre os países (Brasil e Paraguai, por exemplo), o que gera uma aproximação social que não pode passar desapercebida entre as sociedades envolvidas, pois como já mencionado, existem mecanismos de proteção legal que proíbem e orientam as práticas relacionadas às crianças e adolescentes. Com maior força ainda, espera-se ter trazido argumentos ponderáveis, no sentido de que a “exploração sexual comercial de crianças e adolescentes” deve gerar responsabilidade trabalhista, na qualidade de trabalho infantil, atraindo, assim, a atuação do Ministério do Trabalho e Emprego, a atribuição do Ministério Público do Trabalho e a competência da Justiça do Trabalho, entidades que são o último bastião da defesa da dignidade humana do trabalhador brasileiro (e até estrangeiros, no caso do trabalho nas Fronteiras) e da efetividade dos Direitos Humanos Trabalhistas. Chama-se especial atenção para o tráfico de pessoas nas regiões de fronteira e para luta para implantação do “trabalho decente”, tal qual preconizado pela OIT. De fato, autores como Rodrigo Garcia Schwarz13 e Luiz Guilherme Belisário14, dentre outros já citados, debruçaram-se sobre o tema trabalho escravo no Brasil (uma das espécies do tráfico de pessoas ou tráfico de seres humanos, a par, por exemplo, da 13 SCHWARZ, 2008. 14 BELISARIO, 2005.

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exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, a qual, como dito, é considerada uma das “piores formas de trabalho infantil”, pela Convenção 182 da OIT). Porém, fica a discussão sobre que providências devem ser tomadas, quando o tráfico de pessoas, na modalidade trabalho escravo e trabalho infantil (inclusive na modalidade “exploração sexual comercial de crianças e adolescentes), envolve fronteiriços (nas zonas de fronteira), ou mesmo trabalhadores ditos estrangeiros (ou i/emigrantes) “ilegais” (ultrapassando as zonas fronteiriças e adentrando em áreas de outros países). A fronteira, neste caso, não deve ser entendida como limite humano, ou seja, como se as pessoas que habitassem o outro lado fossem menos humanas, portanto, sujeitas às práticas abomináveis, mas como uma descontinuidade geopolítica, com funções de demarcação real (fronteiras geográficas), que também se dá entre soberanias, histórias, sociedades, economias, Estados e entre línguas e nações distintas (Foucher, M. Fronts et Frontiéres, Paris: Fayard, 1991)15. Além das dificuldades normais para enfrentar o trabalho infantil, deve-se levar em conta e respeitar-se as especificidades e características próprias da região fronteiriça. A solução para estas e outras questões de direitos humanos trabalhistas deve passar, necessariamente, pela busca do trabalho decente para todos; qual seja, pela “ocupação produtiva, adequadamente remunerada, exercida em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna”, conforme definição da OIT. Deve-se enfrentar a inação social, visto que temos o dever de colaborar, solidariamente, para se evitar (ou ao menos amenizar) injustiças ou atitudes que degradem o mínimo necessário existencial, para que qualquer ser humano tenha condições de viver (ou pelo menos sobreviver) em sociedade e em paz social.

15 ALBAGLI, 2009, p. 32.

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TRABALHE TRABALHE TRABALHE MAS NÃO ESQUEÇA: VÍRGULAS REPRESENTAM PAUSAS

Heiler Ivens de Souza Natali1 Sandro Eduardo Sardá

INTRODUÇÃO O título do presente artigo foi extraído de uma campanha publicitária do Citibank, veiculada em outdoors espalhados pela cidade de São Paulo no ano de 20062. A frase acima não continha qualquer erro de pontuação em sua escrita original. Entretanto, como versa este artigo sobre condições de trabalho em frigoríficos, o título, da forma como ora redigido, retrata, com mais propriedade, a realidade vivenciada pelos empregados deste setor. Foi com o objetivo de melhorar as condições ambientais de trabalho e assegurar saúde e dignidade aos empregados que se ativam em frigoríficos deste país que foi instituído, no âmbito do Ministério Público do Trabalho, em maio de 2011, o Projeto Nacional de Adequação das Condições de Trabalho em Frigoríficos. Para atingir os fins a que foi proposto, o Projeto encontra-se assentado em bases de atuação prioritária. Essas bases dizem respeito à redução do ritmo, ao estabelecimento de pausas de recuperação durante a jornada, a melhorias no mobiliário, a redução do tempo de exposição aos agentes nocivos à saúde e a análise e adequação das condutas médicas. 1 Os autores são, respectivamente, Coordenador e Gerente do Projeto Nacional de Adequação das Condições de Trabalho em Frigoríficos do Ministério Público do Trabalho. 2 Nesta época ainda não vigia a proibição municipal de publicidade por meio de outdoors.

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O presente artigo não tem a pretensão de retratar a realidade do trabalho no interior dos frigoríficos. Essa realidade pode ser melhor apreendida por meio de documentários independentes, disponíveis na rede mundial de computadores e outros produzidos por instituições sérias como é o caso do premiado documentário Carne&Osso, da ONG Repórter Brasil, realizado com o apoio institucional da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho e da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho. A pretensão deste artigo se limita, portanto, a apresentar uma sombra da realidade - lembrando que “sombra” vem do latim umbra o mesmo radical de “sombrio” - e das ações até aqui realizadas no âmbito do Projeto, para alterar esse quadro.

O MEIO AMBIENTE DE TRABALHO O interior de um frigorífico de aves difere em muito do interior de um frigorífico de bovinos ou de suínos. Não há no primeiro nenhum impacto visual capaz de incutir qualquer pensamento repulsivo quanto ao ambiente onde os empregados exercem suas funções. É possível dizer, sem receio, que um frigorífico de aves em determinados momentos se parece com um grande laboratório, onde os produtos são manipulados por pessoas trajadas de um branco reluzente da cabeça aos pés, e com as mãos devidamente calçadas de luvas. Para os ilustres visitantes que adentram em um frigorífico de aves - e os visitantes são ilustres porque, afora os compradores e inspetores nacionais e internacionais que não dão a mínima para as condições de trabalho das pessoas, em geral só com poder de fiscalização ou ordem judicial se adentra em uma unidade destas - a impressão geralmente não é das piores. E há uma boa razão para que assim seja. Até bem pouco tempo atrás, tanto no âmbito do Ministério Público, quanto do Poder Judiciário, a cultura predominante era a de valorar apenas os indicadores de acidente de trabalho como referências para formação de um juízo em torno de ser ou não determinada empresa cumpridora das normas de saúde e segurança do trabalho. 84

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Em que pese o fato de os indicadores de afastamentos por acidente de trabalho não serem, de modo algum, desprezíveis, para o segmento de abate e processamento de aves são os indicadores de afastamentos por adoecimentos que evidenciam a nocividade do modelo de trabalho implementado. Ao proceder a análise dos dados de afastamentos do trabalho em todos os frigoríficos inspecionados nas forças-tarefas realizadas no âmbito deste Projeto, independentemente de fruição ou não de auxílio-doença, tem-se verificado, em 100% dos casos, a existência de um contingente enorme de adoecimentos decorrentes de sobrecarga muscular dos membros superiores. Essa sobrecarga muscular, nos frigoríficos de aves, não tem como fator preponderante o emprego da força na realização da tarefa em razão do pequeno peso das peças manuseadas. A sobrecarga muscular reside na imposição de um ritmo de trabalho absolutamente incompatível com a condição humana. Qualquer pessoa desavisada que “passear” pelo interior de sala de cortes de um frigorífico de frangos – e se essa pessoa for alguma autoridade com poder de sanção invariavelmente haverá redução expressiva da velocidade das esteiras durante este passeio – corre o risco de não perceber essa sobrecarga e de acreditar, como até bem pouco tempo atrás se diziam nas peças defensivas de boa parte das empresas do setor, que a síndrome do túnel do carpo acometida ao trabalhador decorria do fato de lavar roupa ou pilotar uma moto. Em um frigorífico de bovinos, o impacto visual do ambiente de trabalho chama tanta atenção que se essa mesma pessoa desavisada “passear” pelo interior das salas de abate, bucharia, triparia e graxaria de uma planta destas, nem vai perceber que lá o ritmo excessivo, porém um pouco mais reduzido, é compensado com o emprego de força que, dependendo da atividade, chega a patamares absolutamente elevados e aviltantes. Entre essas duas realidades fica situado um frigorífico de suínos, pelas características visuais que apresenta, bem mais próximas aquelas existentes em um frigorífico de bovinos e o ritmo mais acelerado, tão característico de um frigorífico de aves. Esses fatores todos reunidos acabam ocultando a Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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situação dramática vivenciada pelos trabalhadores do setor de abate e processamento de carnes. O adoecimento gerado pela sobrecarga muscular estática e dinâmica de membros superiores, independentemente do fato de sua causa raiz ser preponderantemente gerada pelo ritmo ou pela força, é agravado pelas deficiências de mobiliário. A inadequação das bancadas de trabalho, excessivamente altas e/ou largas, por vezes, contribuem para o agravamento dessa sobrecarga. No caso específico da coluna e dos membros inferiores, a ausência de cadeiras para alternância de posições, quando possível a realização de trabalho sentado, é uma realidade comum a todas as plantas, sendo dramática nas plantas de abate e processamento de bovinos e suínos a ponto de, em várias forças-tarefas, se encontrar cadeiras acorrentadas às bancadas de trabalho como forma de impedir que outros empregados desprovidos de cadeiras façam uso delas. Como se não fosse suficiente o labor em condições sobre-humanas de ritmo e/ou força intensos e ao labor, boa parte das vezes exclusivamente em pé e com adoção de posturas inadequadas para separar cada grama de carne dos ossos e das vísceras, muitos empregados ainda tem que conviver com o frio ou o calor excessivos, com ruído intenso e ininterrupto e com fezes, vísceras, sangue ou penas de animais. A sujeição a esse conjunto de fatores de risco, que deveria estimular a restrição voluntária, pelas próprias empresas, do tempo de exposição aos agentes ostensivos de risco, tem, ao contrário, se dado muito além do módulo de 8h diárias e 44h semanais. São corriqueiras as jornadas de 10h diárias, muitas vezes, sem compensação aos sábados, e vez por outra se observam jornadas superiores a 12h diárias, havendo registros de até 16h. As jornadas excessivas, que em alguns casos têm contribuído para a caracterização do trabalho como degradante, nos termos do art. 149 do Código Penal, além de obviamente aumentar o tempo de exposição aos demais fatores de risco, representa em si um fator de risco. Isso porque, após longas horas de trabalho é visível a diminuição da destreza e do estado de alerta do empregado, sendo 86

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imperativo ter em mente que na maioria dos casos esse empregado tem na faca afiadíssima seu instrumento de trabalho. Conscientes de todo esse contexto, o mínimo que se poderia esperar de um médico da empresa que recebesse em sua sala um empregado com queixas de dor em membros superiores é o imediato afastamento do funcionário do trabalho, determinando-se o retorno após a avaliação minudente de seu quadro e do próprio posto de trabalho onde atua. Ao invés disso, mesmo constatando no exame clínico quadro de inflamação, muitos desses profissionais simplesmente prescrevem um anti-inflamatório e determinam o retorno imediato ao trabalho.

O ENFRENTAMENTO DA REALIDADE Todos os fatores de risco que envolvem a prestação de serviços no interior de um frigorífico convergem para a violação de um direito base, de matiz fundamental: o direito à saúde. A proteção jurídica desse bem é assegurada em todos os níveis do ordenamento jurídico. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu art. XXV, reconhece a todos o direito a um padrão de vida saudável. Por sua vez, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do qual o Brasil é signatário, estabelece no art. 12 que “Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa ao desfrute do mais alto nível possível de saúde física e mental”. No plano constitucional, o direito à saúde foi reconhecido como direito fundamental, de feição social (art. 6º). A Constituição estabelece ainda como dever do Estado promover políticas sociais e econômicas que visem a redução dos riscos de doença e outros agravos à saúde (art. 196). Nesse contexto de proteção ampla do direito à saúde, cuja tutela é compartilhada por todos os entes federativos (CRFB, art. 23, inciso II), houve por bem o legislador infraconstitucional explicitar os principais fatores determinantes para a adequada fruição do direito à saúde. Estes fatores encontram-se insculpidos no art. 3º da Lei n. 8.080/90 e têm no trabalho um de seus maiores expoentes, Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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porquanto é ele que provê os meios de acesso a boa parte dos demais elementos destacados nessa norma3. Entretanto, um desses fatores e condicionantes essenciais não pode ser obtido com a simples prestação de trabalho pelo empregado. Trata-se do acesso ao meio ambiente de trabalho4 saudável e equilibrado. Cabe ao empregador o dever de prover os meios necessários para assegurar que a prestação de serviços se dê de modo a não gerar riscos à saúde dos empregados. Estes riscos, na quase totalidade dos casos, são absolutamente negligenciados no interior dos frigoríficos brasileiros. Isso porque, embora muito bem providos de quilos de papel confeccionado para atender às exigências formais da lei, de um modo geral a realidade em nada condiz com a documentação exibida ou, nas vezes em que condiz, não há propostas de medidas de natureza coletiva para sua regularização. O mais representativo instrumento deste descompasso é o LAUDO ERGONÔMICO. Via de regra tem-se observado que este mecanismo, exigido pela Norma Regulamentadora N. 17 do Ministério do Trabalho e Emprego, tem sido utilizado por ignorância do profissional encarregado de sua elaboração acerca do método ergonômico adequado para análise do posto de trabalho, ou máfé, para mascarar a verdadeira condição de trabalho a que estão submetidos os empregados. A estratégia normalmente utilizada pelas empresas se dá com o emprego de métodos de análise ergonômica que se atém a descrição das posturas estáticas assumidas pelos membros e à sua avaliação. Quando isso ocorre, ao se proceder a análise do posto de 3 Lei n. 8.080/90. Art. 3º A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País. 4 A inserção do meio ambiente de trabalho dentro do espectro de abrangência do conceito de meio ambiente é reconhecida não apenas pela doutrina, como a que se extrai do magistério de José Afonso da Silva (in Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 2), mas também e, principalmente, pela própria Constituição, ao incluir expressamente a colaboração com “...a proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho” no rol de competências do Sistema Único de Saúde (CRFB, art. 200, inciso VIII).

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trabalho de um desossador de sobrecoxa de frango, por exemplo, a atividade será descrita como realizada normalmente em pé, com os braços levemente estendidos e com uma das mãos apoiando uma faca utilizando pega do tipo “grip”. Com base nesta descrição, de fato, a conclusão é a de que o posto de trabalho não oferece grandes riscos à saúde. Entretanto, quando se considera que este trabalhador desossa 4 sobrecoxas em um único minuto e em cada uma realiza em torno de 18 ações técnicas, como muito bem retratado no Documentário Carne&Osso, fica fácil concluir que é impossível desconsiderar os fatores de risco provocados pelo ritmo, frequência, força e estereotipia da atividade. Para realizar essa análise global dos fatores de risco que atuam sobre o posto de trabalho afigura-se indispensável a utilização de métodos ergonômicos que levem em consideração a dinâmica da atividade. Desse modo, devem ser analisadas não apenas as posturas estáticas assumidas, mas a mecânica dos movimentos realizados por cada um dos segmentos corporais, a força empregada, a duração do ciclo da atividade, a frequência de realização, o número de movimentos realizados dentro do ciclo, a estereotipia e a presença de fatores complementares de risco, como a exigência de movimentos bruscos, emprego de ferramentas inadequadas, impossibilidade de controle do ritmo de trabalho por ser o mesmo determinado pela máquina etc. Considerada a sobrecarga muscular dos membros superiores, tão ínsita às atividades realizadas no interior dos frigoríficos, é necessário optar por métodos de avaliação ergonômica que privilegiem a análise dos movimentos realizados pelas mãos, punhos, ombros, braços e cotovelos no contexto amplo dos fatores de risco acima identificados. Dentre os métodos recomendados pela normativa internacional ISO 11228-3 (HAL, OCRA e MOORE&GARG), indiscutivelmente, o que melhor se adapta ao exame dos postos de trabalho em frigoríficos é o método OCRA, por ser o único a proceder à análise global dos riscos incidentes sobre a mão, o punho, os ombros e os cotovelos e por ser o único, dentre todos os métodos, que fornece ferramentas para reprojetação dos postos de trabalho deficientes5. 5 O método HAL se dedica ao estudo dos fatores de risco apenas sobre as mãos e o método

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É por essa razão que tanto a Coordenação deste Projeto, quanto os peritos do Ministério Público que acompanham as ForçasTarefas, bem como diversos Procuradores do Trabalho e Auditores Fiscais do Trabalho, tem se capacitado para aplicação do método em questão. Desse modo, o enfrentamento do gravíssimo quadro de adoecimentos decorrentes do trabalho desenvolvido no interior dos frigoríficos não se dá apenas com suporte no ferramental jurídico, mas também com base em conhecimento técnico fortemente embasado nos laudos periciais produzidos durante as Forças-Tarefas.

ANÁLISE DOS PRINCIPAIS FATORES DE RISCO Esse conhecimento técnico tornou possível a conclusão no sentido de que, muito embora permaneça a inadequação generalizada do mobiliário como um problema importante a ser enfrentado, assim como o emprego exagerado de força física em determinadas atividades, o ruído excessivo, o excesso de umidade, etc., é o ritmo de trabalho a principal causa de adoecimentos no segmento das indústrias de abate e processamento de carnes. A análise das filmagens realizadas sobre os postos de trabalho tem comumente revelado a execução de 50 a 120 ações técnicas por minuto, a depender do tipo de atividade exercida e do tipo de frigorífico (aves, bovinos ou suínos) inspecionado. Apenas para se ter um parâmetro do que significa a execução regular desse quantitativo de ações técnicas por minuto, uma das referências mais importantes utilizadas internacionalmente, Kilbom (1994), estabelece que o número de 25 a 33 movimentos por minuto não deveria ser excedido quando se deseja evitar transtornos para os tendões. Em decorrência deste fato, o que se tem observado invariavelmente em todas as operações realizadas em frigoríficos é a relação direta entre o elevado ritmo de trabalho imposto e o patamar absurdo de afastamentos, superiores e inferiores a 15 dias, vinculados a distúrbios osteomusculares (CID Grupo “M”). MOORE&GARG (ou Strain Index) se concentra mais no estudo da incidência desses fatores sobre as mãos e o punho.

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Em relação aos afastamentos inferiores a 15 dias, não tem sido raro encontrar casos em que, em apenas um ano, o equivalente a totalidade dos empregados que trabalham no frigorífico tenha se afastado do trabalho por causa relacionada a distúrbios osteomusculares dos membros superiores. Embora não seja verdadeira a afirmação que todo e qualquer afastamento nas circunstâncias acima esteja relacionado com o trabalho, o fato é que esta circunstância há de ser presumida não apenas em função do ritmo absurdo, do mobiliário inadequado, do frio, do emprego de força, da escassez de pausas e da exigência regular de horas extras, mas também porque assim estabelece a lei. Neste sentido o art. 21-A da Lei n. 8213/91 estabelece a obrigação legal de se adotar o nexo técnico epidemiológico quando da avaliação dos afastamentos incapacitantes do trabalho. O art. 337, caput e § 3o, do Decreto n. 3.048/99, também se reporta ao nexo técnico epidemiológico como o ferramental apropriado para o estabelecimento da presunção entre o agravo à saúde e sua vinculação com a atividade desenvolvida. Em ambos os casos, a intenção primitiva da norma é promover ou não o enquadramento como acidente de trabalho para fins de pagamento de benefício acidentário. Isso, todavia, não elide o estabelecimento dessa mesma presunção para afastamentos inferiores a 15 dias, porquanto o médico da empresa está obrigado a emitir CAT em caso de suspeita de nexo entre a doença e o trabalho, nos termos do art. 3º, da Resolução CFM n. 1488/98. Em se tratando de suspeita de LER/DORT, esse dever é reforçado pela Instrução Normativa n. 98/2003 do INSS, ao estabelecer que “Havendo suspeita de diagnóstico de LER/DORT, deve ser emitida a Comunicação de Acidente do Trabalho – CAT. A CAT deve ser emitida mesmo nos casos em que não acarrete incapacidade laborativa para fins de registro e não necessariamente para o afastamento do trabalho”. Além da referida instrução normativa contendo esta determinação específica, há ainda a Portaria GM/MS nº 104/2011, do Ministério da Saúde, que determina a notificação compulsória do Sistema de Saúde nos casos de LER/DORT. Para tanto, é utilizado o Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN). Em recente publicação, o Ministério da Saúde (Dor relaRevista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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cionada ao trabalho: lesões por esforços repetitivos (LER): distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho (Dort) / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador. – Brasília : Editora do Ministério da Saúde, 2012) traz como orientação técnica que, caso o paciente apresentar quadro clínico característico, a anamnese ocupacional não permitir identificar fatores de risco para a ocorrência de LER/Dort, mas se o ramo de atividade ou a função forem conhecidos pela existência de fatores de risco para a ocorrência de LER/Dort (pois há evidência epidemiológica), “o caso deve ser notificado ao Sistema de Informações de Agravos de Notificação (Sinan) e à Previdência Social como LER/Dort.” Ao mesmo tempo, os órgãos de vigilân­cia sanitária devem ser notificados, para que haja confir­mação diagnóstica de LER/Dort. Havendo, portanto, determinação de emissão de CAT em caso de suspeita de nexo, deve o médico da empresa se valer do quadro constante da lista “C” do Anexo II do Decreto n. 3.048/99 a fim de presumir ou não a vinculação entre a patologia em exame e sua vinculação com o trabalho. Essa presunção pode ser afastada e a CAT deixar de ser emitida caso o médico, por meio de exame clínico ou exames laboratoriais, concluir pela ausência de correlação entre o agravo à saúde e o trabalho. Portanto, tudo que o médico da empresa não pode fazer – e infelizmente é exatamente isso que boa parte deles faz – é simplesmente presumir a ausência de nexo do afastamento inferior a 15 dias com o trabalho e deixar de emitir CAT mesmo sabendo que a maior parte dos empregados que apresentam queixas de dor nos membros superiores são justamente aqueles que se ativam nos postos de trabalho mais críticos. Por esse motivo, também integra o núcleo das ações prioritárias do Projeto Nacional de Adequação das Condições de Trabalho em Frigoríficos a análise da conduta médica da empresa. A ausência de uma verdadeira política de vigilância em saúde, consistente em um conjunto integrado de ações que visem a identificação precoce dos riscos de agravo à saúde e a adoção dos mecanismos necessários para adequação do meio ambiente de trabalho de modo a permitir a prestação dos serviços de forma segura e saudável, tem sido apontada pela Coordenação de Projeto 92

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como uma das grandes causas para a pouca efetividade das iniciativas fragmentadas adotadas no interior dos frigoríficos nesse particular. Para a implantação de uma política de vigilância em saúde não basta a identificação formal dos agentes físicos, químicos e biológicos do posto de trabalho, como determina a NR n.9 que trata do Programa de Prevenção dos Riscos Ambientais, nem tampouco a constatação acerca da presença de riscos ergonômicos, nos termos da NR n.17. É indispensável que se estabeleça a correlação entre os agravos à saúde que acometem os empregados e os respectivos postos de trabalho. Essa correlação fundamental entre os principais agravos à saúde e o posto de trabalho não tem sido identificada nos Programas de Controle Médico de Saúde Ocupacional - PCMSO. Embora a NR n.7 determine expressamente que “o PCMSO deverá ter caráter de prevenção, rastreamento e diagnóstico precoce dos agravos à saúde relacionados ao trabalho, inclusive de natureza subclínica, além da constatação da existência de casos de doenças profissionais ou danos irreversíveis à saúde dos trabalhadores” (item 7.2.3), normalmente os agravos decorrentes dos riscos ergonômicos (dentro dos quais se encontram abrangidos o ritmo acelerado, a força empregada, a estereotipia, a ausência de pausas, o uso de ferramentas etc) são absolutamente negligenciados neste instrumento. Quando se tem em mente que em um frigorífico de aves, por exemplo, o risco de acometimento de síndrome do túnel do carpo em razão da exposição do empregado a um ritmo de trabalho incompatível com sua condição humana é 743% (setecentos e quarenta e três) por cento maior do que aquele a que está sujeito o restante da população6 fica fácil concluir que é chegada a hora de encarar esse problema de frente. Torna-se, assim, necessário o mapeamento completo da relação posto de trabalho x agravos à saúde, para que o médico da empresa, com o apoio dos demais integrantes do SESMT e da CIPA, possa estabelecer os parâmetros necessários para adequação dos postos de trabalho de forma a elidir ou minimizar os riscos de 6 OLIVEIRA, Paulo Rogério Albuquerque. Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário NTEP, Fator Acidentário de Prevenção FAP: um novo olhar sobre a saúde do trabalhador. 2. ed. São Paulo: LTR, 2010. p. 133-229.

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novos adoecimentos. Vale ressaltar que, embora existam ferramentas avançadas de ergonomia, como o método OCRA, que permitem a reprojetação dos postos de trabalho a partir da análise detalhada dos principais agentes de risco que incidem sobre o posto em questão, é preciso reconhecer que esta ferramenta, como as demais, tem sua atuação limitada aos fins a que se propõe e não é capaz de identificar uma série de outros agentes ostensivos de risco presentes em boa parte dos frigoríficos, como os riscos de depressão, os decorrentes do trabalho permanentemente em pé, de contato contínuo das mãos diretamente com a água, do transporte de cargas, do contato com agentes biológicos, do labor em ambiente frio etc. Portanto, enquanto esse mapeamento não vem, e até que sejam implementadas as ações necessárias para elidir os riscos de agravos à saúde, medidas de caráter conservativo devem ser empregadas. Tais medidas são mais úteis quando adotadas em conjunto e dizem respeito, principalmente, à redução do tempo de exposição, a introdução de pausas e ao rodízio de funções. A redução do tempo de exposição como medida de caráter conservativo da saúde do empregado não representa nenhuma novidade no meio jurídico. Isso porque são vários os casos em que esse expediente é utilizado. Talvez o exemplo mais conhecido seja o adotado pelos operadores de teleatendimento e telemarketing, cujo tempo de exposição efetivo na atividade encontra-se limitado a 6 horas diárias7. Entretanto, há diversos outros casos de redução do tempo de exposição, como se observa em relação aos agentes ruído8, calor9, frio10, ao trabalho em condições hiperbáricas11 e ao trabalho de processamento eletrônico de dados12. Particularmente em relação ao agente de risco frio (e o frio é expressamente definido como agente de risco para LER/ DORT pela IN n. 98/2003 do INSS), tão presente nos frigoríficos, a NR 29 estabeleceu em 6h40min o tempo máximo de exposição, 7 Item 5.3 do Anexo II, da NR n. 17. 8 Anexo I, da NR n. 15. 9 Anexo III, da NR n. 15. 10 Item 29.3.16.2 da NR 29. 11 Item 13.5 do Anexo VI, da NR n. 15. 12 Item 17.6.4, alínea “c”, da NR n. 17.

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em temperaturas entre +15ºC, +12ºC ou +10ºC (conforme a zona climática estabelecida no mapa oficial do IBGE), e -17,9ºC, mesmo com o uso dos equipamentos de proteção. Os parâmetros de frio adotados nesta norma e aplicáveis aos trabalhadores do segmento portuário que se ativam em ambientes dessa natureza, diga-se de passagem, foram dados pelo parágrafo único do art. 253 da CLT, que determina exatamente essa faixa de temperaturas positivas para estabelecer o conceito de ambientes artificialmente frios e definir a necessidade de pausas de 20min para cada 1h40min trabalhados13. Assim como a redução do tempo de exposição, a introdução de pausas para descanso durante a jornada não se traduz como novidade. O exemplo mais conhecido de pausas de descanso dentro da jornada é o do art. 71 da CLT, que determina a concessão de intervalo mínimo de 1h, para repouso e alimentação para jornadas superiores a 6 horas. Com a finalidade exclusiva de recuperação de fadiga, a previsão mais antiga que se conhece também data da promulgação do Decreto-Lei n. 5.452/43 e está contida no art. 72 da CLT, que estabelece intervalo de 10min para cada 90min trabalhados em atividades hoje extintas, como mecanografia e datilografia. Esse modelo, todavia, encontra-se superado pela NR n. 17, cujo item 17.6.4, alínea “d”, estabelece pausas de 10min para cada 50min trabalhados em atividades de entrada de dados. Registre-se, por oportuno, que para as atividades de processamento de dados, além da adoção das pausas durante a jornada, é limitado em 5 horas o tempo de exposição (item 17.6.4, alínea “c”). Além da redução do tempo de exposição e da introdução das pausas, como dito anteriormente, outra medida conservativa diz respeito à realização de rodízios de tarefas. A eficácia do emprego de rodízio para fins de redução da sobrecarga muscular depende, naturalmente, da alternância dos grupos musculares quando de sua realização. No caso do labor em frigoríficos, considerada a característica da atividade que sobrecarrega quase exclusivamente membros superiores, notadamente braços, 13 A partir da publicação da Portaria SSSTb, n. 21, de 27.12.1994, foi adotado o Mapa Clima do IBGE como referência para as zonas climáticas referenciadas nesta norma.

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mãos, punhos e cotovelos, a realização de rodízios eficientes, com alternância efetiva de grupos musculares, tem representado um grande desafio para o setor, ainda sem perspectiva de superação. Por essa razão, o modelo que melhor se adapta a realidade dos frigoríficos, enquanto, repita-se, estiverem presentes os fatores ostensivos de risco de agravos à saúde, é aquele que, a exemplo dos empregados que exercem atividades de processamento de dados, conjuga a introdução de pausas com a redução do tempo de exposição.

AS DIRETRIZES DO PROJETO NACIONAL DE ADEQUAÇÃO DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO EM FRIGORÍFICOS PARA ATUAÇÃO EM JUÍZO E FORA DELE No plano extrajudicial, em suas atividades de campo, a Coordenação de Projeto realiza a filmagem dos postos de trabalho, valendo-se de metodologia apropriada à captação dos movimentos realizados, a identificação das ações técnicas operadas dentro do ciclo, a determinação da frequência, a presença de eventuais pausas de recuperação dentro do ciclo, a análise das posturas assumidas de mão, braços, punhos e cotovelos, a determinação dos fatores de risco complementares presentes na atividade e a avaliação da presença de estereotipia. Dados adicionais como presença de eventuais pausas, duração da jornada, realização de horas extras habituais e números de produção também são levantados. Com base nesses elementos é possível determinar o risco da atividade exercida pelo operador no seu posto de trabalho. Também é possível determinar o nível de redução de velocidade das nórias no momento da realização das filmagens – prática fraudulenta extremamente comum adotada pelos frigoríficos para mascarar o risco dos postos de trabalho – através dos dados de abate do SIF, dos dados históricos de abate por hora, antes e durante a inspeção e ainda a estimativa do número de abates a partir da contagem da passagem das carcaças por pontos fixos seguida de 96

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confrontação com as planilhas de previsão de abate do dia. Esses dados, além de corroborar eventual demanda de reparação por danos morais coletivos fundada em fraude na coleta de provas técnicas para embasamento de ação civil pública e repercutir penalmente, nos termos do art. 10 da Lei n. 7.347/85, permitem, quando necessário14, a correção dos índices de risco do posto. Juntamente com a documentação audiovisual dos postos de trabalho para fins de avaliação de risco de sobrecarga dos membros superiores, também são realizadas filmagens e registros fotográficos das bancadas de trabalho a fim de confrontá-las com as especificações contidas na NR n. 12 (que trata da segurança de máquinas e equipamentos) e da própria NR n. 17 (que trata de ergonomia). Também são inspecionados os sistemas de refrigeração por amônia, adotando-se como parâmetros de referência as informações constantes da Nota Técnica n. 3/2004 do MTE. Paralelamente a esses levantamentos, que, a depender do tamanho da unidade inspecionada, podem levar mais de uma semana, são analisados inúmeros documentos requisitados pela Força-Tarefa, dentre os quais o PPRA, o PCMSO, o LAUDO ERGONÔMICO, CATs emitidas, atestados médicos, ACTs/CCTs, registros de temperatura e controles de jornada. Ao final, a Coordenação de Projeto tem por metodologia preestabelecida proceder reunião de encerramento da operação, juntamente com os representantes da unidade, apontando todas as irregularidades encontradas. Nessa ocasião, normalmente as partes entram em consenso quanto aos prazos e formas de adequação das questões envolvendo mobiliário de modo a evitar a judicialização de demanda nesse particular. Questões envolvendo introdução de pausas também tem sido objeto de entendimento na esfera extrajudicial. Embora o melhor antídoto para os agravos à saúde que 14 Diz-se, quando necessário, porque, mesmo manipulando, por vezes, descaradamente, a velocidade das nórias e esteiras, a aferição de risco dos postos de trabalho atinge seu patamar máximo mesmo com a fraude, tamanho o ritmo de trabalho imposto.

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decorrem da sujeição ao labor em ritmo acelerado seja justamente a redução desse ritmo a níveis compatíveis com a dignidade humana, a introdução de pausas para recuperação de fadiga, como visto, é fundamental para evitar a piora dos níveis de adoecimento do setor. Por esse motivo, dentre as iniciativas extrajudiciais que podem ser citadas no âmbito do Projeto15, aquela que merece maior destaque diz respeito ao Acordo Nacional de Pausas firmado entre esta Coordenação e o Grupo Seara Marfrig, firmado em 13.02.2012. Neste acordo, que abrange todos os setores de 13 plantas industriais de aves, o modelo de pausas estabelecido é o de 50min para jornadas de até 7h20min e de 60min para jornadas superiores a esse patamar, com acréscimo de 10min de pausa a cada 50min trabalhadas em caso de prorrogação do trabalho16. Consta deste acordo que a distribuição das pausas se dará por meio do método OCRA; os prazos de implantação gradual das pausas variam de julho de 2012 a janeiro de 2014 e a partir de julho deste ano iniciam-se as tratativas de ampliação deste acordo para as plantas de suínos e bovinos. Nos casos de limitação dos acordos a questões envolvendo mobiliário, a ausência de ajuste em relação as pausas torna necessário o ajuizamento de demandas. Nesses casos, a estratégia da Coordenação de Projeto amplia-se para abarcar, quando cabível em razão da localização geográfica, outro agente de risco além do ritmo, qual seja, o frio. Consoante já explicitado neste artigo, o frio é classificado como agente de risco para a ocorrência de LER/DORT. Essa classificação é dada por meio da Instrução Normativa n. 98/2003 do INSS e o parâmetro de enquadramento de ambiente como sendo artificialmente do frio é fornecido pelo parágrafo único do art. 253 CLT. Desse modo, ao incorporar o agente de risco frio como 15 Mesmo fora do âmbito do Projeto Nacional de Adequação das Condições de Trabalho em Frigoríficos, diversos colegas têm firmado Termos de Ajustamento de Conduta com previsão de pausas para recuperação de fadiga, nos patamares defendidos por esta Coordenação. 16 Excluem-se desse acordo as chamadas unidades que operam exclusivamente com Griller, cujas pausas inicialmente estabelecidas são de 40 min, sujeitas a complementação após estudos da atividade pela Coordenação.

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linha de atuação, onde aplicável, no sentido da introdução de pausas de 20min a cada 1h40min trabalhados em ambientes artificialmente frios, como determina o art. 253 caput e parágrafo único da CLT, a Coordenação do Projeto também acaba, por esta via, perseguindo a antídoto das pausas para recuperação de fadiga nesses locais. Essa atuação, tecnicamente, é bastante simples porque independe de qualquer tipo de perícia, na medida em que a temperatura dos ambientes artificialmente frios é controlada pelo Serviço de Inspeção Federal – SIF, existente em cada frigorífico17, e não pode exceder os limites estabelecidos pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA – fixados em patamares variáveis, porém não superiores a 12ºC. Nos locais onde o art. 253 da CLT é de difícil aplicação, na medida em que a temperatura de referência da zona climática é inferior a 12º C, como ocorre em quase toda a região sul do país, a atuação do Projeto se concentra na introdução de pausas de recuperação de fadiga, nos termos do item 17.6.3 da NR 17. O parâmetro aplicável para as pausas em frigoríficos defendido pela Coordenação de Projeto é o mesmo aplicável para as atividades de entrada de dados, ou seja, de 10min para cada 50min trabalhados. Isso porque a sobrecarga osteomuscular dos membros superiores é muito maior nas atividades realizadas no interior de frigoríficos, ante a conjugação do ritmo absurdo (presente em ambas as atividades), com a força (praticamente inexistente na digitação), o frio (reconhecido como agente de risco para LER/DORT e inexistente na digitação), a adoção de posturas inadequadas dos braços (apoiados na digitação e sustentados estaticamente nos postos de trabalho dos frigoríficos), a impossibilidade de controle do ritmo de trabalho (possível na atividade de entrada de dados, mas não nos postos de trabalho em geral dos frigoríficos, cujo ritmo é ditado pela esteira ou pela nória) e a utilização de ferramentas que obrigam uma ou ambas as mãos a permanecer em regime de preensão (cuja pega é inexistente na digitação e presente o tempo todo nas atividades em geral dentro de frigoríficos). 17 Quando não há Serviço de Inspeção Federal no Frigorífico, por não exportar produtos para outros estados ou países, haverá Serviço de Inspeção Estadual, para o caso de se exportar produtos apenas para outros estados ou Serviço de Inspeção Municipal, quando limitado a comércio entre municípios.

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O parâmetro legal de referência acima não destoa do modelo europeu. A normativa europeia EN 1005-5:2007, ao avaliar o risco por manipulação repetitiva de alta frequência dispõe, no tópico que trata de pausas e períodos de recuperação, que “Para tareas repetitivas, la condicion de referencia está representada por la existencia, para cada hora de tarea repetitiva, de pausas de trabajo (durante las quales uno o varios de los grupos de músculos, generalmente implicados en la tarea de trabajo, están basicamente inactivos) de, al menos, 10 minutos consecutivos o en una proporción de 5:1 entre el tiempo de trabajo y los períodos de recuperación”. No campo doutrinário, Daniela Colombini, pesquisadora do Centro de Ergonomia da Postura e Movimento da Universidade de Milão e uma das maiores referências do mundo no campo da ergonomia, observa que “Uma indicação a este respeito vem da experiência australiana para prevenção de doenças osteomusculares relacionadas ao trabalho (DORT). Um documento específico da Heath and Safety Commission Autraliana (Victorian Occ. HSH, 1988) estabelece principalmente que não podem ser considerados aceitáveis períodos de trabalho com movimentos repetitivos que se prolonguem, sem períodos de recuperação, por mais de 60 minutos. Dentro deste contexto é, por outro lado, fornecido um critério geral pela qual a relação entre tempo de trabalho (com movimentos repetitivos) e tempo de recuperação deve ser pelo menos de 5:1. Uma indicação similar é fornecida também em documentos redigidos nos USA pela ACGH (ACGH, 2000) onde são recomendadas interrupções de cerca de 10 minutos por hora para trabalhos manuais repetitivos. [...] No caso de trabalhos repetitivos, as tarefas cujas ações técnicas são prevalentemente constituídas por movimentos (e não por manutenções), são obviamente mais frequentes. Partindo das indicações acima mencionadas, em caso de trabalho repetitivo é aconselhável ter um período de recuperação a cada 60 minutos com uma relação de 5 (trabalho) 1 (recuperação); resulta que a relação ideal de distribuição do trabalho repetitivo e recuperação é de 50 minutos de trabalho repetitivo e de 10 minutos de recuperação”18.

18 Método Ocra Para análise e a Prevenção do Risco por Movimentos Repetitivos, Daniela Colombini, Enrico Occhipinti, Michele Fanti. São Paulo: LTr, 2008, p. 133/134.

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LAUDOS PERICIAIS Em juízo, sobretudo nos locais onde o art. 253 da CLT não se aplica, é recorrente a solicitação de perícias por parte dos frigoríficos, nas demandas movidas pelo Ministério Público com a finalidade de introdução de pausas da NR n. 17 nos patamares acima estabelecidos. Essas perícias judiciais tem reconhecido a presença de riscos nas atividades e a necessidade de adoção de pausas segundo o modelo aqui apresentado em praticamente todos os postos de trabalho. Nesse sentido, considerando que para a determinação dos riscos dos postos de trabalho é necessário avaliar não apenas o ritmo, mas diversos outros fatores como o mobiliário, as ferramentas, a duração normal da jornada etc., a perícia a ser realizada demanda amplo levantamento técnico, traduzindo-se em atividade altamente complexa. Não obstante, os resultados acabam convergindo sempre para os mesmos pontos de constatação, na medida em que são ínsitos ao modelo de processo produtivo atualmente em vigor em todos os frigoríficos. Em duas perícias judiciais realizadas nos autos dos processos n. 00601-2008-015-12-00-1 e n. 00229-2009-015-12-00-2, as constatações em torno dos postos de trabalho analisados foram basicamente as seguintes: • Do ponto de vista das atividades de trabalho: as tarefas são

caracterizadas como sendo monótonas e repetitivas; altas cargas de trabalho determinadas pela cadência elevada da linha de produção; trabalho desprovido de autonomia e pobre em decisão; escassez de pausas de recuperação da fadiga; ciclos de trabalho considerados muito curtos; jornadas de trabalho prolongadas pela prática de horas extras. Do ponto de vista das posturas de trabalho: posturas corporais mantidas rigidamente por períodos prolongados de tempo; execução de movimentos com os membros superiores afastados do tronco e, por vezes, muito elevados; tronco em frequente flexão e torção; cabeça mantida em flexão constante; esforço muscular elevado dos membros superiores; movimentação manual de cargas em situações desfavoráveis. Do ponto de vista do ambiente de trabalho: microclima desfavorável (ruído, frio, calor e umidade); estações de trabalho fixas sem

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possibilidades de ajustes ergonômicos; localização de equipamentos conflitantes com a postura do tronco e do alcance dos membros superiores; espaços de trabalho reduzidos e por vezes impróprios para o trabalho adequado.

No tocante às conclusões, nos autos do Processo n. 00229-2009-015-12-00-2, após fazer a avaliação dos postos de trabalho segundo o método OCRA, o expert recomendou o que segue: • Introdução de pausas de recuperação de fadiga na proporção de 5:1 (a cada 50 minutos trabalhados, 10 minutos de pausa), ou seja, 5 pausas de 10 minutos para a jornada de trabalho adotada pela empresa19; • Limitar a frequência de ações técnicas dos membros superiores em 30 ações técnicas por minuto; • Evitar a realização de picos de força (movimentos bruscos associados ao uso de força) durantes as atividades de trabalho; • Evitar atividades que exijam o uso de força de grau moderado ou superior (acima de 3 pontos segundo a escala de Borg) durante períodos de tempo superiores a 1/3 do ciclo das atividades de trabalho; • Evitar posturas extremas (que se distanciam muito das posições neutras das articulações) durante períodos de tempo superiores a 1/3 do ciclo das atividades de trabalho; • Evitar a presença de estereotipia (gestos de trabalhos idênticos durante quase todo o tempo) nas atividades de trabalho; • Evitar temperaturas extremamente baixas no ambiente de trabalho; • Melhor adequação dos instrumentos de trabalho e equipamentos de proteção dos postos de trabalho, às características biomecânicas dos trabalhadores; • Acompanhamento sistemático da saúde dos trabalhadores, para permitir a identificação precoce de possíveis riscos associados aos postos de trabalho. Essa intervenção de caráter preventivo incluiria não só a identificação e análise dos riscos associados com tarefas individuais, mas a busca de medidas técnicas e organizacionais de mitigar o risco; • Evitar ao máximo a realização de horas extras por partes dos trabalhadores da linha de produção.

Nos autos do Processo n. 00601-2008-015-12-00-1 as conclusões foram praticamente as mesmas do processo acima referido e ambas contém, em razão das entrevistas realizadas com trabalhadores, inúmeros depoimentos alarmantes de queixas de dor. 19 Neste processo a jornada adotada pela empresa era de 7h20min.

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A RESPOSTA DO PODER JUDICIÁRIO A resposta do Poder Judiciário tem se dado normalmente à altura da gravidade das condições de trabalho no interior de frigoríficos. Essa reação diz respeito tanto a tutela jurisdicional de salvaguarda de aplicação do intervalo de 20min para cada 1h40min trabalhados em ambientes artificialmente frios, nos termos do parágrafo único do art. 253 da CLT, quanto de imposição de intervalos de recuperação de fadiga nos termos da NR n. 17. No primeiro caso, o TST tem pacificado em sete de suas oito turmas20 o entendimento da aplicabilidade do intervalo do art. 253 da CLT não apenas em relação a câmaras frigoríficas, mas também nos ambientes artificialmente frios com temperaturas mantidas, conforme a zona climática, abaixo de 15ºC, 12ºC e 10ºC, nos termos do parágrafo único do preceptivo em causa. Com isso, além de conferir sentido ao texto expresso da lei, a decisão que determina a concessão de pausas para recuperação térmica nestes ambientes onde são empregados os maiores contingentes de trabalhadores dentro de frigoríficos, acaba por viabilizar a recuperação de fadiga também. verbis:

Nesse sentido, são os acórdãos abaixo transcritos, in AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. 1. INTERVALO PARA RECUPERAÇÃO TÉRMICA. AMBIENTE ARTIFICIALMENTE FRIO. ART. 253 DA CLT. O art. 253 da CLT, dispositivo que visa proteger a saúde de todos os trabalhadores submetidos habitualmente a baixas temperaturas em seu ambiente de trabalho e, por conseguinte, conferir efetividade à norma inscrita no art. 7º, XXII, da Constituição Federal, garante o direito ao intervalo para recuperação térmica àqueles que exercem suas atividades em ambientes artificialmente frios, ainda que o empregado não labore em câmara frigorífica propriamente dita, nem em trânsito frequente entre o ambiente frio e o ambiente quente ou normal. Precedentes.

20 A exceção da 8ª Turma, que oscila entre acompanhar ou não o pensamento amplamente majoritário na JUSTIÇA DO TRABALHO, todas as demais turmas convergem no sentido da aplicação do art. 253 da CLT tanto para ambientes frios quanto artificialmente refrigerados.

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2. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. Segundo o Regional, a perícia confirmou que o trabalho do reclamante era insalubre. Entendimento contrário ao adotado pela Corte de origem esbarraria no óbice da Súmula nº 126/ TST, que impede, nesta instância extraordinária, o reexame do acervo fático-probatório existente nos autos. Agravo de instrumento conhecido e não provido. Processo: AIRR 68600-07.2009.5.24.0021 Data de Julgamento: 07/12/2010, Relatora Ministra: Dora Maria da Costa, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 10/12/2010. RECURSO DE REVISTA. TRABALHO EM AMBIENTE ARTIFICIALMENTE FRIO. TEMPO DE INTERVALO PARA REPOUSO. RECUPERAÇÃO TÉRMICA. INTELIGÊNCIA DO ART . 253 DA CLT. O trabalho em ambiente considerado frio para a respectiva zona climática autoriza o direito ao intervalo de vinte minutos a cada uma hora e quarenta minutos de trabalho contínuo, na forma prevista no art. 253 da CLT, haja vista a finalidade maior da norma, que é preservar a saúde do trabalhador exposto de forma habitual a baixas temperaturas. O texto do parágrafo único do precitado dispositivo encerra uma cláusula legal de caráter geral e aberta à interpretação, que comporta, nesse exercício de compreensão do direito posto, a consideração de que ela se dirige também à proteção do trabalho realizado em ambiente artificialmente frio para a respectiva zona climática, - no caso dos autos, segundo o quadro fático delineado no acórdão regional, o setor de desossa do frigorífico reclamado, onde trabalhava a autora da reclamação. Precedentes desta Corte nesse sentido, firmados no exame de situações análogas. Recurso de revista conhecido, por divergência jurisprudencial, e não provido. Processo: RR - 207200-82.2008.5.18.0191 Data de Julgamento: 16/06/2010, Relator Juiz Convocado: Flavio Portinho Sirangelo, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 17/12/2010. RECURSO DE REVISTA. JORNADA DE TRABALHO EM AMBIENTE FRIO . APLICAÇÃO DO ART. 253 DA CLT. O trabalho em jornada de oito horas em ambiente com temperatura abaixo de 15°, sem proteção adequada e sem intervalo, assegura o direito de o empregado receber o período, nos termos do artigo 253 da CLT . No caso, a reclamante tem direito de receber como horas extraordinárias o período não usufruído de 20 minutos de intervalo para repouso, porque comprovado que trabalhava em ambiente que variava de 7ºC a 10ºC, considerado artificialmente frio , nos termos da Portaria do Ministério do Trabalho e Emprego. Recurso de revista conhecido e desprovido. Processo: RR 104

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309100-21.2006.5.15.0011 Data de Julgamento: 27/10/2010, Relator Ministro: Aloysio Corrêa da Veiga, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 03/12/2010. AMBIENTE DE TRABALHO ARTIFICIALMENTE FRIO. INTERVALO PARA RECUPERAÇÃO TÉRMICA. ART. 253, PARÁGRAFO ÚNICO, DA CLT. Para os empregados que trabalham no interior das câmaras frigoríficas e para os que movimentam mercadorias do ambiente quente ou normal para o frio e vice-versa, depois de uma hora e quarenta minutos de trabalho contínuo, será assegurado um período de vinte minutos de repouso, computado esse intervalo como de trabalho efetivo (inteligência do art. 253, caput, da CLT). O art. 253 da CLT trata de situações não cumulativas, sendo o intervalo nele previsto devido àqueles que trabalham em câmaras frigoríficas propriamente ditas, ambientes artificialmente frios, e àqueles que movimentam mercadorias do ambiente quente ou normal para o frio e vice-versa. Recurso de Revista que se conhece e a que se dá provimento. (RR - 10340092.2008.5.24.0022, Relator Ministro: João Batista Brito Pereira, Data de Julgamento: 14/04/2010, 5ª Turma, Data de Publicação: 23/04/2010). RECURSO DE REVISTA DO RECLAMANTE -INTERVALO PARA RECUPERAÇÃO TÉRMICA - EXTENSÃO DA VANTAGEM PARA ALÉM DAS HIPÓTESES DO CAPUT DO ARTIGO 253 DA CLT - INTELIGÊNCIA DA NORMA DO SEU PARÁGRAFO ÚNICO. I - Da interpretação sistemática do caput e do § único do artigo 253 da CLT sobressai a certeza de o legislador ter pretendido estabelecer clara equivalência entre o trabalho prestado no interior de câmaras frigoríficas e o trabalho prestado em ambiente artificialmente frio, a fim de beneficiar os empregados que laboram num e noutro local com o intervalo de vinte minutos de repouso depois de uma hora e quarenta minutos de trabalho contínuo. II Efetivamente, se não houvesse essa consentida correlação, não haveria razão para que se acrescesse ao artigo 253 da CLT o seu parágrafo único, pois bastava a norma do caput daquele preceito para se concluir que a vantagem ali contemplada o teria sido apenas em benefício dos empregados que trabalhassem no interior de câmaras frigoríficas e daqueles que movimentassem mercadorias do ambiente quente ou normal para o frio e vice-versa. III - Tendo por norte a assertiva do Regional de que o reclamante exercia a função de - auxiliar geral- no setor de limpeza industrial, laborando em ambiente resfriado artificialmente (temperatura inferior a 12ºC), ressai incontrastável o seu direito ao intervalo de 20 Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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minutos de repouso depois de uma hora e quarenta minutos de trabalho contínuo, na confomidade do artigo 253 da CLT e seu parágrafo único. Nesse sentido, precedentes desta Corte. Recurso provido. (RR - 70000-59.2008.5.24.0096 , Relator Ministro: Antônio José de Barros Levenhagen, Data de Julgamento: 10/03/2010, 4ª Turma, Data de Publicação: 19/03/2010). RECURSO DE REVISTA. 2. HORAS EXTRAS. AMBIENTE ARTIFICIALMENTE FRIO. INTERVALOS. ART. 253, -CAPUT- E PARÁGRAFO ÚNICO, DA CLT. 1. Em que pese o fato de o -caput- do art. 253 da CLT assegurar o intervalo de vinte minutos, a cada uma hora e quarenta minutos de trabalho contínuo apenas para os empregados que laboram no interior das câmaras frigoríficas e para os que movimentam mercadorias do ambiente quente ou normal para o frio e vice-versa, o dispositivo autorizará interpretação extensiva, englobando os trabalhadores que, durante toda a jornada de trabalho, submetem-se a ambientes artificialmente frios, tendo em vista os limites de temperatura fixados no parágrafo único do artigo em questão. 2. A estrutura normativa do Direito Individual do Trabalho parte do pressuposto da diferenciação social, econômica e política entre os partícipes da relação de emprego, empregados e empregadores, o que faz emergir direito protetivo, orientado por normas e princípios que trazem o escopo de reequilibrar, juridicamente, a relação desigual verificada no campo fático. Esta constatação medra já nos esboços do que viria a ser o Direito do Trabalho e deu gestação aos princípios que orientam o ramo jurídico. O soerguer de desigualdade favorável ao trabalhador compõe a essência do princípio protetivo, vetor inspirador de todo o seu complexo de regras, princípios e institutos. 3. Além dos princípios específicos de valorização do trabalho (art. 1º, IV, e 170, -caput-, da CF), não se pode olvidar que a Constituição Federal, orientada pela corrente filosófica do pós-positivismo, tem como viga principal o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto, de forma explícita, no art. 1º, III, da Carta Magna. 4. Não se pode perder de vista, ainda, a proteção do meio ambiente do trabalho, assegurada nos arts. 7º, XXII, 200, VIII, e 225 da CF, como objeto de realização do direito à saúde do trabalhador (art. 6º da CF). 5. O Ministério do Trabalho e Emprego, em cumprimento ao art. 200, V, da CLT, editou as Normas Regulamentadoras nº 15 e 29 da Portaria 3.214/78, estatuindo que -as atividades ou operações exercidas no interior de câmaras frigoríficas, ou em locais que apresentem condições similares, que exponham os trabalhadores ao frio, sem proteção adequada, 106

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serão consideradas insalubres em decorrência de laudo de inspeção realizada no local de trabalho- (Anexo 9 da NR 15). 6. Ainda que a Norma Regulamentadora nº 29 do MTb se refira à Segurança e Saúde no Trabalho Portuário, deve-se observar o regime de -tempo total de trabalho no ambiente frio de 6 horas e 40 minutos, sendo quatro períodos de 1 hora e 40 minutos alternados com 20 minutos de repouso e recuperação térmica fora do ambiente de trabalho-, previsto na tabela anexa ao item 29.3.16.2, para a situação em que qualquer trabalhador é submetido a ambiente artificialmente resfriado, com temperatura inferior a 12ºC, pois em consonância com o limite estabelecido pelo parágrafo único do art. 253 da CLT. 7. Precedentes desta Corte. Recurso de revista não conhecido. ( RR - 47200-54.2009.5.03.0074 , Relator Ministro: Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, Data de Julgamento: 25/08/2010, 3ª Turma, Data de Publicação: 03/09/2010). AGRAVO INTERNO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. INTERVALO INTRAJORNADA PARA RECUPERAÇÃO TÉRMICA - CÂMARA FRIGORÍFICA. AMBIENTE ARTIFICIALMENTE FRIO. Esta Corte pacificou seu entendimento no sentido de que os intervalos intrajornada para aquecimento térmico, previstos no art. 253 da CLT aplicam-se aos empregados que laborem em qualquer ambiente artificialmente frio, e não apenas àqueles que trabalhem em câmara frigorífica. Precedentes. Agravo não provido. (A-AIRR - 8694059.2007.5.24.0056 , Relator Juiz Convocado: Flavio Portinho Sirangelo, Data de Julgamento: 15/09/2010, 2ª Turma, Data de Publicação: 24/09/2010) RECURSO DE REVISTA. HORAS EXTRAS. AMBIENTE DE TRABALHO ARTIFICIALMENTE FRIO. INTERVALOS. ART. 253, PARÁGRAFO ÚNICO, DA CLT. O art. 253 da CLT prevê o intervalo de vinte minutos, a cada uma hora e quarenta minutos de labor contínuo, para os empregados que trabalham no interior de câmara frigorífica ou para aqueles que movimentam mercadorias do ambiente quente ou normal para o frio e vice-versa. Por outro lado, o parágrafo único esclarece que o preceito inserto no -caput- dirige-se ao trabalho realizado em ambientes artificialmente frios e que provocam choque térmico. No caso concreto, o Tribunal Regional admite que o reclamante trabalhava em ambiente frio, qual seja o setor de desossa, cuja temperatura era inferior a 12ºC quarta zona, fazendo jus ao intervalo pleiteado. Recurso de revista conhecido e a que se nega provimento. (RR - 119700Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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75.2008.5.18.0191, Relator Ministro: Walmir Oliveira da Costa, Data de Julgamento: 14/10/2009, 1ª Turma).

Ainda no âmbito do TST, a SEÇÃO DE DISSÍDIOS INDIVIDUAIS firmou entendimento na mesma linha de seus órgãos fracionários internos, consoante acórdão que segue: RECURSO DE EMBARGOS. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. LAUDO PERICIAL. DEFERIMENTO DE HORAS EXTRAORDINÁRIAS REFERENTES AOS 20 MINUTOS DE INTERVALO NÃO UTILIZADOS. JORNADA DE TRABALHO EM AMBIENTE FRIO. APLICAÇÃO DO ART. 253 DA CLT. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 896 NÃO RECONHECIDA. A baixa temperatura no local de trabalho da reclamante confirmada por laudo pericial, e as circunstâncias apresentadas, quais sejam, não-utilização de agasalho adequado e permanência no local de trabalho por período superior ao legalmente permitido, caracterizou a insalubridade. Nos termos do artigo 253 da CLT, a reclamante tem direito de usufruir 20 minutos de intervalo para repouso. O trabalho em jornada de oito horas em ambiente com temperatura abaixo de 15°, sem proteção adequada e sem intervalo, assegura o direito de o empregado receber o período como horas extraordinárias. Embargos não conhecidos. (ED-RR - 719679-58.2000.5.03.5555, Relator Ministro: Aloysio Corrêa da Veiga, Data de Julgamento: 02/06/2008, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: 06/06/2008).

Em relação aos intervalos para recuperação de fadiga propriamente ditos, embora, como dito alhures, seja comum as empresas do setor pugnar pela realização de perícia, em decisão antecipatória de tutela, a MM Juíza Lisiane Vieira, da Vara do Trabalho de Joaçaba, determinou, nos autos do Processo n. 13272009-012-12-00-0 a concessão imediata de intervalos de 8min a cada 50 trabalhados, independentemente de perícia. Em sede de Recurso Ordinário em Mandado de Segurança, a SDI do TST reformou a decisão de segundo grau que suspendeu provisoriamente a eficácia da liminar concedida, recobrando seus efeitos, valendo-se, para tanto, dos fundamentos constantes da ementa que se reproduz in verbis: RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DOENÇAS OCUPACIONAIS. 108

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PAUSAS PARA DESCANSO. SEGURANÇA E SAÚDE DOS TRABALHADORES. MEIO AMBIENTE DO TRABALHO. PREVALÊNCIA. PRESENÇA DOS PRESSUPOSTOS QUE AUTORIZAM O DEFERIMENTO DE MEDIDA LIMINAR. 1. O Estado, como produto da razão humana, tem suas origens nas chamadas teorias contratualistas ou pactistas, também conhecidas como teorias racionalistas de justificação do Estado, desenvolvidas a partir do estudo das primitivas comunidades, em estado de natureza. 2. O homem delega ao Estado os direitos necessários à manutenção da paz e da segurança de todos, conservando, por outro lado, o direito à vida, à propriedade e à liberdade (direitos naturais inalienáveis). 3. A busca pela concretização de tais valores fez com que o Estado assumisse o compromisso de elaborar e tornar efetiva a aplicação de normas adstritas ao conceito de sociedade justa e solidária, livre de desigualdades e de preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º da Constituição Federal). 4. No âmbito da proteção jurisdicional, -a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito-(CF, art. 5º, XXXV), sendo certo que a tutela definitiva implica cognição formada com base no contraditório e na ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, da Carta Magna), ao passo que a tutela provisória, como espécie de providência imediata e de urgência, deita suas raízes na efetividade do processo, de modo a assegurar que os envolvidos não venham a sofrer danos em razão da demora na prestação jurisdicional (CF, art. 5º, LXXVIII). 5. Assim é que, ante o possível confronto entre a segurança jurídica e a efetividade (cognição sumária), cabe ao julgador, atento às circunstâncias do caso concreto e com o desígnio de preservar os bens e valores prevalentes à luz do Direito, deferir a medida liminar. 6. A constatação da ausência de precauções para que trabalhadores deixem de sofrer graves e reiteradas lesões sustenta o comando liminar, ao mesmo tempo que degrada o pretenso direito líquido e certo da Impetrante. Recurso ordinário em mandado de segurança conhecido e provido. (SDI-2 TST-RO-62-36.2010.5.12.0000, data de julgamento 24.5.2011, Rel. Min. Alberto Bresciani)

A resposta do Poder Judiciário, importante dizer, não tem se limitado ao reconhecimento do direito às pausas do art. 253 da CLT e da NR 17. A jurisprudência tem caminhado no sentido de condenar as empresas do setor que ao longo de décadas tem negado no interior das fábricas um ambiente de trabalho digno. Os primeiros passos ainda estão sendo dados, mas é certo que a resposta tem sido Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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à altura do sacrifício impingido à saúde dos empregados e do porte econômico do ofensor. Nesse sentido o exemplo mais eloquente foi dado por meio da sentença proferida pela MM Juíza, Zelaide de Souza Philippi, da 4ª Vara do Trabalho de Criciúma/SC, nos autos do Processo n. 01839-2007-055-12-00-2, que não só determinou ao frigorífico demandado a concessão de pausas do art. 253 da CLT e limitou a jornada de trabalho de boa parte dos empregados que se ativam em ambientes frios, como o condenou a pagar indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 14.610.000,00 (quatorze milhões, seiscentos e dez mil reais).

AS EXPECTATIVAS PARA O FUTURO A multiplicidade dos fatores de risco que incidem concomitantemente sobre a maior parte dos postos de trabalho vinculados à produção no segmento de frigoríficos demonstra a necessidade de se persistir na busca por medidas que visem a proteção efetiva daqueles que, em troca dos parcos salários, têm entregue muito mais do que sua força de trabalho. Esteiras e nórias têm carregado país afora a saúde e a integridade física e psíquica de um contingente enorme de empregados. Uma pequena parcela dessa realidade, como ressaltado anteriormente, pode ser assimilada em documentários como o Carne&Osso, da ONG Repórter Brasil, produzida com o apoio da Associação Nacional de Procuradores do Trabalho e da Associação Nacional de Magistrados Trabalhistas. Outra parcela pode ser assimilada a partir da leitura de autos de infração detalhados, lavrados por Auditores Fiscais do Trabalho devidamente capacitados para atuar em frigoríficos. Também uma porção da realidade pode ser extraída com a leitura de perícias judiciais incontestáveis. Nada disso, entretanto, supera o testemunho ocular dos fatos com o olhar capaz de enxergar além da nuvem de assepsia de uma sala de cortes de um frigorífico de frangos e do impacto visual de uma sala de abate de bovinos e suínos. É o olhar sobre o ritmo; o olhar sobre o olhar de cansaço do trabalhador no final de sua jornada exauriente e que ainda será 110

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elastecida; o olhar sobre os quase imperceptíveis movimentos a olho nu realizados durante a jornada e melhor observados através de softwares de exibição de imagens em câmara lenta; o olhar sobre uma fila interminável de pessoas dispostas lado a lado, mas que não se conhecem nem se falam, muitas vezes porque o barulho não permite o diálogo e sempre porque a velocidade das esteiras e nórias impede o desvio do próprio olhar. Esse olhar, que não contém esperança porque sempre foi assim, é o que motiva a Coordenação do Projeto e todos os Colegas Procuradores do Trabalho deste país que prestam seu apoio e participam das operações a mudar essa realidade. Esse trabalho, que também vem contando com o respaldo do Poder Judiciário, o apoio e incentivo de parcela do movimento sindical preocupada com a melhoria das condições de saúde dos empregados de sua categoria e de um grupo ainda seleto de Auditores Fiscais capacitados e compromissados com essas mudanças poderá contar em breve com uma NR específica para o setor, a qual, espera-se, mantenha em seu texto a proposta atual de adoção de sistema adequado de pausas e redução de tempo de exposição como ferramentas-chave para assegurar a higidez física e psíquica dos empregados em frigoríficos. Quem sabe com o prosseguimento do trabalho realizado pelos diferentes órgãos e poderes do Estado encarregados de fiscalização, ação e tutela jurisdicional e o apoio da sociedade civil organizada e, ainda, com a própria mudança gradual de paradigmas das empresas do setor seja possível um dia passear pelas ruas de uma grande cidade e ver estampado em outdoor mensagem publicitária de algum grande frigorífico com os dizeres semelhantes ao do título do presente artigo, com as devidas vírgulas e sem tantas repetições de verbo.

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CARACTERIZAÇÃO JURÍDICA DO TRABALHO ESCRAVO POR EQUIPARAÇÃO: ANÁLISE DO ARTIGO 149, § 1º, DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO

José Claudio Monteiro de Brito Filho

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RESUMO: Texto que, dentro da temática do trabalho escravo, pretende discutir, caracterizando no plano jurídico, os modos de execução do trabalho escravo por equiparação, previstos no artigo 149, § 1º, do Código Penal Brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: Trabalho escravo. Premissas para caracterização. Modos de execução do trabalho por equiparação.

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1 GENERALIDADES É inquestionável que o combate ao trabalho escravo ganhou alento a partir da edição da Lei nº 10.803, de 11 de dezembro de 2003, que alterou profundamente o artigo 149 do Código Penal Brasileiro. Esse artigo dispunha, na redação anterior, o seguinte: “Art. 149. Reduzir alguém à condição análoga à de escravo. Pena reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos”. 1 Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará. Professor Titular da Universidade da Amazônia. Procurador Regional do Trabalho, aposentado, atualmente Diretor de Assuntos Jurídicos da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho. jclaudiobritofilho@gmail.com.

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Alterado, passou a dispor da seguinte forma: Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1° Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2° A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

O que era tipo penal apresentado de forma sintética passou a ser definido analiticamente, mas na forma de um tipo fechado, como defende Neves (2011, p. 37), pelo fato de que as condutas aptas a caracterizar o ilícito penal agora são expressamente definidas. Isso não quer dizer, no entanto, que a aplicação da Lei Penal tornou-se mais simples. Pelo contrário, a riqueza do dispositivo, com sete modos de execução, passou a exigir um esforço do intérprete e da doutrina para a perfeita definição do tipo penal. Foi mantido, dessa feita, o problema que existia antes da alteração legislativa, qual seja, o da caracterização do ilícito. Isso era evidenciado, por exemplo, por Figueira (1999, p.167), que afirmava que, “[j]uízes, promotores, funcionários das delegacias de trabalho, nesses últimos anos, não encontraram indícios de trabalho escravo em situações nas quais, para outros, era evidente sua existência”. Essa dificuldade era real, como relato em texto denominado Escravidão contemporânea: o Ministério Público do Trabalho e o combate à escravidão (2010), tendo causado, por vezes, dificuldade para a atuação. A dificuldade de caracterização, entretanto, que antes decorria do fato de o texto ser lacônico, agora é motivada pela sua 114

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complexidade. É preciso, nos tempos atuais, dar conta de explicar todas as hipóteses em que, expressamente, o artigo 149 indica como tipificando o trabalho escravo, e é o que venho tentando fazer, há algum tempo. Comecei procurando demonstrar que o bem jurídico penal foi alterado, deixando o tipo de proteger, especialmente, a liberdade, para ampliar seu espectro de proteção para a dignidade da pessoa humana. Esse texto, inicialmente publicado em 2004, foi atualizado e ampliado, tendo sido publicado, recentemente, com o título de “Trabalho com redução à condição análoga à de escravo: análise a partir do trabalho decente e de seu fundamento: a dignidade da pessoa humana” (2011). Publiquei, ainda, outros textos, agora mais específicos, com o objetivo de fazer a caracterização jurídica do tipo penal e dos modos de execução. O primeiro, na ordem em que foram produzidos, foi apresentado em 2009, na III Reunião Científica Trabalho Escravo e Questões Correlatas, do GPTEC (NEPP-DH/UFRJ), publicado com o título Trabalho escravo: elementos para a caracterização jurídica (2011), e discute os elementos necessários para a caracterização do tipo penal. Depois, publiquei textos relativos aos modos de execução típicos do trabalho escravo, focando, ainda, em modos específicos. Inicialmente a jornada exaustiva e as condições degradantes de trabalho, e, depois, a restrição de locomoção por dívida contraída. O primeiro foi publicado sob a denominação “Jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho: caracterização” (2010), e, o segundo, com o título “Trabalho escravo – restrição de locomoção por dívida contraída: caracterização jurídica” (2011). Para concluir a discussão a respeito dos modos típicos de execução do trabalho escravo, apresentei, em 2010, na IV Reunião Científica Trabalho Escravo e Questões Correlatas, do GPTEC (NEPP-DH/UFRJ), estudo denominado “Trabalho escravo: caracterização jurídica dos modos típicos de execução”, que ainda não foi publicado. Agora, neste breve texto, pretendo concluir uma etapa da pesquisa que venho realizando, discutindo a caracterização dos modos de execução previstos para o trabalho escravo por equiparação. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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Antes de discutir esses modos, todavia, creio que é conveniente relembrar, no próximo item, as premissas para a caracterização do tipo penal, que é o de reduzir alguém à condição análoga à de escravo.

2 PREMISSAS PARA A CARACTERIZAÇÃO JURÍDICA DO TRABALHO ESCRAVO No plano do Direito, e após a alteração do artigo 149, do Código Penal Brasileiro, como indicado acima, com certeza é a caracterização do tipo que tem trazido as maiores dificuldades para combater essa prática. Como já discuti em textos anteriores, essa dificuldade de caracterização tem conduzido os intépretes, especialmente os membros do Poder Judiciário, tanto na Justiça Federal, como na Justiça do Trabalho, a considerar, ou não, como trabalho escravo, as práticas mais diversas. Isso finda por gerar insegurança e, no caso da não caracterização, às vezes, impunidade. Tenho proposto para, senão eliminar, pelo menos reduzir essas duas possibilidades: insegurança e/ou impunidade, que a caracterização leve em consideração quatro premissas, que devem ser observadas na análise do tipo, qualquer que seja o modo de execução, até os que serão aqui discutidos: as hipóteses de trabalho escravo por equiparação. A primeira premissa diz respeito à necessidade de fixar o correto elemento histórico para comparação. Nesse aspecto, tenho defendido que a opção deve ser pelo plágio romano como, aliás, constou da Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal (6º parágrafo do item 51), assinada em 4 de novembro de 1940, onde constou: No art. 149, é prevista uma entidade ignorada do Código Vigente: o fato de reduzir alguém, por qualquer meio, à condição análoga à de escravo, isto é, suprimir-lhe, de fato, o status libertatis, sujeitando-o o agente ao seu completo e discricionário poder. É o crime que os antigos chamavam 116

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plagium. Não é desconhecida a sua prática entre nós, notadamente em certos pontos remotos de nosso hinterland.

Não é na prática da escravidão legalizada no Brasil, então, que se deve buscar elementos para caracterizar o trabalho escravo atual, mas na antiguidade, quando era crime reduzir um homem livre à condição semelhante à de escravo. Isso porque é preciso de uma vez por todas compreender que, embora ambas as práticas sejam completamente reprováveis, a escravidão legalizada no Brasil, primeiro dos indígenas e dos negros e, depois, somente dos negros, porque consentida pelo Direito, dirigiase a pessoas humanas, mas que não eram livres, sendo consideradas como bens, o que é distinto do momento atual, em que o Direito reprova a conduta, que é projetada, ao arrepio do ordenamento jurídico, contra seres humanos livres, à semelhança do plágio, na Roma Antiga. Manter uma comparação de situações distintas, embora com resultados similares, é fonte de confusão, e pode sugerir a busca de uma tipicidade na conduta que dificilmente será encontrada, como a da “venda” dos trabalhadores ou algo assemelhado. De qualquer sorte, caso pretenda o intérprete buscar um elemento histórico de comparação mais recente, e mais próximo, poderá até fazer a análise a partir de experiências históricas semelhantes à atual, e que ocorreram no Brasil, como a vivenciada nas fazendas do café, em São Paulo, ou nos seringais, na Amazônia, pois nelas é possível, à semelhança do trabalho escravo dos dias atuais, identificar a exploração extrema de seres humanos juridicamente, embora não faticamente, livres. Tenho preferido fazer a comparação, todavia, diretamente com o plágio romano, pela generalidade deste, a qual permite abarcar, por esse motivo, todas as situações que hoje configuram o trabalho escravo, ao contrário das experiências históricas brasileiras retro indicadas, que enquadrariam somente alguns dos modos atuais de execução do tipo penal, especialmente a restrição de locomoção por dívida contraída, embora venha me inclinando a tentar fazer a comparação com a situação dos seringais, em que as práticas exploratórias eram mais amplas2. 2 Para compreender as práticas utilizadas nas fazendas de café e nos seringais pode ser lido

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A segunda premissa tem relação com o(s) bem(ns) jurídico(s) tutelado(s). Embora de forma incorreta, como já podia ser depreendido desde a Exposição de Motivos da Parte especial do Código Penal, acima aludida, até a alteração do artigo 149, pela Lei nº 10.803/2003, havia razoável consenso de que o bem jurídico penal, ou seja, o bem protegido pelo Direito Penal no caso da redução da pessoa à condição análoga à de escravo, era a liberdade. Com a alteração, especialmente pela indicação expressa dos modos de execução, o principal bem jurídico passou da liberdade para a dignidade da pessoa humana, a partir da noção Kantiana, extraída, principalmente, da Fundamentação da metafísica dos costumes (KANT, 2003), pois, é fácil perceber que, com a introdução dos diversos modos de execução para a caracterização do trabalho escravo, o que se principalmente reprime é a tentativa de instrumentalização do trabalhador, a tentativa de sua transformação em algo assemelhado a um bem, com a negação dos direitos básicos que configuram e decorrem de sua dignidade. Isso não quer dizer, de qualquer forma, e nisso tenho insistido, que a liberdade deva ser desconsiderada. Não, apenas deve, em alguns modos de execução, como a jornada exaustiva, ou como as condições degradantes de trabalho, por exemplo, ser vista como configurada a sua violação a partir de um domínio extremado, e não na forma mais tradicional, do indivíduo proibido de deixar o local de trabalho, por qualquer motivo ou ardil. Já a terceira premissa tem relação com o fato, mencionado no tópico anterior, de que o tipo do artigo 149 do Código Penal agora é definido de forma analítica, em que os modos de execução são expressamente indicados, e na forma de um tipo fechado. Por esse motivo, os modos de execução são limitados — o ilícito penal só é praticado se um dos modos pelos quais ele pode ocorrer for caracterizado —, estando divididos em duas espécies. De um lado, os modos que caracterizam o trabalho escravo típico, previstos no artigo 149, caput, do Código Penal Brasileiro, e que são: (1) trabalho forçado ou em (2) jornada exaustiva; texto denominado A dívida que escraviza, de Neide Esterci (1999).

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(3) trabalho em condições degradantes; e (4) trabalho com restrição de locomoção, em razão de dívida contraída. De outro, o que se pode denominar de trabalho escravo por equiparação, com modos previstos no § 2º, do mesmo dispositivo legal: retenção no local de trabalho, (1) por cerceamento do uso de qualquer meio de transporte; (2) por manutenção de vigilância ostensiva; ou, (3) por retenção de documentos ou objetos de uso pessoal do trabalhador. É que, o abandono da descrição sintética contida no artigo 149, que caracterizava a versão anterior à Lei nº 10.803/2003, trouxe consigo, ao lado da possibilidade de uma caracterização mais precisa3, o fato de que os modos são definidos de forma exaustiva, ou seja, o que não puder ser definido dentro dos quatro modos de execução do trabalho escravo típico, ou dos três modos de execução do trabalho escravo por equiparação, não pode ser tipificado como trabalho escravo. A esse respeito, para Bitencourt (2009, p. 406), “agora há limitação estrita aos modos de execução, que estão vinculados”, o que produz “uma abolitio criminis em relação a todo e qualquer outro modo ou forma de conduta que não seja abrangido pela relação numerus clausus da nova definição legal”. Creio que essa limitação, que de fato existe agora, é o preço a pagar por uma inovação, que veio com a lei que alterou o artigo 149, e que foi importante, pois definiu de forma concreta os modos de execução, ou hipóteses em que ocorre o trabalho escravo, permitindo o combate efetivo a uma prática antiga, mas que, por conta da imprecisão do dispositivo na versão anterior, não era convenientemente reprimida. Por derradeiro, a quarta premissa é a agora obrigatória existência de uma relação de trabalho. Tem sido uma unanimidade entre os penalistas, por exemplo, Nucci (2008, p. 690), Bitencourt (2009, p. 400), e Greco (2008, p. 545), que o tipo do artigo 149 do C. Penal só se pode verificar se entre os sujeitos ativo e passivo do 3 Eliminando, em parte, as dúvidas antes existentes, como bem caracterizado por Esterci (1999, p. 119), quando afirmou: “[n]ão existe consenso acerca de que situações, entre as atualmente denunciadas, devem ser pensadas como escravidão”, o que era motivado por um tipo aberto e, por essa razão, transformado em impreciso.

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delito houver uma relação de trabalho, sendo esta a última questão a observar para a tipificação, tanto no plano criminal como trabalhista. Outras hipóteses de exploração extrema do ser humano, então, não obstante sejam reprováveis, não devem ser caracterizadas como ilícito penal a partir do artigo 149, do Código Penal, mas sim a partir dos tipos previstos especificamente para a repressão de tais práticas.

3 TRABALHO ESCRAVO POR EQUIPARAÇÃO: CARACTERIZAÇÃO Surge, todavia, novo problema, após a identificação das premissas necessárias para a caracterização do tipo: o fato de que o artigo 149 do Código Penal indica sete modos de execução: quatro que denomino típicos, e três que podem ser chamados de por equiparação. A tarefa passa então para a identificação dos modos, cabendo lembrar, desde o início, que o tipo do artigo 149 será caracterizado na ocorrência de cada um deles, de forma isolada. Nesse sentido, identificar qualquer dos modos de execução, tanto típicos, quanto por equiparação, leva à tipificação do ilícito penal de reduzir alguem à condição análoga à de escravo, não sendo necessário fazer qualquer combinação entre os modos. Essa caracterização, no entanto, tem sido tão problemática quanto a identificação de premissas básicas para o tipo, tratando mais especificamente da seara judicial, pois, na via administrativa, nas inspeções que são feitas pelos Auditores Fiscais do Trabalho, via de regra com a participação de membros do Ministério Público do Trabalho, há um pouco mais de uniformidade. Tenho buscado também essa caracterização, como visto no início do texto, já tendo apresentado proposta para os modos típicos de execução. Falta agora, o que pretendo realizar neste item, caracterizar os modos de execução do trabalho escravo por equiparação. Para iniciar, conveniente registrar que o trabalho escravo por equiparação não trata de práticas novas. O que é novo é, somente, 120

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o tratamento dado a elas pela lei, ao indicá-las em separado. Comprovando essa assertiva, basta observar narrativas a respeito de trabalho escravo que já identificavam essas práticas desde antes da alteração da redação do artigo 149, do código penal, em 2003. Esterci (1999, p. 113), por exemplo, revela, pela fala de um trabalhador rural, de nome Firmino, uma forma comum de forçar o trabalhador a continuar a prestação dos serviços, que é a de negar o acesso aos meios para o deslocamento para fora do local em que ocorre a atividade, o que, em se tratando da imensidão da Amazônia, torna difícil, quando não impossível, deixar o trabalho. Esse trabalhador, Firmino, registra para a pesquisadora que, para deixar o local de trabalho, teve de andar, “por dentro do mato”, 15 km. A mesma autora (p. 123/124), e em texto que trabalha com um, hoje, modo específico de execução do trabalho escravo, que é a restrição de locomoção por dívida contraída, mais conhecida como “servidão por dívida”, narra diversas formas de reter os trabalhadores, o que fica claro em duas passagens. Primeiro, quando Esterci afirma: “já que havia força armada a serviço da fazenda ou dos recrutadores” e, depois, quando indica o que, atualmente, são dois modos distintos de trabalho escravo por equiparação, da seguinte forma: “[c]om o objetivo de reter os trabalhadores, também se recorria à retenção de documentos pessoais, à negação de acesso a recursos necessários para o deslocamento”. Figueira (1999, p. 197) aponta situação semelhante em fazenda localizada no Pará, com trabalhadores do Município de Conceição do Araguaia, em que “[d]ois pistoleiros armados vigiavam os peões e ameaçavam bater e atirar em quem tentasse fugir sem pagar os ‘débitos”. Essa relação entre servidão por dívida e vigilância ostensiva para impedir as “fugas” dos trabalhadores, aliás, é uma constante nas experiências colhidas nos casos de trabalho escravo, estando presente no relato que fez Xavier Plassat na Oficina “Trabalho escravo: uma chaga aberta”, no Fórum Social Mundial (2003, p. 85), quando fala da agrura do trabalhador que percebe que foi enganado, mas não sabe como sair do local de trabalho, e que é vigiado por arma Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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de fogo, ou na descrição feita por Dom Pedro Casaldáliga, a respeito dos peões, em texto bem conhecido, denominado “Uma igreja na amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social” (1971, p. 17), quando mostra que os trabalhadores, tentando escapar do local em que, quanto mais trabalham, mais se endividam, “são barrados por pistoleiros pagos para tanto”. E essa relação é “natural”, mesmo, pois a forma que têm os tomadores dos serviços de manter os trabalhadores no local de trabalho, quando estes percebem que estão sendo, simplesmente, enganados, é criar embaraços para a saída, colocando homens armados para impedir a saída, ou retendo a documentação e/ou os objetos pessoais dos trabalhadores, ou negando a eles os meios para o deslocamento para fora do local de trabalho. Esses meios, todavia, não se prestam para tornar exitosa apenas a servidão por dívida. Também são usados quando o trabalho é prestado, mesmo não havendo dívidas, sem a concordância do trabalhador, o que configura o trabalho forçado, ou quando as condições são desumanas, o que caracteriza o trabalho em condições degradantes. A verdade é que os modos de execução facilmente estão interligados, um levando ao outro, ou sustentando o outro. Antes de 2003, entretanto, para a caracterização do trabalho escravo o que se observava era o conjunto, pois só ele era capaz de estimular o intérprete a configurar o ilícito penal. Hoje em dia isso não é mais necessário, embora deva e continue a ser feito, pois cada modo configura o trabalho escravo, isoladamente. Assim, por exemplo, identificado que, em determinado local de trabalho, o tomador de serviços, ou seu preposto, manteve vigilância armada com o objetivo de reter os trabalhadores, já está caracterizado o trabalho escravo, não sendo necessário provar, o que nem sempre é, pelos meios de prova, possível, que o trabalhador estava trabalhando contra sua vontade, ou que as condições de trabalho eram degradantes, ou que o objetivo era manter o trabalhador no local até que saldasse sua “dívida”. A alteração, nesse sentido, é mais benéfica para a 122

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sociedade, evitando que, eventual deficiência na prova impeça que aquele que pratica crime grave deixe de receber a reprimenda estatal, pois, não obstante a tarefa da fiscalização e da polícia judiciária continue sendo a de buscar a apuração de todos os fatos, a impossibilidade de comprovar todos não impedirá a propositura das ações penais e trabalhistas cabíveis. Agora, indo ao objeto principal do tema, são três os modos de execução do trabalho escravo por equiparação. O primeiro ocorre quando o tomador dos serviços (ou seu preposto) cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador; o segundo, quando é mantida vigilância ostensiva; e, o terceiro, quando há a retenção de documentos ou de objetos de uso pessoal do trabalhador. O objetivo, nos três modos, é sempre o mesmo: reter o trabalhador no local de trabalho. Observo que, especialmente para fins de aplicação da sanção penal, como o crime é doloso, impondo a existência da intenção, possivelmente a jurisprudência caminhará no sentido de que esse objetivo deverá ser provado, ou seja, atribuindo ao Ministério Público, titular da ação penal respectiva, o ônus de comprovar que uma das três situações fáticas acima ocorreu com o fim de manter o trabalhador no local de trabalho, a não ser que isto esteja já cabalmente demonstrado, no caso de o modo ser um a mais, no conjunto dos fatos. Já as características dos três modos, penso, são sempre, também, três. A primeira confunde-se com o fato que caracteriza cada uma das hipóteses: cerceamento de meios de transporte; ou, vigilância ostensiva; ou, retenção de documentos ou de objetos de uso pessoal. A elas devem ser acrescidas, sempre, mais duas. A existência de uma relação de trabalho, pois o crime do artigo 149, do Código Penal, por qualquer dos modos, só ocorre em uma relação entre um tomador de serviços e um trabalhador; e, por fim, o objetivo do tomador ou do preposto de reter o trabalhador no local de trabalho. Para encerrar este item, pode ser oferecida uma definição genérica para o crime de trabalho escravo, relativamente aos modos de Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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execução por equiparação, da seguinte forma: considera-se trabalho escravo por equiparação reter o trabalhador em seu local de trabalho por meio do cerceamento do uso de qualquer meio de transporte, ou por vigilância ostensiva, ou pela retenção de seus documentos ou objetos de uso pessoal.

4 OBSERVAÇÕES FINAIS Como já não é objeto de discordância, não há espaço no mundo contemporâneo para a sujeição de um ser humano por outro. Se todos os seres humanos são possuidores de dignidade e, consequentemente, de direitos, é preciso repelir, com rigor, qualquer tentativa de sua instrumentalização, qualquer que seja a relação que se estabeleça, qualquer que seja o meio em que a relação se desenvolva. Para que isso ocorra, todavia, quando se trata de trabalho escravo, é preciso, por mais absurdo que pareça, pois a disposição legal parece ser bem clara, fixar contornos definitivos para esse ilícito, penal e trabalhista. Para fixar esses contornos, todavia, e sob pena de não se ter uma repressão adequada, é preciso abandonar definições genéricas para esse crime, e que ainda são encontradas em grande quantidade, mesmo que o legislador de 2003 tenha tido o cuidado de separar as condutas ilícitas em modos específicos de execução. Essa foi a proposta que estabeleci, e que venho buscando cumprir nos últimos dois anos. Acolhidas ou não as propostas que fiz, o que espero de verdade é que, em algum momento, haja consenso em torno do que efetivamente caracteriza, nos planos fático e jurídico, o trabalho escravo. É que, já está na hora de termos contornos definitivos para essa questão, pois ela é só preliminar, uma vez que o que efetivamente importa é garantir aos trabalhadores, em modelo que já não lhes é, nas condições ideais, o mais favorável, o direito de prestar serviços com dignidade, sendo o trabalho somente um dos meios para o cumprimento de seus planos de vida. 124

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A ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO COMO POLÍTICA PÚBLICA DE DIREITOS HUMANOS1

Larissa Serrat de Oliveira Cremonini2 RESUMO Esse artigo aborda a questão da erradicação do trabalho escravo contemporâneo e sua relação com a formulação e implementação de políticas públicas de direitos humanos que visem dar efetividade à dignidade da pessoa humana e ao valor social do trabalho. Para tanto, buscou-se analisar o conceito atual do que vem a ser o trabalho em condições análogas à de escravo, bem como do que se entende por trabalho decente, além de se elencar as ações governamentais existentes no combate e erradicação desse problema jurídico, social e econômico. Palavras-chave: Trabalho em condições análogas à condição de escravo. Dignidade da pessoa humana. Valor social do trabalho. Políticas públicas. Trabalho decente.

INTRODUÇÃO Muito embora o regime de escravidão pareça pertencer a uma realidade distante e ultrapassada, as raízes do escravismo brasileiro ainda subsistem, sendo que na atualidade a super exploração do trabalho humano e as práticas coercitivas de controle da força de 1 Trabalho de Conclusão do IX Curso de Ingresso e Vitaliciamento do Ministério Público do Trabalho, apresentado à Escola Superior do Ministério Público da União – ESMPU em novembro de 2011. 2 Graduada em Direito pela Universidade Estadual Paulista - UNESP. Especialista em Processo Civil pela Universidade Gama Filho. Procuradora do Trabalho e Coordenadora Regional na 24 Região da CONAP - Coordenadoria Nacional de Combate às Irregularidades Trabalhistas na Administração Pública.

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trabalho se dão por meio do chamado “trabalho em condições análogas à condição de escravo”. Isto posto, é certo que tal situação retrata muito mais do que o “mero” descumprimento das leis trabalhistas, uma vez que ao trabalhador — não mais propriedade do seu dono, como à época da escravidão tradicional — não é garantido e nem concedido nenhum direito de cidadania. Aliás, em se realizando um sucinto contraponto histórico, facilmente chega-se à conclusão de que se no Brasil colônia o escravo era tido como uma mercadoria, um produto, e tinha um valor de comércio, hoje o escravo não é comercializado, e como bem lembra Sento-Sé (2001), ele não faz mais parte integrante do patrimônio do patrão. Mas, apesar dessa diferença, a descrição do trabalho escravo contemporâneo se assemelha em muito ao trabalho escravo da época colonial, ao trocar-se a figura do senhor de engenho pela do fazendeiro e do feitor pela do gato ou capataz, as similaridades são gritantes. Desta feita, a natureza econômica da escravidão contemporânea distingue-se da escravidão da antiguidade clássica e da escravidão moderna, porém, o tratamento desumano, a restrição à liberdade e o processo de “coisificação” são similares, constituindose na mais clara antítese ao trabalho decente.

1 CONCEITO CONTEMPORÂNEO A Convenção sobre a Escravatura assinada em Genebra, em 25 de setembro de 1926, e emendada pelo Protocolo Aberto à Assinatura ou Aceitação na sede da Organização das Nações Unidas, Nova York, em 7 de dezembro de 1953, estatui, em seu artigo 1° que “escravidão é o estado e a condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, alguns ou todos os atributos do direito de propriedade”. Além disso, a Convenção nº 105, da Organização Internacional do Trabalho, sobre a Abolição do Trabalho Forçado, adotada em 1957 e ratificada pelo país em 1965, estabelece que: 128

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O trabalho forçado não poderá jamais ser utilizado ou justificado para fins de desenvolvimento econômico ou como instrumento de educação política, discriminação, disciplinamento através do trabalho ou punição por participar de greve.

Hodiernamente, a escravidão contemporânea, por ser caracterizada por uma maior gama de violações aos direitos humanos, é duramente condenada pelo direito internacional em diversos tratados e convenções internacionais. No âmbito da legislação pátria, a Lei n° 10.803, de 11 de dezembro de 2003, ao alterar o artigo 149, do Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940, o Código Penal Brasileiro, dispôs o seguinte: Art. 1°. O art. 149 do Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940, passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1° Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2° A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

Ao se analisar a novel redação do artigo 149, do Código Penal, verifica-se que o trabalho em condições análogas à de escravo deve ser tido como gênero, do qual o trabalho forçado e o trabalho em condições degradantes são espécies. Assim, não é apenas o trabalho forçado, no qual há a ausência da liberdade de ir e vir, que passa a ser considerado trabalho em condições análogas à de escravo, mas também o trabalho que não oferece e nem garante as mínimas condições de dignidade. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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Tal inovação legislativa representou grande avanço, uma vez que a Organização Internacional do Trabalho, na Convenção 29, adotada em 1930, e ratificada pelo Brasil em 1957, em seu artigo 2°, item 1, estabelece que: trabalho forçado ou obrigatório designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade. (grifo nosso)

Percebe-se que a conceituação acima apresenta a conjunção “e” e com isso revela possuir como ponto nodal a ausência de liberdade do trabalhador quando se depara com a decisão de aceitar, ou não, a oferta de trabalho, ou quanto à sua permanência naquela relação de trato continuado. Não obstante, como bem observa e esclarece José Cláudio Monteiro de Brito Filho: Não se deve dar, dessa forma, ao “e” que une as duas hipóteses, a condição de conjunção aditiva. É que o trabalho forçado caracterizar-se-á tanto quando o trabalho é exigido contra vontade do trabalhador, durante sua execução, como quando ele é imposto desde o seu início. O trabalho inicialmente consentido, mas que depois se revela forçado, é comum nessa forma de super exploração do trabalho no Brasil e não pode deixar de ser considerado senão como forçado. (BRITO FILHO, 2004)

Desse modo, cabe a transcrição de duas definições que ilustram com exatidão o que vem a ser o trabalho escravo na atualidade: Podemos definir trabalho em condições análogas à condição de escravo como o exercício do trabalho humano em que há restrição, em qualquer forma, à liberdade do trabalhador, e/ ou quando não são respeitados os direitos mínimos para o resguardo da dignidade do trabalhador. Repetimos, de forma mais clara, ainda: é a dignidade da pessoa humana que é violada, principalmente, quando da redução do trabalhador à condição análoga à de escravo. Tanto no trabalho forçado, como no trabalho em condições degradantes, o que se faz é negar ao homem direitos básicos que o distinguem dos demais seres vivos; o que se faz é coisificá-lo; dar-lhe preço, e o menor possível. (BRITO FILHO, 2004) O estado ou a condição de um indivíduo que é constrangido à prestação de trabalho, em condições destinadas à 130

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frustração de direito assegurado pela legislação do trabalho, permanecendo vinculado, de forma compulsória, ao contrato de trabalho mediante fraude, violência ou grave ameaça, inclusive mediante a retenção de documentos pessoais ou contratuais ou em virtude de dívida contraída junto ao empregador ou pessoa com ele relacionada. (SCHWARZ, 2008, p. 117-118)

Ademais, Ronaldo Lima Santos aponta algumas práticas comuns que configuram o trabalho escravo contemporâneo: a) a constrição da vontade inicial do trabalhador em se oferecer à prestação de serviços, sendo, por isso, constrangido à prestação de trabalhos forçados, sem querer emitir sentimento volitivo neste sentido (geralmente esta situação ocorre com os filhos de trabalhadores sujeitos a trabalho escravo e seus familiares); b) o aliciamento de trabalhadores em uma dada região com promessas de bom trabalho e salário em outras regiões, com a superveniente contração de dívidas de transportes, de equipamentos de trabalho, de moradia e alimentação, cujo pagamento se torna obrigatório e permanente, determinando a chamada escravidão por dívidas; c) o trabalho efetuado sob ameaça de uma penalidade - como ameaças de morte com armas -, geralmente violadora da integridade física ou psicológica do empregador; modalidade que quase sempre segue a escravidão por dívidas; d) a coação, pelos proprietários de oficinas de costuras em grandes centros urbanos - como São Paulo - de trabalhadores latinos pobres e sem perspectivas em seus países de origem - geralmente bolivianos e paraguaios -, que ingressam irregularmente no Brasil. Os empregadores apropriam-se coativamente de sua documentação e os ameaçam de expulsão do País, por meio de denúncias às autoridades competentes. Obstados de locomoverem-se para outras localidades, diante de situação irregular, os trabalhadores submetem-se às mais vis condições de trabalho e moradia (coletiva). (SANTOS, 2003, p. 55)

Nos autos do célebre processo n° 2003.41.00.0033855, Justiça Pública x José Carlos de Souza Barbeiro (fazendeiro) e Lídio dos Santos Braga (agricultor), vislumbram-se quinze elementos característicos da escravidão contemporânea no Brasil: a) falta de pagamento de salários; b) alojamento em condições subumanas (e.g., barracões de lona); Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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c) inexistência de acomodações indevassadas para homens, mulheres e crianças convivência promíscua; d) inexistência de instalações sanitárias adequadas e precárias condições de saúde e higiene (e.g., falta de material de primeiros socorros); e) falta de água potável e alimentação parca; f) aliciamento de uma para outra localidade do território nacional (que configura, por si só, o crime do artigo 207 do CP); g) aliciamento e trabalhadores de fora para dentro ou de dentro para fora do país (caso dos hispano-americanos mantidos em condições análogas à de escravo em fábricas têxteis clandestinas nos grandes centros urbanos); h) truck-system (correspondente, no mais das vezes, ao popular ‘barracão’, no qual o trabalhador se endivida para além dos limites de seus supostos rendimentos); i) inexistência de refeitório adequado para os trabalhadores e de cozinha adequada para o preparo de alimentos; j) ausência de equipamentos de proteção individual (EPI) ou coletiva (EPC); k) meio ambiente de trabalho nocivo ou inóspito (e.g., região de selva, chão batido, exposição a habitat de animais peçonhentos, ambiente excessivamente úmido etc.); l) coação moral; m) cerceamento à liberdade ambulatória (direito de ir e vir limitado pela distância e pela precariedade de acesso); n) falta de assistência médica; o) vigilância armada e/ou presença de armas na fazenda; p) ausência de registro em CTPS.

Em breve síntese, a escravidão contemporânea representa a coisificação do homem, reduzindo o trabalhador a um mero objeto na seara produtiva, afastando a própria condição de ser humano com graves afrontas à sua dignidade, seja com o cerceio da liberdade física, moral ou psicológica, seja em virtude de servidão por dívidas, seja em razão de condições degradantes de trabalho. Nessa seara, a conceituação e definição do que vem a ser o trabalho em condições análogas à condição de escravo possui importância não apenas semântica ou acadêmica, uma vez que este tema lança desafios e preocupações concretas acerca da formulação e execução de políticas públicas para enfrentar o problema da escravidão em nossos dias.

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2 A CONCEPÇÃO ATUAL DE TRABALHO DECENTE Como anteriormente mencionado, o trabalho escravo contemporâneo representa uma das maiores e mais cruéis formas de antítese à realização do trabalho decente. E como é cediço, a promoção do trabalho decente revela-se como uma das prioridades da Organização Internacional do Trabalho e de outros organismos internacionais. Compreende-se por trabalho decente um trabalho adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, o trabalho decente se apoia em quatro pilares estratégicos: a) respeito às normas internacionais do trabalho, em especial aos princípios e direitos fundamentais do trabalho (liberdade sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; eliminação de todas as formas de trabalho forçado; abolição efetiva do trabalho infantil; eliminação de todas as formas de discriminação em matéria de emprego e ocupação); b) promoção do emprego de qualidade; c) extensão da proteção social; d) diálogo social. No país, a promoção do trabalho decente passou a ser um compromisso assumido entre o Governo brasileiro e a Organização Internacional do Trabalho a partir de junho de 2003, com a assinatura do Memorando de Entendimento que previu o estabelecimento de um Programa Especial de Cooperação Técnica para a Promoção de uma Agenda Nacional de Trabalho Decente, em consulta às organizações de empregadores e de trabalhadores. A Agenda Nacional de Trabalho Decente estrutura-se a partir de três prioridades: gerar mais e melhores empregos, com igualdade de oportunidades e de tratamento; erradicar o trabalho escravo e eliminar o trabalho infantil, em especial em suas piores formas; fortalecer os atores tripartites e o diálogo social como instrumento de governabilidade democrática. A partir desta Agenda, foi elaborado o Programa Nacional de Trabalho Decente que estabelece, além das prioridades, os resultados esperados e as estratégias, metas, prazos, produtos Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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e indicadores de avaliação. Esse Programa é incluído no Plano Plurianual, monitorado e periodicamente avaliado, consultando as organizações de empregadores e de trabalhadores. Por oportuno, ao participarem da IV Cúpula das Américas, o Brasil e outros países americanos assinaram a Declaração e o Plano de Ação de Mar del Plata, nos quais afirmaram: [...] nosso compromisso de combater a pobreza, a desigualdade, a fome e a exclusão social para melhorar as condições de vida de nossos povos e fortalecer a governabilidade democrática nas Américas. Conferimos ao direito ao trabalho, tal como está estipulado nos instrumentos de direitos humanos, um lugar central na agenda hemisférica, reconhecendo assim o papel essencial da criação de trabalho decente para a realização desses objetivos.3

A Declaração reconhece ainda: [...] o valor do trabalho como atividade que estrutura e dignifica a vida de nossos povos, como um instrumento eficaz de interação social e um meio para a participação nas realizações da sociedade, objetivo primordial de nossa ação governamental para as Américas.4

3 SETORES ECONÔMICOS QUE MAIS UTILIZAM MÃO DE OBRA ANÁLOGA À ESCRAVA NO PAÍS A utilização da mão de obra análoga à escrava é muito difundida dentre vários setores da economia por se tratar de mão de obra baratíssima e, portanto, muito lucrativa. O Sistema de Acompanhamento e Combate ao Trabalho Escravo, implantado em 2006 por meio de uma parceria entre o Ministério do Trabalho e Emprego e a Organização Internacional do Trabalho, realizou pesquisa5 na qual podem ser observados os setores econômicos que mais se utilizam desta mão de obra, e, consequentemente, os setores em que houve mais resgates de trabalhadores no período de 1995 a maio de 2010. Os números encontrados referem-se à quantidade de 3 Parágrafo 1° da Declaração de Mar del Plata. 4 Parágrafo 76 da Declaração de Mar del Plata. 5 Os dados utilizados nesse Capítulo foram extraídos da pesquisa intitulada “Trabalho Escravo: perguntas e respostas”.

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estabelecimentos onde foram localizados trabalhadores em situação análoga à de escravos. Contudo, faz-se necessário observar que nem sempre essa prática criminosa ocorre nas atividades fins, mas em atividades meio, como, por exemplo, derrubada de mata nativa para abertura de pasto na pecuária. Os dados só dizem respeito aos casos inspecionados nos quais houve resgate de trabalhadores. Desta feita, os setores da economia mais afetados pela adoção de trabalho análogo ao escravo são pecuária, 38,40%; produção de lavouras temporárias, 17%; silvicultura, exploração florestal e serviços relacionados, 10,8%; produção de lavouras permanentes, 3,7%; fabricação de produtos químicos orgânicos, 3,3%; desdobramento de madeira, 3,3%; produção de álcool, 1,83%; fabricação e refino de açúcar, 1,53%; extração de pedra, areia e argila, 1,53%; atividades de serviços relacionados com a agricultura e a pecuária - exceto atividades veterinárias, 1,28%; outros, 16,54%.

4 O PERFIL SOCIOLÓGICO DO TRABALHADOR RESGATADO Com o intuito de aprofundar-se o conhecimento acerca dessa verdadeira chaga social, recentemente foi implementado e publicado um estudo6 pela Organização Internacional do Trabalho, o qual foi realizado no âmbito dos Projetos de Combate ao Trabalho Escravo e Combate ao Tráfico de Pessoas, e que contou com informações de 121 trabalhadores resgatados de situações análogas à escravidão, entrevistados durante pesquisa de campo que acompanhou operações do Grupo Móvel, entre outubro de 2006 e julho de 2007. Esta pesquisa buscou identificar o que esses trabalhadores entendem por trabalho escravo, sendo que as seguintes características foram apontadas em seus discursos: a ausência de remuneração ou pagamento insuficiente (citada em 38,8% dos casos); os maus tratos e a humilhação dos trabalhadores e a jornada exaustiva (citados em 36,3% dos casos); as condições precárias de trabalho (citada em 28,9% dos casos), a privação da liberdade (24,7% dos casos) e a ausência de carteira assinada (4,1% dos casos). 6 Os dados utilizados nesse Capítulo foram extraídos da pesquisa intitulada “Perfil dos principais atores envolvidos no trabalho escravo rural no Brasil”.

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Ademais, o estudo apresenta uma plêiade de informações de suma importância e que podem e devem servir de subsídio para a formulação de políticas públicas de enfrentamento da questão. 4.1 Características socioeconômicas 4.1.1 Idade, cor e raça A pesquisa de campo realizada pela OIT constatou que os trabalhadores escravos resgatados pelas equipes de fiscalização eram predominantemente homens adultos, com idade média de 31,4 anos. A maioria dos trabalhadores entrevistados (81%) era constituída de não brancos, dos quais 18,2% se autodenominaram pretos, 62% pardos e 0,8% indígena. 4.1.2 Renda mensal A renda média declarada pelos trabalhadores foi de 1,3 salários mínimos. 40,5% disseram obter até um salário mínimo e 44,8% entre 1 e 2 salários mínimos. Apenas 6,9% declararam ter renda mensal superior a 3 salários mínimos. 4.1.3 Região de origem A maior parte dos trabalhadores entrevistados nasceu na Região Nordeste (77,6%), sendo que a Região Centro-Oeste apareceu em segundo lugar, com uma proporção bem menor (8,3%). Um contingente menos significativo era natural das Regiões Norte (5,0%), Sul (5,0%) e Sudeste (4,1%). Apesar de serem trabalhadores rurais, grande parte (71,9%) dos entrevistados na pesquisa de campo residia em área urbana. Nesses centros urbanos, os trabalhadores costumavam morar em casas na periferia das cidades (76%). Há, no entanto, um grupo que habitava hotéis/pensões (8%) ou quartos alugados (12%), composto por pessoas que viviam sem a família, a maioria sem residência fixa. 4.1.4 Prole e situação familiar A maioria dos trabalhadores entrevistados na pesquisa de campo (62%) tinha filhos. 136

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A situação conjugal dos trabalhadores da pesquisa de campo forneceu elementos importantes a respeito de seus vínculos familiares e grupos de referência. Pouco mais de um terço (36,4%) dos trabalhadores declararam estar separados. Os demais se dividiam entre os que declararam ter esposa/companheira atualmente (34,7%) e os solteiros que nunca tiveram companheira (28,9%). No que tange à convivência domiciliar, foram identificadas três situações na pesquisa de campo: 88 trabalhadores viviam com familiares antes de serem aliciados (72,7%); 31 viviam sós (25,6%); e 2 moravam com pessoas com as quais não possuíam laços de parentesco (1,7%). Os trabalhadores que moravam sozinhos e não tinham convivência familiar são chamados de peões de trecho. Em regra, não possuem residência fixa e apresentam maior vulnerabilidade em relação ao conjunto dos trabalhadores. 4.1.5 Escolaridade A escolaridade dos trabalhadores entrevistados na pesquisa de campo era extremamente baixa, o que é compatível com atividades que requerem pouca qualificação: 18,3% eram analfabetos, nunca tendo frequentado escola, e 45% eram analfabetos funcionais, ou seja, pessoas que possuíam menos de quatro anos de estudos completos. O tempo médio de estudo desses trabalhadores era de 3,8 anos. 4.1.6 Formação profissional A formação profissional da maioria dos trabalhadores aconteceu na prática: 85% nunca fizeram qualquer tipo de curso profissional. Os 15% que responderam afirmativamente realizaram cursos rápidos de mecânica, operador de motosserra, inseminador, soldador, vigia, construção de cerca etc. Não obstante, 81,2% declararam que gostariam de fazer algum curso. A expectativa era muito grande entre os jovens: 95,2% dos que tem menos de 30 anos demonstraram interesse em cursos profissionais. A preferência recaía nas áreas de mecânica de automóveis, operação de máquinas, construção civil (pedreiro, encanador, pintor) e computação. Apenas 5 se referiram diretamente a atividades rurais (técnico agrícola, construção de cerca, tratorista). Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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4.1.7 Participação social O estudo demonstrou que a participação dos trabalhadores em sindicatos e grupos associativos era bastante restrita, o que dificulta ainda mais a organização de ações coletivas dirigidas à melhoria das condições de trabalho. Apenas 4% declararam participar de sindicatos de trabalhadores e 14% afirmaram fazer parte de alguma associação. 4.1.8 Trabalho infantil O estudo identificou que a escravidão contemporânea no país é precedida pelo trabalho infantil. Praticamente todos os entrevistados na pesquisa de campo (92,6%) iniciaram sua vida profissional antes dos 16 anos. A idade média em que começaram a trabalhar é de 11,4 anos, sendo que aproximadamente 40% iniciaram antes desta idade. Na maioria dos casos (69,4%), tratava-se de trabalho infantil realizado no âmbito familiar. Contudo, os demais já trabalhavam para um empregador, juntamente com a família (10%) ou diretamente para um patrão (20,6%). Entre os que começaram a trabalhar com menos de 11 anos, 83% faziam apenas trabalho familiar. Os demais trabalhavam para fora já nesta idade. As atividades desempenhadas pelas crianças e adolescentes era o de auxiliar nos trabalhos agrícolas: carpir, roçar, plantar e colher, especialmente ajudando o pai. 4.1.9 Trabalho escravo – situações pretéritas A pesquisa procurou verificar a existência de situações anteriores de trabalho em condições análogas à de escravo na história de vida dos trabalhadores entrevistados. Adotou-se como critério para definir essa situação a existência de privação da liberdade por meio dos seguintes meios: presença de guardas armados com comportamentos ameaçadores (presença ostensiva); violência física; dívidas ilegalmente impostas; características geográficas do local que impedem a fuga. Verificou-se que 59,7% dos entrevistados já haviam passado pelo menos por uma destas situações em algum momento de suas vidas. 138

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A pesquisa constatou que as situações mais frequentes de privação de liberdade ocorreram devido à distância geográfica das fazendas e ao difícil acesso ao local de trabalho. Assim, muitos trabalhadores que queriam deixar o serviço foram impedidos porque o “gato” ou gerente da fazenda não fornecia condução (44,5%). O segundo problema se refere à servidão por dívida: a obrigação de continuar no trabalho, mesmo sem querer, por estar devendo na cantina (32,8%). A existência de seguranças armados impedindo a saída foi apontada por 15,1% dos entrevistados e os castigos físicos por 11,8%. As situações analisadas ocorreram em vários estados, sendo os mais frequentes o Pará, a Bahia, o Mato Grosso e Goiás. Dos 71 trabalhadores que passaram por situações anteriores de privação de liberdade, apenas 9 (12,6%) haviam sido resgatados pelo Grupo Móvel (GEFM). Os resgates ocorreram principalmente nos estados do Pará, mas também na Bahia, Mato Grosso, Goiás e Tocantins. A pesquisa sugere, ainda, que caso se faça uma extrapolação dessas informações seria possível concluir-se que, para cada trabalhador que foi resgatado, 7 a 8 trabalhadores não foram alcançados pela fiscalização.

5 AS AÇÕES GOVERNAMENTAIS 5.1 O reconhecimento da existência de trabalho em condições análogas à de escravo pelo Brasil O Governo brasileiro, em 1995, por intermédio de um pronunciamento do Presidente da República, reconheceu oficialmente uma realidade que vinha sendo denunciada desde a década de 1970 por organismos de defesa dos direitos humanos: a existência de formas contemporâneas de escravidão no país. Vale registrar que foi a partir da denúncia feita à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), no caso emblemático e que ficou conhecido como “caso Zé Pereira”, o qual versa sobre uma situação real de omissão do Estado Brasileiro em cumprir com suas Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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obrigações de proteção dos direitos humanos, de proteção judicial e de segurança no trabalho e que se tornou um marco na luta contra o “trabalho escravo” no Brasil, que as iniciativas para o combate dessa forma de super exploração do trabalho humano foram articuladas, configurando-se um verdadeiro catalisador de todo o processo. A denúncia de José Pereira expôs a grave violação dos direitos humanos a que muitos trabalhadores rurais estão submetidos e, no âmbito jurídico, apontou a necessidade de definir o problema, segundo as especificidades brasileiras relativas à questão, para que se pudesse enfrentá-lo de forma mais eficaz. Assim, esse ato de reconhecimento público constituiu um marco e um passo importantíssimo no esforço para enfrentar e erradicar esse crime. Desde então, o país vem desenvolvendo uma série de estratégias e instrumentos para combater essa prática nefasta, que avilta a dignidade da pessoa humana. 5.2 Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE) A Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo foi criada nos idos de 2003, por meio de decreto presidencial, e constitui-se em um espaço integrado por representantes do governo, de trabalhadores, de empregadores e da sociedade. Possui como missão coordenar, implementar e monitorar a implementação das ações previstas no Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, acompanhar a tramitação de projetos de lei no Congresso Nacional e avaliar a proposição de estudos e pesquisas sobre o trabalho escravo no país, entre outras atribuições. Atualmente, as instituições participantes são: Ministério do Trabalho e Emprego; Ministério do Desenvolvimento Agrário; Ministério da Previdência Social; Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; Departamento de Polícia Federal e Departamento de Polícia Rodoviária Federal (Ministério da Justiça); Secretaria Especial dos Direitos Humanos; Ministério do Meio Ambiente; Ministério da Defesa; Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag); Associação dos Juizes Federais do Brasil (Ajufe); Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT); Sindicato Nacional 140

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dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait); Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); Repórter Brasil – Organização de Comunicação e Projetos Sociais; Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA); Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra); Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Os representantes na condição de observadores são da Advocacia Geral da União, da Procuradoria Geral da República, da Procuradoria Geral do Trabalho, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Instituto Ethos de Responsabilidade Social e do CPTEC/IFCH/UFRJ. 5.3 O Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) O Grupo Especial de Fiscalização Móvel, um dos principais instrumentos governamentais na repressão da prática de trabalho em condições análogas à de escravo, foi criado em 1995, pela Portaria nº 550, para agir diretamente “in loco” na apuração de denúncias provindas de vários pontos do território nacional. É composto por auditores fiscais do trabalho e em consonância com o artigo 2° da Portaria que o instituiu, pode desenvolver suas atividades em conjunto com representantes do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (GERTRAF), criado pelo Decreto nº 1.538, de 27 de junho de 1995, e por membros do Ministério Público do Trabalho, do Ministério Público Federal e do Departamento de Polícia Federal. A propósito, foi a partir da criação, em 2002, no âmbito do Ministério Público do Trabalho, da Coordenadoria Nacional de Combate ao Trabalho Escravo (CONAETE), que o acompanhamento dos grupos móveis por Procuradores do Trabalho começou a se tornar sistemático. Assim, o processo de fiscalização móvel encontra-se institucionalizado e a parceria entre Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho e Polícia Federal “rotinizada”, como fazem menção as próprias instituições. Desde a criação do GEFM, até os dias de hoje, mais de 40.000 homens e mulheres foram resgatados de situação de exploração análoga à escravidão. E em muitos casos, até esse momento, essas vítimas eram invisíveis para o Estado, uma vez que não possuíam Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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nem o registro de nascimento. 5.3.1 O pagamento de indenizações trabalhistas e segurodesemprego aos trabalhadores resgatados Além dos resgates dos trabalhadores vítimas da escravidão contemporânea, o Grupo Móvel atua também no pagamento de direitos trabalhistas que foram sonegados. O pagamento das indenizações trabalhistas é realizado pelos auditores do GEFM no ato da fiscalização, a partir das multas aplicadas ao empregador referentes às infrações trabalhistas ocorridas na sua propriedade. A título de ilustração, em dezembro de 2009, 350 fazendas já haviam sido fiscalizadas, resultando no resgate de 3.769 trabalhadores, para os quais foram pagos um valor total de R$ 5.908.879,07, destinando R$ 1.568,00 para cada trabalhador.7 A par disso, a Lei n° 10.608/2002, ao alterar a Lei n° 7.998/90, passou a prever o pagamento de 3 (três) parcelas de segurodesemprego, no valor de um salário mínimo cada, ao trabalhador que vier a ser identificado como submetido a regime de trabalho forçado ou reduzido a condição análoga à de escravo, em decorrência de ação de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego. 5.4 A “Lista Suja” O Cadastro de Empregadores Flagrados na Exploração de Trabalho em Condições Análogas à de Escravo (“Lista Suja”), foi instituído pela Portaria n.º 540/2004 do Ministério do Trabalho e Emprego e revela-se como um importante meio de repressão ao trabalho escravo no Brasil. A chamada “Lista Suja” arrola o nome de empregadores (pessoas físicas e jurídicas) flagrados na exploração de trabalhadores em condições análogas à escravidão, e seus efeitos desdobram-se em ações realizadas por grupos da sociedade civil e pelo setor privado, a saber: a Pesquisa sobre a Cadeia Produtiva do Trabalho Escravo e o Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. A inclusão dos nomes dos empregadores na referida lista 7 Os dados utilizados nesse Capítulo foram extraídos do estudo “Combatendo o trabalho escravo contemporâneo: o exemplo do Brasil”.

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depende da responsabilização administrativa em virtude das infrações à legislação trabalhista, e somente ocorre quando os autos de infração já houverem sido julgados em todas as instâncias administrativas, não estando mais sujeitos a recurso. Essa inclusão representa para muitos empresários restrições financeiras, pois ela subsidia informações para diferentes órgãos e entidades comprometidos com a erradicação do trabalho escravo. Em diversas oportunidades, a legalidade da Portaria n.º 540/2004 é questionada, contudo ela encontra guarida ao cumprir o mandamento do §1º, do artigo 5° da Constituição Federal, que impõe aos poderes públicos o dever de maximizar a eficácia dos direitos fundamentais, oferecendo efetividade ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Destarte, a “Lista Suja” materializa, em suma, um compromisso com a transparência da ação administrativa, preceito que decorre imediatamente dos princípios da publicidade, moralidade, legalidade, eficiência e impessoalidade insculpidos no artigo 37 da Constituição Federal. 5.5 A expropriação de terras A Proposta de Emenda Constitucional nº 438/01, que propõe a alteração do artigo 243, da Lei Maior, tem por objetivo instituir a expropriação de imóveis rurais onde seja flagrada a exploração de mão de obra escrava. Essa proposta já foi aprovada no Senado, dependendo apenas da votação da Câmara dos Deputados, para que se legitime a expropriação e reforma agrária. Caso seja aprovada, a “PEC do Trabalho Escravo” pode contribuir, e muito, para o fim da impunidade, visto que muitos proprietários rurais flagrados cometendo esse crime são reincidentes. Não obstante, enquanto a PEC não é aprovada, a doutrina preconiza a aplicação da desapropriação agrária prevista no artigo 184 da Constituição, naquele local onde haja labor escravo, ainda que o imóvel seja produtivo. Assim, deve-se atentar para o fato de que o artigo 186, III, Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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da Constituição Federal dispõe que a função social deve observar a legislação de proteção ao trabalho, ao passo que o artigo 184, também da Constituição, dispõe que haverá desapropriação do imóvel rural que não cumpre com sua função social. Contudo, o artigo 185, da Constituição reza que a propriedade que for produtiva não será passível de reforma agrária, dando margem a um possível conflito de normas constitucionais. Todavia, trata-se de um conflito aparente, pois tais normas não se adequam aos critérios de hierarquia, cronológico e da especialidade, pois elas possuem o mesmo grau hierárquico, foram promulgadas na mesma data e contêm a mesma especificidade, por fazerem parte do mesmo plano normativo. Assim, deve haver uma interpretação sistemática dos princípios envolvidos no nosso ordenamento jurídico. Para isso, a doutrina propõe a realização de uma interpretação aberta da Constituição em um conceito de propriedade produtiva que inclua, além do aspecto econômico na função social da propriedade, todos os elementos contidos no artigo 186, da Carta Magna. A par disso, deve-se relembrar que a dignidade da pessoa humana deve ser sempre preservada quando dois ou mais princípios ou direitos fundamentais estão contrapostos, como o direito de propriedade rural produtivo (apenas no aspecto econômico) e o princípio da função social que integra o próprio conceito de propriedade, devendo-se, portanto, ser aplicada a desapropriaçãosanção, em respeito ao art. 1º, III, da Constituição Federal, enquanto a PEC não é aprovada, pois, diante da dignidade humana não se pode adotar subterfúgios.

6 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA VALORIZAÇÃO SOCIAL DO TRABALHO O trabalho em condições análogas à de escavo vai de encontro a bens jurídicos fundamentais consagrados pela Constituição Federal, que apresenta, em seu artigo 1°, como fundamentos da 144

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construção da sociedade brasileira, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. A Carta Magna, ao abraçar a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro, revela avanço sem precedentes em nossa evolução constitucional, pois pela primeira vez houve seu reconhecimento pelo direito positivo. A Constituição de 1988 inspirou-se na concepção kantiana que, de maneira sucinta, compreende o ser humano como único valor absoluto, devendo sempre ser considerado como um fim em si mesmo, jamais podendo ser tratado como objeto. Desse modo, o valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como núcleo básico e informador de todo o ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional, consagrandose como um verdadeiro superprincípio. Desta feita, a dignidade em si não é um direito, mas um atributo inerente a todo ser humano, independentemente de sua origem, sexo, idade, condição social ou qualquer outro requisito. E é justamente sob o aspecto intangível da dignidade da pessoa humana que se sobressai a finalidade precípua do ordenamento constitucional, qual seja, a de garantir e promover, sob os ditames da justiça social, o bem comum. Por sua vez, o valor social do trabalho abrange, em especial, a ideia de dar ao homem a oportunidade de, exercendo a sua liberdade, optar por um projeto de vida e, por meio do seu trabalho, poder concretizá-lo. Não obstante, o que comumente ocorre nos dias atuais é a real redução do homem a mero fator de produção, que é ainda mais extremada quando se está em face da contemporânea escravidão, descaracterizando o trabalho como efetiva via de acesso à cidadania. O trabalho, ao ser compreendido como instrumento de realização e efetivação da justiça social, uma vez que atua distribuindo renda, deve passar por uma escorreita leitura constitucional. Nesse diapasão, o princípio da valorização do trabalho está ligado intrinsecamente com o emprego, ou seja, trabalho Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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juridicamente protegido, pois essa é a única forma de coerência com os demais imperativos principiológicos constitucionais, como o princípio da justiça social e da busca do pleno emprego, conforme preconiza o artigo 170, VIII, da Constituição Federal.

7 POLÍTICAS PÚBLICAS DE DIREITOS HUMANOS E A ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO 7.1 Os direitos humanos e sua relação com as políticas públicas A institucionalização dos direitos humanos tende a abarcar os mais variados aspectos da vida social necessários e indispensáveis para a garantia das virtualidades humanas, perpassando as diferentes áreas de atuação do Estado e necessitando, ainda, do engajamento de toda a sociedade. Nessa toada, a Constituição Federal de 1988 exaltou os direitos humanos como alicerce do Estado Democrático de Direito, no qual a República Federativa do Brasil se constitui. Para que de fato a democracia se consolide como o regime adotado pelo país, há que se respeitar esses direitos fundamentais. A observância dos direitos humanos é a salvaguarda dos valores democráticos, impeditivos da adoção de meios de subjugação e exploração do ser humano a qual título seja. E é nessa seara que a articulação, formulação e implementação de políticas públicas comprometidas com os direitos humanos, em especial com a erradicação de todas as formas contemporâneas de escravidão, devem alçar voos. Diante da complexidade do caso brasileiro, onde um enorme contingente de mão de obra que não possui qualificação profissional encontra-se em situação de vulnerabilidade e miséria, aliado ao fato da escassez de alternativas de trabalho decente, e à fragilidade das redes de proteção social, a escravidão contemporânea toma grande vulto como verdadeira mazela social. Não obstante, o Brasil é tido hoje como uma referência na implementação de mecanismos de combate e prevenção dessa forma de super exploração do trabalho humano. Todavia, em virtude 146

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das perplexidades que envolvem o tema, ainda há um longo caminho a ser percorrido para que o trabalho escravo seja definitivamente erradicado no país. 7.2 Do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (PNET) As políticas públicas para erradicação do trabalho escravo, fruto dos empenhos exigidos pela Constituição Federal e das medidas previstas nos instrumentos internacionais, foram congregadas no Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. A responsabilidade de execução deste Plano é dividida por órgãos do Executivo, Legislativo, Judiciário, Ministério Público, entidades da sociedade civil e organizações internacionais. 7.2.1 Do I Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo O I Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo foi lançado no ano de 2003, e atende às determinações do Plano Nacional de Direitos Humanos por expressar uma política pública permanente fiscalizada pela Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), presidida pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos e constituída por representantes governamentais e não-governamentais. O Plano é constituído por Ações Gerais e Ações Específicas, e possui como grande marco sua proposição de execução articulada entre órgãos do Executivo, Legislativo, Judiciário, Ministério Público, entidades da sociedade civil e organismos internacionais. Dentre as Ações Gerais, algumas prioridades são destacadas na sequência: a) Declarar a erradicação e a repressão ao trabalho escravo contemporâneo como prioridades do Estado brasileiro; b) Estabelecer estratégias de atuação operacional integrada em relação às ações preventivas e repressivas dos órgãos do Executivo, do Judiciário e do Ministério Público, da sociedade civil com vistas a erradicar o trabalho escravo; c) Aprovar a PEC 438/2001, de autoria do Senador Ademir Andrade, com a redação da PEC 232/1995, de autoria do Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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Deputado Paulo Rocha, apensada à primeira, que altera o artigo 243 da Constituição Federal e dispõe sobre a expropriação de terras onde forem encontrados trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravo. Já nas Ações Específicas de Promoção da Cidadania e Combate à Impunidade, algumas das prioridades são: a) Implementar uma política de reinserção social de forma a assegurar que os trabalhadores libertados não voltem a ser escravizados, com ações específicas, tendentes a facilitar sua reintegração na região de origem, sempre que possível: assistência à saúde, educação profissionalizante, geração de emprego e renda e reforma agrária; b) Garantir a emissão de documentação civil básica como primeira etapa da política de reinserção; c) Contemplar as vítimas com seguro-desemprego e alguns benefícios sociais temporários; d) Identificar programas governamentais e canalizar esses programas para os municípios reconhecidos como focos de aliciamento de mão de obra escrava; e) Implementar um programa de capacitação aos trabalhadores, atendendo às necessidades da clientela alvo. 7.2.2 Do II Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo Atualmente, está-se sob a égide do II Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, o qual, tendo sido produzido pela CONATRAE e aprovado em 2008, é o resultado da revisão do I Plano e detalha 66 (sessenta e seis) ações gerais e específicas. O II Plano possui diversas prioridades como Ações Gerais, dentre as quais se podem enfatizar: a) Manter a erradicação do trabalho contemporâneo como prioridade do Estado brasileiro;

escravo

b) Estabelecer estratégias de atuação operacional integrada em relação às ações preventivas dos órgãos do Executivo, do Ministério Público e da sociedade civil com o objetivo de erradicar 148

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o trabalho escravo; c) Estabelecer estratégias de atuação integrada em relação às ações repressivas dos órgãos do Executivo, do Judiciário e do Ministério Público, com o objetivo de erradicar o trabalho escravo; d) Manter o programa de erradicação do trabalho escravo como programa estratégico e prioritário nos Planos Plurianuais nacional e estaduais, bem como definir dotações suficientes para a implementação das ações definidas neste documento; e) Buscar a aprovação da PEC 438/2001, com a redação da PEC 232/1995 apensada à primeira, que altera o artigo 243 da Constituição Federal e dispõe sobre a expropriação de terras onde forem encontrados trabalhadores reduzidos a condição análoga à de escravos. Além disso, destacam-se, dentre as Ações de Reinserção e Prevenção, o que segue: a) Implementar uma política de reinserção social de forma a assegurar que os trabalhadores libertados não voltem a ser escravizados, com ações específicas voltadas à geração de emprego e renda, reforma agrária, educação profissionalizante e reintegração do trabalhador; b) Priorizar a reforma agrária em municípios de origem, de aliciamento, e de resgate de trabalhadores escravizados; c) Privilegiar o apoio a iniciativas de geração de emprego e renda voltadas para regiões com altos índices de aliciamento para o trabalho escravo; d) Garantir a emissão de documentação civil básica a todos os libertados da escravidão, como primeira etapa da política de inserção social; e) Garantir a continuidade do acesso às vítimas do trabalho escravo ao seguro-desemprego e benefícios sociais temporários, favorecendo seu processo de inserção social; f) Garantir o acesso das pessoas resgatadas do trabalho escravo ao Programa Bolsa-Família; g) Identificar programas governamentais nas áreas de Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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saúde, educação e moradia e priorizar nesses programas os municípios reconhecidos como focos de aliciamento de mão de obra escrava; h) Promover o desenvolvimento do programa “Escravo, nem pensar!” de capacitação de professores e lideranças populares para o combate ao trabalho escravo, nos estados em que ele é ação do Plano Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo. 7.2.2.1 Da avaliação do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo Ao se examinar o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, conclui-se que, não obstante os avanços alcançados, sua principal falha reside nas dificuldades de articulação entre as diversas organizações, sobretudo para cumprir ações de combate à impunidade (incluídas nas ações gerais). Desta feita, a erradicação do trabalho escravo contemporâneo é uma problemática social que depende, necessariamente, de ações estruturais nas regiões afetadas que incluam, em conjunto, políticas de desenvolvimento sustentável; de reinserção social; de trabalho, emprego e renda; de reforma agrária; e de educação. De todo modo, devido às suas especificidades, a temática exige que qualquer articulação para se tornar eficaz depende de um ágil sistema de combate à impunidade. 8 POLÍTICAS DE PREVENÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO E REINSERÇÃO DO TRABALHADOR RESGATADO 8.1 Campanha Nacional de Prevenção do Trabalho Escravo A “Campanha Nacional de Prevenção do Trabalho Escravo” trata-se de uma campanha publicitária coordenada pela OIT-Brasil, com apoio do Governo brasileiro e da CONATRAE. Busca-se, por meio de mensagens claras e diretas, dar visibilidade ao tema, sensibilizando a opinião pública quanto à existência do trabalho em condições análogas à de escravo no país, bem como possui a prioridade de direcionar-se aos potenciais trabalhadores passíveis de serem submetidos ao trabalho escravo, além de relembrar que, apesar de todos os esforços e progressos, o 150

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problema da escravidão contemporânea ainda persiste. 8.2 Projeto “Escravo, nem pensar!” O Projeto “Escravo, nem pensar!” teve início em 2004 e nasceu de um convênio entre a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e a ONG Repórter Brasil. Possui como missão diminuir, por intermédio da educação, o número de trabalhadores aliciados nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste para o trabalho em condições análogas à de escravo na região de fronteira agrícola amazônica, além de difundir o conhecimento a respeito de tráfico de pessoas e trabalho escravo rural contemporâneo como forma de combater essa violação dos direitos humanos. O programa vem sendo inserido no âmbito das políticas públicas das esferas municipal, regional, estadual e nacional e tem parceria com instituições de âmbito nacional e com organismos internacionais. Destacam-se, dentre eles, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, o Ministério do Trabalho e Emprego, a Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), o Ministério Público do Trabalho, a Organização Internacional do Trabalho e a Comissão Pastoral da Terra. Assim, nos municípios com alto índice de tráfico de seres humanos, o projeto realiza a capacitação de lideranças populares, professores e educadores sobre trabalho escravo contemporâneo e temas correlatos, para que possam multiplicar, na sala de aula e nas comunidades, as informações sobre esse tema. Os assuntos tratados nos cursos relacionam-se às causas estruturais do trabalho escravo ou às consequências desse tipo de exploração, conferindo a essa questão sua dimensão social, política, econômica e ambiental. 8.3 Instituto Carvão Cidadão (ICC) O Instituto Carvão Cidadão é signatário do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, da Carta Compromisso do Setor Siderúrgico pela Erradicação do Trabalho Escravo e da Carta Compromisso do Fórum da Amazônia Sustentável. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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Trata-se de um projeto piloto que orienta, auxilia e fiscaliza as atividades relacionadas com a cadeia produtiva do carvão vegetal visando o cumprimento da legislação trabalhista e a preservação do ambiente de trabalho, além da realização de denúncias das ações e/ ou omissões prejudiciais aos trabalhadores. Desta feita, possui como objetivo maior a ser alcançado a promoção da dignidade do trabalhador da cadeia produtiva do ferro gusa do Polo Industrial de Carajás. Para isso, realiza auditorias nas carvoarias dos Estados do Maranhão, Pará, Tocantins e Piauí; elabora relatórios das irregularidades encontradas; promove reuniões informativas e educativas com fornecedores e trabalhadores do setor de modo a orientar os métodos de trabalho; elabora e divulga a relação dos fornecedores que ainda não se adaptaram às normas de condutas vigentes; apresenta os resultados das auditorias para avaliação pelos associados e disponibilização dessas informações para os órgãos do governo e para as instituições interessadas.

CONCLUSÃO A escravidão contemporânea ocorre sob uma nova roupagem, porém não menos cruel e desumana do que a praticada nos tempos do Brasil colônia. Nessa toada, pessoas continuam a ser subtraídas de sua liberdade, aviltadas e submetidas a condições desumanas, desprovidas de toda dignidade, sendo-lhes retirado o direito mais primordial do indivíduo, o direito de ser “humano”. Como é cediço, a utilização da mão de obra em condições análogas à de escravo acaba por ser bastante atrativa, tanto para o empresário, que produz muito mais por muito menos, quanto para o trabalhador explorado, que vislumbra, no momento em que aceita a oferta de trabalho ludibriado por falsas promessas, a esperança de ter uma vida melhor. Desta feita, a escravidão contemporânea revela a situação de grande vulnerabilidade e miséria a que se sujeita um grande contingente de trabalhadores em nosso país. A falta de alternativas para aqueles que não possuem qualquer qualificação profissional, a não ser a própria força manual de trabalho, aliada à relativa fragilidade 152

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das redes de proteção social e à ausência de empregos regulares, tanto no campo como na cidade, obrigam os trabalhadores a aceitarem condições precárias e degradantes de trabalho, na qual sua dignidade e liberdade são violadas. Assim, em um país historicamente marcado por imensas desigualdades sociais, o reconhecimento e a compreensão das atuais formas de exploração dos trabalhadores em situações limites como as que caracterizam o trabalho escravo contemporâneo, são os primeiros passos para o enfrentamento e combate consistente dessa triste realidade, que se reveste de um verdadeiro problema jurídico, social econômico. Nesse cenário, a elaboração de políticas públicas que possibilitem avanços concretos e definitivos rumo à verdadeira abolição do trabalho escravo no Brasil depende da articulação entre a aplicação rigorosa da lei para repressão dessa chaga social aliada às medidas de prevenção e reabilitação das vítimas, baseando-se na defesa dos direitos humanos dos trabalhadores envolvidos.

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A MONETIZAÇÃO DA SAÚDE DO TRABALHADOR PELO ADICIONAL DE INSALUBRIDADE1 Melissa Restel de Carvalho Silva2 Resumo: A presente pesquisa tem por escopo trazer uma abordagem sucinta e despretensiosa das principais normas de proteção à saúde do trabalhador, à luz da égide constitucional vigente, bem como da legislação infraconstitucional pátria. O objetivo precípuo do estudo é demonstrar, através da compilação da legislação nacional tangente à proteção à saúde e segurança laboral que, não obstante a riqueza da positivação do instituto, o espírito legislativo ainda encontra-se ofuscado pelo enfoque monetário com que a questão é abordada. A habitualidade no pagamento de adicionais, mormente do adicional de insalubridade, implica a mensuração pecuniária dos riscos geralmente irreparáveis - causados à saúde do obreiro exposto aos fatores insalubres no meio ambiente laboral, quando, na essência, a proteção trabalhista se traduz na prevenção e eliminação dos agentes agressores do ambiente de trabalho, visualizando-se na compensação monetária dos riscos uma medida alternativa, a ser adotada como solução última, e de caráter excepcional. Palavras-chave: Adicional de insalubridade. Meio ambiente do trabalho. Monetização. Saúde e segurança laboral.

INTRODUÇÃO Logo em seu exórdio, a Constituição Cidadã enuncia que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático 1 Artigo embasado no tema da Monografia Jurídica apresentada pela autora na conclusão do curso de Direito da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – FUFMS. 2 Bacharel em direito, graduada pela Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – FUFMS, e advogada.

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de Direito e tem como fundamentos, entre outros, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. A preocupação do constituinte em garantir condições dignas de labor se revela na redação dos incisos XXII e XXIII do artigo 7º da Constituição Federal. O primeiro estabelece ser um direito do trabalhador “a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”. Estes riscos correspondem aos infortúnios laborais, ou seja, aos acidentes e às doenças profissionais. Pretende a Lei Maior que eles sejam não apenas reduzidos, mas eliminados ou neutralizados. O inciso XXIII, por sua vez, determina a obrigatoriedade do pagamento de adicionais de remuneração para o labor em atividades penosas, insalubres ou perigosas. Referidos adicionais representam o intuito estatal de compensar o desgaste físico e mental que acomete o obreiro submetido ao desempenho de atividades prejudiciais à sua saúde e segurança, acima dos níveis de tolerância permitidos em lei. Nesse contexto, por força constitucional, o exercício de qualquer atividade econômica somente será legítimo na medida em que propiciar a consecução dos valores essenciais que emanam da dignidade humana. As normas de proteção assumem o status de garantia fundamental do obreiro, cabendo ao empregador observar os preceitos de segurança e medicina do trabalho, promovendo os meios necessários para a prevenção das agressões à saúde no ambiente laboral. Sob o amparo da Carta Magna, o trabalho é, então, nas palavras de Monica Maria Lauzid de Moraes (2002, p. 52) “elevado à garantia fundamental, através de sua valoração social, com a proteção do obreiro em suas atividades, pois é da essência da Ordem Social o equilíbrio das relações contratuais”. De certo que não seria suficiente, portanto, que a Constituição declarasse o direito à vida3 sem assegurar os seus pilares básicos de sustentação: o trabalho e a saúde. “Seria o mesmo que proclamar solenemente o direito à vida, mas não garantir o direito de viver”, conforme bem assinalado pelo eminente Sebastião Geraldo 3 Art. 5º, CF/88 - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

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de Oliveira (2010, p. 90). Por todo o exposto, verifica-se a irrefutável imprescindibilidade da tutela do direito à saúde à própria existência humana, mormente quando se trata das condições de trabalho, pois o direito à saúde no meio ambiente em geral é indissociável daquele existente no meio ambiente do trabalho, pois, frequentemente, este último é o local onde o indivíduo despende grande parte de sua existência.

1 DEFINIÇÃO DE INSALUBRIDADE A definição legal das atividades ou operações insalubres consta do artigo 189 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), nos seguintes termos: Art. 189 - Serão consideradas atividades ou operações insalubres aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos.

A caracterização das atividades insalubres, porém, não é tarefa que incumbe somente à lei, atribuindo-se ao Ministério do Trabalho e Emprego a competência para definir o tipo de atividade e o agente insalubre existentes no ambiente laboral, conforme previsão expressa no artigo 190 da CLT e na Súmula nº 460 do Supremo Tribunal Federal, assim redigidos: Art. 190 – O Ministério do Trabalho aprovará o quadro das atividades e operações insalubres e adotará normas sobre os critérios de caracterização da insalubridade, os limites de tolerância aos agentes agressivos, meios de proteção e o tempo máximo de exposição do empregado a esses agentes. Parágrafo único - As normas referidas neste artigo incluirão medidas de proteção do organismo do trabalhador nas operações que produzem aerodispersóides tóxicos, irritantes, alérgicos ou incômodos. Súmula nº 460 - 01/10/1964 - DJ de 8/10/1964, p. 3647; DJ de 9/10/1964, p. 3667; DJ de 12/10/1964, p. 3699. Adicional de Insalubridade - Perícia Judicial em Reclamação Trabalhista - Enquadramento da Atividade. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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Para efeito do adicional de insalubridade, a perícia judicial, em reclamação trabalhista, não dispensa o enquadramento da atividade entre as insalubres, que é ato da competência do Ministro do Trabalho e Previdência Social.

À luz da Norma Regulamentadora nº 9 do Ministério do Trabalho e Emprego (item 9.1.5.1) “consideram-se riscos ambientais os agentes físicos, químicos e biológicos existentes nos ambientes de trabalho que, em função de sua natureza, concentração ou intensidade e tempo de exposição, são capazes de causar danos à saúde do trabalhador”. Além disso, o mesmo dispositivo também define: 9.1.5.1 Consideram-se agentes físicos as diversas formas de energia a que possam estar expostos os trabalhadores, tais como: ruído, vibrações, pressões anormais, temperaturas extremas, radiações ionizantes, radiações não ionizantes, bem como o infra-som e o ultra-som. 9.1.5.2 Consideram-se agentes químicos as substâncias, compostos ou produtos que possam penetrar no organismo pela via respiratória, nas formas de poeiras, fumos, névoas, neblinas, gases ou vapores, ou que, pela natureza da atividade de exposição, possam ter contato ou ser absorvidos pelo organismo através da pele ou por ingestão. 9.1.5.3 Consideram-se agentes biológicos as bactérias, fungos, bacilos, parasitas, protozoários, vírus, entre outros. (Grifo nosso).

Destarte, vê-se que o artigo 189 da CLT delega a definição de agentes insalubres ao Ministério do Trabalho e Emprego, sendo sua constatação demarcada por meio de limites de tolerância e tempo de exposição ao agente insalubre. Assim, não cabe à Norma Regulamentadora competente, qual seja, a NR-15, definir agentes insalubres pela mera presença destes no ambiente de trabalho, sendo necessária a caracterização do limite de tolerância e do tempo efetivo de exposição do trabalhador a seus efeitos.

2 A DEFASAGEM DOS LIMITES DE TOLERÂNCIA FIXADOS PELO ÓRGÃO MINISTERIAL O Ministério do Trabalho classificou as atividades insalubres na Norma Regulamentadora nº 15 da Portaria nº 3.214/78, de forma que se o elemento nocivo não estiver previsto no quadro, 160

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a insalubridade é indevida. “Seria o caso de reclassificação do elemento por ato do Ministério do Trabalho, deixando o agente de ser considerado insalubre” (MARTINS, 2010, p. 203). São utilizados dois critérios para a qualificação da insalubridade: o critério quantitativo – mediante a definição dos limites de tolerância, e o critério qualitativo – delimitando o tempo efetivo de exposição do trabalhador ao agente insalubre. A aferição da insalubridade no meio ambiente de trabalho verifica-se mediante a comparação da intensidade de determinado agente agressor com o seu respectivo limite de tolerância. Assim, somente restará caracterizada a insalubridade quando tal limite for ultrapassado; esta é a avaliação quantitativa. Há, também, a avaliação qualitativa, prevista nos Anexos 7, 9, 10, 11 e 14 da NR-15 (tratam, respectivamente, das radiações não ionizantes, do frio, da umidade, dos agentes químicos e dos agentes biológicos), modalidade em que a insalubridade no ambiente laboral opera-se pela presença de tais agentes no meio ambiente de trabalho, somada à prova da exposição do trabalhador a eles. Constata-se claramente que a legislação vigente confia a caracterização da insalubridade no meio ambiente de trabalho à extrapolação dos limites de tolerância fixados pelo órgão ministerial, levando à perspectiva de que todos os agentes nocivos à saúde do trabalhador são passíveis de mensuração, o que, porém, não é verdadeiro. A Norma Regulamentadora nº 15 do Ministério do Trabalho e Emprego concebe como “Limite de Tolerância” a concentração ou intensidade máxima ou mínima, relacionada com a natureza e o tempo de exposição ao agente, que não causará dano à saúde do trabalhador, durante a sua vida laboral (subitem 15.1.5 da NR-15). A doutrina critica com veemência a mensuração dos fatores de insalubridade, por dois motivos preponderantes, conforme elucidado por Eduardo Gabriel Saad (2010, p. 316): primeiro, por existirem fatores de insalubridade que não comportam mensuração, como os agentes biológicos, por exemplo; segundo, porque mesmo na possibilidade de mensuração, não é conveniente que se amarrem Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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os fatores a determinados níveis de tolerância por questões de ordem econômica e tecnológica. Nas precisas palavras do autor: Conveniências de ordem econômica podem justificar o retardamento na fixação de uns tantos limites de tolerância relativos a certos fatores químicos ou físicos causadores da insalubridade. Mesmo nos países com condições econômicas e tecnológicas mais propícias à ampla aplicação do critério quantitativo na caracterização da insalubridade, o estabelecimento dos limites de tolerância não abrange a totalidade dos agentes agressivos à saúde ocupacional. Que dizer, então de um país como o nosso, que ainda não se pode classificar entre as nações mais desenvolvidas econômica e culturalmente? (SAAD, 2010, p. 316)

Além desses fatores, ainda há de se considerar a inata dificuldade em se estabelecer com nitidez a fronteira onde termina a saúde e começa a doença, uma vez que a aferição dos limites seguros de exposição requer conhecimento científico, pesquisas constantes e equipamentos de precisão. Vale registrar que as mais recentes Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), estrategicamente, já recomendam revisões periódicas de tais limites, como, por exemplo, a Convenção nº 162 (art.15.2) - sobre a utilização do Asbesto (amianto), que estabelece: “Os limites de exposição ou outros critérios de exposição deverão ser fixados, revistos e atualizados periodicamente, à luz do desenvolvimento tecnológico e do aumento do conhecimento técnico e científico”. Considere-se, ainda, a constatação inequívoca de que os limites de tolerância são estabelecidos com base na coletividade de pessoas, não se considerando o indivíduo em sua condição física peculiar; assim, é possível que trabalhadores adoeçam e/ou adquiram uma doença profissional ainda que laborem em exposição a agentes insalubres dentro dos limites de tolerância previamente estabelecidos. Eduardo Gabriel Saad ressalta ainda o estado de defasagem em que se encontram os anexos da NR-15, diante das constantes inovações tecnológicas que permitem aferir com precisão novas situações de riscos e seus potenciais malefícios ao obreiro verbis: 162

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Como os anexos da NR-15 sofreram muito poucas alterações desde 1978, estão eles hoje totalmente defasados com a realidade técnica, pois como é sabido, a cada ano vão sendo atualizados os limites de tolerância, com base nos conhecimentos que vão sendo adquiridos ao longo do tempo. (SAAD, 2010, p. 317)

E complementa a sua tese com um exemplo comparativo da discrepância existente entre os limites estabelecidos nos Anexos da NR-15, e os parâmetros adotados a nível internacional - que norteiam os padrões brasileiros: [...] citamos o caso do monômero de cloreto de vinila, utilizado na fabricação de PVC. No Anexo 11 da NR-15, está estabelecido para esse agente químico um limite de 156 ppm. Já há muitos anos a ACGIH 4 adota como limite para essa mesma substância apenas 1 ppm. (SAAD, 2010, p. 317)

Homero Batista compartilha desse entendimento, conforme se depreende da seguinte passagem de sua obra (2009, p. 96): Os próprios limites de tolerância, fixados com base em avanços científicos da década de 1960, chamam por atualizações, desde o patamar dos ruídos até, sobretudo, aos patamares de substâncias cancerígenas, como o volume de fibras respiráveis de amianto no ar da fábrica. Enquanto isso, convive-se com normas que discorrem sobre a insalubridade no uso do Código Morse, em franco desuso.

Ademais, alerta-se para o fato de que os limites de tolerância foram estabelecidos para a jornada normal de oito horas diárias, mas, como no Brasil a jornada extraordinária é, paradoxalmente, habitual, a fronteira estabelecida já não condiz com a realidade de exposição a que o trabalhador está submetido. Outro fator a ser considerado está no fato de que os limites de tolerância são concebidos na Norma Regulamentar brasileira de forma individualizada, ou seja, para os casos de exposição isolada a determinado agente insalubre. Entretanto, na realidade, os trabalhadores normalmente estão expostos a dois ou mais agentes agressivos, o que acarreta a sinergia, ou potencialização, dos malefícios. 4 ACGIH - American Conference of Governmental Industrial Hygienists.

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É imperioso, portanto, que o órgão ministerial realize uma completa revisão dos Anexos da NR-15, para que os padrões estatuídos realmente garantam a proteção da saúde dos trabalhadores. Frise-se, ademais, a necessidade de se manter uma periodicidade na revisão de tais institutos, a fim de assegurar que os limites fixados na NR-15 estejam sempre condizentes com os limites preconizados na atualidade.

3 O SISTEMA MERCANTILISTA ADOTADO NO BRASIL Conforme já consignado, a legislação trabalhista prevê a obrigatoriedade da proteção do obreiro, atribuindo penalidades e multas quando do descumprimento das normas legais de segurança e medicina do trabalho. O objetivo da lei é a eliminação ou neutralização da insalubridade, seja pela adoção de medidas de engenharia que conservem o ambiente de trabalho dentro dos limites de tolerância, seja com a utilização de equipamentos de proteção individual que reduzam a intensidade do agente agressivo aos mencionados limites. Não obstante assegure o direito à saúde e à redução dos riscos inerentes ao trabalho, a legislação pátria, ao mesmo tempo permite, de modo geral, o trabalho insalubre; é o que decorre do disposto no artigo 7º, inciso XXIII da Constituição Federal, que estabelece o direito à percepção de um “adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei”. Verifica-se, portanto, uma mitigação do direito à saúde face ao permissivo legal de se empreenderem atividades econômicas insalubres, o que ocorre a partir do momento em que se esgotam todas as medidas técnicas que o empregador deve adotar com vistas à eliminação ou redução dos agentes insalubres existentes no ambiente laboral. Assim, não obstante o nítido caráter lesivo do labor insalubre, este não é vedado pela legislação pátria, ainda que comprovada sua prejudicialidade, em maior ou menor grau, à saúde e à qualidade de vida dos trabalhadores. Ocorre que, tendo a Carta Constitucional instituído que todos têm direito a uma vida digna e a um ambiente ecologicamente equilibrado, o pagamento de adicionais remuneratórios em virtude 164

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da degradação da saúde do trabalhador pelos agentes insalubres não pode, jamais, significar a monetização do risco profissional ou a mercantilização da saúde do obreiro, devendo ser, inexoravelmente, entendida como medida de caráter excepcional. Na praxe, porém, é a proibição que se restringe a casos excepcionais, como, por exemplo, a vedação do trabalho perigoso ou insalubre aos menores de dezoito anos (art. 7º, inciso XXIII da CF). Tem-se, dessa forma, que o direito brasileiro, de forma deplorável, voltou-se primordialmente à monetização do risco - como se percebe da estipulação dos adicionais de insalubridade, periculosidade, horas extras e adicional noturno. Embora esta seja a alternativa mais simples para o empresário é, também, a menos inteligente e a mais nociva ao obreiro. Tal posicionamento é de todo criticado pela doutrina em geral, pois entende-se que a compensação pecuniária do trabalho em condições insalubres, perigosas ou penosas implicaria na venda da saúde do trabalhador, em detrimento de melhores soluções que poderiam ter sido dadas à questão. Merece destaque a doutrina de Guilherme José Purvin de Figueiredo (2000, p. 31): O Direito do Trabalho e o Direito da Seguridade Social ainda têm optado por uma solução bastante tímida e na prática de pouca eficácia na tutela da vida e da saúde dos trabalhadores, preferindo a adoção de um sistema de tarifação por adicionais de insalubridade e periculosidade e por aposentadorias especiais, mercantilizando assim a vida e o corpo dos trabalhadores.

Sebastião Geraldo de Oliveira, em sua obra Proteção Jurídica à Saúde do Trabalhador, fez uma breve análise do Direito do Trabalho comparado, do que observou que o legislador, em geral, adotou três estratégias básicas diante da presença dos agentes agressivos no ambiente laboral, quais sejam: a) aumentar a remuneração para compensar o maior desgaste do trabalhador (monetização do risco); b) proibir o trabalho; c) reduzir a duração da jornada. A primeira alternativa é a mais cômoda e a menos aceitável; a segunda é a hipótese ideal, mas nem sempre possível, e a terceira representa o ponto de equilíbrio cada vez mais adotado. Por um erro de perspectiva, o Brasil preferiu a primeira opção desde 1940 Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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e, pior ainda, insiste em mantê-la, quando praticamente o mundo inteiro já mudou de estratégia. (OLIVEIRA, 2010, p. 129).

Ocorre que a opção de se instituir recompensa monetária pela exposição do trabalhador aos efeitos degradantes dos agentes insalubres desvia a preocupação da questão primordial, que é a própria preservação da saúde laboral. Antonio Carlos Vendrame, ao criticar o sistema legal brasileiro, pondera: Com a monetização do risco, abriu-se o precedente – legalmente amparado – da empresa não fazer investimentos para tornar a sua fábrica salubre, mas tão-somente pagar os irrisórios adicionais, que oneram bem menos que a implantação de medidas para tornar o ambiente saudável; (VENDRAME, 1998, p. 755)

Assim, tem-se que a monetização do risco é um grande equívoco, pois a empresa passa a não investir para tornar o meio ambiente de trabalho equilibrado e salubre, optando primordialmente pelo pagamento dos adicionais, que oneram bem menos que a implantação de medidas para tornar o meio ambiente de trabalho saudável. 3.1 Breves apontamentos sobre as origens sociais do pagamento do adicional de insalubridade na legislação pátria trabalhista A monetização do risco foi inaugurada, na legislação nacional, pelo Decreto-lei nº 2.162 de 1º de maio de 1940, que instituiu o salário-mínimo e estabeleceu, em seu artigo 6º, adicionais de insalubridade sobre esta parcela nos percentuais de 40%, 20% ou 10% conforme, respectivamente, os graus máximo, médio e mínimo de exposição aos agentes degradantes5. A partir do momento em que a legislação pátria criou os mecanismos para estabelecer a convivência do trabalhador com os agentes insalubres, instalou-se uma lógica perversa, no seguinte sentido: os trabalhadores, ignorantes dos riscos a que se expunham, 5 Art. 6º, Decreto-lei nº 2.162/40 - Para os trabalhadores ocupados em operações consideradas insalubres, conforme se trate dos graus máximo, médio ou mínimo, o acréscimo de remuneração, respeitada a proporcionalidade com o salário mínimo que vigorar para o trabalhador adulto local, será de 40%, 20% ou 10%, respectivamente.

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adotando o pensamento imediatista ou às vezes até de forma inconsciente, passaram a vislumbrar no adicional de insalubridade um pequeno acréscimo salarial, de forma que se tornara um tanto quanto “atrativo” aceitar a exposição a riscos em certos casos, torcendo para que nenhuma fatalidade acontecesse; os empregadores, por sua vez, perceberam que o pagamento do adicional de insalubridade era mais econômico do que investir em medidas preventivas, que poderiam compreender o inteiro redimensionamento do processo produtivo e um dispêndio vultoso de gastos. 96):

Na explanação de Homero Batista da Silva (2009, p. 95A massa salarial normalmente é baixa em nosso país. A introdução de um protetor de ouvido acarretará um leve desconforto no canal auditivo do trabalhador e a sensação de perda de remuneração, pois com essa medida de prevenção, o empregador estará desobrigado a pagar adicional de insalubridade.

Ocorre que, consoante a elucidação de Antonio Carlos Vendrame, a agressão do agente insalubre opera-se de forma cumulativa e paulatina, de modo que não há como o empregado, propriamente, “evitar” a degradação de sua saúde pela exposição aos agentes insalubres, ou a aquisição de doenças ocupacionais, podendo, no máximo, diligenciar no sentido de se precaver da ocorrência dos acidentes de trabalho, conforme se observa: O instituto da insalubridade está associado a todo e qualquer agente, seja ele físico, químico ou biológico, que direta ou indiretamente produza dano à saúde do trabalhador de forma cumulativa e paulatina. Cumulativa porque, na sua grande maioria, os males que acometem os trabalhadores são progressivos e irreversíveis, a exemplo da perda auditiva, pneumoconioses e intoxicações por fumos e metais. Paulatina, já que, exceto em intoxicações agudas, o organismo do trabalhador vai sendo lesado aos poucos, como é o caso da silicose. (VENDRAME, 1998, p. 755)

Diante do custo irrisório do adicional de insalubridade, ainda mais se calculado sobre o salário-mínimo, praticamente não se oferece qualquer incentivo para que o empregador invista em melhores condições de labor, vez que o custo com o pagamento da parcela adicional é acentuadamente inferior aos investimentos para proporcionar um ambiente de trabalho sadio. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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Partindo desta análise, Vendrame chega à seguinte ilação: Em suma, o adicional de insalubridade remunera a vida do trabalhador em suaves prestações, restando, ao final, um homem sem condições de exercer suas atividades, passando simplesmente a engrossar as filas do seguro social e sendo discriminado pelos próprios empregadores; torna-se uma verdadeira escória, o que vem ocorrendo com frequência com os portadores de deficiência auditiva, já denominados exército de surdos (VENDRAME, 1998, p. 755).

Vale mencionar, também, a falta de mobilização por parte das entidades sindicais em prol das melhorias nas condições de trabalho, que se justifica, em muitos casos, pelo receio de que sejam mal interpretadas pela classe operária, quanto à retirada do adicional salarial. Paulo Roberto de Oliveira, no prólogo de sua obra denominada Controle da insalubridade: uma estratégia baseada em cinco pilares (2009) expõe, com brilhantismo, sua visão acerca do tema: O pagamento do adicional de insalubridade é um erro histórico no Brasil, porque... O Estado induziu as empresas a pagar o adicional de insalubridade quando priorizou a sua fiscalização na folha de salários, ao invés de fiscalizar a salubridade dos ambientes, processos de produção e métodos de trabalho. Os trabalhadores passaram a entender o adicional de insalubridade apenas como alternativa de renda adicional ou aposentadoria precoce, ao invés de preocuparem-se com a própria saúde ocupacional. Os sindicatos laborais preocupavam-se, até os anos 90, apenas com a renda gerada pelo adicional, ao invés de focar esforços na busca por melhores condições de trabalho. E os empresários, equivocadamente, continuavam pagando o adicional para “não se incomodarem”, sem perceber o passivo que criavam para si próprios. (Grifo nosso).

A verdade é que as medidas preventivas existentes são inócuas em conformar a atitude dos empregadores, que preferem pagar exíguas quantias a título de adicionais de insalubridade a adotar as medidas de proteção aos seus empregados. Verifica-se que os trabalhadores, os empregadores e as entidades sindicais possuem ainda uma visão imediatista e simplória do problema, havendo premente necessidade de se buscarem soluções mais acuradas e condizentes com a eficácia social que a norma jurídica almeja. 168

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3.2 Alternativas para a promoção de um ambiente laboral salubre A opção de instituir recompensa monetária pela exposição do trabalhador a agentes de risco é absolutamente insustentável, conforme demonstrado, de forma que cabe, no ensejo, apresentar a viabilidade da adoção de algumas medidas de prevenção. O primeiro propósito é a eliminação do agente prejudicial, uma vez que a redução dos riscos inerentes ao trabalho sempre foi o cerne da preocupação das medidas preventivas, traduzido no preceito constitucional que expressamente estabeleceu como direito dos trabalhadores a “redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (CF/88, art.7º, XXII). Identifica-se, neste ponto, um genuíno princípio fundamental consagrado expressamente como direito dos trabalhadores na Constituição da República, no que tange à promoção de medidas preventivas no ambiente de trabalho. Ocorre que, apesar de sua proeminência, tal preceito ainda não foi devidamente reconhecido, tampouco vem sendo adequadamente observado. Sebastião Geraldo de Oliveira propõe uma justificativa para esse fato: É provável que a preocupação com as consequências dos acidentes e das doenças ocupacionais tenha desviado os estudos para o campo da infortunística, restando pouca dedicação ao desenvolvimento das técnicas e das normas de prevenção. Basta mencionar a considerável construção doutrinária em torno da reparação dos danos, mas poucos estudos jurídicos no sentido de promover efetivamente a segurança e a saúde nos locais de trabalho. (OLIVEIRA, 2010, p.123)

O autor sugere, ainda, uma notável intitulação jurídica para o princípio insculpido no artigo 7º, inciso XXII da Constituição Federal, qual seja, a de “princípio do risco mínimo regressivo” (OLIVEIRA, 2010, p. 124). Sua observância deve nortear a eliminação total dos riscos à vida e à saúde do trabalhador, ou, quando isto se revelar impraticável, que se reduza ao mínimo possível a exposição aos fatores de insalubridade, de forma progressiva, com vistas a se alcançar o “risco zero”, conforme expõe o autor, in verbis: A redução, portanto, deverá ser cada vez mais acentuada Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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levando-se em conta os avanços tecnológicos, de modo que, o risco que hoje é considerado tolerável, no futuro poderá ser enquadrado como risco que deveria ser controlado ou eliminado, em razão dos novos conhecimentos. Daí a qualificação de princípio do risco mínimo regressivo. (OLIVEIRA, 2010, p. 124)

A prioridade, portanto, deve estar voltada para as medidas preventivas, atuando-se na eliminação do agente agressivo, de modo a resguardar a saúde do obreiro. Diante da inviabilidade técnica ou econômica de se eliminar o agente agressor, a atuação deve centrarse no controle dos riscos (neutralização), e, apenas em último caso, no emprego das medidas de prevenção – as quais nem sempre se mostram eficazes ou suficientes para neutralizar os efeitos nocivos da exposição aos agentes insalubres6, especialmente se considerados a longo prazo. Cabe transcrever a seguinte passagem da obra de Sebastião Geraldo de Oliveira, em que o autor comenta a ordem preferencial estampada na legislação trabalhista para o combate aos agentes agressores existentes no meio ambiente de trabalho, qual seja, a eliminação dos riscos, o isolamento dos agentes agressores e, como última opção, a neutralização dos agentes através dos equipamentos de proteção individual. A maioria das empresas brasileiras, no entanto, ignora a ordem de preferência indicada na legislação e utiliza de pronto a última alternativa como a primeira opção. Isso porque é de fácil aplicação, tem baixo custo, sugere condições de segurança e dispensa planejamento mais elaborado. Desenvolveram-se mais técnicas e equipamentos para conviver com o agente agressivo, esquecendo-se da meta prioritária de eliminá-lo. Em vez de segregar o agente nocivo, segrega-se o trabalhador que tem os sentidos limitados pela utilização incômoda dos equipamentos de proteção. (OLIVEIRA, 2010, p. 363)

Assim, ao invés de promoverem a supressão dos fatores insalubres, os empregadores adotam a alternativa mais cômoda e barata, porém, ao mesmo tempo, menos eficiente: o fornecimento dos equipamentos de proteção individual. Não se ignora que em algumas ocasiões a única opção se revela no fornecimento do EPIs, 6 É o que ocorre, por exemplo, com o fornecimento de equipamentos de proteção individual, que apenas limitam os efeitos nocivos dos agentes insalubres.

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mas a prioridade deve estar sempre voltada à prevenção, e não à simples proteção do trabalhador. Uma segunda estratégia seria a redução progressiva da jornada de trabalho dos empregados que laboram em ambientes de trabalho insalubres, desde que essa medida venha associada a iniciativas contínuas de melhorias no ambiente laboral, mantendo-se o foco na observância do princípio do risco mínimo regressivo. Antonio Carlos Vendrame (1998, p. 755) expõe a tendência mundial: [...] muitos países não compartilham a ideia da compensação financeira pelo risco, como a Itália, que já na década de 60 havia criado o slogan Saúde não se vende, onde os trabalhadores exigiam um ambiente salutar. Atualmente, o que predomina a nível internacional é a redução da jornada de trabalho, além do prolongamento do período de férias para os trabalhadores expostos a riscos.

p. 132):

No ensinamento de Sebastião Geraldo de Oliveira (2010, A redução da jornada é a saída ética para enfrentar a questão. Em vez de reparar com dinheiro a perda da saúde, devese compensar o desgaste com maior período de descanso, transformando o adicional monetário em repouso adicional. A menor exposição diária, combinada com um período de repouso mais dilatado, permite ao organismo humano recompor-se da agressão, mantendo-se a higidez. (Grifo nosso).

A doutrina apresenta, ainda, três justificativas para a limitação da duração do trabalho: de ordem econômica, biológica e social. Biológica por considerar-se que a limitação da jornada nos labores insalubres reflete na prevenção do surgimento de doenças profissionais; econômica, pois, além de aumentar a produtividade do trabalhador, pela diminuição da fadiga, ainda implicaria aumento no número de postos de trabalho, pela maior necessidade de funcionários diante da jornada reduzida; e social já que propiciaria ao trabalhador maior tempo para realizar suas atividades de lazer, como interagir com seus familiares e amigos, sendo, também, uma afirmação dos direitos fundamentais da intimidade da vida privada elencados na Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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Carta Magna (CALVET, 2006, p. 86). Destarte, a menor exposição diária do trabalhador aos agentes insalubres, combinada com um maior período de repouso, seria determinante para a manutenção da higidez laboral, uma vez que permitiria ao organismo humano recompor-se da agressão, ao mesmo tempo em que harmonizaria as disposições constitucionais de valorização do trabalho, colocando o trabalhador em prioridade com relação ao interesse econômico. A menor duração do trabalho, se considerada do ponto de vista biológico, gera duplo benefício para a saúde do trabalhador, conforme aponta Sebastião Geraldo de Oliveira (2010, p. 366): “menos tempo de exposição aos agentes agressivos e mais tempo para recuperação dos efeitos danosos”. Ademais, se o empregador tiver que pagar o salário integral nos casos de labor com redução da jornada, haverá um aumento expressivo no custo operacional, o que se traduz em um notável estímulo ao investimento nas medidas de prevenção, com a garantia da salubridade do ambiente. Outra medida de grande eficácia no resguardo da saúde dos trabalhadores é a proibição de horas extraordinárias no desempenho de atividades insalubres. Merece destaque o recente cancelamento da Súmula nº 349 do Tribunal Superior do Trabalho, que dispensava a inspeção prévia da autoridade competente em matéria de higiene do trabalho, para fins de celebração de acordo ou convenção coletiva de compensação de jornada de trabalho em atividades insalubres. Sua redação era no seguinte sentido: Súmula 349 - Acordo de Compensação de Horário em Atividade Insalubre, celebrado por Acordo Coletivo. Validade. (cancelada) - Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011 A validade de acordo coletivo ou convenção coletiva de compensação de jornada de trabalho em atividade insalubre prescinde da inspeção prévia da autoridade competente em matéria de higiene do trabalho (art. 7º, XIII, da CF/1988; art. 60 da CLT).

Segundo esse entendimento jurisprudencial, a atuação do sindicato, enquanto representante da categoria, seria suficiente para 172

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resguardar a higidez física dos trabalhadores que representa, suprindo, assim, a tutela estatal de que trata o artigo 60 da CLT7. Ocorre que, em junho de 2004, a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho cristalizou o entendimento, por meio da Orientação Jurisprudencial nº 342 da SDI-I, de que medidas de higiene, saúde e segurança do trabalho, garantidas por normas de ordem pública, não podem ser objeto de negociação coletiva, conforme se observa da redação do referido dispositivo: OJ da SDI-I. 342 - Intervalo Intrajornada para repouso e alimentação. Não concessão ou redução. Previsão em norma coletiva. Invalidade. Exceção aos condutores de veículos rodoviários, empregados em empresas de transporte coletivo urbano. I - É inválida cláusula de acordo ou convenção coletiva de trabalho contemplando a supressão ou redução do intervalo intrajornada porque este constitui medida de higiene, saúde e segurança do trabalho, garantido por norma de ordem pública (art. 71 da CLT e art. 7º, XXII, da CF/1988), infenso à negociação coletiva. [...]

Incontestável que a negociação coletiva trabalhista não pode afastar a aplicação de norma cogente, ainda mais quando se trata de matéria de saúde e segurança no trabalho, como no caso citado, que condiciona prorrogação da jornada em ambientes insalubres à prévia autorização pelos órgãos de fiscalização laboral, uma vez que o trabalho extraordinário, se prestado em atividade insalubre, torna-se ainda mais nocivo à saúde do trabalhador. Assim, em se tratando de atividade insalubre, qualquer prorrogação de jornada de trabalho, seja a título de compensação de horas, seja a título de trabalho extraordinário, depende de autorização/licença prévia do Ministério do Trabalho em Emprego, a quem competirá fazer um exame local. 7 Art. 60, CLT - Nas atividades insalubres, assim consideradas as constantes dos quadros mencionados no capítulo “Da Segurança e da Medicina do Trabalho”, ou que neles venham a ser incluídas por ato do Ministro do Trabalho, Indústria e Comercio, quaisquer prorrogações só poderão ser acordadas mediante licença prévia das autoridades competentes em matéria de higiene do trabalho, as quais, para esse efeito, procederão aos necessários exames locais e à verificação dos métodos e processos de trabalho, quer diretamente, quer por intermédio de autoridades sanitárias federais, estaduais e municipais, com quem entrarão em entendimento para tal fim.

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Por fim, na absoluta impossibilidade ou inviabilidade de se eliminar ou neutralizar os agentes insalubres existentes no ambiente de trabalho, a retribuição monetária pela exposição da saúde do trabalhador a riscos deve ser majorada, a fim de se compensar condignamente a degradação da saúde do obreiro e, ao mesmo tempo, servir de estímulo para que o empregador proporcione um ambiente de trabalho adequado à saúde de seus empregados. Despiciendo consignar que, no caso do adicional de insalubridade, o valor é tão ínfimo que o empresário considera mais econômico e simples desembolsar 10%, 20% ou 40% do saláriomínimo por mês para que não precise implementar medidas de proteção no ambiente laboral. Não obstante o entendimento do STF no sentido da absoluta impossibilidade de vinculação do salário-mínimo para qualquer fim8, enquanto não superada a inconstitucionalidade por meio de lei ou convenção coletiva, o cálculo do adicional de insalubridade ainda terá por parâmetro o salário-mínimo. Assim, urge atuação legislativa para fixar o valor do referido adicional sobre o salário-base do trabalhador, a fim de remunerar com maior equidade o obreiro exposto aos fatores insalubres. Além de fixar a incidência do adicional de insalubridade sobre a remuneração, cabe também ao legislador agravar os percentuais existentes, que se configuram em 10%, 20% e 40%, conforme, respectivamente, os graus mínimo, médio e máximo do labor insalubre, a fim de que o custo das condições nocivas à saúde obreira fique mais elevado, de forma a motivar o empregador a suprimir o agente danoso do ambiente laboral. Questão que merece destaque é a que cerca o estudo da cumulatividade dos adicionais. A Norma Regulamentadora nº 15 do Ministério do Trabalho e Emprego vedou a percepção cumulativa dos adicionais de insalubridade, determinando que seja considerado somente o agente nocivo de grau mais elevado, conforme se verifica da redação de seu item 3, verbis: 15.3 No caso de incidência de mais de um fator de 8 Súmula Vinculante nº 4 do STF - Salvo nos casos previstos na constituição, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial.

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insalubridade, será apenas considerado o de grau mais elevado, para efeito de acréscimo salarial, sendo vedada a percepção cumulativa.

Ocorre que, também neste ponto, não se vislumbra qualquer justificativa, seja sob o prisma biológico, lógico ou jurídico para que tal vedação subsista. Explique-se: em termos biológicos, a exposição simultânea a mais de um agente agressivo manifestamente aumenta os danos à saúde do trabalhador, agravando ainda mais o potencial nocivo pelo efeito sinérgico das agressões. Reconhecendo essa situação, as Convenções nº 148 e 155 da OIT, ambas com plena vigência no ordenamento jurídico brasileiro, determinaram que os critérios e os limites de exposição devem ser fixados considerando-se o aumento dos riscos profissionais resultante da exposição simultânea a vários fatores nocivos no local de trabalho, conforme se verifica de seus textos: Convenção nº 148, OIT - Art. 8º - 3. Os critérios e limites de exposição deverão ser fixados, completados e revisados a intervalos regulares, de conformidade com os novos conhecimentos e dados nacionais e internacionais, e tendo em conta, na medida do possível, qualquer aumento dos riscos profissionais resultante da exposição simultânea a vários fatores nocivos no local de trabalho. Convenção nº 155, OIT - Art. 11 - b) a determinação das operações e processos que serão proibidos, limitados ou sujeitos à autorização ou ao controle da autoridade ou autoridades competentes, assim como a determinação das substâncias e agentes aos quais estará proibida a exposição no trabalho, ou bem limitada ou sujeita à autorização ou ao controle da autoridade ou autoridades competentes; deverão ser levados em consideração os riscos para a saúde decorrentes da exposição simultânea a diversas substâncias ou agentes.

Conforme exemplifica Sebastião Geraldo de Oliveira (2010, p. 372): [...] um empregado exposto a poeiras ou agentes químicos num ambiente de calor tem os efeitos danosos multiplicados, porque o esforço físico e o aumento da temperatura corporal aceleram a ventilação pulmonar e a circulação sanguínea, acarretando maior captação de substâncias tóxicas da atmosfera.

Na hierarquia das normas, é basilar o conhecimento Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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de que as Portarias encontram-se abaixo das leis e, sem dúvida, das Convenções Internacionais ratificadas e promulgadas pelo País, uma vez que estas ingressam no ordenamento jurídico nacional com o status de lei ordinária. Assim, não se vislumbra por que o Poder Judiciário insiste em continuar aplicando uma Portaria ministerial em detrimento das Convenções Internacionais em vigor, as quais são plenamente compatíveis com o princípio do risco mínimo regressivo insculpido na Lei Maior. Raimundo Simão de Melo (2010, p. 200) apresenta instintivamente uma justificativa para essa conduta: Culturalmente, no Brasil, não se aprendeu ainda a respeitar os instrumentos internacionais de que é signatário o país, embora sabendo-se que os tratados e convenções internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situamse, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em consequência, entre estas e os atos de Direito Internacional Público relação de paridade normativa (CF, arts. 5º, §2º, 49, I, e 84, VIII).

Do ponto de vista lógico, não se mostra razoável atribuir reparação única para os casos em que o trabalhador é exposto a vários agentes agressores. Essa prática, aliás, atua como fator desestimulante para que os empregadores se conscientizem da necessidade de observância da norma constitucional que preconiza a redução dos riscos inerentes ao trabalho (CF/88, art. 7º, XXII), uma vez que se torna irrelevante a quantidade de agentes insalubres existentes no ambiente laboral, já que o custo com o adicional será o mesmo. Sob o enfoque jurídico, por fim, a doutrina sustenta que o item 15.3 da Norma Regulamentadora nº 15 não tem eficácia, por extrapolar os limites da legislação trabalhista nacional. Nas lições de Sebastião Geraldo de Oliveira (2010, p. 372): Não pode uma simples portaria – ato administrativo que é – limitar o alcance da fonte normativa primária da vantagem, no caso, os arts. 189 e 192 da CLT. Se a lei não vedou a percepção cumulativa em decorrência da exposição simultânea que prejudica órgãos distintos do trabalhador, não pode a portaria restringir a abrangência da norma.

Vólia Bonfim Cassar (2011, p. 874-875) compartilha 176

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desse entendimento, conforme se verifica da seguinte passagem de sua obra: “Se o adicional visa indenizar (sic) a nocividade do trabalho executado pelo empregado, se as nocividades são múltiplas, os adicionais também deveriam ser. Ademais, não pode uma portaria impor obstáculo não criado pela lei”. No mesmo sentido o parecer de Alice Monteiro de Barros (2007, p. 770): Entendemos que, se as condições de trabalho do empregado são duplamente gravosas, é cabível o pagamento dos dois adicionais, pois houve exposição a dois agentes insalubres diferentes, que podem ocasionar prejuízos a diversos órgãos do corpo humano. [...] Saliente-se que a determinação contida na NR-15 da Portaria n. 3.214 de 1978, no sentido de se considerar apenas o fator de insalubridade de maior grau, no caso de incidência de mais de um agente insalubre, extrapola os limites da própria lei, que não proíbe a cumulação de mais de um adicional de insalubridade. Se se permitir tal dispositivo, o empregador poderá perder o estímulo de eliminar outros agentes agressivos, porquanto a Portaria só o onera com o pagamento de um deles.

Não caberia, portanto, à Norma Regulamentadora inovar o ordenamento jurídico, pois é ato inferior à lei, não podendo criar, extinguir ou modificar direitos, cabendo-lhe apenas explicitar a lei, dentro dos limites por ela estabelecidos. Assim, quando a NR15 estabelece um adicional único pela exposição do trabalhador a diversos agentes insalubres, está, no entender de Sebastião Geraldo de Oliveira (2010, p. 373), “instituindo um adicional complessivo, que o Direito do Trabalho não tolera”. Destarte, é mais razoável que os trabalhadores tenham direito a receber tantos adicionais de insalubridade quantos forem os fatores insalubres a que estiverem expostos, por ser a conduta mais eficaz para compensar o desgaste à sua saúde e estimular o empregador a promover a adequação do ambiente laboral. Por fim, registre-se que a jurisprudência já vem se manifestando favoravelmente à possibilidade de cumulação inclusive dos adicionais de insalubridade e de periculosidade, com fulcro na Convenção nº 155 da OIT, pelo entendimento de que esta revogou Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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tacitamente a previsão contida no artigo 193, §2º da Consolidação das Leis do Trabalho9. Consignem-se os louváveis acórdãos proferidos pelo Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG): EMENTA: ADICIONAIS DE INSALUBRIDADE E PERICULOSIDADE. POSSIBILIDADE DE CUMULAÇÃO. Havendo prova técnica a demonstrar que em um determinado período do contrato o reclamante estivera exposto, simultaneamente, a dois agentes agressivos, um insalubre e outro perigoso, ele faz jus ao pagamento de ambos, haja vista que o disposto no art. 193, §2º da CLT não é compatível com os princípios constitucionais de proteção à vida e de segurança do trabalhador. (TRT 3ª R. – 1ª Turma - RO nº 00354-2006-002-03-00-4. Relator: Des. Marcus Moura Ferreira. Data de Publicação: 27.10.2006) EMENTA: Apurado pelo laudo pericial a existência de dois agentes insalubres é devido o pagamento dos adicionais correspondentes, cumulativamente, vez que também são multiplicados os riscos à saúde do obreiro. A Portaria que aprovou as normas regulamentadoras do adicional de insalubridade, proibindo a acumulação de mais de um agente insalubre, excedeu de sua competência, porque estabelece uma restrição a direito não prevista na lei. Por outro lado, o pagamento de apenas um adicional, quanto são dois ou mais os agentes insalubres, incentiva a manutenção de um ambiente de trabalho agressivo à saúde do trabalhador. Recurso provido, para deferir ao reclamante o pagamento cumulativo, referente aos dois agentes insalubres existentes no local do trabalho. (TRT 3ª R. - 3ª Turma - RO nº 6530/93. Relator: Des. Juiz Abel Nunes da Cunha. Data de Publicação: 07.06.1994)

Portanto, observa-se dos dispositivos insculpidos no texto constitucional, das Convenções Internacionais das quais o Brasil participa e da legislação trabalhista infraconstitucional que os principais direitos trabalhistas no âmbito da proteção à saúde laboral já foram solenemente declarados e reconhecidos, faltando, 9 Art. 193, CLT - São consideradas atividades ou operações perigosas, na forma da regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho, aquelas que, por sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem o contato permanente com inflamáveis ou explosivos em condições de risco acentuado. § 2º - O empregado poderá optar pelo adicional de insalubridade que porventura lhe seja devido.

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agora a sua efetiva aplicação. É certo que as normas podem e devem ser aperfeiçoadas, mas se houvesse o cumprimento do conjunto normativo atual, certamente a essência protetiva das normas já existentes estaria sendo observada. p. 544-555):

Na célere exposição de Evaristo de Moraes Filho (2010, A situação do nosso trabalhador é ainda mais absurda se analisada à luz da Constituição Federal e da legislação trabalhista, ambas garantindo dignidade e proteção ao trabalhador. Verifica-se, portanto, que temos aqui, além do descompasso entre o desenvolvimento tecnológico e o nível de consciência do homem, outro descompasso – entre a lei e a realidade. [...] Temos, em consequência, uma sociedade regida por uma legislação avançadíssima no que se refere a direitos sociais, vivendo, em muitos aspectos, como se estivesse na Idade Média ou no famoso Oeste Americano do século XIX.

Nas brilhantes palavras de Sebastião Geraldo de Oliveira (2010, p. 43): Diversas disposições constitucionais já poderiam ser aplicadas de imediato, uma vez que contêm os pressupostos necessários à incidência. Todavia, o apego demasiado ao passado, combinado com a resistência às inovações, retarda ou até impede a atuação prática da norma maior. [...] O jurista que estiver voltado para o retrovisor da história não perceberá a marcha célere do progresso, com o risco de cair no labirinto de cogitações ultrapassadas.

Assim, o permissivo legal do pagamento dos adicionais de insalubridade exige sua harmonização com o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana – concebido como princípio e direito subjetivo – e a busca da sadia qualidade de vida, através da promoção da salubridade no meio ambiente laboral e do respeito e observância às normas de prevenção.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Do estudo do tema proposto e dos instrumentos jurídicos destinados à melhoria da qualidade de vida do trabalhador Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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em seu ambiente de trabalho, verifica-se que a crescente ideologia da dignificação do trabalho humano repele a política de se remunerar com adicionais as agressões perpetradas contra a saúde do trabalhador exposto aos efeitos nefastos dos agentes agressores existentes no ambiente de trabalho. Ocorre que, no Brasil, a preocupação ainda está centrada na “indenização” aos trabalhadores vitimados pelas más condições de salubridade do ambiente laboral, em detrimento da efetiva tutela e observância das normas de proteção e prevenção aos riscos, insculpidas no ordenamento jurídico brasileiro. Vislumbrase que o adicional de insalubridade, que foi instituído como sanção, lamentavelmente se tornou o cerne da grande maioria das considerações doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tema, que cingem-se, quase que exclusivamente, à problemática da delimitação de sua base cálculo. A problemática permanece atrelada à indenização dos acidentes e das doenças ocupacionais, quando, na verdade, o combate aos focos de insalubridade deveria ser questão prioritária nas reflexões, bem como o estudo das medidas de eliminação e de neutralização dos agentes insalubres. Não obstante tenha o Brasil um amplo arcabouço legislativo de proteção à saúde nos locais de trabalho, na prática a situação não atende às expectativas sociais, seja pela falta de política prevencionista em âmbito laboral, seja pela preponderância da preocupação estritamente econômica, que deixa para segundo plano os aspectos sociais e humanos das relações trabalhistas. Os operadores do direito, a quem incumbe o dever de observância e fiel cumprimento aos princípios insculpidos nas normas constitucionais quando da aplicação das normas trabalhistas, têm ainda, infortunadamente, optado por uma solução bastante tímida e, na prática, de pouca eficácia na tutela da vida e da saúde dos trabalhadores: a preferência pela adoção de um sistema de tarifação por adicionais de insalubridade, mercantilizando a vida do trabalhador, que resulta na “venda” gradual e constante de sua higidez física. Percebe-se que a finalidade precípua da legislação garantista laboral não é alcançada quando a saúde do obreiro é reduzida a valores econômicos; o propósito basilar das normas de 180

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proteção recomenda o estudo mais voltado para o conteúdo dos agentes agressores e para as diversas formas de neutralização do ambiente laboral. Assim, não é suficiente que se assegurem direitos reparatórios aos lesados; é imperioso que se adotem todos os recursos e tecnologias disponíveis para evitar as lesões, conforme as regras de prevenção, uma vez que revela-se impossível falar em “trabalho digno” sem que se garantam aos trabalhadores a segurança e a higidez do meio ambiente de trabalho. Observa-se que a tendência mundial é no sentido de conferir maior prestígio às normas internacionais sobre direitos e garantias fundamentais do ser humano, o que reforça a importância das Convenções da OIT, especialmente daquelas ratificadas pelo Brasil. Neste sentido, as normas internacionais em vigor no ordenamento jurídico brasileiro propugnam pela mudança de paradigma nas questões que envolvem as normas de proteção à saúde e segurança do trabalhador, para que se garanta a efetividade dos institutos de proteção à saúde do obreiro. Para tanto, revela-se primordial a observância do princípio do risco mínimo regressivo, insculpido no artigo 7º, inciso XXII da Lei Maior, que irradia todo o ordenamento jurídico nacional e, assim como os demais valores constitucionais, deve impregnar cada categoria jurídica infraconstitucional, a fim de que prevaleça a hierarquia axiológica entalhada no texto constitucional. Irrefutavelmente, o valor pago a título de adicional pelo labor em atividades insalubres é tão ínfimo que sequer contempla a tutela jurídica da valorização do trabalho humano, além de atuar como fator de desestímulo para que os empregadores promovam a higidez do ambiente laboral. Verifica-se que não há valorização do trabalho humano quando a expressão monetária que serve de parâmetro para a definição da base de cálculo do adicional de insalubridade é inexpressivo. Ademais, não se pode conceber a manutenção da prática jurídica em se compensar com um único adicional as diversas agressões a que o trabalhador está exposto em seu ambiente de trabalho. A não cumulatividade dos adicionais, além de ilógica injusta Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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e ilegal, leva ao enriquecimento ilícito do empregador e o desestimula a cumprir as normas de prevenção do meio ambiente e dos riscos à saúde do trabalhador. Alimenta-se, portanto, a pretensão de que a linha diretriz das normas trabalhistas atinja a saúde laboral na sua essência, resguardando a submissão dos trabalhadores a condições laborativas insalubres, sendo que, somente na sua impossibilidade, estabeleçase uma equiparação monetária à degradação física sofrida pelos indivíduos, que seja não somente retributiva, mas ao mesmo tempo se traduza em um fator estimulante para a promoção de um ambiente de labor saudável.

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A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NO COMBATE AO TRÁFICO DE PESSOAS1 Rafael de Azevedo Rezende Salgado RESUMO O presente estudo possui o escopo de, mediante uma abordagem constitucional, aliada à apresentação de dados empíricos, discutir as causas e implicações do tráfico de pessoas no Brasil, bem como as formas de combate, mormente pelo Ministério Público do Trabalho. Inicia-se o estudo apresentando a evolução do conceito de tráfico de pessoas na ordem jurídica internacional, destacando-se o Protocolo de Palermo. Em seguida, realiza-se uma abordagem constitucional do tema, com enfoque nos direitos fundamentais violados com a prática do tráfico. Por conseguinte, há a apresentação de dados empíricos, colhidos em diversos estudos, em que se demonstram as causas e consequências do ilícito, bem assim os perfis das vítimas. Aborda-se, ainda, o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – PNETP, elaborado pelo Governo Federal, no âmbito do Ministério da Justiça, com o auxílio de parceiros, no qual estão presentes as diretrizes, os princípios e os objetivos do Estado brasileiro com vistas a combater o tráfico de pessoas. Por fim, discute-se a atuação do Ministério Público do Trabalho na prevenção e repressão ao aliciamento e à intermediação ilegal de mão de obra, com destaque para o planejamento estratégico elaborado no âmbito da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo – CONAETE, assim como para os instrumentos jurídicos de combate ao ilícito e para a atuação conjunta com outros órgãos públicos. Palavras-chave: Tráfico, Pessoas, Exploração, Dignidade, Combate. 1 Trabalho de Conclusão do IX Curso de Ingresso e Vitaliciamento do Ministério Público do Trabalho, apresentado à Escola Superior do Ministério Público da União – ESMPU em novembro de 2011.

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I INTRODUÇÃO Prática existente desde a Antiguidade, o tráfico de pessoas se encontra enraizado na realidade brasileira. Trata-se de um delito extremamente lucrativo, atrás apenas do tráfico de armas e de drogas, o que faz com que as quadrilhas se disponham a assumir o risco de cometê-lo. O fim do tráfico de seres humanos é sempre explorar as vítimas, como se objeto fossem. Ocorre, portanto, um fenômeno de coisificação do homem. As vítimas traficadas são destinadas, em sua maioria, à exploração laboral e sexual, tanto no território nacional, quanto no exterior. A facilidade com que os aliciadores (os “gatos”) as cooptam decorre, fundamentalmente, de sua extrema pobreza, que acarreta uma falta de perspectivas aterradora e faz com sejam facilmente iludidas por promessas irreais de melhores condições de vida. Não há, ainda, uma política educacional eficaz, bem como de geração de empregos formais, contribuindo, dessa forma, para uma situação de vulnerabilidade das vítimas. Justamente por estarem sujeitas a tal vulnerabilidade é que são facilmente aliciadas. Portanto, o enfrentamento do tráfico de pessoas perpassa pela adoção de medidas repressivas conjugadas com políticas de aperfeiçoamento da formação do trabalhador e de geração de empregos, com vistas a prevenir o estado de vulnerabilidade. Nessa perspectiva, revela-se imprescindível a atuação do Ministério Público do Trabalho, coordenada com outros parceiros e subsidiada por dados de inteligência.

II CONCEITO DE TRÁFICO DE PESSOAS O conceito de tráfico de pessoas evoluiu ao longo de décadas, à medida que a legislação internacional se adaptava às transformações da sociedade. A partir de 1814, principalmente, os instrumentos internacionais passaram a se preocupar, em primeiro lugar, com o tráfico de negros para a exploração laboral por meio da escravidão. Destaca-se, nessa época, o Tratado de Paris, celebrado entre Inglaterra e França. 186

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Com o passar dos anos, os esforços internacionais foram direcionados ao combate ao tráfico de mulheres brancas para a prostituição. Em 1904, celebrou-se, em Paris, o Acordo Internacional para Supressão do Tráfico de Escravas Brancas, posteriormente convolado em Convenção. Destarte, foram assinados nos anos seguintes: a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas (Paris, 1910), a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças (Genebra, 1921), a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores (Genebra, 1933), o Protocolo de Emenda à Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças e à Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores (1947), e, por último, a Convenção e Protocolo Final para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio (Lake Success, 1949). Inicialmente, visava-se à proteção de mulheres europeias, notadamente aquelas oriundas do leste europeu. Nessa época, não havia a definição de tráfico de pessoas, mas tão somente o compromisso de reprimi-lo por meio de sanções administrativas. Apenas a partir de 1910, os instrumentos internacionais passaram a conceituar tráfico e exploração da prostituição como infrações criminais cujas sanções incluíam a imposição de pena privativa de liberdade. A Convenção de 1910 definia o tráfico e o favorecimento à prostituição como o aliciamento, induzimento ou descaminho, ainda que com o seu consentimento, de mulher casada ou solteira menor, para a prostituição. Tratando-se de mulher casada ou solteira maior, a conduta só era punível se praticada “com fraude ou por meio de violências, ameaças, abuso de autoridade, ou qualquer outro meio de constrangimento”. Era permitido, porém, aos Estados Partes dar a mesma proteção à mulher casada ou solteira maior independentemente da fraude ou constrangimento. Já a Convenção de 1921 alterou o art. 1º para incluir “crianças de um e do outro sexo”, bem assim aumentou a maioridade de vinte para vinte e um anos completos. Na ocasião, a regra geral era de que o consentimento de mulheres casadas ou solteiras maiores excluía a infração. Contudo, a Convenção de 1933 modificou essa orientação. Consoante o art. 1°: “Quem quer que, para satisfazer às paixões de outrem, tenha aliciado, atraído ou descaminhado, ainda Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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que com seu consentimento, uma mulher ou solteira maior, com fins de libertinagem em outro país, deve ser punido”. 1. Em 1949, celebrou-se a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outrem, cujo preâmbulo dispunha que a prostituição e o mal que a acompanha – qual seja o tráfico de pessoas com vista à prostituição – são incompatíveis com a dignidade e o valor da pessoa humana e põem em perigo o bem-estar do indivíduo, da família e da comunidade. Havia, portanto, uma sensível valorização da dignidade da pessoa humana. Posteriormente, com o escopo de garantir maior proteção à mulher, notadamente quanto às diversas formas de discriminação, é reconhecida pela Convenção sobre a Eliminação de Todas Formas de Discriminação contra a Mulher (1979) a igualdade entre homens e mulheres no exercício de todos os direitos econômicos, sociais, culturais, civis e políticos. Em 1994, prosseguindo o processo de combate ao tráfico de pessoas, resolução da Assembleia Geral da ONU definiu o tráfico como o movimento ilícito ou clandestino de pessoas através das fronteiras nacionais e internacionais, principalmente de países em desenvolvimento e de alguns países com economias em transição, com o fim de forçar mulheres e crianças a situações de opressão e exploração sexual ou econômica, em benefício de proxenetas, traficantes e organizações criminosas, assim como outras atividades ilícitas relacionadas com o tráfico de mulheres, a exemplo do trabalho doméstico forçado, dos casamentos falsos, dos empregos clandestinos e das adoções fraudulentas. Já a Convenção Interamericana de 1998 sobre o Tráfico Internacional de Menores conceituou como tráfico internacional de pessoas com menos de dezoito anos a “subtração, transferência ou retenção, ou a tentativa de subtração, transferência ou retenção de um menor, com propósitos ou por meios ilícitos” (artigo 2, “b”). Exemplificou como propósitos ilícitos, entre outros, “prostituição, exploração sexual, servidão” (artigo 2, “c”) e como meios ilícitos “o sequestro, o consentimento mediante coerção ou fraude, a entrega ou recebimento de pagamentos ou benefícios ilícitos com vistas a obter o consentimento dos pais, das pessoas ou da instituição responsáveis 188

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pelo menor ou qualquer outro meio ilícito utilizado seja no Estado de residência habitual do menor ou no Estado Parte em que este se encontre.” (artigo 2, “d”). Por fim, celebrou-se o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças (Palermo, 2000). Ratificado pela República Federativa do Brasil, referido instrumento foi promulgado pelo Decreto n. 5.017 de 12 de março de 2004. Assim, no artigo 3 do Protocolo de Palermo, estabeleceuse a definição para tráfico de pessoas internacionalmente aceita: a) A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgão.

Caracteriza, pois, o tráfico de pessoas a atitude do aliciador de enganar ou coagir a vítima, apropriando-se da sua liberdade por dívida ou outro meio, sempre com propósito de exploração. Com efeito, houve uma significativa evolução oriunda do Protocolo de Palermo: as vítimas que, inicialmente, eram apenas mulheres brancas, depois mulheres e crianças, são agora os seres humanos, mantida a preocupação especial com mulheres e crianças. Bem se vê, portanto, que, atualmente, não há limitação quanto aos sujeitos protegidos. O artigo 3 traz, ainda, outras definições: b) O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente Artigo será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a); c) O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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exploração serão considerados “tráfico de pessoas” mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos da alínea a) do presente Artigo; d) O termo “criança” significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos.

Verifica-se, pois, que o consentimento da vítima é irrelevante para a configuração do tráfico de pessoas. Isso porque é comum sua obtenção por meio de fraude, notadamente pelo aproveitamento de sua situação de vulnerabilidade. Trata-se, portanto, de um consentimento viciado, cuja existência é irrelevante para a configuração da figura jurídica do tráfico de pessoas. A aludida vulnerabilidade das pessoas traficadas se manifesta em diversas modalidades: social, econômica, educacional etc. Justamente por acarretar uma vida de possibilidades de ascensão reduzida é que a vulnerabilidade contribui para que as vítimas transacionem com sua própria liberdade. Além disso, em decorrência da vulnerabilidade, as vítimas do tráfico de pessoas não se enxergam como tal, o que dificulta a atuação estatal na prevenção e repressão ao tráfico e assistência às vítimas. Tendo em vista justamente a vulnerabilidade da vítima, é que foi inserido na letra “b” do artigo 3 do Protocolo de Palermo o princípio da irrelevância do consentimento. Segundo o referido princípio, o consentimento viciado corresponde à falta de consentimento. Como consequência de sua aplicação, a vítima se vê liberada do ônus da prova, ou seja, de ter que demonstrar a falta de consentimento, de modo que a tipificação do delito e a acusação do traficante ficam facilitadas. No que tange à conduta criminosa contra menores de idade, o Protocolo estabelece um grau ainda maior de proteção. Assim, para pessoas com idade inferior a 18 (dezoito) anos, mesmo nos casos em que não se utilize os meios previstos na letra “a”, configura-se o crime de tráfico a partir de quando as jovens vítimas forem recrutadas, transportadas, transferidas ou simplesmente acolhidas para fins de exploração. Por fim, é importante que seja estabelecida a diferença entre tráfico de pessoas e contrabando de migrantes. Este último é 190

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uma forma de traficar seres humanos. Segundo o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, Relativo ao Combate ao Contrabando de Migrantes por via Terrestre, Marítima e Aérea, o contrabando de migrantes é a entrada ilegal de pessoas em países nos quais ela não possui residência nacional ou permanente, para aquisição de bens financeiros e outros ganhos materiais. Segundo o Escritório das Nações Unidas Contra Drogas e Crime (UNODC), a diferença pode ser visualizada através de três elementos: a) Consentimento O contrabando de migrantes, mesmo em condições perigosas e degradantes, envolve o conhecimento e o consentimento da pessoa contrabandeada sobre o ato criminoso. No tráfico de pessoas, o consentimento da vítima de tráfico é irrelevante para que a ação seja caracterizada como tráfico ou exploração de seres humanos, uma vez que ele é, geralmente, obtido sob malogro. b) Exploração O contrabando termina com a chegada do migrante em seu destino, enquanto o tráfico de pessoas envolve, após a chegada, a exploração da vítima pelos traficantes, para obtenção de algum benefício ou lucro, por meio da exploração. De um ponto de vista prático, as vítimas do tráfico humano tendem a ser afetadas mais severamente e necessitam de uma proteção maior. c) Caráter Transnacional Contrabando de migrantes é sempre transnacional, enquanto o tráfico de pessoas pode ocorrer tanto internacionalmente quanto dentro do próprio país.

Ressalte-se que não só a liberdade das vítimas é privada com o tráfico de pessoas, mas também sua própria dignidade, sendolhe surrupiados os direitos mais essenciais. Destarte, nos termos do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, podese afirmar que a prática resulta da desigualdade socioeconômica, da falta de educação, de poucas perspectivas de emprego e de realização pessoal, de serviços de saúde precários e da luta diária pela sobrevivência. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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Com efeito, o tráfico de pessoas alimenta uma intrincada teia de ações delituosas organizadas, a qual envolve o tráfico de drogas, o turismo sexual, a prostituição e, até mesmo, o trabalho escravo.

III ENFOQUE CONSTITUCIONAL A atuação do Parquet se destina, fundamentalmente, a tornar concretos os objetivos constitucionais da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho (art. 1°, III e IV), os direitos fundamentais individuais à vida, à liberdade e à segurança (art. 5°, “caput”), o direito fundamental de não submissão à tortura nem a tratamento desumano ou degradante (art. 5°, inciso III), o direito fundamental de intimidade e vida privada (art. 5º, inciso X), os direitos fundamentais sociais à saúde e novamente à segurança (art. 6°, “caput”), o direito dos trabalhadores à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (art. 7°, XII), o direito à valorização do trabalho humano digno (art. 170, “caput”, que trata da Ordem Econômica). Como bem salienta o Doutor em Direito Constitucional e Juiz do Trabalho, Francisco Meton Marques de Lima: Indubitavelmente, qualquer interpretação esteia-se numa tábua de valores. E a interpretação constitucional, particularmente, por se tratar a Constituição de um conjunto de princípios abertos, carentes de densificação. Ainda mais, quando o caráter rígido do seu conteúdo material vindica constante atualização de sentido para acompanhar a história.

A propósito, Fávila Ribeiro afirma que o conteúdo da Constituição confraterniza as diversas ordens - cultural, social, econômica, política e jurídica-, cuja essencialidade dos seus conteúdos determina-se em certa época histórica, e vai sendo revitalizada através do contínuo fluir interpretativo. Essa colocação contém inegável matiz axiológico. Reforçando-a, arremata que “a Constituição aferrada a dogmatismos, sobrenadando no éter, sem qualquer grau de referibilidade e contingenciamentos pelos fatores reais da cultura, economia e da política, quase sempre não passa de artefato nominalista”. (LIMA, 2001, p. 353). O referido autor também deixa claro que os “valores superiores” contêm a ideologia a ser perseguida pelo Estado. “Essa 192

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ideologia vincula o legislador infraconstitucional, a ação administrativa e o Poder Judiciário” (LIMA, 2001, p. 357). E prossegue nessa linha: No Brasil, logo no art. 1°, incisos II a V, a Constituição eleva a cidadania, a dignidade da pessoa, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político à condição de princípios fundamentais da República. Levando-se em conta a hierarquia dos princípios constitucionais formulada por Ivo Dantas (princípios fundamentais > princípios gerais > princípios específicos), a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa enquadram-se entre os princípios fundamentais, os quais orientam a interpretação de toda a matéria constitucional. (…) Essa pauta de interpretação vincula o legislador, o judiciário, o administrador e todos os cidadãos, como coparticipes da sociedade aberta de intérpretes da Constituição. Enfim, obriga todos aqueles que constroem o direito, pois, como referido, o enunciado de lei é o objeto da interpretação, mas a norma é o produto que regula o caso concreto. (…) Registre-se, porém, que na práxis, os tribunais brasileiros ainda não se aperceberam desse giro axiológico, prendendose excessivamente aos métodos da justiça formal do ancien régime, em detrimento da hierarquia dos valores fundantes da Constituição. Pior: Invertem-na (LIMA, 2001, p. 364-366).

Com efeito, a condição de vítimas de tráfico para a exploração sexual e laboral não compõe a expectativa social. Além disso, gera toda uma cadeia de violação dos princípios objetivos e direitos constitucionais acima apontados, os quais não poderão ser relegados à mera abstração. Justamente quando há violação, devem ser reerguidos os princípios, para se mostrarem concretamente como pilares de nossa sociedade. A autonomia e independência do Ministério Público do Trabalho lhe confere o poder – e o dever – de cobrar do Estado e da sociedade (mormente dos empregadores) o respeito aos direitos fundamentais do trabalhador, inclusive a garantia de um trabalho digno, de não ser escravizado e traficado como um objeto para a exploração. Na esteira de se conferir eficácia aos direitos sociais, mormente os direitos fundamentais trabalhistas, é imprescindível a Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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atuação do Estado, da sociedade organizada (a exemplo da negociação coletiva) e da comunidade internacional (por intermédio de Tratados e Convenções Internacionais e seus mecanismos de responsabilização). O art. 5º, § 1º, da Constituição Federal consagra o princípio da aplicabilidade imediata das normas que dispõem sobre direitos fundamentais, impondo aos poderes públicos, por consequência, o dever de adotar medidas necessárias para a aplicabilidade e eficácia de tais direitos. Assim, o legislador, “além de obrigado a atuar no sentido da concretização do direito fundamental, encontra-se proibido (e nesta medida também está vinculado) de editar normas que atentem contra o sentido e a finalidade da norma de direito fundamental” (SARLET, 2005, p. 361). E prossegue Sarlet: Esclareça-se, desde logo, que o efeito vinculante dos direitos fundamentais alcança não apenas cada pessoa jurídica de direito público, mas também as pessoas jurídicas de direito privado que, nas suas relações com os particulares, dispõem de atribuições de natureza pública, assim como pessoas jurídicas de direito público na sua atuação na esfera privada. Neste contexto, assume relevo a lição de Vieira de Andrade, para quem o critério decisivo reside na “existência (ou inexistência), na relação jurídica em causa, de entidades com poderes públicos, com privilégios ou prerrogativas de autoridade. O que se pretende com esta abrangência do efeito vinculante é justamente evitar que os órgãos da administração venham a se furtar à vinculação aos direitos fundamentais por meio de uma atuação nas formas do direito privado, resultando naquilo que os autores alemães costumam denominar de uma fuga para o direito privado (Flucht indas Privatrech) (SARLET, 2005, p. 361).

Verifica-se, portanto, que os direitos fundamentais vinculam os órgãos públicos em todas as suas atribuições, devendo sempre ser perseguido o interesse público, por meio da concretização dos aludidos direitos.

IV PANORAMA Prática existente desde a Antiguidade, o tráfico de pessoas continua sendo praticado em pleno século XXI, envolvendo diversas formas de exploração do ser humano e violação de seus direitos mais 194

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essenciais. Segundo estimativas do UNODC, o tráfico internacional de mulheres, crianças e adolescentes movimenta anualmente entre US$ 7 e US$ 9 bilhões, tornando-se uma das atividades mais lucrativas do crime organizado transnacional. Estima-se que o lucro das redes com cada ser humano transportado ilegalmente de um país para outro chegue a US$ 30 mil. As relações exploradoras do trabalho, na contemporaneidade, manifestam-se de formas diversas: trabalho escravo em áreas rurais ou urbanas, práticas de casamento forçado, ou confinamento de mulheres para prestação de serviços sexuais em garimpos, clubes ou mesmo áreas urbanas. Entre estas diferentes formas, há, em comum, uma relação de exploração que transforma o dominado em coisa, em objeto de produção e satisfação dos interesses de lucro do “patrão”. Trata-se, pois, de um processo de coisificação do ser humano, que passa a ser equiparado a um objeto. Souza (SOUZA, 2003, p. 154), referindo-se a Florestan Fernandes, afirma que um ponto fundamental para a exploração ocorrida hoje: [...] foi o abandono do liberto à própria sorte (ou ao azar). Os antigos senhores, o Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição jamais se interessaram pelo destino do liberto. Este imediatamente depois da abolição, viu-se responsável por si e por seus familiares, sem que dispusesse dos meios materiais ou morais para sobreviver numa nascente economia competitiva do tipo capitalista e burguês. Ao negro, fora do contexto tradicional, restava o deslocamento social na nova ordem. Ele não apresentava os pressupostos sociais e psicossociais que são os motivos do sucesso no meio ambiente concorrencial.

Referido abandono acabou por conformar o destino da marginalidade e da pobreza para essa parcela da população. As marcas da escravidão são visíveis ainda hoje. A diferença é que na escravidão moderna houve a inversão das rotas em relação à antiga escravidão. Hoje, as rotas são estabelecidas entre ex-colônias ou mesmo partindo de ex-colônias para as antigas metrópoles. Além disso, houve uma diversificação do mercado: as vítimas são direcionadas não apenas para o trabalho forçado, mas Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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também para outras formas de exploração, a exemplo da sexual e do tráfico de órgãos. A identificação dos focos de tráfico de seres humanos, bem como suas raízes, perpassa por apurar as relações macrossociais da globalização do mercado e seus impactos na precarização das relações de trabalho e condições de vida. Tais fatores acarretam, indubitavelmente, a vulnerabilidade social das vítimas do tráfico de pessoas. No que tange ao tráfico direcionado ao mercado de exploração sexual, as vítimas, em sua grande maioria, são mulheres jovens e pobres, oriundas de bairros desprovidos de estruturas mínimas de higiene e segurança, onde a perspectiva de melhoria das condições de vida e ascensão social são bastante reduzidas. De acordo com dados obtidos no site do Ministério da Justiça, em pesquisa trinacional sobre tráfico de mulheres do Brasil e da República Dominicana para o Suriname, o tráfico de mulheres no país – considerando o tráfico internacional e o interno – é uma realidade discutida a partir de poucas informações. A única pesquisa nacional realizada sobre o assunto foi a Pesquisa Sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual – PESTRAF (LEAL, 2002). A importância de tal pesquisa se deve à visibilidade conferida ao tema, bem como à identificação das rotas e das ações do tráfico. Foram identificadas duzentas e quarenta e uma rotas, que formaram uma base para iniciar a discussão sobre políticas de enfrentamento (PESQUISA..., 2008, p 30). A pesquisa trinacional sobre o tráfico de mulheres entrevistou catorze mulheres que saíram da cidade de Belém, no Estado do Pará. Eram jovens, entre dezessete e trinta e quatro anos de idade (PESQUISA..., 2008, p. 64-65). Não obstante algumas peculiaridades pessoais, as mulheres ouvidas tinham em comum baixa escolaridade, experiência de trabalho informal ou subemprego (bicos ou trabalho doméstico predominantemente) e baixíssimos rendimentos. Residiam em bairros da periferia, ou em pequenos municípios do interior, em casas pequenas e em precárias condições. O desejo de mudar de vida era um sonho comum (PESQUISA..., 2008, p. 64-65). 196

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Por ilustrativo, transcreve-se o depoimento de uma das vítimas (PESQUISA..., 2008, p. 68-69): DI. 34 anos. Solteira. Teve um pai de criação, fora dada para outra família depois que este pai morreu. Trabalhou como babá dos cinco aos 14 anos. Teve sua primeira relação sexual aos 15 anos – ‘Eu não sabia que tinha perdido a virgindade, ele me deu vinho, quando acordei, ele já estava em cima de mim’, conta. Ela tem 4 filhos, cada um de um pai diferente. Alguns destes pais eram clientes de DI. Um dos filhos nasceu de um estupro. Ela passou grande parte da vida morando separada dos filhos e parou de estudar cedo. Foi convidada a ir para o Suriname a fim de trabalhar num restaurante, mas na verdade foi levada com mais sete meninas para um clube fechado, quando tinha 23 anos. ‘Quando cheguei lá, fiquei assustada. Tinha até um micro-ônibus pra levar as meninas. Chegando lá, eu olhei e vi um monte de mulheres num privê. Funciona de dia, as meninas que querem trabalham pra pagar mais rápido (a dívida). Tem uma que é obrigatório trabalhar. Quando foi à noite, ele (o dono do clube) chamou as meninas no escritório, ele deu as boas vindas e disse que, se fôssemos obedientes, poderíamos ser grandes amigas dele. Foi um inferno. Fazia programa até doente pra pagar habitação, comida e limpeza’, relata. DI foi levada depois para outros clubes na Alemanha e na Holanda. Foi mandada de volta ao Brasil, depois de 2 anos, por não ter visto de permanência. No retorno ao Brasil, viveu crises de depressão e problemas de saúde devido ao uso de drogas. Esteve internada num centro de recuperação em Belém. Hoje ela tenta ganhar a vida fazendo salgadinhos e doces, voltou a morar com a mãe e seus filhos, e pretende voltar a estudar.

Referida pesquisa constatou que as formas de aliciamento são diversas, entretanto possuem uma característica em comum: os convites, as providências para a viagem, os contatos não provêm de alguém distante, de um estranho, desconhecido. Ao contrário, são provenientes de alguém que está próximo, conhecido, parente, vizinho, amigo. A estratégia comum pressupõe, de início, o conhecimento da situação de vulnerabilidade (PESQUISA..., 2008, p. 64-65). Após o aliciamento, passa-se à fase do transporte das mulheres, o qual é surpreendentemente realizado dentro de todas as condições normais de embarque de passageiros. O embarque é realizado no aeroporto de Belém, nos aviões comerciais, em horários Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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normais etc. (PESQUISA..., 2008, p. 91). Ao chegar ao Suriname, os sonhos de melhores condições de vida cedem à dura realidade de exploração, logo nas primeiras experiências de malogro. De acordo com a pesquisa (PESQUISA..., 2008, p. 95): os relatos são claros e contundentes. Já em território estrangeiro, novos elementos somam-se aos elementos criminosos iniciais concretizados ainda no Brasil (aliciamento, recrutamento, engano e transporte). Estes elementos novos são: trabalho forçado, jornadas exaustivas, vigilância ostensiva, condições humilhantes e degradantes, restrição da locomoção ou encarceramento explícito por dívida, retenção dos documentos como forma de prender a pessoa, agressões físicas.

Conclui-se que a pobreza e a exclusão social vivenciada por milhares de mulheres é a causa do aumento do fenômeno da migração daquelas em condições de risco. Trata-se de uma violência oriunda da discriminação social e econômica que as coloca numa posição de vulnerabilidade frente às ações dos traficantes. Outra faceta do tráfico de pessoas é aquele destinado à exploração laboral das vítimas. Traficar pessoas é transformá-las em objeto, invertendo-se sua condição essencial de ser humano. Por isso, o envio de pessoas a um explorador, interessado em explorar ilicitamente seu trabalho, configura um processo de coisificação do homem, convertendo-o em mera mercadoria, com fins pecuniários. Nesse contexto, a realidade comum vivenciada pelas vítimas do tráfico para fins de exploração laboral é a extrema pobreza, o que acarreta uma falta de perspectivas aterradora. Justamente por não vislumbrarem um futuro menos sofrível é que são facilmente cooptados pelos traficantes. Trata-se de pessoas humildes, normalmente de instrução precária, as quais recebem fantasiosas propostas de emprego, sendo ludibriadas e arrastadas para verdadeiros covis, onde terminam sendo maltratadas e exploradas. A facilidade com que o tráfico ludibria os trabalhadores também decorre de sua condição de vulnerabilidade social e econômica. Nesse contexto, revela-se profunda a ausência do papel social do Estado, no sentido de criar condições para que as pessoas 198

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concretizem seu direito fundamental ao trabalho digno. É o caso dos migrantes ilegais. Em decorrência de sua condição de ilegalidade, referidos migrantes aceitam condições degradantes de trabalho em função do temor de serem deportados. São trabalhadores totalmente marginalizados, que não se associam a sindicatos obreiros, contribuindo para que, dessa forma, não haja oposição aos empregadores. Assim, sujeitam-se às condições impostas por seus algozes, que aproveitam da situação para aumentar sua produção e reduzir seus custos. Esse tipo de prática já foi, inclusive, objeto de atuação do Ministério Público do Trabalho, quando flagrou, recentemente, diversos migrantes trabalhando em condições análogas à de escravo numa fábrica da empresa Zara em São Paulo. Normalmente, entram no país com certa facilidade, em virtude da fragilidade da fiscalização das fronteiras. É o que ocorre, por exemplo, na cidade de Corumbá, no Estado do Mato Grosso do Sul, cuja fronteira com a Bolívia conta com apenas um posto de fiscalização. A par da repugnância social do tráfico de pessoas, há dados aterradores de sua lucratividade indireta. É o que revela outra importante pesquisa realizada conjuntamente pela Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crimes (UNODC) e pelo Governo do Estado de Pernambuco sobre o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual e de trabalho no Estado de Pernambuco. Segundo a Secretaria Nacional de Justiça, em se tratando do tráfico internacional, os frutos do trabalho de uma pessoa traficada terminam por contribuir com os impostos do país estrangeiro em que está situada, sem que ela mesma venha a usufruir de suas garantias sociais. Outra situação demonstrada é o aumento do PIB e da renda per capita das regiões onde estão localizadas as famílias que recebem o auxílio das pessoas exploradas (VASCONCELOS, 2009, p. 46). Lamentavelmente, o tráfico de pessoas, apesar de sua repugnância, não causa o abalo social necessário para que o governo promova as devidas ações, pois os seus efeitos ocorrem, normalmente, afastados da realidade rotineira da sociedade, o que dificulta a sensibilização das pessoas que não são próximas às vítimas. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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Esse problema de alheamento se agrava ainda mais, quando se trata do tráfico internacional, mesmo sendo mais divulgado pela mídia em geral. Isso porque há uma maior distância física entre o traficado e o restante da sociedade (VASCONCELOS, 2009, p. 46-47). O tráfico interno de pessoas é bastante intenso no Brasil. De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego, entre 1995 e 2006, cerca de dezenove mil trabalhadores foram encontrados em condições análogas à de escravo. Já no ano de 2003, foram denunciados duzentos e quarenta casos de trabalho escravo, dos quais cento e cinquenta e quatro foram averiguados pelo referido órgão, chegandose a libertar cinco mil e dez trabalhadores (VASCONCELOS, 2009, p. 47). A OIT também divulgou números específicos sobre o tráfico interno de pessoas no Brasil. De sua pesquisa resultou uma lista com os principais estados fornecedores de mão de obra escrava para todo o país, sendo o Piauí o líder da demanda, com 22% dos casos, seguido por Tocantins (15,5%), Maranhão (9,2%), Goiás (4,2%) e Ceará (3,8%) (VASCONCELOS, 2009, p. 47). Em Pernambuco, os casos de exploração de trabalhadores reduzidos à condição análoga à de escravo também são alarmantes, sendo o tráfico de pessoas um meio pelo qual se visa o abastecimento de mão de obra das usinas e plantações de cana-de-açúcar. Consoante reportagem divulgada no site Repórter Brasil em 2008, somente no município de Palmares (zona da mata sul de PE) foram resgatados duzentos e oitenta e quatro cortadores na usina do então prefeito da cidade. Também na zona da mata de Pernambuco, especificamente no município de Água Preta, um deputado estadual foi denunciado por manter, em seu engenho, quarenta trabalhadores em condições degradantes. Já no Maranhão, na fazenda de um deputado federal, foram encontrados cinquenta e três trabalhadores em condições análogas à de escravo (VASCONCELOS, 2009, p. 47-48). O envolvimento de políticos e grandes empresários em crimes de tráfico de pessoas e exploração de mão de obra de trabalhadores reduzidos à condição análoga à de escravo revela a gravidade do problema social vivenciado no Brasil. Herança da política escravocrata que vigorou no país por séculos, a exploração de mão de obra é vista por muitos como uma realidade aceitável, 200

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tendo em vista a lucratividade e o aumento da produção dela oriunda. A aceitação de condições degradantes de trabalho, a começar pelo tráfico de pessoas, por setores da sociedade, inclusive setores públicos, é a causa da dificuldade ao combate efetivo dos ilícitos. A par da atuação de órgãos como o Ministério Público do Trabalho, ao qual falece competência penal, o que se vê é uma perigosa indiferença do Poder Judiciário brasileiro no que tange à responsabilização criminal. Tal indiferença é inegável, em vista das escassas condenações no âmbito penal, apesar das inúmeras operações de resgate de trabalhadores traficados e submetidos à condição análoga à de escravo. O pequeno índice de condenações decorre, especialmente, da resistência em se considerar o trabalho degradante como forma de redução à condição análoga à de escravo, muito embora a previsão do art. 149 do Código Penal seja expressa nesse sentido. Como se não bastasse, o reduzido número de condenações criminais acarreta uma latente sensação de impunidade na população, notadamente pelo fato de muitos desses ilícitos serem cometidos por políticos e grandes empresários.

V POLÍTICA NACIONAL DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS Como já relatado, no ano 2000, o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional para prevenir, reprimir e sancionar o Tráfico de Pessoas, especialmente o de mulheres e crianças, conhecido simplesmente como Protocolo de Palermo, definiu no seu artigo 3º o que viria a ser o tráfico de pessoas. Anos depois, no Brasil, o Decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006, introduziu a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que instituiu princípios, diretrizes e ações para coibir a prática do tráfico. A definição do Tráfico de Pessoas foi aquela utilizada no Protocolo de Palermo. Porém, a norma nacional trouxe uma importante inovação em relação ao referido Protocolo. Trata-se da ampliação do princípio da irrelevância do consentimento da vítima. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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O Protocolo de Palermo considera o consentimento da vítima irrelevante para a caracterização do tráfico apenas quando comprovado o uso de ameaça, coação, fraude, abuso de autoridade ou situação de vulnerabilidade – exceto quando se tratar de vítima menor de 18 anos de idade, ocasião em que, mesmo não havendo os elementos contidos na alínea “a” do artigo 3, o consentimento será irrelevante. Já a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, no §7º do seu artigo 2º, afasta, indubitavelmente, o consentimento da vítima como causa desqualificadora do tráfico, sendo irrelevante para sua configuração, independentemente da presença do uso de ameaça, coação, fraude, abuso de autoridade ou situação de vulnerabilidade. Além disso, a Política Nacional traz em seu bojo um tríplice enfoque norteador dos seus fins, a saber: a prevenção ao tráfico, de forma a atuar com ênfase dentre os principais grupos de pessoas que estejam sujeitos à exploração, inibindo a ação dos aliciadores, também conhecidos como “gatos”; a repressão, ou seja, o combate direto aos traficantes, de modo a não só lhes impor as sanções cabíveis, mas também a buscar, através da interação com outros governos, a desarticulação das redes criminosas; e ainda, a atenção às vítimas, que seria o amparo psicológico, jurídico e assistencial de forma geral aos que conseguem se desprender da situação de exploração, mas encontram dificuldades para regressar ao seu local de origem e se reinserir na sociedade. Os focos nacionais da Política de Enfrentamento ao Tráfico são os estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás e Ceará, sendo os dois primeiros os pontos de saída, principalmente através dos aeroportos, e os dois últimos os locais onde o tráfico atua mais intensamente. Observa-se que o Brasil, ao ratificar o Protocolo de Palermo, tipificou, pela primeira vez, o tráfico interno de pessoas para fins de exploração sexual, que também é praticado, em grande escala, no país e atinge, com maior intensidade, as crianças e os adolescentes. Os objetivos do Programa do Ministério da Justiça e do UNODC são promover o crescimento da conscientização pública sobre o tráfico de seres humanos e fortalecer a capacidade institucional de enfrentar o problema. Para isso, visam treinar agentes públicos 202

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envolvidos com a aplicação da lei, como policiais, promotores e juízes; colaborar com o planejamento e a revisão da legislação; prover o aconselhamento e a assistência para o estabelecimento e fortalecimento de elementos antitráficos e fortalecer o apoio às vítimas e às testemunhas (VASCONCELOS, 2008, p. 64). O Decreto 5.948/2006, no Capítulo II, explicita as Diretrizes e os Princípios da Política de Enfrentamento, contendo uma Seção de Princípios e outras duas de Diretrizes Gerais e Específicas. Destaca-se, dentre os princípios da Política nacional, o respeito à dignidade da pessoa humana, com promoção e garantia da cidadania e dos direitos humanos; não discriminação por qualquer motivo e proteção e assistência integral às vítimas, independentemente de nacionalidade e de colaboração em processos judiciais. Em relação às diretrizes, observa-se o fomento à cooperação internacional; articulação com entidades nacionais e internacionais; estruturação de rede de enfrentamento, envolvendo todas as esferas do governo e da sociedade civil e garantia de acesso amplo a informações e estabelecimento de canais de diálogo entre o Estado, a sociedade e os diferentes meios de comunicação acerca do tema “enfrentamento ao tráfico de pessoas”. Na trilha dos princípios e diretrizes da política de enfrentamento, em 08 de janeiro de 2008, o Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, instituiu, por meio do Decreto nº 6.347, o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP), que estava previsto como um dos instrumentos da Política Nacional. Referido intento foi delegado a um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), integrado por representantes de diversos órgãos públicos federais, contando, ainda, com o apoio do Ministério Público Federal, do Ministério Público do Trabalho, ONGs, especialistas e organizações internacionais, sendo coordenado pela Secretaria Nacional de Justiça. O GTI se reuniu em 2007, para elaborar o plano, dividindo-o em três eixos estratégicos de acordo com a Política Nacional, a saber: prevenção ao tráfico; atenção às vítimas e, por fim, repressão ao crime e responsabilização de seus atores. Para cada área específica, o plano, cuja validade é de dois anos, traz um conjunto de ações e de metas, especificando o órgão responsável, além dos seus parceiros (CASTILHO, 2006). Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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No tocante à Prevenção, o objetivo é minimizar a fragilidade de determinados grupos sociais em relação ao tráfico, bem como fomentar políticas públicas para combater as causas do problema. Uma das prioridades definidas no Plano é a realização de pesquisas para o levantamento de informações sobre o tráfico, bem como a capacitação dos atores envolvidos, direta ou indiretamente, com o enfrentamento ao TSH (Tráfico de Seres Humanos). Além disso, pretende-se alcançar a sensibilização de comunidades acerca da temática, através de campanhas e projetos artísticos (CASTILHO, 2006). Por outro lado, em relação à atenção às vítimas (brasileiras e até estrangeiras traficadas para o Brasil), o objetivo do Plano é seu tratamento e reinserção social, por meio de adequada assistência consular e acesso à Justiça de forma não discriminatória. Uma de suas ações está pautada na implantação de um programa permanente de atendimento, condizente com a perspectiva dos direitos humanos (VASCONCELOS, 2008, p. 66). Já no que tange à repressão e à responsabilização, o escopo é fiscalizar, controlar e investigar os aspectos trabalhistas e penais, no âmbito nacional e internacional do tráfico de pessoas. Um dos focos é o aprimoramento da legislação brasileira (VASCONCELOS, 2008, p. 66). Para o efetivo sucesso do documento – PNETP –, no que tange às suas ações e ao alcance de suas metas, é indispensável a atuação de diversos setores, visto que o Tráfico do Seres Humanos envolve vários aspectos sociais, tais como: desigualdade socioeconômica, falta de educação e de emprego, serviços de saúde precários etc. São inúmeras as causas geradoras deste delito, que é considerado o terceiro mais grave crime organizado do mundo, depois do tráfico de drogas e do de armas (CAMPOS; SANTANA; OLIVEIRA, 2008, p. 7). Por fim, ressalte-se que, a fim de melhor executar o PNETP, bem como dar continuidade às ações já implantadas, o Ministério da Justiça iniciou as atividades para a elaboração do II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Segundo o Ministério, o II PNETP será elaborado a partir de propostas apresentadas por toda a sociedade e obtidas por meio de consultas 204

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virtuais, diálogos e plenárias livres – que poderão ser realizadas em escolas, universidades, associações de bairro, núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, ONG´s, conselhos de classe etc. Para a elaboração do II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial no âmbito da Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça, por meio da Portaria nº 1.239, de 27 de junho de 2011, coordenado pelo Secretário Nacional de Justiça. O objetivo do GTI é organizar a metodologia de elaboração do II PNETP, inclusive o formato dos espaços de discussão que serão criados entre os organismos governamentais envolvidos e as parcerias não governamentais, bem como uma proposta de texto para o II PNETP a ser consolidado nesses espaços de discussão. Ainda, é facultado ao GTI convidar representantes de outros órgãos, entidades da administração pública, organismos internacionais e entidades da sociedade civil para subsidiar os trabalhos a serem efetuados.

VI A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NO COMBATE AO TRÁFICO DE PESSOAS O Ministério Público, tal como concebido pela Constituição Federal de 1988, em seu art. 127, caput, é instituição permanente, imprescindível à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. É instituição voltada para o resguardo do próprio sistema jurídico e para a proteção da sociedade (defensor societatis). Já o art. 129, inciso III, da Magna Carta dispõe que é função do Ministério Público, dentre outras, promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. Lado outro, a Lei Orgânica do Ministério Público da União confere ao Ministério Público do Trabalho, em seu art. 83, incisos I e III, as seguintes atribuições: promover as ações que lhe sejam atribuídas pela Constituição Federal e pelas leis trabalhistas, Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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bem como promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para a defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos. A mesma lei dispõe, ainda, no art. 6º, ser o Ministério Público competente para promover o inquérito civil e a ação civil pública para proteger outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos. O Ministério Público do Trabalho atua, portanto, como entidade voltada para a defesa do interesse público, em especial dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos dos trabalhadores. Nessa esteira, é o ramo do Ministério Público responsável pela efetiva observância dos direitos trabalhistas previstos em lei e na Constituição Federal. Com efeito, a tutela coletiva a ser exercida pelo Ministério Público encontra fundamento não apenas na Magna Carta, mas também na legislação infraconstitucional. É o que se verifica no Código de Defesa do Consumidor (art. 81, parágrafo único), que define as espécies de direitos coletivos lato sensu. Nessa esteira, os principais instrumentos jurídicos de atuação do Parquet laboral são o inquérito civil e a ação civil pública. O primeiro é utilizado ainda no âmbito administrativo, sendo um procedimento de natureza inquisitiva, destinado a apurar as circunstâncias dos fatos investigados. Nos dizeres de Hugo Nigro Mazzilli, o inquérito civil é uma investigação administrativa prévia a cargo do Ministério Público, que se destina a colher elementos de convicção para que o próprio órgão ministerial possa identificar se ocorre circunstância que enseje eventual propositura de ação civil pública ou coletiva (MAZZILLI, 1999. p. 130).

O objeto do inquérito civil reside na colheita de elementos que poderão formar o convencimento do órgão ministerial acerca de eventuais lesões perpetradas a interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos. Já a ação civil pública se desenvolve no âmbito judicial, destinando-se à proteção dos interesses e direitos coletivos lato sensu. Possui natureza primordialmente condenatória. Trata-se, portanto, de 206

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uma ação constitucional cujo fim precípuo repousa na promoção da defesa dos interesses ou direitos metaindividuais. Por ser um remédio constitucional, encontra seu fundamento de validade nos princípios da inafastabilidade da jurisdição, devido processo legal e isonomia (LEITE, 2010, p. 183).

Destarte, o inquérito civil e a ação civil pública são os instrumentos jurídicos a serem utilizados pelo Ministério Público do Trabalho para o combate ao tráfico de pessoas e sua consequente redução à condição análoga à de escravo. Via de regra, o inquérito civil termina com a assinatura do termo de ajuste de conduta, nos casos em que há constatação de irregularidades trabalhistas. A celebração do TAC, em que o investigado assume obrigações de fazer e não fazer, bem como de dar, a fim de adequar sua conduta, sob pena de multa, revela-se mais interessante e produtiva nos casos de combate ao tráfico de pessoas e à redução à condição análoga à de escravo. Isso porque o ajuizamento de ação civil pública envolve dificuldades de produção de prova neste tipo de lide, além das delongas inerentes ao processo judicial. Trata-se, pois, de solução mais prática e efetiva, em detrimento da ação judicial. Não obstante, não se pode olvidar que, não aceitando o investigado as cláusulas do TAC, deve o Procurador oficiante se utilizar da ação civil pública para pleitear a condenação do agora réu em obrigações de fazer e não fazer, bem como de pagar indenização por dano moral, se for o caso. Tanto no termo de ajuste de conduta quanto na ação civil pública, as obrigações fixadas, nos casos de tráfico de pessoas e de escravidão moderna, tratam, basicamente, de registro de empregados na CTPS, meio ambiente do trabalho (mormente as condições mínimas dos alojamentos), equipamentos de proteção individual e coletiva, transporte adequado dos trabalhadores, quitação de salários e verbas de FGTS no prazo legal, não contratação de menores de idade e, até mesmo, fixação de montante indenizatório a título de dano moral coletivo e individual. Especificamente no que se refere ao tráfico de pessoas, revela-se imprescindível a fixação no TAC de cláusula (ou pedido em ACP) contendo a obrigação de o empregador comunicar à Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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Superintendência Regional do Trabalho - SRTE, por intermédio da Certidão Declaratória de Transporte de Trabalhadores (CDTT), o transporte de obreiros recrutados para trabalhar em localidade diversa de sua origem, nos termos do art. 23 e seguintes da Instrução Normativa nº 76 do Ministério do Trabalho e Emprego, datada de 15 de maio de 2009. A instrução normativa do MTE é um importante instrumento para prevenir a prática do tráfico de pessoas e a exploração de sua força de trabalho. Ao exigir a comunicação do recrutamento de trabalhadores para laborar em localidade diversa de sua origem, a norma possibilita que seja feito um controle prévio da regularidade do contrato de trabalho através da exigência da comprovação de determinados requisitos, garantindo-se ao empregado seus direitos essenciais. Nessa esteira, a IN nº 76 do MTE, em seu artigo 24, dispõe acerca das informações que devem ser preenchidas na CDTT, a exemplo das condições pactuadas de alojamento, alimentação e retorno à localidade de origem do trabalhador. Já o artigo 25 exige, dentre outros documentos, cópias dos contratos individuais de trabalho e do certificado do registro para fretamento da empresa transportadora, emitido pela Agência Nacional de Transportes Terrestres - ANTT. A par dos instrumentos jurídicos de combate ao tráfico de pessoas, é de se destacar a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Assim, dispõe o Decreto nº 5.948/2006, em seu art. 3º, parágrafo 4º, que o Ministério Público do Trabalho será convidado a fazer parte do Grupo de Trabalho Interministerial instituído no âmbito do Ministério da Justiça com a finalidade de elaborar proposta do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – PNETP. Previu, também, o aludido decreto ações conjuntas, articulando os diversos ramos do Ministério Público dos Estados e da União (incluído, por óbvio, o Ministério Público do Trabalho), da Magistratura Estadual e Federal e dos órgãos do sistema de justiça e segurança pública (art. 8º, inciso I, alínea “l”). Tudo com vistas a implantar, efetivamente, a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, na área de Justiça e Segurança Pública. Na área do trabalho e emprego, a PNETP fixa, como 208

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diretrizes, ações que devem, necessariamente, atrair a intervenção do Parquet laboral, tendo em vista sua função de proteger o interesse público primário. São elas: a) orientar os empregadores e entidades sindicais sobre aspectos ligados ao recrutamento e deslocamento de trabalhadores de uma localidade para outra; b) fiscalizar o recrutamento e o deslocamento de trabalhadores para localidade diversa do Município ou Estado de origem; c) promover articulação com entidades profissionalizantes visando capacitar e reinserir a vítima no mercado de trabalho; e d) adotar medidas com vistas a otimizar a fiscalização dos inscritos nos Cadastros de Empregadores que Tenham Mantido Trabalhadores em Condições Análogas a de Escravo. Além de membro convidado a integrar o Grupo de Trabalho responsável pela implementação do PNETP, o Ministério Público do Trabalho constituiu, no âmbito da própria instituição, a Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONAETE), que investiga situações em que os obreiros são submetidos a trabalho forçado, servidão por dívidas, jornadas exaustivas ou condições degradantes de trabalho, como alojamento precário, água não potável, alimentação inadequada, desrespeito às normas de segurança e saúde do trabalho, falta de registro, maus tratos e violência. Desde sua criação, a CONAETE integra e protagoniza ações de prevenção e repressão, tanto interinstitucionais quanto próprias. Assim, as iniciativas de combate ao tráfico de pessoas vão desde a repressão ao ilícito até a elaboração de projetos que visam à inserção dos trabalhadores em cursos de qualificação profissional e, consequentemente, no mercado de trabalho. Tais ações têm por escopo, fundamentalmente, evitar a reincidência das vítimas do tráfico, transformando a anterior hipossuficiência extrema do ser humano escravizado em nova realidade social, na qual sua dignidade seja assegurada. A caracterização do trabalho análogo ao de escravo envolve, na maioria das vezes, a configuração do tráfico de pessoas como delito anterior, em que há o aliciamento de trabalhadores e seu posterior deslocamento para serem explorados ilicitamente em localidade diversa de sua origem. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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Bem se vê, portanto, que o tráfico de pessoas e a exploração do trabalho em condições análogas à de escravo são figuras intimamente ligadas, sendo o primeiro, por vezes, um delito antecessor do segundo. Por isso, constata-se que, na grande maioria dos casos de resgate, o obreiro é originário de outra localidade, tendo migrado para conseguir um emprego, após contratação por um intermediador, conhecido como “gato” ou “empreiteiro”. Com a abordagem do gato, que ilude os interessados com falsas promessas de bons salários e condições dignas de trabalho, inicia-se a via crucis dos trabalhadores, transportados de forma extremamente precária, com alto risco de acidentes já no percurso. Além disso, não há qualquer tipo de documentação da contratação realizada, nem tampouco emissão de certidão liberatória de transporte pelas autoridades competentes. A precariedade da contratação e do transporte pressupõe o aterrador fim da ilusão dos obreiros, quando então são submetidos a condições análogas à de escravo. Com o escopo de conferir regularidade à migração de trabalhadores, de modo a assegurar condições dignas de trabalho, evitando sua sujeição a situações de exploração, o MPT lançou em 2010 o projeto nacional de prevenção ao trabalho escravo e combate à intermediação ilegal de mão de obra no meio rural, em curso em diversas Procuradorias Regionais do Trabalho do país. Os ilícitos, praticados tanto por pequenos produtores rurais quanto por grandes empresários, são viabilizados, na maioria dos casos, pelo anterior aliciamento da mão de obra pela figura do “gato”. Sabe-se que os danos causados por tais delitos extrapolam a dimensão do mero transporte irregular de trabalhadores e a não formalização de registros de empregados, acarretando, por vezes, na escravização do trabalhador. Por configurar um ilícito grave e repugnante, o combate ao aliciamento e à intermediação fraudulenta constitui meta de atuação prioritária do Ministério Público do Trabalho. Apesar da iniciativa do Parquet Laboral, as tortuosidades que permeiam a implantação e a efetividade do combate ao tráfico de pessoas são diversas, a começar pelas enormes dimensões territoriais 210

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do país e pela ausência de uma política educacional sólida. A conjunção de tais fatores, aliados à falta de empregos formais e à natureza transitória das atividades rurais, contribui, sensivelmente, para que a prática de aliciamento e intermediação fraudulenta de mão de obra permaneça enraizada na sociedade brasileira, como uma mácula repugnante. A efetividade do combate ao tráfico de pessoas depende, fundamentalmente, da atuação conjunta dos diversos setores do Poder Público. Justamente tendo como escopo uma atuação conjunta é que se editou, no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, a Instrução Normativa nº 65/2006, dispondo sobre o enfrentamento ao tráfico de pessoas ou de seres humanos. Regulamentando o planejamento das ações fiscais, a instrução prevê que “deverão participar da elaboração do planejamento os representantes da Comissão de Colaboração com a Inspeção do Trabalho – CCIT e, como convidados, os representantes do Ministério Público do Trabalho, das Polícias Federal e Rodoviária Federal” (art. 2º). Também dispõe que “as fiscalizações previamente planejadas deverão prever a participação de representantes do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal” (art. 20). Não basta, porém, uma mera atuação conjunta. É imprescindível sejam as ações baseadas num planejamento estratégico, apoiado em dados de inteligência. E tal planejamento perpassa não só pela identificação dos locais onde é costumeira a prática do tráfico de pessoas, mas também pela detecção das causas comuns, a fim de que o ilícito possa ser combatido em sua origem. Com efeito, tendo em vista o planejamento estratégico recentemente implantado pelo Ministério Público do Trabalho, há o enquadramento do combate ao ilícito do tráfico de pessoas dentre as metas institucionais do Plano de Gestão Estratégica. Assim, elaborouse no âmbito da CONAETE uma cartilha na qual são estabelecidas diretrizes e orientações para a implantação de políticas e ações de combate ao aliciamento e à intermediação ilegal de mão de obra. Estabeleceu-se, pois, como objetivos gerais: a) promover a erradicação do trabalho escravo e degradante; b) combater o aliciamento e a intermediação ilegal de mão de obra rural; c) promover Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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a implementação de políticas públicas de intermediação de mão de obra e a coordenação de órgãos federais, estaduais e municipais envolvidos com o tema; d) reprimir o transporte ilegal e inseguro de trabalhadores; e) divulgar o aliciamento e a intermediação ilegal de mão de obra rural, como ato inicial da exploração do trabalho escravo, e o transporte ilegal de trabalhadores, como causa de acidentes que os vitimam grave ou fatalmente. Prosseguindo, destaca-se, dentre os objetivos específicos: a) diagnosticar os municípios exportadores de mão de obra escrava; b) promover a instalação de agências públicas de emprego; c) estimular a contratação direta de trabalhadores, excluindo a intermediação pelos chamados “gatos”; d) estimular o transporte de trabalhadores nos termos da legislação específica, em especial pela emissão da Certidão Declaratória de Transportes de Trabalhadores – CDTT; e) promover fiscalizações periódicas nas rodovias; f) organizar forçastarefas para auxiliar Membros do MPT na realização desses objetivos, se necessário. Tendo em vista o planejamento operacional, é imprescindível a identificação dos municípios exportadores de mão de obra e das rodovias e estradas a serem prioritariamente fiscalizadas, bem assim os períodos do ano e horários mais recomendados, em cada região, à fiscalização. Relevante também a identificação das regiões e setores econômicos de maior incidência de atuação de “gatos”. Por fim, importante é o levantamento dos municípios que contam com agências públicas de emprego e da respectiva situação operacional. Ultrapassada a fase de diagnóstico do problema, iniciase a etapa das Notificações Recomendatórias aos órgãos públicos responsáveis pela implantação das políticas públicas de intermediação de mão de obra, bem assim às entidades representativas dos setores envolvidos com o aliciamento e a intermediação ilegal de mão de obra. Após a realização das Notificações Recomendatórias, inicia-se a fase das fiscalizações. Nesta etapa, as orientações de atuação são no seguinte sentido: a) a duração deverá observar o prazo de dois a cinco dias, sendo a equipe composta por Procuradores do Trabalho, Auditores Fiscais do Trabalho e Policiais; b) após a verificação dos fatos (colheita de depoimentos e análise de documentação), verificado 212

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o ilícito, deve ser enfatizada a caracterização do tráfico de pessoas, inclusive para fins criminais, fiscalizando-se, também, a regularidade dos veículos utilizados para o transporte dos trabalhadores; c) constatado o aliciamento, a intermediação e a contratação por “gato”, serão os respectivos ônibus apreendidos, uma vez que utilizados para o cometimento de delitos e, se necessário, poderão ser ajuizadas ações cautelares nesse sentido; d) deverá ser exigido dos intermediários e empregadores a satisfação das necessidades imediatas dos trabalhadores (caso não sejam localizados, deverão ser consideradas medidas como hospedagem e encaminhamento aos locais de origem); e) após colhida a prova e localizados empregador e/ou “gato”, exigir-se-á a regularização de vínculos trabalhistas e, conforme o caso, pagamento de indenização, inclusive por danos morais individuais e coletivos; f) por fim, deverá ser produzido relatório das operações desta etapa, encaminhando-se original assinado à Procuradoria com circunscrição na localidade fiscalizada e cópia eletrônica à Coordenação Nacional do Projeto. A par das medidas repressivas, a cartilha elaborada pela CONAETE propõe a implantação de projetos com o escopo de prevenir o aliciamento e a intermediação ilegal de mão de obra. Tratase da implantação de agências públicas de emprego, com a finalidade de cadastrar trabalhadores. A medida, de natureza eminentemente preventiva, tem o intuito de avaliar, sensibilizar e buscar o comprometimento dos parceiros locais, por meio de audiências públicas sobre o tema nas regiões mais críticas. Ainda, a partir das análises de inteligência, deverão ser criados bancos de dados, nos quais se registre as regiões mais críticas, as causas, os aliciadores e exploradores, os perfis e origens das vítimas, bem como as rotas de transporte e o destino dos aliciados. Elaborado um banco de dados, será possível ao Ministério Público do Trabalho exigir do Poder Público a implantação de políticas de prevenção e combate ao aliciamento e à intermediação ilegal de mão de obra, subsidiando as ações por meio de dados de inteligência. Por fim, concluído o ciclo do método de operacionalização, passa-se à fase de replicação, em que as operações serão repetidas, a fim de se garantir um resultado efetivo no combate ao tráfico de Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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pessoas.

VII CONCLUSÃO Ao fim do presente estudo, constatou-se que o tráfico de pessoas, prática existente desde a Antiguidade, é uma chaga social lamentavelmente enraizada no Brasil, a exigir uma atuação efetiva dos diversos setores do Poder Público, por meio de políticas públicas de prevenção e repressão, bem assim uma maior conscientização da sociedade acerca de sua gravidade. Conforme demonstrado, as dificuldades de combater o tráfico de pessoas são diversas, a começar pela lucratividade obtida pela prática do ilícito. Ainda, a falta de um sistema educacional sólido e de uma política de geração de empregos eficaz contribui para a situação de vulnerabilidade das vítimas, que são facilmente cooptadas pelos traficantes e, por conseguinte, exploradas. Os perfis das vítimas são comuns: pessoas pobres, de instrução precária, que não tiveram acesso a redes de ensino consistentes, cujas perspectivas de melhora das condições de vida são reduzidas. Portanto, é traço comum a extrema pobreza. Justamente por não vislumbrarem um futuro menos sofrível é que são facilmente aliciadas por um intermediador (o “gato”), seduzidas por fantasiosas promessas de bons empregos. Com efeito, é imprescindível que as disposições do Protocolo de Palermo, bem como os princípios e normas constitucionais, sejam, de fato, observados pelo Poder Público. Além disso, as metas e diretrizes previstas na Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas devem ser efetivamente colocadas em prática, por meio de ações concretas de combate. Tendo em vista que a atuação do Ministério Público do Trabalho tem por escopo tornar concretos os objetivos fundamentais previstos na Constituição Federal, o enfrentamento ao tráfico de pessoas deve ser tratado como meta prioritária, por se tratar de grave desrespeito aos valores dignidade e liberdade do ser humano. Assim, a elaboração de um planejamento operacional, acompanhado de dados de inteligência, em conjunto com parceiros, é imprescindível para a efetividade da atuação do Parquet Laboral com vistas a não só enfrentar, mas também – e por que não? – erradicar o tráfico de pessoas no Brasil. 214

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VIII REFERÊNCIAS CAIXETA, Sebastião Vieira; FARIAS, Débora Tito (Org.). Projeto de Atuação na Prevenção e no Combate ao Aliciamento e à Intermediação de mão de obra rural. Disponível em: <http://portal.mpt.gov.br>. Acesso em: 16 nov. 2011. CAMPOS, Bárbara; SANTANA, Cidália; OLIVEIRA, Marina. Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Brasília: SNJ, 2008. Disponível em: <http://www.unodc.org/pdf/brazil/publicacoes/ PlanoNacionalTP.pdf>. Acesso em: 21 nov. 2011. CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Tráfico de pessoas: da Convenção de Genebra ao protocolo de Palermo. São Paulo: SNJ, 2006. Disponível em: <http://www.unodc.org/pdf/brazil/publicacoes/ PlanoNacionalTP.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2011. FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. São Paulo: Atica, 1978. v. 1 e 2. LEAL, Maria Lucia; LEAL, Maria da Fátima (Org.). Pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil – PESTRAF. Relatório nacional. Brasília: Cecria, 2002. LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ministério Público do Trabalho: Doutrina, Jurisprudência e Prática. 4. ed. São Paulo: Ltr, 2010. LIMA, Francisco Meton Marques de. O resgate dos valores na interpretação constitucional: por uma hermenêutica reabilitadora do homem como “ser moralmente melhor”. Fortaleza: ABC Editora, 2001. MAZZILLI, Hugo Nigro. O inquérito civil. São Paulo: Saraiva, 1999. NAÇÕES UNIDAS DO BRASIL: Notícias. Disponível em:<http:// www.onu-brasil.org.br/view_news.php?id=4753>. Acesso em: 21 nov. 2011. PESQUISA Tri-Nacional Sobre Tráfico de Mulheres do Brasil e da República Dominicana para o Suriname, Uma Intervenção em Rede. HAZEU, Marcel (Org.). Belém: Sodireitos, 2008. TRÁFICO de Pessoas e Contrabando de Migrantes. UNODC. Disponível em: <http://www.unodc.org/southerncone/pt/traficode-pessoas/index.html>. Acesso em: 22 nov. 2011. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. SOUZA, Jessé. A Construção Social da Subcidadania: por uma Sociologia Política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG, 2003. VASCONCELOS, Karina Nogueira (Org.). Tráfico de Pessoas: Pesquisa e diagnóstico do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual e de trabalho no Estado de Pernambuco. Recife: NP Assessoria e Planejamento Ltda., 2009.

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AS FORMAS DE REMUNERAÇÃO DOS CORTADORES DE CANA-DE-AÇÚCAR E SUAS IMPLICAÇÕES1

Salumiel Marcelino da Costa2

INTRODUÇÃO A robustez com que o setor sucroalcooleiro se desenvolve no cenário econômico brasileiro desvela-se nas expressivas cifras por que responde. Dados do DIEESE apontam que o agronegócio sucroalcooleiro fatura, direta e indiretamente, cerca de R$ 40 bilhões por ano, o que corresponde a 2,35% do PIB nacional, com a agremiação de aproximadamente 72.000 produtores, contando com mais de 3,6 milhões de empregados diretos e indiretos.3 Além de fornecer matéria-prima para o açúcar, produto que amiúde desfruta de largo fastígio no mercado internacional, a cana comporta a produção do etanol, combustível renovável, cuja utilização é amplamente defendida em substituição aos combustíveis fósseis, tais qual o petróleo, haja vista os problemas ambientais a estes atribuídos. Hodiernamente, o Brasil figura como o principal produtor mundial de cana-de-açúcar, com cerca de 9.685.470 de hectares de área plantada na safra de março de 2012, com produção estimada em 742.923.303 toneladas, significando um aumento de 3,9% em relação a 2011, segundo dados do IBGE.4 1 Artigo extraído de trabalho acadêmico de conclusão do curso de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, em 2010. 2 Analista Processual do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Contato: salumiel.costa@mpdft. gov.br. 3 DIEESE. O Trabalhador e o Agronegócio Sucroalcooleiro. 4 IBGE. Levantamento Sistemático da Produção Agrícola.

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No cenário nacional, Mato Grosso do Sul situa-se entre os cinco maiores produtores de cana-de-açúcar5, estimando-se para a produção de 2012 crescimento de 16,1% em relação ao ano anterior.6 Ocorre que, se, de um lado, descortina-se alvissareiro cenário na produção de açúcar e álcool, de outro, não raro, veiculamse na mídia notícias sobre más condições de trabalho nesse setor, havendo, por vezes, constatação de condição de trabalho análoga à de escravo7. Neste contexto, impende considerar os impactos da cultura canavieira nas condições de trabalho dos obreiros que se ativam no corte manual da cana-de-açúcar, especialmente no que tange à sua remuneração, e sua compatibilidade com o arcabouço jurídico pátrio.

1 PRINCÍPIOS FUNDANTES DO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO No ordenamento brasileiro, figuram como diretrizes basilares o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio dos valores sociais do trabalho, os quais informam toda a estruturação de nosso sistema normativo e, por conseguinte, da seara justrabalhista. Trata-se de princípios de ordem constitucional, aos quais, consoante os escólios de Paulo Bonavides, cabe balizar: a congruência, o equilíbrio e a essencialidade de um sistema jurídico legítimo. Postos no ápice da pirâmide normativa, elevam-se, portanto, ao grau de norma das normas, de fonte das fontes. São qualitativamente a viga-mestra do sistema, o esteio de legitimidade constitucional, o penhor da constitucionalidade das regras de uma Constituição.8

Nesse sentido, no âmbito jurídico, princípio designa a proposição nuclear de um arcabouço normativo, que se irradia sobre 5 IBGE-SIDRA. Banco de Dados Agregados. Tabela 1612. 6 IBGE. Comentários ao Levantamento Sistemático da Produção Agrícola. 7 Vide notícia sobre denúncia de trabalho escravo, recebida pelo STF, em 29 de março de 2012, disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteu do=203852&caixaBusca=N>. 8 BONAVIDADES, 2006, p. 294.

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as demais regras, conferindo-lhes sentido lógico e racional, de molde a tornar o ordenamento coeso. Dessarte, quadra tanger, ainda que perfunctoriamente, o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio dos valores sociais do trabalho, consistentes nos primaciais sustentáculos do arcabouço jurídico nacional. 1.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA A diretriz geral consubstanciada na dignidade da pessoa humana constitui, na esteira do que consigna o inciso III do art. 1º da Constituição Federal, fundamento do Estado brasileiro. Tal princípio informa que o ser humano é o valor fundamental, condicionador de todo o ordenamento jurídico e da própria organização estatal, razão pela qual, nas palavras de Zangrando, “o ser humano é o objeto, fim e princípio do Estado”.9 A partir da concepção de que a pessoa humana detém valor insuperável, consubstanciado na dignidade, por força do qual, no plano jurídico, nenhum outro valor se encontra acima da pessoa humana, esta deve ser reconhecida como sujeito de direitos, e não como mero objeto, donde ressumbra que as normas exsurgem enquanto fenômenos jurídicos destinados a dotar o indivíduo de tratamento à altura de sua humanidade. Da ideia de dignidade advém a noção de que a pessoa humana deve ser vista como fim e não como meio, o que vai de encontro a qualquer norma ou prática tendente a ensejar a coisificação ou instrumentalização do ser humano. Dado o seu caráter de fundamento do Estado brasileiro, a tal princípio se subordinam a interpretação e aplicação das normas de todos os ramos jurídicos, notadamente, as do Direito do Trabalho. Particularizado à seara juslaboral, o princípio em realce consigna que as regras trabalhistas destinam-se a assegurar ao obreiro as circunstâncias necessárias a conferir-lhe, no âmbito da relação de trabalho, tratamento compatível com a sua condição de ser humano, com respeito à sua higidez física e psíquica. Corolário desse princípio na disciplina das condições de 9 ZANGRANDO, 2003, p. 77.

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trabalho reside no art. 7º, inciso XXI, da Constituição Federal, que, ao arrolar direitos fundamentais, preceitua: Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] XXI. redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança.

A respeito, Alice Monteiro de Barros assinala que: Quando o empregado é admitido pelo empregador, leva consigo uma série de bens jurídicos (vida, saúde, capacidade de trabalho etc.), os quais deverão ser protegidos por este último, com adoção de medidas de higiene e segurança para prevenir doenças profissionais e acidentes no trabalho. O empregador deverá manter os locais de trabalho e suas instalações de modo que não ocasionem perigo à vida e à saúde do empregado.10

Vê-se, assim, a inexcedível relevância do princípio da dignidade da pessoa humana, a informar a seara juslaboral, principalmente no que concerne à conformação das condições de trabalho, pautando-as, acima de tudo, pela proteção à vida e saúde obreiras. 1.2 PRINCÍPIO DOS VALORES SOCIAIS DO TRABALHO O princípio dos valores sociais do trabalho, que igualmente se constitui em fundamento da República Federativa do Brasil, ressalta que, nas relações econômicas, os valores oriundos do trabalho têm precedência sobre os demais valores cultivados na economia de mercado. Neste cenário, o trabalho não pode ser visto como mero componente de uma estrutura voltada exclusivamente à produção de riquezas, mas, sobretudo, como expediente de que dispõe o trabalhador para a consecução dos direitos sociais plasmados no art. 6º da Constituição Federal, a saber, alimentação, saúde, moradia, educação, entre outros. O trabalho, dessarte, representa fonte de subsistência e meio idôneo pelo qual o indivíduo concretiza seus direitos sociais. Perscrutando o princípio em tela, José Cretella Júnior industria que: 10 BARROS, 2005, p. 1006.

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Sob dois ângulos, pelo menos, o trabalho pode ser apreciado: pelo individual (“o trabalho dignifica o homem”) e pelo social, afirmando-se, em ambos os casos, como valor que no escalonamento axiológico se situa em lugar privilegiado. Dignificando a pessoa humana, o trabalho tem valor social dos mais relevantes, pelo que a atual Constituição o coloca como um dos pilares da democracia.11

Em complemento, adverte Pontes de Miranda, citado por Christiani Marques: O trabalho não é simples mercadoria, porque está próximo à personalidade e é elemento necessário a certos direitos (direito à existência, direito ao mínimo vital, direito ao repouso, direito ao salário mínimo), ou objeto de direitos publicizados, alguns constitucionais (direito ao trabalho, direito à proteção ao trabalho).12

Dimana dessa apreensão a edificação de normas regulatórias e protetivas da relação de trabalho, com a finalidade de revesti-la da verdadeira estima jurídica que lhe é devida, ante sua relevante função social, enquanto fonte não apenas da subsistência do obreiro e de sua família, como também de seus direitos sociais.

2 CONTRATO DE TRABALHO E FORMAS DE REMUNERAÇÃO Sob o influxo dos mencionados princípios, emerge o contrato de trabalho, entendido como a relação jurídica firmada entre dois sujeitos, cujo objeto principal reside numa obrigação de fazer, consubstanciada na prestação de labor humano.13 Estatuído o contrato de trabalho, vínculo obrigacional que é, estabelecem-se tanto para o prestador quanto para o tomador de serviços, sujeitos desse liame jurídico, diferentes obrigações. Ao obreiro cumpre, como principal obrigação, desempenhar a sua prestação laboral, enquanto àquele que se beneficia de tal prestação impõe-se, entre outros, o mister de remunerar o trabalhador, mediante contraprestações em pecúnia ou em utilidades cujo valor nela se 11 CRETELLA JÚNIOR, 1992, pp. 139-140. 12 MIRANDA, Comentários à Constituição de 1967, p. 67 apud Marques, 2007, p. 34. 13 DELGADO, 2005, p. 285.

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possa exprimir, com a finalidade de recompensar o trabalhador pelo seu labor, desvelando o caráter oneroso da relação de trabalho. Na relação de trabalho, com efeito, a prestação do trabalhador tem por razão de ser a contraprestação do tomador de serviços, o que evidencia a natureza sinalagmática dessa relação jurídica, ante o nexo de causalidade entre a figura do labor e da remuneração, essencial à configuração do vínculo trabalhista, a par da subordinação, habitualidade e pessoalidade.14 Sucede que variadas são as formas pelas quais pode se dar o cálculo da remuneração, destacando-se os modelos de aferição da remuneração calcados no tempo, na produtividade ou na combinação destes. Esses três são os principais modelos utilizados na quantificação do salário, de maneira que, em função da incidência de um ou doutro critério, a doutrina aponta as seguintes tipificações em que poderá se enquadrar o salário estatuído pelas partes: salário por unidade de tempo, salário por unidade de obra ou salário-tarefa. 2.1 SALÁRIO POR UNIDADE DE TEMPO Salário por unidade de tempo é o que resulta da aplicação da extensão cronológica do labor como critério exclusivo para aferição do montante da remuneração. Consoante Arnaldo Sussekind, esse tipo salarial “corresponde a uma importância fixa, paga em razão do tempo que o empregado permanece à disposição do empregador, independentemente do montante dos serviços executados nos correspondentes períodos”.15 Na estipulação do salário por unidade de tempo, desponta, portanto, como paradigma para o cômputo da verba salarial o período correspondente à dilação temporal do trabalho, que abarca não só lapso de serviço efetivamente prestado, mas também o referente à disponibilidade do obreiro, além de abranger outros intervalos que compõem a jornada laboral, como horas in itinere, intervalos remunerados, entre outros. 14 NASCIMENTO, 1997, p. 107. 15 SÜSSEKIND, op. cit., p. 398.

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Comentando tal modalidade remuneratória, Délio Maranhão expõe que: O salário por unidade de tempo corresponde a certa importância devida pelo tempo em que o empregado ficar à disposição do empregador, sem levar em linha de conta, para sua fixação, a produção do empregado. Claro que o empregador, ao fixá-lo, funda-se na produtividade do empregado, na sua capacidade de trabalho. Mas, se o empregado não corresponde a essa expectativa, terá, de qualquer maneira, direito ao salário em função do tempo.16

Outrossim, Maurício Godinho Delgado aduz que a alteridade – regra pela qual as áleas da atividade econômica devem adstringir-se à esfera de responsabilidade patronal - verifica-se mais facilmente no salário por unidade de tempo, propiciando melhores condições de trabalho. Com efeito, referido professor menciona que: [...] esse tipo salarial é, entre os três examinados, o que melhor concretiza, no plano da relação de emprego, o princípio justrabalhista da alteridade, ou seja, da assunção dos riscos do empreendimento e do trabalho pelo empregador. Ao não estabelecer relação direta entre as ideias de produção e produtividade e o salário devido – o qual se reporta apenas à jornada -, esse tipo salarial retira do trabalhador riscos efetivos em decorrência da maior ou menor produção efetuada ou do maior ou menor rendimento alcançado na dinâmica produtiva. Na esteira dessa virtude, tal tipo salarial reduz o esgotamento obreiro no processo de trabalho e contribui para o implemento de uma mais eficaz política de diminuição dos males detectados pela saúde e segurança do trabalho no processo produtivo.17

Também sobre as consequências dessa modalidade salarial, José Martins Catharino alude haver: [...] melhoria da qualidade do trabalho porque o empregado tendo seu salário fixo não se apressa inutilmente tornando mais imperfeito o que produz; evita o perigo de excessivo desgaste de energias porque o trabalho prejudicial à pessoa do empregado não encontra estímulo natural do pagamento mais elevado [...]; dá ao assalariado maior tranquilidade e garantia por ter uma remuneração estável; simplifica a elaboração das folhas de pagamento e dos cálculos para 16 MARANHÃO, 1991, p. 160. 17 DELGADO, op. cit., p. 715.

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atender às disposições legais [...].18

Extrai-se que a tipificação salarial em tela afigura-se, em regra, como a que melhor responde pela concretização, no cotidiano laboral, das condições trabalhistas preconizadas pelo ordenamento trabalhista. 2.2 SALÁRIO POR UNIDADE DE OBRA O salário por unidade de obra constrói-se em torno do rendimento resultante dos esforços do empregado envidados na dinâmica produtiva. Nesse caso, a base de cálculo reside na produtividade atingida pelo obreiro, de maneira que o tempo despendido nesse mister não releva para a fixação do salário. Sobre o tema, Sergio Pinto Martins traz à baila que: No salário por unidade de obra, não se leva em consideração o tempo gasto na consecução do serviço, mas sim o próprio serviço realizado, independentemente do tempo despendido. A unidade de obra é que será levada em conta para o cálculo do salário e não o tempo que foi gasto para sua realização.19

Nesse caso, a quantificação do salário resulta da multiplicação do número de peças ou unidades engendradas pela tarifa, sendo que esta representa o valor que os sujeitos da relação de trabalho atribuem, em tese, bilateralmente, a cada unidade ou peça. Esse valor unitário deve ser fixado com antecedência em relação ao momento do cálculo salarial, a fim de o empregado compreender o parâmetro utilizado no cômputo do seu salário, de modo a lhe ficar patente, a cada etapa de sua atividade, a remuneração respectiva. Ocorre que alguns estudiosos destacam o fato de que, no cotejo com os demais sistemas salariais, o presente modelo representa maior fonte de conflitos trabalhistas, referentes, por exemplo, à lisura do procedimento de aferição da produtividade e à depreciação das condições laborais. Outrossim, fonte de cizânias também reside na fixação do valor correspondente à tarifa, que se dá, geralmente, de modo unilateral, com exclusiva atenção aos interesses do empregador. 18 CATHARINO, 1997, p. 152 e 153. 19 MARTINS, op. cit., p. 214.

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Ademais, no que tange aos corolários dessa modalidade salarial, observa-se que ela tende a impingir maior desgaste físico ao trabalhador, porquanto faz recair sobre seus ombros a responsabilidade pela maior ou menor remuneração. Nas palavras de Sérgio Pinto Martins, “o empregado [...], para auferir rendimento maior, pode exaurir suas forças e não ganhar um valor suficiente para se manter”.20 que:

Discorrendo a respeito, José Martins Catharino esclarece Muitos inconvenientes podem ser referidos. Induz o operário a produzir mais do que normalmente seria capaz, prejudicando-lhe a saúde, inconveniente que geralmente é relativo por força das normas sobre duração do trabalho [...]. Torna mais difícil e custosa a determinação do salário. Pode, em certos casos, ocasionar oscilações no quantum da remuneração por motivos alheios à vontade e à capacidade do operário. A maior desvantagem do salário por unidade de obra decorre da possibilidade de ser fixado um preço tal por peça ou unidade que exija do operário uma capacidade produtiva excepcional para ganhar um salário razoável, equivalente ao que perceberia um operário remunerado por tempo.21

Ante as procelas dessa modalidade salarial, atinentes, sobretudo, ao maior desgaste físico exigido do trabalhador, têm sido erigidos alguns limites à sua estipulação, com o fito de atenuar as agruras obreiras. Ressaltando essa necessidade protetiva, Godinho explicita que: Efetivamente, caso levado esse tipo-jurídico às últimas consequências, poderia o trabalhador ficar um mês, ou meses, sem receber qualquer salário (ou recebendo arremedos de salário), desde que não alcançasse a necessária produção de peças no período respectivo.22

Daí que relevante limite imposto consiste no patamar salarial que, quando menos, deve ser pago ao trabalhador. É a garantia do salário mínimo, calcada no mencionado art. 7º da Constituição 20 Idem. 21 CATHARINO, 1997, pp. 154 e 155. 22 DELGADO, op. cit., p. 716.

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Federal, que, mesmo em sede de remuneração variável, assegura ao trabalhador salário mensal não inferior ao mínimo legal. Outra fronteira insculpiu-se no art. 483 consolidado, alínea g, vedando ao tomador de serviços diminuir a carga de trabalho, “sendo este por peça ou tarefa, de forma a afetar sensivelmente a importância dos salários”. 2.3 SALÁRIO-TAREFA No sistema de remuneração denominado salário-tarefa fundem-se a fixação de determinado hiato temporal e a estipulação de um patamar mínimo de produção que o obreiro deve satisfazer. Na precisa lição de Arnaldo Süssekind: O salário por tarefa corresponde a uma importância fixa, paga em razão de períodos preestabelecidos, desde que o empregado execute, nesses períodos, um mínimo predeterminado de serviço. É um tipo de salário misto em que o fator tempo e o fator serviço são computados para o seu cálculo.23

A dinâmica da relação entre tempo e produtividade nessa modalidade remuneratória desdobra-se de tal modo que, caso o obreiro alcance o referido patamar mínimo de produtividade em lapso menor que o estipulado, ao tomador de serviços faculta-se liberá-lo do trabalho durante o período que sobejou, ou atribuirlhe novas tarefas, havendo, neste caso, uma sobrerremuneração correspondente à produção excedente.24 Nesse sentido, Catharino anota que: Como na determinação do salário tanto a duração do trabalho como seu resultado são indispensáveis, as remunerações mistas são muitas. Tanto a retribuição pode ser estipulada por tempo obrigando-se o trabalhador a produzir um número mínimo básico de peças, como também, no caso de retribuição por obra, pode ser combinado que a produção se realize em tempo mínimo fixado, ou ainda, em ambos os casos, serem previstos prêmios quando for ultrapassado o limite mínimo prefixado.25 23 SÜSSEKIND, op. cit., p. 398. 24 DELGADO, op. cit., p. 717. 25 CATHARINO, op. cit., p. 162.

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A autorização legal para a estipulação do salário-tarefa encontra guarida no mencionado art. 483, alínea g, que proíbe a substancial diminuição do salário obreiro decorrente do decréscimo do serviço que lhe é atribuído, como também no art. 142, §2º, ambos da CLT. Além da proteção constante do aludido art. 483, outros limites balizam os efeitos desse sistema salarial no contexto da relação de trabalho. A propósito, Godinho preleciona que: Evidentemente, há fronteiras máximas intransponíveis na fórmula do salário-tarefa: ilustrativamente, se o trabalhador não alcançar a produção mínima na duração semanal regular do trabalho e for compelido a manter o serviço até o cumprimento da meta estabelecida, este tempo adicional de trabalho será tido, inquestionavelmente, como sobrejornada (art. 7º, XIII e XIV, CF/88). Do mesmo modo, não será válida a redução do salário abaixo de seu parâmetro temporal mínimo de cálculo, caso o obreiro não alcance a produção estipulada para cumprimento naquele tempo”. […] É evidente que também no salário-tarefa não poderá o trabalhador receber pagamento mensal inferior ao mínimo legal ou ao mínimo da categoria.26

Verifica-se, dessarte, que o salário-tarefa estimula o trabalhador a desempenhar uma maior produção, havendo parcial transferência aos ombros do obreiro do risco do empreendimento, à semelhança do que se dá no salário por unidade de obra.

3 A REMUNERAÇÃO DOS CORTADORES DE CANA-DE-AÇÚCAR No cenário canavieiro, as formas de remuneração tradicionalmente pactuadas revestem de fundamental importância a produtividade obreira. Os cortadores de cana, de regra, têm seus salários fixados ou por unidade de obra, em que prepondera exclusivamente o resultado do trabalho, ou por uma espécie de salário-tarefa, em que a produtividade soma-se a um salário-base previamente estipulado. 26 DELGADO, op. cit., pp. 717 e 718.

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Em Mato Grosso do Sul, por exemplo, segundo se pode aferir por meio dos instrumentos coletivos registrados no Ministério do Trabalho e Emprego27, os sindicatos e usinas invariavelmente têm fixado um piso salarial normativo28, os quais, por vezes, também preveem, desde logo, os preços das toneladas de cana, de acordo com suas espécies. Para ilustração, eis as seguintes cláusulas do instrumento coletivo registrado no MTE sob o nº MS000198/2008, firmado entre usina e sindicato sul-mato-grossenses, vigente até 30 de abril de 2010: CLÁUSULA SEGUNDA: As partes convencionam que o piso salarial a partir de 1º de maio de 2008 será de R$ 445,00 (quatrocentos e quarenta e cinco reais) por mês, equivalentes a R$ 14,83 (catorze reais e oitenta e três centavos), por dia, e R$ 2,02 (dois reais e dois centavos), por hora. CLÁUSULA TERCEIRA: A remuneração dos cortadores de cana, quando o trabalho for por produção, fica estipulada da seguinte forma: 01 – O corte de cana de 18 (dezoito) meses será remunerado na equivalência de R$ 2,65 (dois reais e sessenta e cinco centavos), por tonelada cortada e amontoada. 02 – Os demais cortes serão remunerados na equivalência de R$ 2,36 (dois reais e trinta e seis centavos), por tonelada cortada e amontoada.29

A explicação comumente aventada para o posicionamento da produtividade como cerne do cômputo da remuneração do cortador reside em que a unidade de medida aplicada em todas as etapas seguintes da cadeia produtiva canavieira é a tonelada de cana.30 3.1 NOÇÕES INCIPIENTES CORTADORES DE CANA

DA

ATIVIDADE

DOS

Embora considerado uma atividade simples, por enquadrar-se no contexto do trabalho braçal, sem exigência de maiores 27 Os instrumentos coletivos podem ser acessados por meio de www2.mte.gov.br/sistemas/mediador/. 28 Vide os seguintes instrumentos coletivos, relativos a cerca de 15 empresas do ramo sucroalcoooleiro em MS, registrados no MTE sob os números MS000277/2009, MS000248/2009, MS000199/2008, MS000312/2009, MS000253/2009, MS000307/2009, MS000025/2010, MS000302/2009, MS000301/2009, MS000278/2009. 29 Disponível em: <http://www2.mte.gov.br/internet/mediador/relatorios/ImprimirICXML.asp?NRRequerimento=MR008832/2008>. 30 ALVES, 2006, p. 94

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qualificações profissionais, o corte de cana impõe ao canavieiro inúmeras determinações procedimentais. Mediante instrumentos afiados de corte, como foices, facões ou podões, tal atividade desdobra-se essencialmente no desferimento de reiterados golpes na base das canas, onde se encontra o maior volume de sacarose, sendo que, depois de cortadas, ao trabalhador cumpre carregá-las até determinado lugar, a fim de organizá-las em blocos. A respeito, Gonzaga aponta que: Munido de facão e usando o conjunto de EPI, [...] o trabalhador deve efetuar o corte da seguinte maneira: a) o trabalhador deve se colocar de lado para o eito; b) o corte de base deve ser rente ao solo, não deixando toco nem soqueira, por se tratar da parte mais rica da cana-de-açúcar; c) o corte das pontas deve ser feito no último gomo, não deixando que venha palmito nem cana junto com o ponteiro, que deve ser separado da cana cortada; d) o desponte poderá ser feito na mão ou no chão, sendo que toda a leira poderá ser cortada em todo o seu comprimento e em seguida ser feito o desponte. Não há necessidade de o eito ser cortado por igual, sendo permitida a realização do canudo, ou seja, podem ser cortadas três ruas e depois duas ruas; e) a leira deve ser feita de maneira que fique centralizada em relação às cinco ruas, isto é, no centro das canas localizado na terceira rua; f) a leira deve ficar limpa em todo o seu comprimento, livre de palhas no mínimo 50 cm de cada lado; g) após o trabalhador rural ter realizado a colheita da cana, no final do dia ou eventualmente no meio do dia, quando houver mudança de turma de talhão ou de fundo agrícola, o fiscal de turma deverá medir; h) no dia seguinte, após ter descarregado, os coletores de dados e emitido o comprovante de produção (pirulitos), o encarregado do setor agrícola deverá entregálos aos fiscais de turma para que estes possam distribuir os pirulitos aos trabalhadores rurais como comprovante do trabalho realizado no dia anterior.31

Além de atender a diversas regras de procedimento laboral, os trabalhadores encarregados do corte manual da cana são submetidos, geralmente, a jornada não inferior a 8 horas diárias, em meio a forte irradiação solar, poeira e fuligem. De fato, várias são as intempéries incidentes nessa atividade. A respeito, eis o seguinte excerto de Alessi e Navarro: Durante toda a jornada o trabalhador repetirá exaustivamente 31 GONZAGA, 2002, p. 39 apud GONZAGA,2004, p. 29.

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os mesmos gestos. Abraçar o feixe de cana, curvar-se, golpear com o podão a base dos colmos, levantar o feixe, girar e empilhar a cana nos montes. Essa sequência contínua de movimentos torna o trabalho repetitivo, monótono, automatizado. Tais movimentos, conjugados às inclemências meteorológicas e às inerentes à própria atividade, levam o trabalhador a diminuir seu limiar de atenção, aumentando a possibilidade de ocorrência de acidentes, seja com o próprio podão assim como por picadas de animais peçonhentos. E não são só os acidentes que determinam processos de morbidade e/ou mortalidade dos trabalhos rurais. Seu corpo, utilizado como parte das engrenagens da indústria sucroalcooleira, rapidamente se desgasta e sofre. São comuns as queixas de dores na coluna vertebral, principalmente lombar e torácica, assim como dores de cabeça.32

Os apontamentos supracitados patentemente delineiam, mediante pormenorizada descrição das dificuldades imanentes a esse mister, a nocividade que o corte manual de cana representa para o organismo do trabalhador. 3.2 A PRODUTIVIDADE NO CONTEXTO DA REMUNERAÇÃO DO CORTADOR DE CANA No cenário canavieiro, o cálculo da produtividade se dá, basicamente, através da medição e da pesagem da cana, nos seguintes moldes: conforme o trabalhador conclua cada sequência linear de canas enfileiradas, haverá a intervenção de outro trabalhador, denominado medidor, para conferir a extensão, em metros, do montante de cana cortada. Uma vez feita a medição, o cortador deverá ficar de posse de um papel, comumente denominado pirulito, no qual o medidor registra a respectiva metragem. Geralmente ocorre de o salário do cortador ser calculado não apenas em função da metragem, mas também levando-se em conta o peso do volume de cana cortada, o que exige o estabelecimento de uma relação de equivalência entre a área plantada e a tonelada de cana cortada, a fim de se chegar à indicação exata do valor a ser auferido pelo cortador por metro ou tonelagem de cana colhida. 32 ALESSI; NAVARRO, 1997.

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Em tese, a precisão do montante salarial do cortador de cana segue as referidas diretrizes. Porém, no cotidiano vivenciado por esses trabalhadores, a práxis apresenta várias dificuldades no que diz respeito ao cômputo da remuneração, obnubilando ao obreiro a avaliação de sua produtividade. Por vezes, o canavieiro consegue ter apenas uma ideia aproximada da metragem por ele perfeita em determinado dia de serviço. Contudo, ficar cônscio do volume da produtividade em metros nem sempre é suficiente para indicar com exatidão o valor do salário correspondente. Na esteira das explicações de Alves, “o valor do metro só é fixado depois que a cana foi pesada; portanto, embora um metro seja igual a um metro, o valor do metro de cana é diferente do valor de outro metro de cana, na medida em que seus pesos são diferentes”.33 Ademais, o próprio sistema de conversão entre as unidades de comprimento e as unidades de peso não se afigura de fácil manuseio, sobretudo, para o trabalhador, diante da utilização de cálculos variados, com divisões e multiplicações, envolvendo casas decimais. Outro ponto sensível desse processo de conversão reside no momento da pesagem, que nem sempre é presenciado por representante dos trabalhadores. Além disso, mesmo quando esse acompanhamento ocorre, o representante laboral, não raro, melindrase quanto a indigitar eventual falha, ante a possibilidade de retaliação pelos chamados gatos, turmeiros, fiscais ou gestores da empresa. Daí que a aferição da produtividade encontrase, geralmente, sob exclusiva responsabilidade patronal, o que, indubitavelmente, configura azo para potenciais deslizes nos cálculos. Ilustrativamente, tem-se auto de infração, lavrado em abril de 2008, no qual agente fiscal do trabalho, ao averiguar as condições laborais de usina instalada na cidade de Nova Alvorada do Sul/MS, consignou que “o empregador não fornece aos seus empregados comprovante de produção do qual conste a metragem, classificação e valor do serviço prestado no período. A anotação da produção é efetuada pelos fiscais de turma, sem o conhecimento dos 33 ALVES, op. cit., p. 93

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trabalhadores [...]”.34 Irregularidade análoga foi encontrada, em maio de 2009, quando da implementação de ação fiscalizatória procedida em usina sita no município de Brasilândia/MS, onde trabalhadores indígenas “afirmaram que a medição e a pesagem da cana não é feita na presença dos trabalhadores [...], que um dos cabeçantes [...] é quem faz a medição, e que não há entrega de recebido de medição”.35 Em verdade, tal situação, na qual o canavieiro encontrase destituído, até mesmo, de um mínimo controle sobre a própria produtividade, acaba por traduzir-se em mecanismo pelo qual as usinas pressionam o aumento da produtividade, com a intensificação da já extenuante faina diária desses rurícolas. Isto porque lhes remanesce apenas a noção de que uma maior produtividade implica, em tese, mais ganhos salariais, posto que, na prática, essa correspondência não lhes seja de fácil fiscalização, pois vezes há em que lhes são obliterados o controle sobre o resultado do próprio trabalho e, conseguintemente, o valor do respectivo pagamento. 3.3 COROLÁRIOS DO PAGAMENTO POR PRODUÇÃO NO CORTE DE CANA 3.3.1 Ampliação da jornada laboral Um dos primeiros efeitos oriundos dessa modalidade de remuneração consiste na intensificação da jornada de trabalho. Diante da concepção de que quanto maior a produção maior o ganho, o trabalhador, no afã de auferir um salário digno para si e sua família, se vê premido a estender sua jornada laboral para além da jornada comum, que é de 8 horas por dia. A limitação da jornada de trabalho a 8 horas diárias e 44 semanais é dada pela própria Carta Federal, no inciso XIII do art. 7º, e consubstancia-se numa grande conquista dos obreiros, em virtude da qual pôde-se lograr um novo estádio na humanização das condições 34 Auto de infração constante do ICP nº 148/2008, instaurado pelo MPT/MS. 35 Relatório de fiscalização constante dos autos do ICP nº 123/08, instaurado pelo MPT da 24ª Região.

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laborais, conquista essa de antecedentes históricos funestos. Draconianas eram as famigeradas jornadas laborais vigentes na Europa do século XIX, as quais, submetendo-se ao exclusivo alvedrio do poder econômico, quando da vigência do pleno liberalismo econômico, chegavam a se elastecer por mais de quinzes horas diárias. Segundo os estudos de Cotrim: Tendo como objetivo obter os maiores lucros possíveis, o capitalista industrial procurava pagar o menor preço admissível pelo salário, enquanto explorava ao máximo a capacidade de trabalho do proletariado, em busca do aumento da produção. Em diversas indústrias, a jornada de trabalho ultrapassava quinze horas diárias.36

Decorridos mais de dois séculos da consecução e sedimentação das limitações do tempo de serviço, tais diárias laborais exorbitantes já não podem prevalecer, porquanto a fixação da jornada não mais se subordina a parâmetros estritamente econômicos, mas, máxime, a critérios de saúde e segurança do trabalho. Nos escólios de Godinho: Efetivamente, os avanços dos estudos e pesquisas sobre a saúde e segurança laborais têm ensinado que a extensão do contato do indivíduo com certas atividades ou ambientes é elemento decisivo à configuração do potencial efeito insalubre de tais ambientes ou atividades. Essas reflexões têm levado à noção de que a redução da jornada e da duração semanal do trabalho em certas atividades ou ambientes constituem medida profilática importante no contexto da moderna medicina laboral.37

Observa-se o vital influxo das restrições impostas à duração do labor na melhoria das condições do desempenho e do meio ambiente do trabalho, sobretudo no que concerne à evitação dos riscos de doenças profissionais ou acidentes de trabalho, uma vez que estes têm maior probabilidade de se configurar no fim ou quando da ampliação da jornada normal de trabalho, em virtude do inexorável comprometimento da atenção obreira decorrente da extenuação de seu organismo. Ocorre que as constatações de jornadas excessivas nos 36 COTRIM, 1994, p. 260. 37 DELGADO, op. cit., p. 831.

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canaviais se dão amiúde, apontando uma consuetudinária ampliação do expediente normal para além do limite legal de duas horas diárias, sem qualquer justificativa legal. Nos canaviais de Mato Grosso do Sul, a extrapolação da jornada consubstancia-se em prática renitente, conforme se verifica do registro de diversas diligências fiscalizatórias das condições de trabalho dos cortadores no referido Estado38, implementadas desde meados da década de noventa até os dias de nosso tempo, tendo algumas registrado jornada de até 13 horas de trabalho diário.39 Dessa forma, atinente à duração da jornada, a realidade vivenciada pelos cortadores de cana contempla, ainda hoje, condições laborais algo obnóxias, análogas às combatidas há mais de dois séculos. 3.3.2 Intensificação do desgaste físico obreiro Outro corolário atinente ao pagamento por produção na cultura da cana - também umbilicalmente ligado ao prolongamento da jornada laboral - reside na intensificação do desgaste a que o organismo do rurícola é submetido no desempenho do seu mister. Suas atribuições laborais, por si sós, já são deveras extenuantes, com média de produtividade entre 8 e 10 toneladas, chegando alguns a produzir 15 toneladas de cana cortada por dia, havendo contínuo aumento da média exigida dos cortadores. Ademais, o trabalho dos canavieiros não se adstringe ao repetitivo exercício da poda de cana nem ao atingimento da média diária. Como exposto nas linhas transatas, depois de cortá-las, impõese ao trabalhador carregá-las e organizá-las em montes, o que lhe exige, com incidência de sol causticante, longas caminhadas no canavial. Na pormenorizada descrição de Alves: 38 Em virtude de as condições de trabalho dos cortadores de cana terem se tornado objeto de clamor público, foi criada, por meio da resolução conjunta SEJT/DRT/INSS nº 10, de 18/06/93, a Comissão Permanente de Investigação e Fiscalização das Condições de Trabalho em Mato Grosso do Sul, que reúne entidades governamentais e não-governamentais, com o escopo de envidar iniciativas para prevenção e erradicação de condições indignas de trabalho nas destilarias e carvoarias sul-mato-grossenses. 39 Irregularidades atinentes a jornadas laborais foram objeto, entre outros, do ICP nº 02/1994, da ACP nº 68/1996 e do ICP 148/2008, todos levados a efeito pelo Ministério Público do Trabalho de Mato Grosso do Sul.

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Um trabalhador que corte 6 toneladas de cana, num eito de 200 metros de comprimento, por 8,5 de largura, caminha durante o dia uma distância de aproximadamente 4.400 metros, despende aproximadamente 20 golpes com o podão para cortar um feixe de cana, o que equivale a 66.666 golpes no dia (considerando uma cana em pé, de primeiro corte, não caída e não enrolada e que tenha uma densidade de 10 canas a cada 30 cm). Além de andar e golpear a cana, o trabalhador tem que, a cada 30 cm, abaixar-se e torcer-se para abraçar e golpear a cana bem rente ao solo e levantar-se para golpeála em cima. Além disso, ele ainda amontoa vários feixes de cana cortados em uma linha e os transporta até a linha central. Isto significa que ele não apenas anda 4.400 metros por dia, mas transporta, em seus braços, 6 toneladas de cana em montes de peso equivalente a 15 kg, a uma distância que varia de 1,5 a 3 metros.40

Diante das estafantes atribuições, a dilação da jornada aumenta demasiado os riscos de dilapidação do organismo obreiro. O grande esforço físico engendra frequentes ocorrências de câimbras, tendinites, problemas na coluna, no punho, nas costas, entre outras. No zênite dessa extenuação, encontram-se os casos de óbitos nos canaviais. Nesse sentido, Maria Aparecida de Moraes Silva, sobre canaviais paulistas, assere que: dados confirmam o processo de exploração da força de trabalho, evidenciada pela ocorrência de 21 mortes, supostamente por excesso de esforço durante o corte de cana, no período de 2004 a 2007, além de elevados números de acidentes de trabalho.41

Ainda a respeito, Alves aponta que: Os processos de produção e de trabalho vigentes no complexo agroindustrial canavieiro foram concebidos objetivando a produtividade crescente do trabalho e, combinados ao pagamento por produção, provocam a necessidade de os trabalhadores aumentarem o esforço despendido no trabalho. O crescimento do dispêndio de energia e do esforço para cortar mais provoca ou a morte dos trabalhadores ou a perda precoce de capacidade de trabalho.42

Verifica-se que, de fato, a produtividade média, em 40 ALVES, op. cit., pp. 94-95. 41 SILVA, 2008, p. 1 42 ALVES, op. cit., p. 90

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toneladas, alcançada pelos cortadores aumenta, lustro após lustro. Consoante esclarece Moraes Silva, “na década de 1980, a ‘média’ (produtividade) exigida era de 5 a 8 toneladas de cana cortada/dia; em 1990, passa para 8 a 9; em 2000, para 10, e em 2004, para 12 a 15”.43 Alguns estudos apuram que, dada a intensificação das condições de sua rotina laboral, a vida útil do rurícola que se ativa no corte manual da cana tem duração análoga à de escravo. Nesse rumo, Moraes Silva assinala que tais trabalhadores “estão sujeitos à morte e mutilações, pois a vida útil de um cortador de cana varia de 10 a 15 anos, semelhante à dos negros no período escravocrata, cifra esta inferior à do período após a abolição do tráfico, em torno de 20 anos”.44 3.3.3. Pagamento de horas extras Nos termos do que dispõe o art. 7º, inc. XVI, da CF, a remuneração de cada hora extra corresponde, em regra, ao valor da hora normal, acrescido de, no mínimo, cinquenta por cento. Sem embargo, no que toca aos trabalhadores cujo cômputo salarial envolve a variável produtividade, a remuneração das horas extras recebe disciplina especial, contida na Orientação Jurisprudencial nº 235 da SDI-1 do TST, que estatui: O.J. 235. O empregado que recebe salário por produção e trabalha em sobrejornada faz jus à percepção apenas do adicional de horas extras.

Por conseguinte, grande parte da jurisprudência trabalhista45, com amparo na referida orientação, vem decidindo que, na jornada extraordinária do trabalhador remunerado por produtividade, não lhe é devido o valor da hora normal, mas apenas o adicional. O entendimento consiste em que a maior produtividade ensejada pela sobrejornada já recompensaria o labor extraordinário. 43 SILVA, op. cit., p. 4 44 Idem, p. 8. 45 Nesse sentido, TRT 24ª Região - Processo nº 39600- 69.2003.5.24.21 (RO) – Relator Desembargador Ricardo Geraldo Monteiro Zandona – Publicado em 30/09/2004 e TRT 24ª Região - Processo nº 29600-33.2008.5.24.86 Relator Desembargador Francisco Das C. Lima Fiho – Publicado em 13/02/2008.

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Nesse sentido, acórdão do Colendo Tribunal Superior do Trabalho, publicado em fevereiro de 2010, em que consignou-se: O empregado que recebe salário por produção e trabalha em sobrejornada faz jus à percepção apenas do adicional de horas extras. Não se vislumbra a alegada contrariedade com a Súmula 264/TST eis que o autor, conforme comprovado, não faz jus às horas extraordinárias mas tão-somente ao seu adicional. De acordo com a iterativa, notória e atual jurisprudência desta C. Corte, não há, pois, que se cogitar de afronta aos mencionados artigos 7º, XVI e XXVI, da Constituição Federal e 59 da CLT.

Ocorre que esse entendimento, quando aplicado aos cortadores de cana, afigura-se destoante do arcabouço juslaboral, principalmente no que tange às normas de medicina e segurança do trabalho, voltadas a disciplinar as condições de trabalho. De fato, a despeito de haver aspectos símeis entre as formas de remuneração do trabalhador comissionista e do cortador de cana que recebe por produtividade, impende considerar que as dificuldades intrínsecas ao corte de cana são fortes traços diferenciais, que tornam a atividade do cortador uma das mais penosas no cotejo com as demais funções do mercado de trabalho, impondo seja dado ao canavieiro tratamento distinto ao conferido a comissionistas de outras áreas, uma vez que a acentuada penosidade incidente no trabalho daquele, a qual não se verifica, em regra, nas atividades destes, torna injusta a similitude de tratamentos relativamente às horas extras. Posicionando-se neste sentido, eis a seguinte decisão: RECURSO ORDINÁRIO DA RECLAMADA - SALÁRIO POR PRODUÇÃO - CORTE DE CANA - PAGAMENTO DA HORA E DO ADICIONAL - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS INDEVIDOS. As horas extras prestadas pelo cortador de cana, que recebe salário por produção, devem ser remuneradas integralmente e acrescidas do respectivo adicional. A cada ano que passa a “produtividade/produção” aumenta e o respectivo preço diminui, dele se exigindo cada vez mais trabalho nessa atividade notoriamente penosa e prejudicial à saúde, o que conspira contra o art. 7º, XIII e XVI da Constituição Federal (horas extras somente em serviços extraordinários) Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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e, também, contra os fundamentos do Estado Democrático de Direito (dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa), os princípios gerais da Atividade Econômica (art. 170) e da Ordem Social (art.193). Quanto aos honorários advocatícios, porém, dependem do preenchimento dos requisitos exigidos pela 5.584/70 e pelas Súmulas 219 e 329/TST, o que não pode ser contornado com a aplicação do art. 389 do CC/2002. Recurso parcialmente provido”. (TRT 15ª Região - Processo nº 01182-2007-13415-00-4 – Relator Desembargador José Pedro de Camargo Rodrigues de Souza – Publicado em 22/08/2008).

Corroborando a mesma tecla, segue o enunciado de nº 20, aprovado na 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, realizada pela Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho, em novembro de 2007, consoante o qual: É devida a remuneração integral das horas extras prestadas pelo trabalhador rurícola, inclusive com adicional de, no mínimo 50%, independentemente de ser convencionado regime de “remuneração por produção”. Inteligência dos artigos 1º, incisos III e IV e 3º, 7º, XII, XVI e XXIII, da CF/88. Não incidência da Súmula nº 340 do C. TST, uma vez que as condições de trabalho rural são bastante distintas das condições dos trabalhadores comissionados internos ou externos e a produção durante o labor extraordinário é manifestamente inferior àquela da jornada normal, base de cálculo de horas extras para qualquer tipo de trabalhador.87

Dessa forma, verificando-se as fatigantes consequências da atividade do corte manual da cana, inerentes às condições adversas em que é desempenhada, promana que o cortador de cana, ao trabalhar em sobrejornada, deve perceber não apenas o adicional, mas também a própria hora extra.

CONCLUSÃO Premente afigura-se a necessidade de transformação das condições laborais nos canaviais, a fim de serem efetivamente concretizadas conquistas históricas dos trabalhadores, destinadas a tornar mais humano o desempenho do mister laboral, as quais hodiernamente compõem de modo indelével o conteúdo da legislação sobre higidez do meio ambiente de trabalho. 238

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A constatação de jornadas laborais destacadamente longas, com o intenso esgotamento do organismo obreiro daí oriundo, destoa, a mais não poder, das normas de saúde e segurança do trabalho. Mais alarmantes, ainda, são as constatações de uma estafa física e psíquica tão acentuadamente extremada a ponto de, em alguns casos, ser tida como causa ou concausa da ocorrência de óbitos nos canaviais. O cotejo dos escólios atinentes ao tema evidencia que um dos fatores responsáveis pela atual dinâmica das relações de trabalho nos canaviais, infligidora de recorrentes jornadas extraordinárias, consiste na forma de remuneração usualmente praticada, que reveste de vital importância a produtividade obreira. Esta modalidade salarial, entre as três estudadas, figura como a que mais faz recair sobre os ombros do trabalhador pressão por resultados, porquanto, para efeito do cálculo salarial, leva em conta, predominantemente, a produtividade alcançada, independentemente do tempo despendido pelo obreiro. Daí que, enquanto uma das medidas destinadas a minorar a penosidade do cortador de cana, emerge a necessidade de se revisitar a forma com que habitualmente o cortador de cana tem sido remunerado. Pôde-se verificar que, em razão do tipo salarial que envolve seu penoso trabalho, o cortador de cana se vê premido a trabalhar no último fôlego de suas forças, extrapolando continuamente sua jornada normal, na tentativa de alcançar um salário razoável. Essa revisitação faz-se mister, pois a remuneração por produtividade, em virtude de continuamente exacerbar a fadiga do trabalhador, com isso aumentando inevitavelmente os riscos à saúde, higiene e segurança obreiras, contrapõe-se ao direito fundamental do cortador de cana consubstanciado na redução dos riscos ínsitos ao trabalho, razão pela qual sua utilização, no âmbito canavieiro, não se amolga aos valores fundamentais do ordenamento juslaboral pátrio. Vê-se que o desatrelamento de produção e remuneração mostra-se, no setor canavieiro, imprescindível para conferir ao cortador uma condição digna de trabalho, substituindo-se a remuneração à base de produtividade pela modalidade salarial por tempo de serviço, com o que abrir-se-á caminho para a concreção prática de seu direito fundamental à redução dos riscos laborais, Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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constitucionalmente plasmado há décadas. Como outra medida, cumpre, enquanto subsistir o pagamento por produção, reconsiderar o modo pelo qual a jurisprudência majoritária vem aplicando a orientação jurisprudencial 235. Isto porque a constatação das acerbas circunstâncias em que o trabalho do cortador é executado leva ao reconhecimento de que se está diante de serviço absolutamente nocivo à saúde obreira, principalmente em sede de trabalho extraordinário, de maneira que se mostra imprópria sua equiparação a outro serviço qualquer. Evidentemente, a mera mudança na interpretação e aplicação da OJ 235 da SDI-1 do TST não tem o condão de implicar, por si só, o necessário aprimoramento das condições de trabalho do cortador, já que o adicional de horas extras, como qualquer outro, ostenta, quando muito, um caráter meramente compensatório, sendo que, no caso do cortador, nem isso ocorre de fato, pois o adicional de horas extras mostra-se incapaz de ressarcir ao trabalhador encarregado do corte manual de cana os danos à sua integridade física e à sua saúde provocados pelo excesso de jornada. Malgrado, ante o penoso caráter desse trabalho, faz-se necessário lançar mão de todos os meios legalmente idôneos a lenir as condições laborais dos cortadores, com o escopo de corroborar a proteção que o ordenamento trabalhista dispensa e esses rurícolas, para, retificando a extrema penosidade de seu mister, buscar preservar-lhes a dignidade, que lhes compõe a essência, enquanto seres humanos. Isto porque tanto essa modalidade remuneratória quanto a OJ em tela, por militarem, em sede de trabalhos repetitivos e veementemente fatigantes, contra normas de segurança e medicina laborais, não devem ser aplicadas aos trabalhadores submetidos a atividades de tal jaez, nas quais as horas normais e, sobretudo, as horas extras, são realizadas ao custo de extremo desgaste do organismo obreiro, sob pena de, mesmo ante princípios que informam a dignificação da pessoa humana e a valorização do trabalho, tratar-se indiferentemente um mister tão absolutamente penoso, como o corte manual da cana-de-açúcar.

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Peรงas processuais



EXCELENTÍSSIMO (A) SENHOR (A) JUIZ (ÍZA) DO TRABALHO DA ____ VARA DO TRABALHO DE DOURADOS - MS.

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, pelo Procurador do Trabalho que esta subscreve, com fundamento no disposto nos artigos 127 e 129, incisos II e III, da Constituição Federal, bem como nos preceitos da Lei n.º 7.347/85, vem ajuizar, perante a jurisdição de Vossa Excelência, a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA em face da empresa BRF-BRASIL FOODS S/A., pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ-MF sob o nº 01.838.723/0067-53, com sede à Av. 04, S/Nº, Quadra 13, Parque Industrial, CEP: 79.840-030, Dourados/MS. pelos fatos e fundamentos a seguir expostos: I – DOS FATOS Em 09 de fevereiro do corrente ano foi instaurado, na sede desta Procuradoria do Trabalho no município de Dourados, o Procedimento Preparatório nº 14/2010, em virtude do recebimento do ofício nº 0013/2010 remetido pelo Setor de Inspeção do Trabalho, Gerência Regional do Trabalho e Emprego em Dourados - GRTEMS, noticiando a lavratura do Auto de Infração nº 012454990, em face do descumprimento, pela demandada, da obrigação legal atinente à contratação de um número mínimo de aprendizes de acordo com o total de trabalhadores contratados, conforme determina o Art. 429, caput, da CLT, com redação determinada pela Lei n.º 10.097/2000 (Doc. 01). Devidamente notificada a comparecer em audiência administrativa, em 25/03/2001, na sede deste Órgão Ministerial, com vistas a firmar Termo de Ajuste de Conduta no que pertine às irregularidades comentadas a ré requereu o adiamento da audiência, em face da impossibilidade de comparecimento na data e horário marcados, pleito deferido por este MPT (Doc. 02). Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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Realizada mencionada audiência administrativa na sede deste MPT, em 07/04/2010, presente os representantes da investigada e o procurador do Trabalho subscritor, restou consignado o impasse a respeito de eventual pactuação de Termo de Ajuste de Conduta – TAC, ante a investigada entender que o ocupante do cargo denominado “MAGAREFE” não comporia o cômputo para fins de contratações de Aprendiz, da mencionada audiência se extrai: “Quanto ao assunto os representantes da empresa manifestaram sua intenção de concentrar as discussões em Santa Catarina, tendo em vista que a sede da empresa está, atualmente, situada em Itajaí/SC. Ademais há, em curso, discussão quanto ao mesmo objeto naquele Estado. Quanto a isso o Procurador corroborou no que toca a conveniência da centralização, sobretudo quanto a desejável segurança jurídica. No entanto, impende destacar que a abrangência regional da empresa implicaria, se observado a OJ 130 do TST, no deslocamento dos debates para o Distrito Federal, com que não concorda este Procurador, por se tratar de entendimento jurisprudencial que dificulta a dilação probatória e o próprio acesso à justiça. Outro aspecto a ser considerado, são as peculiaridades inerentes a cada unidade da empresa, eis que o cabimento ou não da aprendizagem está intimamente relacionado as condições de controle e eliminação dos agentes insalubres ou perigosos, as quais variam de unidade para unidade. Finalmente, ressaltou que o regramento dado para a matéria vem devidamente integrado pelas normas inferiores expedidas pelo MTE, de modo que nada obsta que a discussão local tenha seu curso. Por outro lado, o Procurador entende que no caso de acordo nacional superveniente a eventual acordo local, aquele operaria novação quanto a este. Portanto, não há relação de dependência ou de prejudicialidade entre a discussão local e a eventual entabulação de TAC nacional. Retomando a palavra os representantes da empresa dispuseram especial preocupação com a atividade de ajudante de produção (MAGAREFE), na qual, segundo informaram, há unidades que demandariam até 400 (quatrocentos) aprendizes, causando dificuldades até mesmo para a alocação física na unidade. Ademais, consignaram que a aludida atividade não demanda 800 (oitocentas) horas de aprendizagem, bem como, não demanda qualquer nível de escolaridade ou de experiência profissional, podendo ser adequadamente aprendida em cerca de 8 (oito) horas. O preposto da empresa, Sr. Fábio, ressaltou que a empresa 246

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possui um modelo de treinamento no local de trabalho, o qual capacita o contratado a desenvolver as atividades de ajudante de produção. Os representantes da empresa expuseram uns critérios preconizados pelo SENAI/SC para a identificação das funções que, efetivamente, demandam formação profissional metódica, ou seja, aprendizagem. O trabalho demonstrado a título de ilustração demonstrou que os critérios técnicos utilizados pelo SENAI/SC concluíram que no total de 21 atividades analisadas, apenas 8 demandariam aprendizagem, valendo ressaltar dentre aquelas que não demandam aprendizagem encontram-se as atividades de “auxiliar de escritório, em geral”, assistente administrativo, almoxarife, apontador de produção e assistente de vendas. Diante da apresentação o Procurador, sem questionar os critérios adotados pelo SENAI/SC, afirmou que o resultado final da análise é notoriamente restritivo, indo de encontro ao fim almejado pela lei de aprendizagem, que é a inserção assistida dos adolescentes e jovens ao mercado de trabalho, finalidade essa que materializa o cumprimento da função social das empresas. Sendo assim, sem excluir a possibilidade do SENAI contribuir para a devida aplicação da norma é importante deixar claro que tal contribuição não pode significar a não aplicação da norma, tal qual se observa no exemplo apresentado. Ao final, entendendo as partes não haver, ainda, amadurecimento suficiente para a imediata pactuação de TAC, acordou-se o agendamento de nova reunião com a presença de um representante do SENAI/MS para o fim de verificar a melhor forma de cumprimento da legislação. Deliberou-se pela realização de nova reunião no dia 15/04/2010 às 09:00hs, na sede da Procuradoria de Dourados, ficando o MPT responsabilizado por convidar o representante do SENAI, bem como o Juiz do Trabalho, Dr. João Cândido. Ficando claro que este último participará da deliberação de destinação de bens relativos ao acordo previamente firmado em juízo junto à Perdigão e, o primeiro para participar da discussão relativa a aprendizagem.”

Em face da impossibilidade de firmar TAC na audiência retromencionada, deliberou-se pela realização de nova reunião, no dia 15/04/2010, na sede deste MPT, com a participação do representante do SENAI, bem como do Juiz do Trabalho, Dr. João Cândido, ficando claro que este último participaria da deliberação de Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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destinação de bens relativos ao acordo firmado com a investigada noutra demanda, ao passo que o representante do SENAI em Mato Grosso do Sul, participaria da discussão relativa à aprendizagem, objeto dos autos da investigação instaurada. Posteriormente, a empresa demandada, por meio de seu procurador, Dr. Reginaldo Eduardo Macedo, encaminhou petição solicitando a redesignação da audiência administrativa agendada previamente para o dia 15/04/2010, em face de compromissos assumidos anteriormente no Estado de Pernambuco, o que restou indeferido, ante a confirmação da participação do representante do SENAI (Doc. 3). Realizada a audiência administrativa na data de 15/04/2010, com a presença do representante do SENAI-MS, bem como de representantes da investigada, restou esclarecido pelo primeiro o seguinte: “Abertos os trabalhos, pelo representante do Ministério Público foi exposto o motivo da audiência, qual seja, a continuação da discussão acerca do cumprimento da cota de aprendizagem, objeto do PP 14/2010. Lamentou a ausência do advogado da empresa, Dr. Macedo, bem como do supervisor, Dr. Fabio, todavia, aproveitando a presença dos representantes do SENAI, a discussão pode evoluir para que sejam esclarecidos os critérios e parâmetros adotados no Mato Grosso do Sul para a definição, por parte do SENAI, acerca do cabimento ou não da aprendizagem, e, agradecendo a presença da Sra. Silvana, neste ato representando a BRF Brasil Foods, passou-se a ouvir o representante do SENAI, Dr. Gilberto. Sendo no entanto esclarecido, que o ponto crucial que reclamou a presença do SENAI diz respeito ao cabimento da aprendizagem na função de ‘magarefe’. O representante do SENAI ressaltou, inicialmente, que o SENAI-MS não dispõe de metodologia própria para definição das atividades as quais demandem a aprendizagem, e, para tanto, seguem as normas e leis aplicáveis, conforme consignado no documento designado por “Diretriz da Educação Profissional e Tecnológica” do órgão, que em sua página 17 transcreve a Diretriz n. 51, cujo texto é o seguinte: “A cota de aprendizes por estabelecimento industrial será definida de acordo com as leis e normas em vigor”. Ademais, esclareceu que não é de competência do SENAI definir os critérios que definem uma função como apta à aprendizagem ou não, e, por consequência, quais as ocupações que 248

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nessa classificação se enquadram, e sim aplicar e passar as orientações da administração nacional, pautadas na lei, como a diretriz já citada, lembrando que tal competência foi reservada legalmente à Auditoria Fiscal do Trabalho. Por outro lado, o representante do SENAI ressaltou que deriva da sua missão institucional uma íntima relação de parceria com a indústria, o que equivale a dizer que o SENAI está a disposição para contribuir na discussão a fim de buscar um consenso quanto ao assunto, sempre tendo por parâmetro os regramentos legais, dentre os quais não se pode olvidar do estabelecido na CBO (Classificação Brasileira de Ocupações), a qual detalha quais as atividades inerentes à cada ocupação. O representante do SENAI fez referência ainda ao manual da aprendizagem do MTE, cuja página 16, no questionamento de número 14, esclarece quais as funções que não devem ser consideradas para efeito do cálculo da cota de aprendiz, da seguinte forma: “São excluídas da base de cálculo da cota de aprendizagem as seguintes funções: - as funções que exijam formação de nível técnico ou superior e os cargos de direção, de gerência ou de confiança (art. 10, §1º, do Decreto nº 5.598/05); - os empregados em regime de trabalho temporário, instituído pela Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1973 (art. 12, do Decreto nº 5.598/05); - os aprendizes já contratados.” Do critério acima descrito, cuja natureza é de definição pela exclusão das atividades que não demandam a aprendizagem conclui-se que todas as demais a reclamam. Diante de todo o exposto, o Procurador entendeu estar devidamente esclarecido o critério adotado pelo SENAIMS, com base no qual dar-se-á o início da próxima reunião a realizar-se com os representantes da empresa, a fim de estabelecer os meios e prazos para o cumprimento da legislação aplicável à aprendizagem, sendo definida para tal reunião o dia 12/05/2010, às 09:00h, com a presença dos representantes do SENAI-MS, além, por óbvio, dos representantes da empresa. (Doc. 04).

Da análise da parte final da Ata de Audiência, destacouse a necessidade de nova reunião entre as partes, a fim de que chegar a eventual acordo a respeito da contratação de Aprendizes Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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pela investiga, ocasião em que restou decidido que referida reunião ocorreria aos 12/05/2010. Aos 10 dias do mês de maio do corrente, este Procurador do Trabalho subscritor e o advogado da empresa, entabularam conversa telefônica, por iniciativa deste último, ocasião em que o douto advogado comunicou que NÃO compareceria na reunião agendada para o dia 12/05/2010, tendo se comprometido a encaminhar por escrito as suas razões (Doc. 05). Posteriormente sobreveio petição, datada de 12/05/2010, subscrita pelo advogado da investigada BRF – BRASIL FOODS S/A., Dr. Reginaldo Eduardo Macedo, requerendo ao final a suspensão da investigação em curso neste Órgão Ministerial, a pretexto de que esta buscou junto ao Procurador-Geral do Trabalho, Dr. Otávio Brito, entendimento a respeito do tema sob investigação, aduzindo ainda, o quanto segue: “Sempre foi grande a polêmica em torno da determinação de quais são as “funções que demandem formação profissional” que servem de base de cálculo para o preenchimento da quota de aprendizes pela empresa. O Decreto nº 5.598/05 procura definir a questão ao dispor que não se incluem nas “funções que demandam formação profissional” aquelas que, para seu exercício, apresentam como condição habilitação profissional de nível técnico ou superior. O indigitado texto normativo ainda exclui das funções que estejam caracterizadas como cargos de direção, de gerência ou de confiança, nos termo do inciso II e do parágrafo único do art. 62 e do art. 224 da CLT. De acordo com a hermenêutica jurídica, “não se presumem, na lei ou nas normas em geral, palavras inúteis, Quer dizer, “deve-se compreender as palavras como tendo alguma eficácia”. Concordemente, não é sem sentido a locução contida no art. 429 da CLT, ou seja, “funções que demandem formação profissional”. O legislador quis dizer, então, que há funções que não demandam formação profissional. O verdadeiro sentido da norma conduz à conclusão, inatacável, de que o número de quotistas deverá tomar por base as funções que demandam formação profissional, e não todos os empregados do estabelecimento, a exemplo daquelas funções para cujo exercício é suficiente uma fase singela de treinamento, que é o caso dos ajudantes de produção (conhecidos como magarefe). 250

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Interpretar diferentemente, como se todos os empregados demandassem formação profissional, torna inócuo o disposto na legislação de regência. (...) O Ministério do Trabalho e Emprego não pode, irregularmente e na calada da noite, inserir em cada uma das ocupações ali organizadas, um elemento a ela estranho, ou seja, que dita ocupação, independentemente do seu grau de complexidade,demanda formação profissional, como se tal assertiva viesse a integrar a CBO. Essa inserção constitui a deturpação jurídica da CBO, que não tem por escopo alistar, arbitrária e aleatoriamente, dita ocupação como demandado formação profissional. (...) Necessário dizer que a grande massa de trabalhadores, especialmente nos interiores do país, possui baixa ou quase nenhuma escolaridade e qualificação profissional, na prática, a empresa chega a contratar trabalhadores sem experiência, em muitos casos analfabetos, que passam a desenvolver as atividades, após receberem treinamento no ambiente de trabalho e a formar sua experiência com o tempo de exercício na função. (...) Que conforme noticiado a Vossa Excelência durante as audiências administrativas realizadas nesta procuradoria nos dias 07 e 15 de abril do corrente ano, esta empresa estava entabulando negociações perante a Procuradoria Regional do Trabalho da 12ª Região, buscando a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta, que contemplasse todas as unidades da empresa (abrangência nacional), onde seriam utilizados os critérios estabelecidos pelo SENAI/SC, para determinar as ocupações que efetivamente demandam formação profissional e assim determinar o número de empregados que formaram a base de cálculo, na qual será determinado o número de quotistas que a empresa deverá contratar para cumprir a quota legal. (...) Diante do acima exposto, requerer-se que se digne Vossa Excelência em suspender o presente procedimento, pelo prazo que entender ser razoável e que permita a conclusão destas discussões, que estão ocorrendo entre o MPT e a empresa.(Doc. 06). Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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Em atenção ao pleito - inusitado - da empresa BRF – BRASIL FOODS S/A., este procurador do Trabalho subscritor, em 12 de maio do corrente, despachou INDEFERINDO o pedido e determinando a judicialização da questão, via o aforamento da presente ação civil pública. Do despacho comentado constam os fundamentos do indeferimento, senão vejamos: “(...) Em que pese o respeito pelo entendimento esposado pelos ilustres advogados, conforme já declinado em oportunidades anteriores e devidamente registrado em ata de audiência, este membro do Parquet laboral entende de modo diverso. Conforme referido nos fundamentos da empresa, o art. 10, § 1º do Decreto n. 5.598/05 adotou o critério de exclusão para identificar as atividades que “demandam formação profissional”, in literis: Art. 10. Para a definição das funções que demandem formação profissional, deverá ser considerada a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), elaborada pelo Ministério do Trabalho e Emprego. § 1o Ficam excluídas da definição do caput deste artigo as funções que demandem, para o seu exercício, habilitação profissional de nível técnico ou superior, ou, ainda, as funções que estejam caracterizadas como cargos de direção, de gerência ou de confiança, nos termos do inciso II e do parágrafo único do art. 62 e do § 2o do art. 224 da CLT. Com a devida vênia, é facilmente alcançada a conclusão de que o legislador ordinário e na sua esteira o poder executivo, no exercício do seu poder regulamentar, optaram por conferir máxima eficácia ao disposto no art. 227, da Carta Magna, que diz, com todas as letras, que é dever do Estado e da sociedade assegurar ao adolescente o direito à profissionalização, in verbis: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Conforme bem salientado pelo nobre advogado, a lei não emprega palavras inúteis, o mesmo se aplicando à Constituição, lei das leis. 252

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Em verdade, o Constituinte brasileiro captou com precisão as linhas dadas pelos diplomas internacionais de direitos humanos, que não ignoram ser a profissionalização um mecanismo eficaz na ruptura do ciclo da pobreza e, por essa razão deve ser universalizado, conforme preconiza o art. XXVI, 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, verbis: Artigo XXVI 1. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnicoprofissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito Com efeito, a atual ordem jurídica que regula o instituto da aprendizagem no Brasil encerra uma importante iniciativa de “discriminação positiva” (affirmative action), na medida em que visa compensar a debilidade dos jovens decorrente da falta de experiência profissional com a estipulação legal de cotas para que estes tenham a oportunidade de inserção assistida ao mercado de trabalho. Sendo assim, ao contratar um aprendiz o empregador não deve tê-lo como mão-de-obra, mas sim ter em mente de que está cumprindo com sua função social de garantir a esse jovem o seu direito fundamental à profissionalização. Eis aí, portanto, o descabimento das alegações de que as unidades da BRF não comportariam a alocação dos aprendizes se considerada na base-de-cálculo os “magarefes”, uma vez que a norma deve ser aplicada a todos seus destinatários de modo impessoal e isonômico, cabendo às empresas adequarem sua estrutura para que operem tanto em busca dos seus resultados empresariais, como para que cumpram os comandos legais a ela impostos. Chega mesmo ao limiar da discriminação abstrata o menosprezo demonstrado pela função dos “magarefes”. Basta uma leitura das funções desse profissional para perceber que se trata de trabalhador que executa atividades de razoável complexidade, conforme se infere pela descrição da Classificação Brasileira de Mão-de-obra – CBO: Nº da CBO: 7-73.10 Título: Magarefe, em geral Descrição resumida: Procede ao corte e beneficiamento de bovinos, porcinos, caprinos e aves em geral, abatendo Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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o animal, sangrando-o, desossando-o, retalhando-o com auxílio de utensílios e máquinas adequadas, para abastecer o mercado consumidor: Descrição detalhada: sangra a rês, cortando veia jugular com uma faca ou outro instrumento cortante, para facilitar o esquarte- jamento, desossamento e demais operações; abre o animal, utilizando faca ou outros instrumentos apropriados, para extrair as vísceras; esquarteja a rês em pedaços de dimensões adequadas, utilizando serra mecânica, facão ou outro instrumento apropriado, para facilitar o seu armazenamento e posterior transporte; desossa as partes do animal, utilizando instrumentos apropriados, mecânicos ou manuais, obedecendo a um critério, para separar a carne que servirá a determinado tipo de industrialização; faz a lavagem e limpeza da carne, empregando material adequado, para retirar restos de sangue e muco; classifica a carne, selecionando-a segundo a qualidade, estado e partes da mesma, para facilitar sua comercialização; armazena a carne, depositando-a em câmaras frigoríficas, para garantir a conservação da mesma; prepara as vísceras, limpandoas, extraindo partes não-consumíveis, para possibilitar sua comercialização. Pode afiar os instrumentos utilizados. Pode efetuar a limpeza do local de trabalho. Verifica-se, por todos os ângulos que se analise o caso, a improcedência dos respeitáveis argumentos da empresa, razão pela qual este Procurador do Trabalho mantém seu entendimento inicial no sentido de que os “magarefes” devem compor a base-de-cálculo para aferir o número de aprendizes a serem contratados pelas empresas do segmento frigorífico. No que concerne ao requerimento de suspensão do presente procedimento em face dos supostos entendimentos entabulados com o Excelentíssimo Procurador-Geral do Trabalho, sem maiores digressões acerca do cabimento ou não de tal medida, o requerimento não merece acolhimento, uma vez que, conforme amplamente noticiado no “site” da Procuradoria-Geral do Trabalho, em verdade, o assunto versado na audiência concedida pelo Procurador-Geral restringiu-se a matéria estranha a investigada no presente procedimento.

Conforme se verifica na guia CAGED juntada em anexo, a empresa possuía em 03/2010 um total de 1912 (um mil e novecentos e doze) empregados (doc. 07), uma empresa considerada de grande porte, para nossa região, com relevante função social, se aplicável a 254

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legislação pertinente à contratação de Aprendiz. Estando preenchido o requisito imposto pelo dispositivo legal acerca da existência de funções que demandam formação profissional, não encontra respaldo a alegação da ré, no sentido de excluir do cômputo os trabalhadores denominados “MEGAREFE”, devendo a empresa efetuar a contratação dos trabalhadores aprendiz, em número condizente com o dispoto em lei. Destarte, devido a impossibilidade de firmar Termo de Ajuste de Conduta para regularizar a situação da ré BRF BRASIL FOODS S/A, emerge como ultima ratio, no intuito de compelir judicialmente a demandada a dar efetivo cumprimento ao ordenamento jurídico pátrio, a propositura da presente Ação Civil Pública, visando obter provimento jurisdicional hábil a obstar a prática ilícita identificada que, caso contrário, poderá estimular outras empresas do setor a deixarem de contratar aprendizes, sob a mesma alegação. O que se procura com a presente demanda não é apenas o cumprimento da obrigação atual de contratação de aprendizes, que por si só já a justificaria, mas também sua obrigação futura, atuando o MPT na tutela preventiva ou tutela inibitória. As palavras de LUIZ GUILHERME MARINONI são incisivas, ao afirmar que “A tutela inibitória pode ser utilizada para impedir a prática do ilícito, ou apenas para impedir a sua continuação ou repetição.”1 II – DO DIREITO Toda a hermenêutica constitucional que se realize sob a égide da Carta de 1988 tem de partir de algumas premissas axiológicas muito claras. A Constituição de 1988 é, nas palavras do saudoso Ulisses Guimarães, Presidente da Assembleia Constituinte, a “Constituição cidadã”, porque centra suas atenções na promoção e proteção dos direitos humanos, e guia-se pelo ideal de promoção da justiça material e da igualdade substantiva. Este norte interpretativo revela-se de forma cristalina 1 in “TUTELA ESPECÍFICA”, Ed. Revista dos Tribunais, 2a. edição, 2001, pág. 83.

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diante da leitura dos princípios fundamentais inscritos logo no Título I da Constituição da República. De fato, no art. 1º já se afirma, de forma emblemática, que a “cidadania” e a “dignidade da pessoa humana” são fundamentos do Estado brasileiro. Logo em seguida, no art. 3º, o constituinte estabelece como objetivos fundamentais da República “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (inciso I), bem como “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (inciso III). A importância atribuída pelo constituinte aos direitos fundamentais evidencia-se também pelos fatos, inéditos na história pátria, deles terem sido inseridos já no início do texto constitucional, antes dos dispositivos que tratam da estrutura do Estado, e elevados à condição de cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, IV, CF). Portanto, o constitucionalismo brasileiro é radicalmente antropocêntrico, sendo a pessoa humana considerada como o fim, por excelência, do Estado e da comunidade política. É dentro deste marco axiológico que deve ser examinada qualquer questão jurídica surgida na ordem jurídica nacional. O reconhecimento da força normativa de toda a Constituição, inclusive dos seus princípios, dentro do modelo que se vem chamando de póspositivismo, impõe a filtragem de todo o direito infra-constitucional pelos valores constitucionais. Neste contexto, para que uma norma, ou um comportamento qualquer do Poder Público seja reputado inconstitucional, e portanto inválido, não é preciso que se reconheça uma ofensa pontual ao texto de alguma regra positivada na Lei Maior. A contrariedade aos valores e princípios hospedados pela Carta Magna, explícita ou implicitamente, traduz igualmente inconstitucionalidade, devendo merecer repúdio igual ou ainda maior. Firmadas estas premissas, passa-se a apontar as diretrizes do contrato de aprendizagem na legislação pátria. A Constituição Brasileira estatuiu em seu artigo primeiro que a República Federativa do Brasil tem como fundamentos: “III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.”

Entre os direitos fundamentais, consta que a propriedade atenderá sua função social, conforme artigo 5º, inciso XXIII da 256

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Constituição. Nessa esteira em seu capítulo que trata da Família, da Criança do Adolescente e do Idoso, dispõe que: ‘’Art. 227 – É dever da família, da sociedade, e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito á vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão.’’

Desta forma resta evidente que a empresa deve ter em sua conduta o respeito a função social que a propriedade reveste. Outrossim, é dever da sociedade como um todo, incluído o setor empresarial, zelar pela profissionalização dos jovens de nosso País, consistindo em aspecto da função social a ser desempenhada pela empresa Demandada. A Consolidação das Leis Trabalhista ao tratar sobre a contratação de aprendizes em seus artigos 428 e 429, dispõe que: “Art. 428 - Contrato de aprendizagem é o contrato de trabalho especial, ajustado por escrito e por prazo determinado, em que o empregador se compromete a assegurar ao maior de 14 (quatorze) e menor de 24 (vinte e quatro) anos inscrito em programa de aprendizagem formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, e o aprendiz, a executar com zelo e diligência as tarefas necessárias a essa formação. § 1o A validade do contrato de aprendizagem pressupõe anotação na Carteira de Trabalho e Previdência Social, matrícula e frequência do aprendiz na escola, caso não haja concluído o ensino médio, e inscrição em programa de aprendizagem desenvolvido sob orientação de entidade qualificada em formação técnico-profissional metódica. § 2o Ao menor aprendiz, salvo condição mais favorável, será garantido o salário mínimo hora. § 3o O contrato de aprendizagem não poderá ser estipulado por mais de 2 (dois) anos, exceto quando se tratar de aprendiz portador de deficiência. § 4o A formação técnico-profissional a que se refere o caput deste artigo caracteriza-se por atividades teóricas e práticas, metodicamente organizadas em tarefas de complexidade progressiva desenvolvidas no ambiente de trabalho. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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§ 5o A idade máxima prevista no caput deste artigo não se aplica a aprendizes portadores de deficiência. § 6o Para os fins do contrato de aprendizagem, a comprovação da escolaridade de aprendiz portador de deficiência mental deve considerar, sobretudo, as habilidades e competências relacionadas com a profissionalização. § 7o Nas localidades onde não houver oferta de ensino médio para o cumprimento do disposto no § 1o deste artigo, a contratação do aprendiz poderá ocorrer sem a frequência à escola, desde que ele já tenha concluído o ensino fundamental. Art. 429. Os estabelecimentos de qualquer natureza são obrigados a empregar e matricular nos cursos dos Serviços Nacionais de Aprendizagem número de aprendizes equivalente a cinco por cento, no mínimo, e quinze por cento, no máximo, dos trabalhadores existentes em cada estabelecimento, cujas funções demandem formação profissional. § 1o-A. O limite fixado neste artigo não se aplica quando o empregador for entidade sem fins lucrativos, que tenha por objetivo a educação profissional. § 1o As frações de unidade, no cálculo da percentagem de que trata o caput, darão lugar à admissão de um aprendiz.’’

A Jurisprudência está claramente sedimentada quanto à indubitável necessidade de respeito ao cumprimento da obrigação legal de contratar aprendizes, senão vejamos: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRIGAÇÃO DO EMPREGADOR DE CONTRATAR E MATRICULAR APRENDIZES. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE VAGAS NO SENAI. INEXISTÊNCIA DE ÓBICE AO CUMPRIMENTO DO DEVER. Estando a empresa dentre os estabelecimentos albergados pelas normas dos arts. 429 e ss. da CLT e tendo admitido não cumprir a obrigação legal de contratar e matricular aprendizes, mostra-se escorreita a condenação imposta pelo juízo a quo. A mera alegação de ausência de vagas no SENAI não constitui óbice ao cumprimento do dever, pois esta não é a única instituição aceita pela legislação, consoante se extrai do art. 430 da CLT e como foi ressaltado na sentença. Além disso, sequer houve prova efetiva da ausência de oferta de vagas naquela instituição, até mesmo porque a disponibilidade pode ocorrer até a execução do julgado. (TRT 22 – RO 00460-2007-001-22-00-9 ) 258

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TRABALHISTA. PROCESSUAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTRATAÇÃO DE APRENDIZ NOS ESTABELECIMENTOS DE QUALQUER NATUREZA. DESCUMPRIMENTO.OS ESTABELECIMENTOS DE QUALQUER NATUREZA SÃO OBRIGADOS A EMPREGAR E MATRICULAR NOS CURSOS DOS SERVIÇOS NACIONAIS DE APRENDIZAGEM NÚMEROS DE APRENDIZES EQUIVALENTES A CINCO POR CENTO, NO MÍNIMO, E QUINZE POR CENTO, NO MÁXIMO, DOS TRABALHADORES EXISTENTES EM CADA ESTABELECIMENTO, CUJAS FUNÇÕES DEMANEM FORMAÇÃO PROFISSIONAL(CLT, ART. 429).FACE DESCUMPRIMENTO DE NORMA LEGAL, POR PARTE DA RECORRENTE, CORRETA A SENTENÇA A QUO QUE A CONDENOU NA OBRIGAÇÃO DE FAZER CONSTANTE DO ART. 429 DA CLT.RECURSO ORDINÁRIO CONHECIDO E IMPROVIDO. (TRT 22 00405-2007-002-22-00-5)

Diante de todo o exposto, identificado o comportamento lesivo e, portanto, ilícito da ré BRF - BRASIL FOODS S/A., consistente na violação das normas constitucionais, bem como dos dispositivos insertos na CLT, resta a imposição de medida judicial a fim de coibir tal ato lesivo, sob pena de cominação de multa em caso de descumprimento. III – DOS PEDIDOS E REQUERIMENTOS A ação civil pública tem por objeto a “condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer” (art. 3º da Lei nº 7.347/85). Ante o exposto, o Ministério Público do Trabalho requer a procedência dos pedidos da presente ação civil pública para condenar a demandada nas seguintes obrigações: 3.1) A condenação da empresa BRF – BRASIL FOODS S/A na obrigação de fazer atinente à contratação de trabalhadores aprendizes de acordo com as regras e o quantitativo mínimo estabelecido na CLT, sendo certo que na base-de-cálculo deverão ser considerados os “MAGAREFES” ou assemelhados, sob pena de aplicação de multa mensal no valor de R$ 100.000,00 (cem mil Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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reais), em caso de descumprimento, enquanto persistir a ilegalidade, reversível ao FAT - Fundo de Amparo ao Trabalhador ou outra destinação social, desde que cumpra o objetivo de compensar a coletividade local lesada. Tendo em vista a necessária interveniência de terceiros para que a obrigação seja plenamente satisfeita, o Ministério Público do Trabalho esclarece que a penalidade acima requerida será total ou parcialmente sobrestada no caso de impossibilidade temporária do cumprimento da obrigação em razão de fato de terceiro, como por exemplo, a inexistência imediata de curso de aprendizagem ou inexistência/insuficiên Requer ainda o Ministério Público do Trabalho: 3.2) A citação da demandada para, querendo, contestar a presente ação, sob pena de se presumirem verdadeiros os fatos ora articulados; 3.3) A produção de todos os meios de prova em direito admitidos, especialmente o depoimento pessoal do representante legal da demandada; 3.4) A intimação pessoal e nos autos do Ministério Público do Trabalho, na forma do disposto no artigo 18, inciso II, alínea “h”, da Lei Complementar nº 75/93, do Provimento nº 04/2000, da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho e do artigo 217 do Provimento Geral Consolidado nº 01/2004, da Corregedoria do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região. Dá-se à causa o valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais). Pede deferimento. Dourados (MS), 15 de junho de 2010. PAULO DOUGLAS ALMEIDA DE MORAES Procurador do Trabalho

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EXCELENTÍSSIMO(A) JUIZ (ÍZA) DA 2ª VARA DO TRABALHO DE DOURADOS - MS.

AUTOS N.° 0000889-45.2010.5.24.0022 Autor: MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO Réu: BRF – BRASIL FOODS S/A O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, por intermédio do Procurador do Trabalho infra-assinado, irresignado com o r. decisum de fls. 194/203, vem à presença de Vossa Excelência, em tempo oportuno, com fulcro nos arts. 895, alínea “a”, da Consolidação das Leis do Trabalho, art. 83, inciso VI, da Lei Complementar nº 75/93 e 499, § 2º, do Código de Processo Civil interpor RECURSO ORDINÁRIO na demanda acima epigrafada, requerendo a juntada das razões recursais anexas e a remessa dos autos ao tribunal ad quem. Dourados (MS), 17 de janeiro de 2011. JEFERSON PEREIRA Procurador do Trabalho

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EGRÉGIO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 24ª REGIÃO (MS) SENHORES DESEMBARGADORES FEDERAIS DO TRABALHO, ILUSTRE RELATOR,

RECURSO ORDINÁRIO I – BREVE RELATO O Ministério Público do Trabalho ajuizou a presente ação visando compelir a demandada a contratar trabalhadores aprendizes de acordo com as regras e o quantitativo mínimo estabelecido na CLT, incluindo na base de cálculo correspondente os empregados que se ativam nas funções de magarefe e assemelhados. Realizada audiência inaugural (Fl. 53), restaram infrutíferas as tentativas conciliatórias, oportunidade em que a ré apresentou defesa escrita acompanhada de documentos (Fls. 72/100), devidamente impugnados por este Parquet (Fls. 117/124). Não havendo outras provas a produzir encerrou-se a instrução (Fl. 125), sobrevindo sentença de mérito que decretou, in verbis: POSTO ISSO, decide o Juiz do Trabalho da 2ª Vara do Trabalho de Dourados – MS, julgar os pedidos formulados por MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO IMPROCEDENTES, para ABSOLVER BRF – BRASIL FOODS S/A de toda e qualquer condenação. Inconformado com o decisum, o Parquet interpõe o presente recurso. II – DA ADMISSIBILIDADE TEMPESTIVIDADE

DO

RECURSO

-

Verifica-se que a intimação do MPT acerca da sentença prolatada, realizada pessoalmente, com a remessa dos autos, nos 262

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termos do artigo 18, II, letra “h”, da LC 75/93, implementou-se em 17/12/2010, conforme se verifica à fl. 203, verso, oportunidade em que os prazos processuais no âmbito do 1º e 2º graus de jurisdição da Justiça do Trabalho da 24ª Região estavam suspensos por determinação da PORTARIA GP/DGCJ N. 010/2010 (cópia anexa), iniciando-se a contagem do lapso temporal destinado à interposição do recurso apenas no primeiro dia útil subsequente à suspensão, qual seja, 17/01/2011, de acordo com o que dispõem os Artigos 179 e 184, §§ 1º e 2º do CPC. Assim sendo, considerando que o Ministério Público tem prazo em dobro para recorrer, conforme art. 188 do CPC, dar-se-á o vencimento do prazo apenas em 01/02/2011, pelo que impõe-se reconhecer a tempestividade destas razões recursais. III – MÉRITO RECURSAL Conforme mencionado, a sentença combatida rejeitou integralmente os pleitos formulados pelo MPT, absolvendo à ré de toda e qualquer condenação, indicando como razões de decidir, em síntese, as seguintes: [...] Ora, o art. 429 da CLT não deixa dúvida de que apenas o número dos trabalhadores que exerçam funções que ‘demandem formação profissional’ é que compõem a base de cálculo da cota de aprendizes. Seriam todos os relacionados no CBO – Código Brasileiro de Ocupação, editado pelo Ministério do Trabalho e emprego? O art. 10, caput de parágrafo 1º do Decreto 5598/2005 são constitucionais. O art. 10 caput dispõe que o CBO serve apenas para unificar definições e conceitos e não para dizer quais são as profissões que devem integrar a base de cálculo do número de aprendizes (art. 10, ‘caput’ do C 5.598/2005). [...] O art. 6º do Decreto 6698/2005 fornece elementos que permitem definir quais são as ‘funções que demandam formação profissional em vista do contrato de aprendizagem’ e, portanto, excluir as outras que não demandam. O referido artigo conceitua formação profissional como sendo ‘as atividades teóricas e práticas, metodicamente organizadas em tarefas de Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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complexidade progressiva desenvolvidas no ambiente de trabalho, organizados e desenvolvidos sob a orientação e responsabilidade de entidades qualificadas em formação técnico-profissional metódica’. Podemos concluir que a ‘formação profissional para fins de contrato de aprendizagem’ é destinada às ‘tarefas de complexidade’, cujo domínio não se aprende num só momento, num curto período de horas ou dias, exigindo formação ‘metódica’ e ‘progressiva’ cujo tempo seja razoavelmente compatível com a formação do aprendiz (inteligência do art. 6º da d 5598/2005). O contrato de aprendizagem exige que o aprendiz mantenha-se inscrito e vinculado ao curso de formação (art. 428, parágrafo 1º da CLT). Se o ofício ou função pode ser aprendido em pouco tempo, torna-se incompatível com o contrato de aprendizagem, que não permitirá a vinculação do aprendiz e o ambiente da empresa para fins de aprendizagem. Essas funções de pouca complexidade não demandam ‘formação profissional’ e os trabalhadores que a exercem, também são excluídos do número da base de cálculo da cota percentual de aprendizes, ainda que haja curso de aprendizagem e aperfeiçoamento mantido pelo SENAI, porém com carga horária diminuta. [...] Oficiamos o SENAI de Dourados para informar sobre a existência de curso específico para Magarefe. O órgão em questão respondeu que há curso para operador de processos industriais da carne e derivados (f. 147 e 148). esse curso engloba em suas disciplinas diversas atividades estranhas à função de magarefe (vide atribuições de magarefe – CBO 7-73.10, comparando com o currículo do operador de processos industriais f. 148/152). Não é um curso de aprendizagem específico para Magarefe, atendendo tanto Magarefe como Afins. Evidentemente quem participar do curso poderá ser magarefe como também exercer funções de desossador, açougueiro, retalhador de carne, etc. [...] Conclusão. Considerando que a função de Magarefe é de pouca complexidade, não demanda formação profissional nos termos do art. 429 da CLT, e que além disso em Dourados não há curso específico para formação de Magarefe, torna-se impossível obrigar a reclamada a computar seus magarefes na base de cálculo da cota de aprendizes, pelo que julgo IMPROCEDENTE os pedidos do autor, inclusive quanto à imposição de multa, que na qualidade de acessório, segue a sorte do principal.” 264

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Com a devida vênia, impõe-se reconhecer que o r. decisium concede interpretação equivocada aos dispositivos legais disciplinadores do contrato de aprendizagem e, sobretudo, da obrigatoriedade do atendimento, pelos empregadores, da contratação de cota mínima e máxima de aprendizes, restringindo o alcance das normas e, por conseguinte, violando o direito difuso da coletividade concernente ao atendimento da cota legal a ser por todos atendida, salvo quanto às exceções expressamente dispostas em lei. Cumpre-nos, inicialmente, esclarecer de modo definitivo o objeto da demanda, qual seja, a imposição de obrigação de fazer à ré concernente ao atendimento das regras e quantitativo mínimo estabelecidos pela CLT quanto à contratação de aprendizes, cumulada com o dever de incluir na base de cálculo correspondente, todos os trabalhadores que se enquadram nas atividades de MAGAREFES E ASSEMELHADOS ou AFINS, de acordo com a Classificação Brasileira de Ocupações – CBO. Conforme aduzido, a CLT disciplina o instituto da aprendizagem, dispondo: ‘’Art. 428 - Contrato de aprendizagem é o contrato de trabalho especial, ajustado por escrito e por prazo determinado, em que o empregador se compromete a assegurar ao maior de 14 (quatorze) e menor de 24 (vinte e quatro) anos inscrito em programa de aprendizagem formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, e o aprendiz, a executar com zelo e diligência as tarefas necessárias a essa formação. [...] § 4o A formação técnico-profissional a que se refere o caput deste artigo caracteriza-se por atividades teóricas e práticas, metodicamente organizadas em tarefas de complexidade progressiva desenvolvidas no ambiente de trabalho. [...] Art. 429. Os estabelecimentos de qualquer natureza são obrigados a empregar e matricular nos cursos dos Serviços Nacionais de Aprendizagem número de aprendizes equivalente a cinco por cento, no mínimo, e quinze por cento, no máximo, dos trabalhadores existentes em cada estabelecimento, cujas funções demandem formação profissional.

Como é cediço, coube ao Decreto Nº 5.598 de 1º de Dezembro de 2005, a regulamentação da contratação de aprendizes, especificando os deveres impostos aos empregadores e concedendo Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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verdadeira interpretação autêntica aos conceitos abertos estabelecidos pela CLT, estatuindo: g Evidenciou-se pois, que a identificação das funções que demandam formação profissional e que, portanto, devem ser incluídas na base de cálculo para o cumprimento da cota de contratação de aprendizes, deve ser implementada pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), elaborada pelo Ministério do Trabalho e Emprego. O portal eletrônico do MTE (www.mtecbo.gov.br) consigna relevantes informações acerca da CBO, conforme colacionase abaixo: “A Classificação Brasileira de Ocupações - CBO, instituída por portaria ministerial nº. 397, de 9 de outubro de 2002, tem por finalidade a identificação das ocupações no mercado de trabalho, para fins classificatórios junto aos registros administrativos e domiciliares. Os efeitos de uniformização pretendida pela Classificação Brasileira de Ocupações são de ordem administrativa e não se estendem as relações de trabalho. Já a regulamentação da profissão, diferentemente da CBO é realizada por meio de lei, cuja apreciação é feita pelo Congresso Nacional, por meio de seus Deputados e Senadores , e levada à sanção do Presidente da República. [...] A CBO é o documento que reconhece, nomeia e codifica os títulos e descreve as características das ocupações do mercado de trabalho brasileiro. Sua atualização e modernização se devem às profundas mudanças ocorridas no cenário cultural, econômico e social do País nos últimos anos, implicando alterações estruturais no mercado de trabalho. [...] A nova CBO tem uma dimensão estratégica importante, na medida em que, com a padronização de códigos e descrições, poderá ser utilizada pelos mais diversos atores sociais do mercado de trabalho. Terá relevância também para a integração das políticas públicas do Ministério do Trabalho e Emprego, sobretudo no que concerne aos programas de qualificação profissional e intermediação da mão-de-obra, bem como no controle de sua implementação.

Especificamente quanto às atividades objeto de análise através da presente demanda, tratou-as a CBO no Grupo 8 – TRABALHADORES DA PRODUÇÃO DE BENS E 266

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SERVIÇOS INDUSTRIAS, SUBRGUPO PRINCIPAL 84 – TRABALHADORES DA FABRICAÇÃO DE ALIMENTOS, BEBIDAS E FUMO, SUBGRUPO 848 – TRABALHADORES ARTESANAIS NA AGROINDÚSTRIA, NA INDÚSTRIA DE ALIMENTOS E DO FUMO, FAMÍLIA 8485 – MAGAREFES E AFINS, subdividindo-a em 05 (cinco) títulos: 8485-05 - Abatedor ; 8485-10 – Açougueiro; 8485-15 – Desossador; 8485-20 – Magarefe; e 8485-25 - Retalhador de carne. Quanto à descrição das atividades, expôs: “Descrição Sumária: Abatem bovinos e aves controlando a temperatura e velocidade de máquinas. Preparam carcaças de animais (aves, bovinos, caprinos, ovinos e suínos) limpando, retirando vísceras, depilando, riscando pequenos cortes e separando cabeças e carcaças para análises laboratoriais. Tratam vísceras limpando e escaldando. Preparam carnes para comercialização desossando, identificando tipos, marcando, fatiando, pesando e cortando. Realizam tratamentos especiais em carnes, salgando, secando, prensando e adicionando conservantes. Acondicionam carnes em embalagens individuais, manualmente ou com o auxílio de máquinas de embalagem a vácuo. Trabalham em conformidade a normas e procedimentos técnicos e de qualidade, segurança, higiene, saúde e preservação ambiental. Condições Gerais de Exercício: Atuam na fabricação de produtos alimentares como empregados com carteira assinada. O trabalho é individual, sob supervisão permanente, em ambiente fechado e no sistema de rodízio de turnos (diurno/noturno). A exceção fica por conta do açougueiro que trabalha como autônomo ou por conta própria, com total autonomia em relação às condições de trabalho. O abatedor desenvolve as suas atividades sob pressão e permanece exposto a ruído intenso, altas temperaturas e riscos orgânicos.”

Quanto aos critérios de formação e experiência exigidos para o desempenho de qualquer das atividades componentes da família, sem inserir nenhuma exceção, estabeleceu: “Para o exercício dessas ocupações requer-se ensino fundamental e curso básico de qualificação profissional com até duzentas horas-aula. O pleno desempenho das atividades ocorre entre um e dois anos de experiência profissional. A(s) ocupação(ões) elencada(s) nesta família ocupacional, demandam formação profissional para efeitos do cálculo do número de aprendizes a serem contratados pelos estabelecimentos, nos termos do artigo 429 da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, exceto os casos previstos Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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no art. 10 do decreto 5.598/2005.” Depreende-se dos fundamentos expostos na sentença combatida, que a análise do nobre julgador restringiu-se a apenas uma das ocupações que integram a “Família MAGAREFES E AFINS”, definida na CBO com o n. 8485-20 e com o título “Magarefe”, enquanto que o pedido formulado pelo MPT refere-se de maneira abrangente a todas as ocupações que compõem a referida família, com espeque no disposto na CBO quanto à exigência expressa, para o exercício de qualquer daquelas atividades, de ensino fundamental e curso básico de qualificação profissional com até duzentas horasaula, consignando-se que o pleno desempenho das atividades ocorre entre um e dois anos de experiência profissional e que as ocupações elencadas na família (portanto todas, sem exceção) demandam formação profissional para efeitos do cálculo do número de aprendizes a serem contratados, nos termos do art. 429 da CLT. Não é outro o entendimento exposto no portal eletrônico do SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial1, entidade qualificada em formação técnico-profissional metódica, nos termos do Art. 8º, I, a, do Decreto 5.598/2005, que ao tratar da profissão industrial de Magarefe, fornece as informações seguintes: Família Ocupacional: Magarefe(s) e Afins Ocupações: Abatedor; Magarefe; Retalhador de carne.

Açougueiro;

Desossador;

O que faz(em) o(s) Magarefe(s) e Afins: Trabalham em atividades ligadas à fabricação de produtos alimentares. Essas atividades correspondem ao abate de bovinos e aves com o auxílio de máquinas e equipamentos. Os magarefes e afins preparam carnes para cortes, limpando, retirando vísceras, depenando, depilando e separando cabeças e carcaças para análises laboratoriais. Além disso, removem gorduras, desossam e cortam carnes, pesam e identificam tipos. Faz parte de suas atribuições aplicar tratamentos especiais em carnes, salgando, prensando e adicionando conservantes. Cabe, também, aos magarefes, embalar carnes, manualmente ou com o auxílio de máquinas, bem como inspecionar e armazenar carnes para comercialização. Do que preciso para ser Magarefe (s) e Afins: Para o exercício profissional, geralmente requer-se ensino fundamental, além de curso básico de 1 http://www.senai.br/br/comunidade/prof_industriais_detail.aspx?cod=226

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qualificação profissional com carga horária de até 200 horas-aula. Para alcançar o pleno desempenho das atividades, leva-se, em média, de um a dois anos de experiência profissional. Impende destacar ainda, as conclusões obtidas pela autoridade competente do Ministério do Trabalho e Emprego por ocasião da análise de recurso administrativo interposto pela ré, em virtude da lavratura de Auto de Infração diante da verificação do descumprimento do dever legal referente à contratação de aprendizes de acordo com a cota estabelecida (cópia anexa). Conquanto obviamente não vinculem o resultado da apreciação do conflito pelo Poder Judiciário, servem de elemento esclarecedor das normas que impõem o cumprimento da obrigação mencionada, com a inclusão das atividades de “Magarefes e Afins” na base de cálculo correspondente, expondo, in verbis: “[...] No mérito não assiste razão a ora defendente. Na verdade o cerne a questão da defesa se apóia no sentido que as funções de magarefe (CBO 848520), ajudantes de frigoríficos e práticos de frigoríficos II, por atingir o maior número de empregados não poderiam compor a base de cálculo da cota de aprendiz, vez que no entender da defendente não demandam qualificação profissional. Ora, ledo engano. Na verdade tais funções ao contrário do apontado pela defesa fazem sim parte de incidência da base de cálculo, para o cômputo da exigência da quota obrigatória do aprendiz, nos termos do art. 429 da CLT. De início, não podemos olvidar que a legislação que rege a contratação de aprendiz, impõe que a base de cálculo a ser considerada é o CBO (Classificação Brasileira de Ocupações), nos moldes do art. 10, do Decreto Nº 5.598, DE 1º DEZEMBRO DE 2005, in verbis: Art. 10. Para a definição das funções que demandem formação profissional, deverá ser considerada a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) elaborada pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Assim sendo, as funções de prático de frigoríficos, auxiliares, e outras fazem parte da família ocupacional de magarefe (CBO) 8485 e afins, os quais ocupam e demandam formação profissional, para efeitos de cálculo do número de aprendiz por exigência legal. Assim, é a descrição no documento extraído do Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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CBO, fl. (32). Por isso, o CBO de tais funções é expresso na autorização a demandar a aprendizagem, o que desnatura o argumento da defendente que seria inaplicável no cômputo da base de cálculo para contratação da cota de aprendiz. Nesse passo, não há espaço ao argumento da defendente que a atuação fiscal incidiu em erro na apuração da base de cálculo da cota de aprendiz. Ora, a Auditoria-Fiscal do Trabalho usou de bom senso e razoabilidade, vez que concedeu diversos prazos a empresa para o cumprimento da norma imperativa, cogente e de ordem pública, sendo que a autuada cumpriu a exigência apenas parcialmente. [...] Não podemos olvidar que a própria Constituição Federal, em seu artigo 227, prevê a obrigação de toda a sociedade promover a profissionalização dos adolescentes, além do mais a própria lei estendeu a formação metódica as pessoas até a idade de 24 anos. É bom esclarecer também que toda a coletividade tem a obrigação de proporcionar à criança e ao adolescente a possibilidade de obter formação técnico-profissional metódica, mediante o contrato de trabalho especial denominado de aprendizagem. Trata-se de um dever e não um ônus (faculdade) a ser suportado por todos em benefício da sociedade em geral.” Ora excelências, de qualquer ângulo que se analise o objeto do conflito deduzido em juízo é imperioso o reconhecimento de que a obrigatoriedade do atendimento da cota de contratação de aprendizes com a inclusão na base de cálculo dos empregados que se ativam em todas as ocupações integradas na “família” Magarefes e Afins da Classificação Brasileira de Ocupações decorre de normas jurídicas em pleno vigor, aptas a produzirem todos os seus efeitos, dotadas pois de caráter geral, abstrato, cogente e imperativo, fundadas em regras e princípios expressamente estabelecidos pela Constituição da República Federativa do Brasil, tais como: “Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.”’’Art. [...] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes 270

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princípios: [...] II - propriedade privada; III - função social da propriedade; [...] VIII - busca do pleno emprego; [...] 227 – É dever da família, da sociedade, e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito á vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão.’’

No que tange à impossibilidade de impor à ré a obrigação de computar seus magarefes na base de cálculo da cota de aprendizes, declarada na sentença combatida em virtude da suposta inexistência de curso específico de qualificação de tais profissionais no município de Dourados, é de se reconhecer que, quanto ao tema, o r. decisium contraria as provas dos autos. Expõe o D. Magistrado sentenciante, que em resposta à requisição daquele Juízo o SENAI de Dourados informou que oferece curso para operador de processos industriais da carne e derivados que, segundo seu entendimento, englobaria em suas disciplinas diversas atividades estranhas à função de magarefe, não sendo pois, um curso específico de Magarefe, atendente tanto Magarefe como Afins, qualificando seus participantes para o exercício das ocupações de magarefe, desossador, açougueiro, retalhador de carne, etc., enquanto que pelo SENAI do Estado de Santa Catarina, é disponibilizado curso específico para magarefe de aves, com carga horária de 56 horas em modo único, concluindo: “a) Em Dourados não há curso específico para Magarefe; b) O curso específico para formação de Magarefe ministrado pelo SENAI-SC, com carga horária de 56 horas, revela que a função de Magarefe é de menor complexidade. Por isso os magarefes não devem ser computados para fins da base de cálculo do percentual da cota de aprendizes. c) Não se pode admitir que a carga horária do curso de operador de Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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processos industriais, com currículo amplo ultrapassando o tempo de necessário para formação do magarefe seja utilizado para o cálculo do número de aprendizes em função do magarefe;”

Cumpre observar, que conforme dito alhures, o objeto da demanda não restringe-se ao cômputo do número de trabalhadores que se ativam na ocupação de magarefe, em sentido estrito, na base de cálculo referente à contratação de aprendizes, mas ao revés, atine à generalidade de ocupações que compõem a família “MAGAREFES E AFINS” disciplinada pela CBO, sendo irrelevante para o deslinde da questão a inexistência de curso específico para a ocupação isolada de magarefe. Ademais, o ordenamento jurídico pátrio estabeleceu expressamente, através do Decreto nº 5.598/2005, que a definição das funções que demandem formação profissional para fins de contratação de aprendizes compete à Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), elaborada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (Art. 10), de modo que a decisão recorrida viola tal disposição na medida em que altera, no caso concreto, tais critérios de definição legalmente impostos, aplicando de modo arbitrário, como pressuposto para a inclusão ou exclusão de atividades na base de cálculo multicitada, a complexidade da atividade, aferida exclusivamente pela análise de informação referente à carga horária de curso ofertado por entidade qualificada. O Decreto regulamentar mencionado esclarece que entende-se como formação técnico-profissional metódica as atividades teóricas e práticas, metodicamente organizadas em tarefas de complexidade progressiva desenvolvidas no ambiente de trabalho, realizada por programas de aprendizagem organizados e desenvolvidos sob a orientação e responsabilidade de entidades qualificadas em formação técnicoprofissional metódica. Não há portanto, exigência de carga horária mínima para que a atividade objeto do curso seja incluída no rol daquelas que demandam formação profissional, bastando para tanto serem assim consideradas na CBO. A eventual exiguidade do programa de ensino de curso ofertado pelas instituições qualificadas não desnatura a respectiva atividade, mantendo-se a exigência de seu cômputo na base de 272

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cálculo dos aprendizes até que a lei a excepcione ou seja excluída tal exigência do diploma pertinente, qual seja, a CBO, importando a análise curricular para a verificação, pelas autoridades competentes, da adequação do curso às normas impositivas, sendo descabida a inaplicabilidade da Lei, em virtude da precariedade do curso ofertado. Outrossim, verifica-se que o curso tal qual disponibilizado pela unidade do SENAI em Dourados contempla a qualificação profissional da “família de atividades” denominada pela CBO Magarefes e Afins, visando a capacitação dos trabalhadores ao desenvolvimento de qualquer das ocupações que a integram, já que o exercício de todas elas pressupõe a formação técnico-profissional metódica, conclusão ratificada pelas informações prestadas pelo gerente do SENAI de Dourados através do expediente de fls. 144/145, do qual extrai-se o seguinte excerto: “Em atenção ao ofício nº 1312/2010 de 27 de setembro de 2010, esclarecemos que o SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial atua no Estado de Mato Grosso do Sul realizando Educação Profissional, tendo como um de seus principais objetivos, ofertar cursos de Aprendizagem Industrial para o setor industrial, conforme preconiza sua lei de criação: Decreto-lei nº 4.048 de 22 de janeiro de 1942 respeitando todas as outras legislações vigentes e pertinentes. Nestes termos informamos que a Família de Magarefes e afins, sob o código 8485 da CBO (Classificação Brasileira de Ocupações) traz as seguintes observações: [...] Anexo encontra-se o Projeto do Curso Operador de Processos Industriais de Carnes e Derivados, estruturado para atender a formação das ocupação pertinentes a Família 8485 da CBO (Magarefes e afins), bem como seu itinerário que, em considerando as especificações acima, foi elaborado para suprir a demanda do município de Dourados, quanto a modalidade de ensino caracterizada como Aprendizagem Industrial.”

Denota-se que a unidade de Dourados/MS do SENAI, observando os princípios da formação técnico-profissional proporciona ao trabalhador qualificação completa através do curso de Operador de Processos Industriais de Carnes e Derivados, formando, de maneira geral, Magarefes e Afins, podendo ocuparemse nas atividades de abatedor, açougueiro, desossador, magarefe e Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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retalhador de carne, como já dito exaustivamente, todas ocupações que demandam formação profissional e, portanto, devem ser computadas na base de cálculo para aplicação da cota legal de contratação de aprendizes. Destarte, seja porque a decisão restringiu o objeto da demanda às atividades de magarefe, em sentido estrito, enquanto que o pedido formulado referiu-se à família Magarefes e Afins disciplinada na CBO, seja porque estabeleceu critérios distintos daqueles expressamente definidos em Lei para determinar, arbitrariamente, a exclusão da atividade de magarefe do rol daquelas que demandam qualificação profissional, ou ainda, porque declarou a impossibilidade do acolhimento da pretensão do recorrente quanto à imposição da obrigação de fazer especificada por entender que seu cabimento estaria condicionado à existência de curso específico, não sobrepaira dúvidas acerca da necessidade de reforma da sentença, proferindo-se nova decisão de mérito com vistas a dissipar o conflito. IV - CONCLUSÃO Por todo o exposto, requer o MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO que seja recebido, processado, conhecido e provido o presente recurso, a fim de que se opere a reforma na sentença de origem, proferindo-se nova decisão de mérito, impondo-se à ré, a obrigação de fazer atinente à contratação de trabalhadores aprendizes de acordo com as regras e o quantitativo mínimo estabelecido na CLT e em outros diplomas regulamentadores da matéria, devendo observar no cumprimento do disposto, que na base de cálculo referente à aplicação da cota legal para contratação de aprendizes deverão ser considerados todos os trabalhadores que exercem qualquer das ocupações incluídas pela Classificação Brasileira de Ocupações na Família Magarefes e Afins, sob pena de aplicação de multa mensal no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais), em caso de descumprimento, enquanto persistir a ilegalidade, reversível ao FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador ou outra destinação social, desde que cumpra o objetivo de compensar a coletividade local lesada, estabelecendo-se a possibilidade de total ou parcial sobrestamento da aplicação da penalidade na hipótese de impossibilidade temporária do cumprimento da obrigação em razão de fato de terceiro, como 274

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por exemplo, a inexistência imediata de curso de aprendizagem ou inexistência/insuficiência de aprendizes, tornando-se, no caso, novamente exigível, tanto a obrigação, quanto à multa em virtude do inadimplemento, quando verificar-se a superação dos eventuais obstáculos. Pede deferimento. Dourados (MS), 17 de janeiro de 2011. JEFERSON PEREIRA Procurador do Trabalho

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PROCESSO Nº 0000889-45.2010.5.24.0022-RO.1 PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA DO TRABALHO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 24ª REGIÃO ACÓRDÃO Tribunal Pleno Redatora Designada e Revisora : Juíza IZABELLA DE CASTRO RAMOS Relator : Juiz ADEMAR DE SOUZA FREITAS Recorrente : MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO Recorrido : BRF – BRASIL FOODS S.A. Advogados : Indalécio Gomes Neto e outros Recorrente : BRF – BRASIL FOODS S.A. (ADESIVO) Advogados : Indalécio Gomes Neto e outros Recorrido : MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO Origem : 2ª Vara do Trabalho de Dourados/MS AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTRATO DE APRENDIZAGEM. MAGAREFES E AFINS. I. A empresa deve cumprir seu papel social, assegurando ao adolescente a formação profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico (art. 227, da Constituição Federal). II. As funções de magarefes e afins demandam formação profissional porque estão incluídas na Classificação Brasileira de Ocupações (Decreto nº 5.589/2005, art. 10). Devem, portanto, compor a base de cálculo da cota de aprendizes. Recurso ministerial provido.

“Vistos, relatados e discutidos estes autos (PROCESSO Nº 0000889-45.2010.5.24.0022-RO.1), em que são partes as acima indicadas. O MM. Juiz do Trabalho, Marco Antonio Miranda Mendes, às f. 194-203, rejeitou a preliminar de ilegitimidade ativa do MPT, arguida pela reclamada, e no mérito, julgou improcedentes os pedidos deduzidos na inicial. Irresignado, recorre ordinariamente o autor, Ministério Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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Público do Trabalho, às f. 205-223, pugnando pela reforma da sentença, a fim de condenar a ré na obrigação de fazer consistente na contratação de aprendizes, sob pena de aplicação de multa. Junta documentos de f. 224-235. Por sua vez, recorre adesivamente a ré, às f. 250255, arguindo a ilegitimidade ativa do autor e, pelo princípio da eventualidade, alega cerceamento de defesa pelo indeferimento da prova testemunhal. Contrarrazões apresentadas pelas partes, sendo as da ré às f. 236-244, e as do autor às f. 261-269, ambas pela manutenção da sentença. É o relatório.” VOTO 1 - CONHECIMENTO “Conheço dos recursos e das contrarrazões apresentadas, porquanto presentes os pressupostos processuais de admissibilidade. Saliento que, em princípio, não poderia ser conhecido o pedido da reclamada de, caso provido o apelo do autor, seja reconhecido o alegado cerceamento do direito de defesa, haja vista o indeferimento da produção de prova testemunhal pelo julgador da origem. Isso porque, inexiste no ordenamento jurídico pátrio previsão de recurso condicional, por afrontar o disposto no artigo 286, do Código de Processo Civil, o qual preceitua que o pedido deve ser certo ou determinado. Entretanto, para evitar eventual alegação de negativa de prestação jurisdicional e invocando o princípio da economia processual, é que conheço integralmente do apelo adesivo interposto pela reclamada. Ainda, conheço dos documentos juntados pelo autor, por estarem em conformidade com o disposto na Súmula n. 8, do C. TST.” 278

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2 – MÉRITO 2.1– RECURSO ADESIVO DA RÉ (Voto da lavra do Exmo. Juiz Ademar de Souza Freitas) “Por se tratar de matéria prejudicial ao mérito, passo à análise do recurso adesivo da ré.” 2.1.1 - ILEGITIMIDADE ATIVA (Voto da lavra do Exmo. Juiz Ademar de Souza Freitas) “Renova a ré a arguição de ilegitimidade ativa do autor, sustentando ofensa ao disposto nos artigos 83, III, da Lei Complementar 75/93, e 129, III, da Constituição Federal, a qual limitou a atuação do Ministério Público do Trabalho para a promoção de ação civil pública perante a Justiça do Trabalho somente para a defesa de interesses coletivos, o que não se verifica no caso dos autos, pois a matéria versada refere-se a direitos individuais. Entretanto, não lhe assiste razão. Inexiste dúvida quanto à legitimidade do Ministério Público do Trabalho para propor tal espécie de ação, já que a Lei Orgânica do Ministério Público (LC 75/93) contém clara disposição neste sentido, mais especificamente no seu art. 6º, no qual está disposto que compete ao Ministério Público ajuizar ação civil pública para a defesa de interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos. Na verdade, conforme salienta Nelson Nery Júnior “... sempre que se estiver diante de uma ação coletiva, estará aí presente o interesse social, que legitima a intervenção e a ação em juízo do Ministério Público (CF127 caput e CF 129 IX) (...) O argumento de que ao MP não é dada a defesa de direitos individuais disponíveis não pode ser acolhido porque em desacordo com o sistema constitucional e do CDC, que dá o tratamento de interesse social à defesa coletiva em juízo. O parquet não pode, isto sim, agir na defesa de direito individual puro, por meio de ação individual. Caso o interesse individual seja homogêneo, sendo defendido coletivamente (CDC 81 par. ún. III), essa defesa pode e deve ser feita pelo Ministério Público (CDC 82 I, por autorização da CF 129 IX e 127 caput).” (in Ação Civil Pública, editora RT, pág. 366) Por outro lado, ainda que sob o prisma do cabimento, não Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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há como acolher a arguição da ré, visto que, não obstante a doutrina ainda não se encontrar pacificada quanto à utilização ampla e irrestrita da ação civil pública para fins de proteção de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, denominados, genericamente, de interesses transindividuais, o fato é que a jurisprudência caminha nesta direção, especialmente quando a ação é manejada pelo Ministério Público. Com efeito, a jurisprudência majoritária vem admitindo que o Ministério Público detém legitimidade para o manejo da ação civil pública em defesa de direitos individuais homogêneos, mesmo que disponíveis, desde que esteja configurado interesse social, compatível com a finalidade da instituição ministerial, que é o caso dos autos. Por tais motivos, nego provimento ao apelo.” 2.2 – COTA DE APRENDIZES – MAGAREFE (RECURSO DA RÉ E DO AUTOR) O Ministério Público do Trabalho ajuizou a presente ação civil pública visando compelir a ré, BRF-Brasil Foods S.A., a contratar trabalhadores aprendizes de acordo com as regras e quantitativo mínimo estabelecido na CLT,incluindo na base de cálculo correspondente os empregados que se ativam nas funções de magarefe e assemelhados, pena de “multa mensal no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais), em caso de descumprimento, enquanto persistir a ilegalidade, reversível ao FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador ou outra destinação social, desde que cumpra o objetivo de compensar a coletividade local lesada” (f. 10). O juízo a quo indeferiu a pretensão. Entendeu que a “formação profissional para fins do contrato de aprendizagem” é destinada às “tarefas de complexidade”, cujo domínio não se aprende num só momento, num curto período de horas ou dias, exigindo formação “metódica” e “progressiva” cujo tempo seja razoavelmente compatível com a formação do aprendiz, conforme interpretação que emprestou ao art. 6º do Decreto 5.598/2005. Sob esse enfoque, concluiu que a função de magarefe é de pouca complexidade, pois, embora conste da CBO, não há no SENAI de Dourados um curso de aprendizagem específico de 280

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Magarefe, atendendo tanto Magarefe como Afins (o que há é curso para operador de processos industriais da carne e derivados, com currículo mais abrangente), adicionando que o curso específico para formação de Magarefe oferecido pelo SENAI-SC é de 56 horas, o que revela a pouca complexidade da função. Inconformado, sustenta o autor que o Decreto 5.598/2005 estabelece expressamente que a definição das funções que demandam formação profissional para fins de contratação de aprendizes compete à Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), elaborada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (art. 10), de modo que a sentença alterou os critérios legalmente impostos, aplicando como pressuposto para inclusão ou exclusão de atividades na base de cálculo a complexidade da atividade – aferida exclusivamente pela carga horária de curso ofertado por entidade qualificada. Destaca que o objeto da demanda não está restrito ao cômputo de número de trabalhadores que se ativam na ocupação de magarefe, em sentido estrito, na base de cálculo para contratação de aprendizes, mas refere à generalidade de ocupações que compõem a família “MAGAREFE E AFINS” disciplinada pela CBO, sendo irrelevante para o deslinde da questão a inexistência de curso específico para a ocupação isolada de magarefe. E que o SENAI de Dourados oferece curso para operador de processos industriais de carne e derivados, formando de maneira geral, Magarefes e Afins, habilitando-os a ocuparem as atividades de abatedor, açougueiro, desossador, magarefe e retalhador de carne. Assiste-lhe razão. Segundo o artigo 429 da CLT, com a nova redação que lhe foi conferida pela Lei n. 10.087, de 19 de dezembro de 2000, os estabelecimentos de qualquer natureza são obrigados a empregar e matricular aprendizes nos cursos dos Serviços Nacionais de Aprendizagem em número equivalente a 5%, no mínimo, e 15%, no máximo, dos trabalhadores existentes em cada estabelecimento, cujas funções demandem formação profissional. O cálculo da cota de aprendizes é regulamentado pelo artigo 10 do Decreto n. 5.598/2005, segundo o qual o aprendiz deverá desempenhar funções que demandem formação profissional, considerada a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Ficam Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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excluídas as funções que exijam formação técnica superior e os cargos de direção, gerência ou confiança (§ 1º). Todas as funções que demandem formação profissional, independentemente de serem proibidas para menores de dezoito anos, compõem a base de cálculo (§ 2º). Logo, nenhuma outra função além daquelas expressamente discriminadas no § 1º do referido artigo 10 poderá ser excluída para cálculo da cota de aprendizes. No caso, o pedido do autor é para a contratação de aprendizes para a função de magarefe e afins (f. 10, item 3.1). De acordo com a CBO, a descrição das atividades de MAGAREFE E AFINS - família 84851 - é a seguinte: Abatem bovinos e aves controlando a temperatura e velocidade de máquinas. Preparam carcaças de animais (aves, bovinos, caprinos, ovinos e suínos) limpando, retirando vísceras, depilando, riscando pequenos cortes e separando cabeças e carcaças para análises laboratoriais. Tratam vísceras limpando e escaldando. Preparam carnes para comercialização desossando, identificando tipos, marcando, fatiando, pesando e cortando. Realizam tratamentos especiais em carnes, salgando, secando, prensando e adicionando conservantes. Acondicionam carnes em embalagens individuais, manualmente ou com o auxílio de máquinas de embalagem à vácuo. Trabalham em conformidade a normas e procedimentos técnicos e de qualidade, segurança, higiene, saúde e preservação ambiental.

Como se vê da sumária descrição, as tarefas requerem conhecimento e treinamento, desdobrando-se nas atividades de abatedor, açougueiro, desossador, magarefe e retalhador de carne. A qualificação pode ser feita no SENAI de Dourados que oferece o curso de Operador de Processos Industriais de Carnes e Derivados o qual é estruturado justamente para atender a formação das ocupações pertinentes à família 8485 da Classificação Brasileira de Ocupações (Magarefe e Afins). Isto está comprovado pelo ofício de f. 144/145 daquela gerência, em atendimento ao despacho de f. 139. 1 Subdividida em títulos: abatedor (8485-05), açougueiro (8485-10) , desossador (8485-15), magarefe (8485-20) e retalhador de carnes (8485-25).

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Neste ponto, não prospera o cerceamento de defesa suscitado no recurso do réu ao fundamento de que a reabertura da instrução processual pelo referido despacho de f. 139 devolveu-lhe o direito à prova testemunhal. É que a função de magarefe (e afins) já está descrita na CBO. Ademais, à f. 125 foi encerrada a instrução sem que a reclamada manifestasse a intenção de produzir outras provas. A posterior reabertura da instrução ocorreu única e exclusivamente para a expedição de oficio ao SENAI de Dourados com o fito de informar a existência de curso, conforme despacho de f. 139. Logo, não foi devolvido às partes o direito de ouvir testemunhas. Superada a questão incidente, forçoso concluir que a empresa deve cumprir seu papel social na contratação de aprendizes para a função de “magarefe e afins”. Neste ponto, impõe observar que o art. 227 da Constituição Federal cuida da proteção integral das crianças e adolescentes, estabelecendo o dever da família, da sociedade e do Estado de assegurar-lhes o direito à profissionalização. Para o cumprimento desse mandamento, o Estado participa ao criar e repassar contribuições sociais a entidades que têm por fim a formação profissional, como as do Sistema “S”, como também participa ao fixar em 2% a alíquota de contribuição do FGTS para os contratos de aprendizes2 quando o ordinário é a de 8%; a sociedade coopera através do pagamento de tributos, conferindo suporte financeiro ao Estado no cumprimento de suas funções e as empresas arcaram com sua parte no que se refere à profissionalização (art. 429 da CLT). O contrato de aprendizagem assegura ao adolescente a formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico. Como destacado, com toda a propriedade, pelo Desembargador Francisco das Chagas Lima Filho: É nesse cenário que se deve buscar a promoção do jovem e do adolescente por meio da educação e de outros mecanismos que possam inseri-los no mercado de trabalho cada vez mais qualificado, exigente e competitivo, em condições de 2 Lei nº 10.097/2.000, que alterou o art. 15 da Lei nº 8.036/1.990.

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igualdade quanto à capacidade técnica e profissional com os demais trabalhadores, estimulando-se a oferta de mão de obra qualificada ante as novas tecnologias, exigência não apenas de um novo modelo de produção, mas também do mercado globalizado. Em uma sociedade plural e democrática como a sociedade brasileira, não se pode negar o papel dos chamados entes intermediários, situados entre o indivíduo e o Estado, entre os quais se acham as organizações empresariais econômicas e de prestação de serviço, cujo papel e função social estão previstos nos arts. 5º, XII e XXIII, e 170, III, da Carta de 1988, devendo-se entender que a função social da propriedade é um princípio que está intimamente vinculado a um projeto de uma sociedade mais igualitária. [...] Cumpre, pois, às organizações privadas, no desempenho de seu papel social e enquanto estes intermediários entre o indivíduo e o Estado, também estimular a profissionalização dos jovens e adolescentes preparando-os para ingresso no mercado de trabalho, o que em última análise não apenas concretiza um dever social constitucionalmente previsto, mas também as beneficiará no futuro, na medida em que poderão contar com profissionais, técnica e humanamente preparados, contribuindo para que esses jovens e adolescentes possam ter uma profissão que lhes renda salário e melhores condições de vida juntamente com seus familiares, inclusive prevenindo contra as tentações que a criminalidade costuma oferecer com muitos atrativos, especialmente para aqueles menos aquinhoados.

Assim, o recurso do autor é provido para acolher o pedido quanto à obrigação de fazer – contratar trabalhadores aprendizes de acordo com as regras e quantitativo mínimo estabelecido na CLT, incluindo na base de cálculo correspondente os empregados que se ativam nas funções de magarefe e assemelhados, pena de multa mensal no valor de R$100.000,00 (cem mil reais) reversível a uma organização de amparo e profissionalização do jovem e adolescente localizada no município de Dourados, na área de atuação da empresa, a ser escolhida em comum acordo entre o juízo a quo e o Ministério Público do Trabalho. Nego provimento ao recurso do réu. POSTO ISSO 284

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ACORDAM os Desembargadores e os Juízes Convocados do Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da Vigésima Quarta Região, por unanimidade, em aprovar o relatório, conhecer dos recursos e das contrarrazões e, no mérito, negar provimento ao recurso da ré quanto ao tópico referente à ilegitimidade ativa, nos termos do voto do Juiz Convocado Ademar de Souza Freitas (relator); ainda no mérito, por maioria, dar provimento ao recurso do autor e negar provimento ao recurso da ré no tocante aos demais tópicos, nos termos do voto da Juíza Convocada Izabella de Castro Ramos (revisora), vencidos o Desembargador relator e o Desembargador João de Deus Gomes de Souza. Redigirá o acórdão a Juíza revisora. Juntarão voto convergente os Desembargadores Nicanor de Araújo Lima e Francisco das C. Lima Filho. Ausente, por motivo justificado, o Juiz Convocado Ademar de Souza Freitas (relator), o qual havia proferido seu voto na sessão realizada em 9.5.2011. OBSERVAÇÃO: O Procurador do Trabalho Paulo Douglas Almeida de Moraes, pelo autor, e o Dr. Rafael Linne Meto, pela ré, haviam feito sustentação oral na sessão realizada na data acima. Campo Grande, 05 de julho de 2011. IZABELLA DE CASTRO RAMOS Juíza Convocada do TRT da 24ª Região Redatora

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EXMA. SRA. JUÍZA DO TRABALHO DA EGRÉGIA VARA DO TRABALHO DE CORUMBÁ (MS)

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, por intermédio do Procurador do Trabalho que a esta subscreve, vem à presença de V. Exa., com fundamento no art. 129, III, da Constituição da República, nos arts. 5º, I e III, e 83, III, da Lei Complementar nº 75/93 e na Lei nº 7.347/85, com os acréscimos introduzidos pela Lei nº 8.078/90, promover a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO LIMINAR DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA em face da AGÊNCIA ESTADUAL DE GESTÃO DE EMPREENDIMENTOS DE MATO GROSSO DO SUL – AGESUL, pessoa jurídica de direito público, inscrita no CNPJ sob o n.° 15.457.856/0001-68, estabelecida na Avenida Desembargador José Nunes da Cunha, s/n, bairro Parque dos Poderes, CEP 79.031310, Campo Grande/MS, pelos fundamentos de fato e de direito a seguir expostos: I. DOS FATOS Instaurou-se o inquérito civil nº 000094.2011.24.003/0 para apurar notícia de exploração de trabalho em condições degradantes nas obras de reforma, construção e reconstrução de pontes sobre vazantes na MS - 185, conhecida como Estrada Parque. Em inspeção realizada no local, em conjunto com o Ministério do Trabalho e Emprego, constatou-se a veracidade dos fatos noticiados. Sabe-se que o princípio da dignidade da pessoa humana traduz a ideia de que o valor central das sociedades, do Direito e Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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do Estado contemporâneo é a pessoa humana, em sua singeleza, independentemente de seu status econômico, social ou intelectual. Verificou-se a existência de trabalhadores sem registro na CTPS, em alojamentos em condições inadequadas (barracas de lona plástica) e transportados de maneira irregular. Observou-se, ainda, que não havia o fornecimento de água potável, de equipamento de proteção individual e coletiva, de camas, colchões e roupas de cama, bem como inexistiam instalações sanitárias e local adequado para preparo de alimentos e para refeições, bem como para banho. As condições degradantes a que eram submetidos os trabalhadores podem ser visualizadas pelas fotos e vídeos anexados à inicial. Como se não bastasse a degradação do local de trabalho, os obreiros estavam submetidos a diversos riscos, inclusive a ataques de animais e a doenças oriundas da ausência de água potável e de picadas de inseto, uma vez que a referida estrada atravessa o Pantanal. Assim, além dos perigos inerentes aos trabalhos exercidos em condições degradantes, os obreiros vivenciavam riscos extraordinários advindos das peculiaridades do local. É de se destacar que a aludida obra visa a reconstrução de pontes de uma rodovia estadual. Para tanto, foi realizada licitação pela Agência Estadual de Empreendimentos de Mato Grosso do Sul – AGESUL, na modalidade convite, tipo menor preço, sendo o regime de execução de empreitada por preço unitário, nos termos da Lei n 8.666/93. É o que se observa da carta convite anexada à exordial. Não se pode descurar, porém, que, ainda que a obra tenha sido executada pelo regime de empreitada, a responsabilidade pela fiscalização, inclusive quanto à observância das normas trabalhistas, é da AGESUL. Trata-se de uma responsabilidade social, um compromisso constitucional assumido pela Administração Pública, inclusive a Indireta, perante a sociedade. Não é crível que o ente estatal compactue com a exploração da mão de obra utilizada em suas próprias obras, independentemente do regime de execução. Deve o ente estatal atuar no sentido de promover a dignidade da pessoa 288

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humana e do trabalho e não permitir que seja desrespeitada à frente de seus olhos, com indiferença, sem assumir qualquer atitude de combate. A fiscalização das obras deve atender os anseios de toda a sociedade, inclusive no sentido de combater a exploração do trabalho em condições análogas à de escravo, em vista da degradação do labor. Não basta que a ação fiscalizatória do ente estatal seja direcionada tão somente a aspectos técnicos, relativamente ao cumprimento das normas de engenharia previstas no contrato. É obrigação da ré fiscalizar o cumprimento da legislação trabalhista, bem como o respeito ao valor social do trabalho, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, IV da CF). Não poderia, pois, o ente estatal permitir que o labor em rodovia estadual, por meio de contratos por ele próprio firmados, fosse realizado em condições de extrema degradação, como constatado no caso em tela. Ademais, é de se salientar que a aludida rodovia se caracteriza por ser um importante polo turístico na região pantaneira, atraindo diversos turistas, inclusive estrangeiros, que se hospedam nas pousadas e fazendas localizadas em suas margens para apreciar as belezas naturais do local. Contudo, a par das belezas selvagens, os turistas também podiam visualizar a extrema degradação a que eram submetidos os trabalhadores que laboravam justamente na conservação da estrada em que transitavam. Isso porque as barracas de lona eram montadas na beira da estrada, bem visível a qualquer um que transitasse pelo local. Bem se vê, destarte, que o ente estatal deveria promover a efetiva fiscalização do cumprimento, pelos contratantes, da legislação trabalhista, a fim de evitar que a dignidade dos trabalhadores fosse surrupiada, como in casu. Os documentos anexados à inicial revelam que o ente contratante (AGESUL) constituiu uma Comissão de Fiscalização, porém essa comissão restringia sua fiscalização a questões técnicas da execução da obra, indiferente ao descumprimento da legislação trabalhista. É o que se observa das cláusulas 11.4, 11.10, 12.1, “a” e “e” e 13.1 do modelo de carta Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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convite carreado aos autos. Ou seja, como havia o efetivo deslocamento de representante da ré ao local das obras, é impossível que tente se esquivar de sua responsabilidade alegando desconhecer as irregularidades trabalhistas constatadas na inspeção realizada pelo Ministério Público do Trabalho e Ministério do Trabalho e Emprego. Até porque a degradação das condições de trabalho saltava aos olhos, de vez que as barracas de lona estavam montadas ao longo da estrada. Com efeito, conclui-se que o ente estatal sabia das condições degradantes a que eram submetidos os trabalhadores, porém não tomou qualquer atitude no sentido de sanear as ilegalidades. Notificado a manifestar o interesse em corrigir as irregularidades, por meio da celebração de Termo de Ajuste de Conduta, o ente estatal não manifestou interesse, não tendo comparecido à sede da Procuradoria do Trabalho no Município de Corumbá. Por outro lado, as empresas contratadas – que foram flagradas executando as obras no dia da inspeção – celebraram Termos de Ajuste de Conduta com o Ministério Público do Trabalho, pelos quais se comprometeram a sanear as ilegalidades, adequando sua conduta. Sabe-se que a região do Pantanal se caracteriza por constantes alagamentos, seguidos por períodos de seca, de modo que é comum a destruição e o comprometimento das pontes sobre as vazantes, ocorrendo tal fato anualmente. Por isso, é necessária uma garantia de que a degradação encontrada no local não se repita no próximo período chuvoso. E a única garantia de que não se repita é a condenação do ente estatal a fiscalizar o cumprimento da legislação trabalhista, sob pena de multa. Apenas o caráter intimidatório da sanção pecuniária pode contribuir para que os direitos dos trabalhadores passem a ser, efetivamente, assegurados. Não basta a mera promessa da ré de que passará a fiscalizar 290

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o cumprimento da legislação, uma vez que, sem a condenação, não há nenhuma garantia. Além do mais, já houve o descumprimento da legislação, manifestado na negligência e indiferença com as condições de trabalho no local, visto que a demandada sabia da degradação e nada fez. Ademais, como se pode observar no vídeo (mídia anexa), depoimentos de trabalhadores revelam que a degradação nesse tipo de obra é comum e ocorre há muitos anos, sem que o Poder Público tome qualquer providência. Com efeito, a partir de agora, é imprescindível que o Poder Público – por meio do Judiciário – obrigue o próprio Poder Público (Executivo) a respeitar a dignidade de seus trabalhadores, garantindo seus direitos essenciais. Ainda, não se pode descurar que a mera promessa de que a situação será regularizada a partir de agora, sem uma condenação nesse sentido, não passará de mera promessa. Até porque, ainda que seja cumprida nos próximos anos, nada impede que o próximo governante desconheça a promessa, ou mesmo a ignore, e volte a compactuar com a degradação do trabalhado em obras públicas. Além disso, há o risco de que a promessa seja cumprida somente em relação à aludida obra, por estar em evidência (inclusive na mídia, conforme reportagem coligida à inicial), e não em relação a outras obras de responsabilidade do ente estatal. Destarte, é imprescindível a condenação do ente estatal a fiscalizar o cumprimento da legislação trabalhista, sob pena de sanção pecuniária, bem como a ressarcir os danos causados à sociedade. II. DO DIREITO II.1. DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO E DO VALOR PROBATÓRIO DOS DOCUMENTOS QUE ACOMPANHAM A PETIÇÃO INICIAL Sabe-se que o Ministério Público busca proteger o interesse público primário, qual seja, o interesse da sociedade, garantido pela ordem jurídica democrática. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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Portanto, nos termos do art. 127 da Constituição Federal, “o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Já o art. 83, III, da LC nº 75/93 prevê a legitimidade do Ministério Público para “promover ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para a defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos”. No caso em tela, a legitimidade do Ministério Público é incontroversa, uma vez que a conduta negligente da ré acarretou e acarreta danos a interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, já que atinge a coletividade de trabalhadores atuais e futuros das empresas contratadas. Além disso, agride frontalmente o ordenamento jurídico ao desrespeitar disposições constitucionais e infraconstitucionais, além de ferir a dignidade da pessoa humana, ao não fornecer ao trabalhador um meio ambiente do trabalho saudável, higiênico e seguro. Destarte, o procedimento administrativo instaurado no âmbito do Ministério Público se trata de uma investigação de natureza pública e de caráter oficial, presidida por agente público, no exercício de verdadeiro múnus público decorrente do cumprimento de sua função institucional de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da CF). Os relatórios periciais de análise das condições do meio ambiente do trabalho elaborados por peritos do Ministério Público do Trabalho, após ação fiscalizatória com a presença de membro do Parquet, bem como os depoimentos testemunhais prestados na presença do Procurador, consistem em documentos públicos, resultantes de atos administrativos sujeitos ao princípios constitucionais da moralidade, impessoalidade, publicidade, eficiência e razoabilidade (art. 37 da CF). Sendo documentos públicos, quando levados ao Juízo como meio de prova documental, a estes se aplica a presunção de verdade de que trata o art. 364 do Código de Processo Civil, nos seguintes termos: 292

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“Art. 364. O documento público faz prova não só da sua formação, mas também dos fatos que o escrivão, o tabelião, ou o funcionário declarar que ocorreram em sua presença”.

Portanto, como o Parquet busca o interesse público primário, as provas por ele produzidas visam a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Por isso, os documentos são públicos e, por conseguinte, revestidos de presunção de verdade. II.2. DO ENFOQUE CONSTITUCIONAL Pretende-se, por esta ação, tornar concretos os objetivos constitucionais da dignidade da pessoa humana e valor social do trabalho (art. 1°, III e IV), os direitos fundamentais individuais à vida, à liberdade e à segurança (art. 5°, “caput”), o direito fundamental de não submissão à tortura nem a tratamento desumano ou degradante (art. 5°, inciso III), o direito fundamental de intimidade e vida privada (art. 5º, inciso X), os direitos fundamentais sociais à saúde e novamente à segurança (art. 6°, “caput”), o direito dos trabalhadores à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (art. 7°, XII), o direito à valorização do trabalho humano digno (art. 170, “caput”, que trata da Ordem Econômica). A referência constitucional é necessária para a perfeita solução do caso. Como bem salienta o Doutor em Direito Constitucional e Juiz do Trabalho, FRANCISCO METON MARQUES DE LIMA: “Indubitavelmente, qualquer interpretação esteia-se numa tábua de valores. E a interpretação constitucional, particularmente, por se tratar a Constituição de um conjunto de princípios abertos, carentes de densificação. Ainda mais, quando o caráter rígido do seu conteúdo material vindica constante atualização de sentido para acompanhar a história. “A propósito, Fávila Ribeiro afirma que o conteúdo da Constituição confraterniza as diversas ordens – cultural, social, econômica, política e jurídica -, cuja essencialidade dos seus conteúdos determina-se em certa época histórica, e vai sendo revitalizada através do contínuo fluir interpretativo. Essa colocação contém inegável matiz axiológico. Reforçando-a, arremata que “a Constituição aferrada a dogmatismos, sobrenadando no éter, sem qualquer grau de referibilidade e Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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contingenciamentos pelos fatores reais da cultura, economia e da política, quase sempre não passa de artefato nominalista”. (O resgate dos valores na interpretação constitucional: por uma hermenêutica reabilitadora do homem como “ser moralmente melhor”, Fortaleza, ABC Editora, 2001, p. 353. Itálico no original).

O referido autor também torna claro que os “valores superiores” contêm a ideologia a ser perseguida pelo Estado. “Essa ideologia vincula o legislador infraconstitucional, a ação administrativa e o Poder Judiciário” (ob. cit., p. 357). Continuando nessa linha: “No Brasil, logo no art. 1°, incisos II a V, a Constituição eleva a cidadania, a dignidade da pessoa, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político à condição de princípios fundamentais da República. Levando-se em conta a hierarquia dos princípios constitucionais formulada por Ivo Dantas (princípios fundamentais > princípios gerais > princípios específicos), a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa enquadram-se entre os princípios fundamentais, os quais orientam a interpretação de toda a matéria constitucional. (…) “Essa pauta de interpretação vincula o legislador, o judiciário, o administrador e todos os cidadãos, como copartícipes da sociedade aberta de intérpretes da Constituição. Enfim, obriga todos aqueles que constroem o direito, pois, como referido, o enunciado de lei é o objeto da interpretação, mas a norma é o produto que regula o caso concreto. (…) “Registre-se, porém, que na práxis, os tribunais brasileiros ainda não se aperceberam desse giro axiológico, prendendo-se excessivamente aos métodos da justiça formal do ancien régime, em detrimento da hierarquia dos valores fundantes da Constituição. Pior: Invertem-na” (ob. cit., p. 364-366. Itálico no original, negrito nossos).

Aproximando-nos do caso concreto, a redução dos trabalhadores a condição análoga à escravidão mediante trabalho degradante não compõe a expectativa social. Mas não só; gera toda uma cadeia de violação dos princípios objetivos e direitos constitucionais acima apontados, que não poderão ser relegados a mera abstração. Justamente quando há violação, devem ser reerguidos os princípios, para se mostrarem concretamente como pilares de nossa sociedade. Pelo exposto, é necessário que a elaboração da norma do caso concreto (sentença no âmbito judicial) mantenha ou restabeleça a ordem dos valores supremos do Estado, o que se consegue, nesta 294

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demanda, pela determinação de pronto e permanente cumprimento de obrigações destinadas à proteção da saúde e segurança, bem como pela determinação de reparação pelo dano coletivo causado. Atos estes que deverão resguardar a integridade física e a saúde dos trabalhadores e conceder-lhes segurança. Consequentemente, haverá a proteção da ordem jurídica, bem como a concretização e a prevalência da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho – fundamentos do Estado Brasileiro. Apenas sob essas condicionantes axiológico-jurídicas a hermenêutica e aplicação do direito terá validade. Se assim não se fizer, a Constituição será apenas um “artefato nominalista”, destacada dos reais anseios da sociedade. II.3. DO TRABALHO ANÁLOGO À CONDIÇÃO DE ESCRAVIDÃO Quando se fala em trabalho escravo, a primeira imagem que vem à mente da maioria das pessoas é a do escravo negro, preso a correntes e vivendo em senzalas. Tal impressão inicial, perfunctória, a respeito deste delicado tema, tem causado sérias dificuldades na aplicação eficaz das medidas coercitivas aos infratores, até mesmo por parte dos agentes públicos encarregados do combate a esta forma de exploração do ser humano. Ocorre que, ao associarmos a expressão trabalho escravo àquela figura oitocentista, incorremos no grave risco de tornarmonos pouco sensíveis às formas modernas de escravidão. Estas últimas travestidas das mais diversas formas de “licitude”. Daí muitos preferirem as expressões trabalho análogo à condição de escravo ou formas contemporâneas de escravidão para designarem o mesmo tipo de exploração do trabalhador. Conforme ensina o Subprocurador Geral do Trabalho Luís Antônio Camargo de Melo, em Palestra proferida no II Seminário de Direito e Processo do Trabalho de Santa Maria - RS, dia 07.11.2002, “o trabalho escravo ou forçado, contudo, segundo o conceito hodiernamente adotado, não será somente aquele para o qual o trabalhador não tenha se oferecido espontaneamente, porquanto há situações em que este é engodado por falsas promessas de ótimas condições de trabalho e salário. Esta situação, Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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inclusive, é a que mais se verifica atualmente”. In casu, conforme restou amplamente demonstrado durante a exposição dos fatos, a situação análoga à escravidão está perfectibilizada na degradação das condições de trabalho, consoante o tipo penal do artigo 149 do Código Penal: sujeição dos trabalhadores a condições degradantes de trabalho. Nesse sentido, dispõe o aludido dispositivo: Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003). Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003).

As condições degradantes a que eram submetidos os trabalhadores podem ser visualizadas pelas fotos e vídeos anexados à inicial. Observa-se, pois, que os obreiros estavam alojados em condições precárias (barracas de lona plástica), onde não havia água potável, equipamento de proteção individual e coletiva, camas, colchões e roupas de cama, bem como inexistia instalações sanitárias e local adequado para preparo de alimentos e para refeições, bem como para banho. Referidas condições afrontam patentemente o ordenamento jurídico pátrio, indo de encontro à dignidade da pessoa humana e ao valor social do trabalho, fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, incisos III e IV, da Constituição Federal). A precariedade, somada aos riscos a que estavam submetidos os trabalhadores, acarretou, inclusive, a interdição das obras pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Assim, nos termos do laudo de interdição do MTE e dos laudos periciais elaborados pelo perito do Ministério Público do Trabalho, bem assim dos Termos de Ajuste de Conduta firmados com as empresas contratadas pela ré, a adequação das condições de 296

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labor perpassa pela adoção das seguintes medidas, entre outras: FORNECER, gratuitamente, equipamentos de proteção coletiva EPC e equipamentos de proteção individual - EPI adequados ao risco e em perfeito estado de conservação e funcionamento (NR 6 – item 6.3.1 e NR 18 – 18.23.1); FORNECER, gratuitamente, aos trabalhadores, vestimenta de trabalho, assim como providenciar sua reposição, quando danificada (NR 18 – 18.37.3); DOTAR as frentes de trabalho (canteiros de obras) de alojamentos e áreas de vivência, constituídos por instalações do tipo (NR 18 - itens 18.4.1.3; 18.4.1.3.2; 18.4.2.10.1; e 18.4.2.10.2):I) MÓVEIS (inclusive contêineres), onde cada módulo possua: a) área de ventilação natural, efetiva, com no mínimo duas aberturas adequadamente dispostas para permitir eficaz ventilação interna; b) condições de conforto térmico; c) pé direito mínimo de 2,40m; d) os demais requisitos mínimos de conforto e higiene estabelecidos na NR 18; e e) proteção contra riscos de choque elétrico por contatos indiretos, além do aterramento elétrico; ou, II) FIXAS, atendendo aos seguintes requisitos: a) com paredes de alvenaria, madeira ou material equivalente; b) com pisos de concreto, cimentado, madeira ou material equivalente; c) com cobertura que proteja das intempéries; d) com área de ventilação de no mínimo 1/10 da área do piso; e) com iluminação natural e/ou artificial; f) com área mínima de 3 m² por módulo cama/ armário, incluindo a área de circulação; g) com pé direito mínimo de 2,50m para camas simples e de 3m para camas duplas (beliches); proibindo-se o uso de mais de 2 camas na mesma vertical; e, h) com instalações elétricas adequadamente protegidas. DOTAR os alojamentos de camas com dimensão mínima de 0,80m x 1,90m, além de colchões com densidade 26 e espessura mínima de 10 cm (NR 18 – 18.4.2.10.5); NÃO PERMITIR, em caso de utilização de beliches, que a altura livre entre as camas seja inferior a 90 cm (noventa centímetros) (NR 18 – 18.4.2.3.1); FORNECER aos trabalhadores, roupas de cama constituídas por lençol, fronha e travesseiro em condições adequadas de higiene, bem como cobertor, quando as condições climáticas assim o exigirem (NR 18 – 18.4.2.10.6); DOTAR os alojamentos de armários individuais com compartimento duplo, dotados de fechaduras ou dispositivos com cadeados (NR 18 – itens 18.4.2.10.7 e 18.4.2.9.3); DOTAR as frentes de trabalho dos canteiros de obras de áreas de Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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vivência contendo (NR 18 – itens 18.4.1 e 18.4.2.11.1): a) Instalações sanitárias, incluindo local para banho dotado de chuveiros; b) local para refeições; e c) cozinha, quando houver preparo de refeições. MANTER as instalações sanitárias em perfeito estado de conservação e higiene, assim como separá-las por sexo, quando necessário (NR 18 – 18.4.2.3); FORNECER aos trabalhadores água potável, filtrada e fresca, em recipientes hermeticamente fechados, confeccionados em material apropriado, além de proibir o uso de copos coletivos (NR 18 – 18.37.2.2); DOTAR as frentes de trabalho (canteiros de obras) de material necessário à prestação de primeiros socorros, considerando-se as características da atividade desenvolvida, bem como manter esse material guardado em local adequado e aos cuidados de pessoa treinada para esse fim (NR 7 – 7.5.1) PROMOVER, a todos os operadores de motosserra, treinamento para utilização segura da máquina, com carga horária mínima de oito horas, com conteúdo programático relativo à utilização segura da motosserra, constante no Manual de Instruções do equipamento, assim como não permitir o uso de motosserra que não possua dispositivos de segurança (NR 31 – itens 31.12.20 e 31.12.10.1); PROVIDENCIAR o transporte adequado dos trabalhadores, por meio de veículos de transporte normalizados pelas entidades competentes e adequados às características do percurso, observando-se as normas de segurança vigentes (NR 18 – itens 18.25.1 e 18.25.2); MANTER registro de todos os seus empregados, podendo ser adotados livros, fichas ou sistema eletrônico, onde deverão ser anotados além da qualificação civil ou profissional de cada trabalhador, todos os dados relativos à admissão no emprego, duração e efetividade do trabalho, férias, acidentes e demais circunstâncias que interessem à proteção do trabalhador (artigo 41, caput e parágrafo único, da CLT); PROCEDER ao registro do contrato de trabalho de seus empregados na Carteira de Trabalho e Previdência Social, de acordo com o artigo 29 da CLT; DEPOSITAR o FGTS na conta vinculada de seus empregados até o dia 7 (sete) de cada mês, de acordo com o que dispõe o artigo 15 da Lei nº 8.036/90; PAGAR o salário de todos os trabalhadores até o quinto dia útil do mês subsequente, nos termos do art. 459, § 1º da CLT; SUBMETER o trabalhador a exame médico admissional, antes que assuma suas atividades, nos termos da Lei nº 5.889/73, art. 13; ABSTER-SE de contratar menores de 18 anos, em atendimento ao disposto no art. 7º, XXXIII da CF; COMUNICAR à Superintendência Regional do Trabalho SRTE, por intermédio da Certidão Declaratória de Transporte de Trabalhadores (CDTT), o transporte de obreiros recrutados para 298

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trabalhar em localidade diversa de sua origem, nos termos do art. 23 e seguintes da Instrução Normativa nº 76 do Ministério do Trabalho e Emprego, datada de 15 do maio de 2009.

Corroborando o quanto até aqui exposto, os Tribunais Trabalhistas, de todo Brasil, sensíveis a questão social que envolve o trabalho em condições análogas à escravidão, assim se posicionam: “TRABALHO FORÇADO. CONFIGURAÇÃO. Os fatos devidamente comprovados nos autos, demonstram de maneira incontestável o descuido continuado do empregador com o meio ambiente do trabalho, afetando potencialmente todos os seus empregados, que, ao contrário do que alega a peça recursal, estavam impossibilitados do livre exercício do direito de IR e VIR, e o que é mais degradante, estavam submetidos à condição subumana como bem retratam as fotos e a fita VHS residentes nos autos. Está, assim, configurada a prática de dano coletivo”. (AC. 00233-2002-114-08-00-X, TRT 8ª Região – 4ª T/RO 862/2003, Rel. Juíza Francisca Formigosa, julgado em 06.05.2003)”. RECLAMAÇÃO TRABALHISTA – TRABALHO ESCRAVO – INTERVENÇÀO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. O trabalho escravo contribui sobremaneira com o crescimento das assimetrias sociais e vem sendo coibido por diversos órgãos governamentais, num verdadeiro esforço conjunto para disseminá-lo. Assim, o simples indício da ocorrência desse tipo de trabalho atrai o interesse público justificador da intervenção do parquet, ante a amplitude e relevância da missão constitucional que lhe é reservada (art. 127). Recurso das reclamadas não providos. (AC. 971/2002-071-24-00-6-RO.1,TRT 24ª Região, Rel. Juiz Ricardo Geraldo Monteiro Zandona)”.

Houve, portanto, no caso vertente, a ocorrência de trabalho análogo à condição de escravidão, manifestada pela degradação a que estavam sujeitos os trabalhadores, impondo-se a aplicação de sanção pedagógica e exemplar, a qual será adiante articulada. II.4. DA OMISSÃO FISCALIZATÓRIA DA AGESUL OU CULPA IN VIGILANDO Pretende-se, nesse tópico, demonstrar a Vossa Excelência, sob o enfoque do Direito Administrativo, que a ré tinha – e tem – a obrigação de fiscalizar a regularidade trabalhista de toda a mão de obra engajada na execução de obra pública. É dever do ente estatal não só proteger o bem Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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público, mas também as condições de trabalho dos obreiros que laboram nesses locais. Trata-se, sobretudo, de uma responsabilidade social, da qual o ente não pode se esquivar. O Poder Público deve atuar para proteger o interesse público, garantindo a todos os indivíduos o mínimo essencial, inclusive no que tange aos direitos trabalhistas. No caso em tela, a suplicada deveria assegurar aos trabalhadores um mínimo de dignidade e conforto, em atendimento às normas editadas pelo próprio Poder Público, notadamente por se tratar de uma obra de sua responsabilidade. É importante salientar que o interesse da sociedade não será atendido apenas com a reconstrução da importante estrada do Pantanal, mas também com a garantia dos direitos dos trabalhadores que, com seu esforço, dedicam-se à aludida obra. Assim, a responsabilidade de fiscalização do ente estatal não se limita a questões técnicas de execução da obra, devendo abranger, também, questões atinentes às normas trabalhistas. Nesse sentido é o teor da INSTRUÇÃO NORMATIVA MP Nº 2, DE 30 DE ABRIL DE 2008 - DOU DE 23/05/2008 do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, in verbis: Art. 34. A execução dos contratos deverá ser acompanhada e fiscalizada por meio de instrumentos de controle, que compreendam a mensuração dos seguintes aspectos, quando for o caso: I - os resultados alcançados em relação ao contratado, com a verificação dos prazos de execução e da qualidade demandada; II - os recursos humanos empregados, em função da quantidade e da formação profissional exigidas; III - a qualidade e quantidade dos recursos materiais utilizados; IV - a adequação dos serviços prestados à rotina de execução estabelecida; V - o cumprimento das demais obrigações decorrentes do contrato; e VI - a satisfação do público usuário. § 1º O fiscal ou gestor do contrato ao verificar que houve subdimensionamento da produtividade pactuada, sem perda da qualidade na execução do serviço, deverá comunicar à autoridade responsável para que esta promova a adequação contratual à produtividade efetivamente realizada, respeitandos e os limites de alteração dos valores contratuais previstos no § 1º do artigo 65 da Lei nº 8.666, de 1993. § 2º A conformidade do material a ser utilizado na execução dos serviços 300

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deverá ser verificada juntamente com o documento da contratada que contenha a relação detalhada dos mesmos, de acordo com o estabelecido no contrato, informando as respectivas quantidades e especificações técnicas, tais como: marca, qualidade e forma de uso. § 3º O representante da Administração deverá promover o registro das ocorrências verificadas, adotando as providências necessárias ao fiel cumprimento das cláusulas contratuais, conforme o disposto nos §§ 1º e 2º do art. 67 da Lei nº 8.666, de 1993. § 4º O descumprimento total ou parcial das responsabilidades assumidas pela contratada, sobretudo quanto às obrigações e encargos sociais e trabalhistas, ensejará a aplicação de sanções administrativas, previstas no instrumento convocatório e na legislação vigente, podendo culminar em rescisão contratual, conforme disposto nos artigos 77 e 87 da Lei nº 8.666, de 1993. § 5º Na fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas e sociais nas contratações continuadas com dedicação exclusiva dos trabalhadores da contratada, exigir-se-á, dentre outras, as seguintes comprovações: I - no caso de empresas regidas pela Consolidação das Leis Trabalhistas: a) a prova de regularidade para com a Seguridade Social,conforme dispõe o art. 195, § 3º da Constituição Federal sob pena de rescisão contratual; (Nova redação pela INSTRUÇÃO NORMATIVA MP Nº 3, DE 15/11/2009) b) recolhimento do FGTS, referente ao mês anterior, caso a Administração não esteja realizando os depósitos diretamente, conforme estabelecido no instrumento convocatório; (Nova redação pela INSTRUÇÃO NORMATIVA MP Nº 3, DE 15/11/2009) c) pagamento de salários no prazo previsto em Lei, referente ao mês anterior; d) fornecimento de vale transporte e auxílio alimentação quando cabível; e) pagamento do 13º salário; f) concessão de férias e correspondente pagamento do adicional de férias, na forma da Lei; g) realização de exames admissionais e demissionais e periódicos, quando for o caso; h) eventuais cursos de treinamento e reciclagem que forem exigidos por lei; (Nova redação pela INSTRUÇÃO NORMATIVA MP Nº 3, DE 15/11/2009) i) comprovação do encaminhamento ao Ministério do Trabalho e Emprego das informações trabalhistas exigidas pela legislação, tais como: a RAIS e a CAGED; (Nova redação pela INSTRUÇÃO NORMATIVA MP Nº 3, DE 15/11/2009) j) cumprimento das obrigações contidas em convenção coletiva, acordo coletivo ou sentença normativa em dissídio coletivo de trabalho; e k) cumprimento das demais obrigações dispostas na CLT em relação aos empregados vinculados ao contrato. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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Embora se trate de norma editada no âmbito federal, seu teor também serve de parâmetro para o dever de fiscalização dos entes públicos das demais esferas da Federação. Nesse sentido, é a doutrina pátria: “Enquanto a Lei de Licitações traça regras gerais sobre o dever de fiscalização contratual, a IN nº 2/2008 do MPGO interpreta e especifica estas regras, instituindo um padrão fiscalizatório comprometido com a eficiência das técnicas de controle e com a efetividade dos direitos fiscalizados,(...), levando em consideração a realidade do gerenciamento contratual, os riscos decorrentes das práticas contratuais e os direitos e deveres da Administração Pública perante os administrados e perante os terceiros interessados, tais como os trabalhadores terceirizados. Isto porque a procedimentalização da fiscalização no âmbito dos contratos de terceirização não constitui matéria própria para disciplina legislativa, sendo tema reservado às normas regulamentadoras. Este padrão fiscalizatório federal vincula a Administração Pública em todos os âmbitos federativos, por força do princípio da predominância do interesse, tendo em conta que, sendo privativa da União a competência para legislar sobre normas de licitações e contratos, aos estados e municípios incumbe complementar esta legislação com respeito às diretrizes nacionais. Nessa linha de princípio federativo, embora as regras de fiscalização previstas na IN nº 2/2008 do MPOG tenham incidência estrita à órbita da Administração Pública federal, suas diretrizes para uma fiscalização eficaz sobre os contratos de terceirização em matéria trabalhista acabam por orientar os demais entes federativos na implementação de suas normas internas acerca da matéria, em face da legítima expectativa constitucional de uma Administração Pública comprometida com a higidez legal e com a eficiência dos mecanismos de controle da atividade administrativa (Constituição, art. 37).” (grifou-se - VIANA, DELGADO e AMORIM, op. cit, LTr 75-03/292293).

Ademais, consoante a decisão do Supremo Tribunal Federal proferida no julgamento da ADC nº 16 – DF, bem como a nova redação da Súmula nº 331 do TST, é possível a responsabilização, de forma subsidiária, do ente estatal pelas verbas trabalhistas, quando se identifica a presença da culpa in vigilando na conduta omissiva do ente público contratante ao não se desincumbir, satisfatoriamente, de seu ônus de comprovar ter fiscalizado o cabal cumprimento, pelo empregador, das obrigações trabalhistas. 302

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Ora, se é possível a responsabilidade subsidiária do ente estatal pelo não pagamento das verbas trabalhistas quando há omissão na fiscalização das obrigações trabalhistas, com mais razão ainda existe a responsabilidade do ente de fiscalizar, efetivamente, o cumprimento das normas. Isso porque o dever de fiscalizar pressupõe a obrigação subsidiária de quitação das verbas do contrato de trabalho não adimplidas pelo empregador. Nesse sentido, elucida a jurisprudência do Egrégio Tribunal Superior do Trabalho: TERCEIRIZAÇÃO TRABALHISTA NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ART. 71, § 1º, DA LEI Nº 8.666/93 E RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO ENTE PÚBLICO PELAS OBRIGAÇÕES TRABALHISTAS DO EMPREGADOR CONTRATADO. POSSIBILIDADE, EM CASO DE CULPA IN VIGILANDO DO ENTE OU ÓRGÃO PÚBLICO CONTRATANTE, NOS TERMOS DA DECISÃO DO STF PROFERIDA NA ADC Nº 16-DF E POR INCIDÊNCIA DOS ARTS. 58, INCISO III, E 67, CAPUT E § 1º, DA MESMA LEI DE LICITAÇÕES E DOS ARTS. 186 E 927, CAPUT, DO CÓDIGO CIVIL. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL E PLENA OBSERVÂNCIA DA SÚMULA VINCULANTE Nº 10 E DA DECISÃO PROFERIDA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA ADC Nº 16-DF. SÚMULA Nº 331, ITENS IV E V, DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Conforme ficou decidido pelo Supremo Tribunal Federal, com eficácia contra todos e efeito vinculante (art. 102, § 2º, da Constituição Federal), ao julgar a Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16DF, é constitucional o art. 71, § 1º, da Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93), na redação que lhe deu o art. 4º da Lei nº 9.032/95, com a consequência de que o mero inadimplemento de obrigações trabalhistas causado pelo empregador de trabalhadores terceirizados, contratados pela Administração Pública, após regular licitação, para lhe prestar serviços de natureza contínua, não acarreta a esta última, de forma automática e em qualquer hipótese, sua responsabilidade principal e contratual pela satisfação daqueles direitos. No entanto, segundo também expressamente decidido naquela mesma sessão de julgamento pelo STF, isso não significa que, em determinado caso concreto, com base nos elementos fático-probatórios delineados nos autos e em decorrência da interpretação sistemática daquele preceito legal em combinação com outras normas infraconstitucionais igualmente aplicáveis à controvérsia (especialmente os arts. 54, § 1º, 55, inciso XIII, 58, inciso III, 66, 67, caput e seu § 1º, 77 e 78 da mesma Lei nº 8.666/93 e os arts. 186 Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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e 927 do Código Civil, todos subsidiariamente aplicáveis no âmbito trabalhista por força do parágrafo único do art. 8º da CLT), não se possa identificar a presença de culpa in vigilando na conduta omissiva do ente público contratante, ao não se desincumbir satisfatoriamente de seu ônus de comprovar ter fiscalizado o cabal cumprimento, pelo empregador, daquelas obrigações trabalhistas, como estabelecem aquelas normas da Lei de Licitações e também, no âmbito da Administração Pública federal, a Instrução Normativa nº 2/2008 do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), alterada por sua Instrução Normativa nº 03/2009. Nesses casos, sem nenhum desrespeito aos efeitos vinculantes da decisão proferida na ADC nº 16-DF e da própria Súmula Vinculante nº 10 do STF, continua perfeitamente possível, à luz das circunstâncias fáticas da causa e do conjunto das normas infraconstitucionais que regem a matéria, que se reconheça a responsabilidade extracontratual, patrimonial ou aquiliana do ente público contratante autorizadora de sua condenação, ainda que de forma subsidiária, a responder pelo adimplemento dos direitos trabalhistas de natureza alimentar dos trabalhadores terceirizados que colocaram sua força de trabalho em seu benefício. Tudo isso acabou de ser consagrado pelo Pleno deste Tribunal Superior do Trabalho, ao revisar sua Súmula nº 331, em sua sessão extraordinária realizada em 24/05/2011 (decisão publicada no Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho de 27/05/2011, fls. 14 e 15), atribuindo nova redação ao seu item IV e inserindo-lhe o novo item V, nos seguintes e expressivos termos: -SÚMULA Nº 331. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE. (...) IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial. V Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei nº 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada. Na hipótese dos autos, o Regional expressamente consignou que ficou caracterizada a culpa in vigilando e in eligendo do ente público” (TST, 2ª Turma, PROCESSO Nº TST-RR-250100-48.2006.5.09.0661, relator JOSÉ ROBERTO FREIRE PIMENTA, Brasília, j. 28/09/2011, destaquei).

Ressalte-se, ainda, segundo a aludida decisão, que a natureza jurídica de ente público não o exime de responsabilização, pois a responsabilidade de fiscalização do cumprimento das normas 304

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trabalhistas, prevista na Súmula nº 331 do TST, não exclui qualquer entidade, pertencente à Administração Direta ou Indireta (autarquia), de responder pelo descumprimento da legislação trabalhista por parte do empregador, inclusive prevendo a responsabilidade subsidiária por créditos trabalhistas inadimplidos. Segundo a aludida decisão do TST: “Da mesma forma não se aplica à hipótese o art. 71 e parágrafo único da Lei nº 8.666/93. A referida norma insere-se, exclusivamente, no conjunto das relações jurídicas regidas pelo direito administrativo, pois nos contratos administrativos é facultado à Administração Pública a imposição de determinadas condições aos contratados, o que advém da condição de superioridade da primeira em face dos segundos. O dispositivo legal em questão merece interpretação sistemática, e não isolada, em harmonia com as normas e princípios que regem o direito laboral, pois não é válida a tentativa de separar o Direito do Trabalho e o Administrativo, tornando-os esferas isoladas e autônomas, visto que ambos devem almejar o objetivo último, qual seja, a justiça no caso concreto. Permitir que uma lei derrogue toda uma principiologia construída sob golpes e lutas seculares, enodoando inclusive a própria Carta Magna, é inconcebível, porque privilegia o capital em detrimento do trabalho. Não fosse assim, certamente haveria um conflito com as normas constitucionais de proteção ao trabalho (arts. 6°, 7º, 170 e 193 da CF/88), cujo valor social constitui princípio fundamental da República Federativa do Brasil (art.1º, IV, da CF/88). Ademais, o citado artigo 71 reforça o disposto no § 6° do artigo 37 da Constituição Federal, que prevê a responsabilidade objetiva das recorrentes. O prejuízo ou a responsabilidade subjetiva jamais ficarão com a Administração Pública, tendo em vista o necessário exercício do direito de regresso. O que não se pode afastar é a existência de responsabilidade objetiva o ente público, que lastreia a imputação da responsabilização subsidiária prevista no entendimento consubstanciado na Súmula 331 da Súmula do TST.

Destarte, o fato de a cláusula nº 11.8 da carta convite prever a responsabilidade exclusiva das empresas contratadas por eventuais débitos trabalhistas não é suficiente para afastar a responsabilidade do ente estatal. Isso porque a relação ajustada limita-se às partes contratantes, da qual o trabalhador é estranho. Assim, como se extrai da transcrição dos votos dos Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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Senhores Ministros, proferidos na sessão de julgamento da ADC nº 16 - DF (vídeo da sessão plenária do STF, dia 24/11/2010, 2º bloco, disponível em http://videos.tvjustiça.jus.br/, acesso em 13/12/2010, apud VIANA, Márcio Túlio, DELGADO, Gabriela Neves e AMORIM, Helder Santos, -Terceirização - aspectos gerais - a última decisão do STF e a Súmula nº 331 - novos enfoques-, LTr 75-03, p. 282-295, esp. p. 291-292), verifica-se que o Ministro Relator Cezar Peluso, dando prosseguimento ao debate da questão, foi incisivo ao reconhecer o acerto das decisões do Tribunal Superior do Trabalho em imputar, em certos casos e sob certas circunstâncias, responsabilidade subsidiária ao ente da Administração Pública contratante, apesar do preceito expresso do artigo 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93, pelos seguintes fundamentos: “Eu só quero dizer o que eu estou entendendo (...) a postura da Justiça do Trabalho. Ela tem dito o seguinte: realmente, a mera inadimplência do contratado não transfere a responsabilidade nos termos do que está na lei, nesse dispositivo. Então esse dispositivo é constitucional. MAS ISSO NÃO SIGNIFICA QUE EVENTUAL OMISSÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NA OBRIGAÇÃO DE FISCALIZAR AS OBRIGAÇÕES DO CONTRATADO NÃO GERE RESPONSABILIDADE À ADMINISTRAÇÃO. É outra matéria, são outros fatos, examinados à luz de outras normas constitucionais. Então, em outras palavras (...), nós não temos discordância sobre a substância da ação, eu reconheço a constitucionalidade da norma. Só estou advertindo ao tribunal que isso não impedirá que a Justiça do Trabalho recorra a outros princípios constitucionais e, invocando fatos da causa, reconheça a responsabilidade da administração, não pela mera inadimplência, mas por outros fatos (...)”- (grifou-se e destacou-se).

E prosseguiu: !V. Exa. está acabando de demonstrar que a Administração Pública é obrigada a tomar uma atitude que, quando não toma, constitui inadimplemento dela. É ISSO QUE GERA A RESPONSABILIDADE QUE VEM SENDO RECONHECIDA PELA JUSTIÇA DO TRABALHO, NÃO É A CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA. A norma é sábia, ela diz que o mero inadimplemento não transfere a responsabilidade, mas a inadimplência da obrigação da administração é que lhe traz como consequência uma responsabilidade que a Justiça do Trabalho eventualmente pode reconhecer, independentemente da constitucionalidade da lei”. (grifou-se e destacou-se). 306

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A decisão do STF, em sua íntegra dotada de eficácia contra todos e efeitos vinculantes (art. 102, § 2º, da Constituição Federal), definiu, de forma expressa, que a constitucionalidade do § 1º do art. 71 da Lei nº 8.666/93 não impede que seja ele interpretado de forma sistemática com outros dispositivos de leis e da Constituição Federal que, por sua vez, continuam a impor à Administração Pública, quando utilizar de modo contínuo mão de obra terceirizada, o dever de licitar e de fiscalizar, de forma plena e eficaz, a execução daquele contrato administrativo de prestação de serviços, até mesmo quanto ao pleno e oportuno cumprimento daquelas obrigações trabalhistas. Bem se vê, portanto, que é indene de dúvidas a obrigação de a Administração Pública (Direta e Indireta) fiscalizar as obrigações do contratado, sendo certo que a omissão na ação fiscalizatória acarreta responsabilidade ao ente público. Exatamente por isso, aliás, conforme noticia a referida decisão do TST, não se pode afirmar que a Administração Pública, que se beneficiou da força de trabalho dos trabalhadores terceirizados, possa permanecer indiferente à sua sorte. À luz dos valores e princípios em tensão, não se pode afirmar, diante do paradigma do Estado Democrático de Direito constitucionalmente adotado em nosso país a partir de 1988, que o interesse público primário da Administração Pública, em casos como esse, seja deixar ao desamparo estes trabalhadores terceirizados. Muito ao contrário! A vingar a tese da pura e simples irresponsabilidade da Administração Pública em casos em que essa se omitiu do seu dever de fiscalizar o adimplemento das obrigações trabalhistas pelas empresas por ela contratadas para o fornecimento de trabalhadores terceirizados, os direitos fundamentais sociais constitucionalmente assegurados a todos esses trabalhadores não passarão de letra morta, em contrariedade aos ditames de justiça social e de valorização do trabalho assegurados exatamente pela Norma Fundamental de 1988. Tendo em vista a similaridade da questão decidida pelo TST nos autos do PROCESSO Nº TST-RR-250100-48.2006.5.09.0661 e o caso em tela, uma vez que ambos tratam da responsabilidade do ente público de fiscalizar, em todo o curso do contrato administrativo, o cumprimento das obrigações trabalhistas pelo particular, pede-se Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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vênia para transcrever, por oportuno, trechos do inteiro teor do voto do Ministro Relator JOSÉ ROBERTO FREIRE PIMENTA: “Se se entender, como aqui se sustenta expressamente, que o ente público contratante tem esse dever de fiscalizar, em todo o curso do contrato administrativo, o cabal e tempestivo cumprimento, pelo particular, de suas obrigações trabalhistas como empregador daqueles trabalhadores terceirizados que atuaram no âmbito da Administração Pública, será inevitável a incidência subsidiária, autorizada pelo parágrafo único do citado art. 8º da CLT, dos arts. 186 e 927, caput, do Código Civil em vigor, que estabelecem para todos, até mesmo para os entes públicos em geral, a responsabilidade civil subjetiva de natureza extracontratual, decorrente da prática (comissiva ou omissiva) de ato lícito, in verbis: Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. (...) Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo-. Nesta mesma linha também se pronuncia o Procurador do Trabalho e Professor Helder Santos Amorim (no já citado artigo que elaborou em conjunto com os Professores Márcio Túlio Viana e Gabriela Neves Delgado): A interpretação do § 1º do art. 71 da Lei nº 8.666/1993 desafia sua leitura conjunta e contextualizada com vários outros dispositivos legais que imputam à Administração Pública, de forma correlata e proporcional, o dever de fiscalizar eficientemente a execução dos seus contratos de terceirização, por imperativo de legalidade e moralidade pública (Constituição, art. 37, caput), inclusive em relação ao adimplemento dos direitos dos trabalhadores terceirizados, tendo em vista que se trata de direitos fundamentais (Constituição, art. 7º) cuja promoção e fiscalização incumbe aprioristicamente ao Estado, como razão essencial de sua existência.(Terceirização - aspectos gerais - a última decisão do STF e a Súmula nº 331 do TST - novos enfoques, LTr 75-03/292). Cumpre agora, portanto, examinar as demais normas legais aplicáveis à contratação, pela Administração Pública e após regular procedimento licitatório, de uma empresa para, por intermédio do fornecimento de trabalhadores terceirizados, 308

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lhe prestar serviços a fim de confirmar se tem ela o dever legal de, no curso daquele contrato administrativo, fiscalizar, não apenas a execução daqueles serviços, mas também o pleno e tempestivo adimplemento daquelas obrigações trabalhistas pelo empregador contratado. O simples exame de outros artigos da mesma Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93) permite concluir em sentido afirmativo. A princípio, os arts. 54, § 1º, e 55, inciso XIII, e 66 da Lei nº 8.666/93 estabelecem, claramente, que o fornecedor de mão de obra contratado está estritamente vinculado ao cumprimento cabal das obrigações e responsabilidades a que se vinculou quando participou da licitação e apresentou proposta (na qual obrigatoriamente fez constar o preço correspondente aos direitos trabalhistas de seus empregados): -Art. 54. (...) § 1º Os contratos devem estabelecer com clareza e precisão as condições para sua execução, expressas em cláusulas que definam os direitos, obrigações e responsabilidades das partes, em conformidade com os termos e da proposta a que se vinculam. (...)-. -Art. 55. São cláusulas necessárias em todo contrato as que estabeleçam: (...) XIII - a obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação-. -Art.66. O contrato deverá ser executado fielmente pelas partes, de acordo com as cláusulas avençadas e as normas desta Lei, respondendo cada uma pelas consequências de sua inexecução total ou parcial-. (grifou-se). A seguir, os arts. 58, inciso III, e 67, caput e seu § 1º, da mesma Lei de Licitações clara e expressamente impõem à Administração Pública contratante o poderdever de fiscalizar o cabal e oportuno cumprimento de todas as obrigações assumidas pelo contratado que foi o selecionado no procedimento licitatório - dentre elas, evidentemente, as que decorrem da observância das normas trabalhistas, em relação aos seus empregados que prestarem serviços, como terceirizados, ao ente público: -Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativos Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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instituído por esta Lei confere à Administração, em relação a eles, a prerrogativa de: (...) III - fiscalizar-lhes a execução; (...)-. -Art. 67. A execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada por um representante da Administração especialmente designado, permitida a contratação de terceiros para assisti-lo e subsidiálo de informações pertinentes a essa atribuição. § 1º O representante da Administração anotará em registro próprio todas as ocorrências relacionadas com a execução do contrato, determinando o que for necessário à regularização das faltas ou defeitos observados- (grifou-se). Por sua vez, o art. 77 desta Lei nº 8.666/93 prevê que -a inexecução total ou parcial do contrato enseja a sua rescisão, com as consequências contratuais e as previstas em lei ou regulamento-. O art. 78 da citada lei, de sua parte, prevê como motivo para a rescisão contratual -o não cumprimento ou o cumprimento irregular de cláusulas contratuais, especificações, projetos ou prazos, assim como o cometimento reiterado de faltas na sua execução e o desatendimento das determinações regulares da autoridade designada para acompanhar e fiscalizar a sua execução- - o que, evidentemente, é aplicável à hipótese do inadimplemento de suas obrigações trabalhistas para com os trabalhadores terceirizados pelo empregador contratado pelo ente público. Como se não bastassem esses claros preceitos da própria Lei nº 8.666/93, que devem ser interpretados e aplicados de forma conjunta e sistemática com o multicitado art. 71, § 1º, da mesma norma, a matéria foi expressamente regulamentada no âmbito da Administração Pública Federal pela Instrução Normativa (IN) nº 2, de 30/04/2008, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), alterada pela Instrução Normativa (IN) nº 3/2009, do mesmo Ministério. A esse respeito, pronuncia-se com acerto o Procurador do Trabalho Helder Santos Amorim, demonstrando que essas normas federais também servem de parâmetro para o dever de fiscalização dos entes públicos das demais esferas da Federação, nos seguintes termos: -Enquanto a Lei de Licitações traça regras gerais sobre o dever de fiscalização contratual, a IN nº 2/2008 do MPGO interpreta e especifica estas regras, instituindo um padrão 310

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fiscalizatório comprometido com a eficiência das técnicas de controle e com a efetividade dos direitos fiscalizados,(...), levando em consideração a realidade do gerenciamento contratual, os riscos decorrentes das práticas contratuais e os direitos e deveres da Administração Pública perante os administrados e perante os terceiros interessados, tais como os trabalhadores terceirizados. Isto porque a procedimentalização da fiscalização no âmbito dos contratos de terceirização não constitui matéria própria para disciplina legislativa, sendo tema reservado às normas regulamentadoras. Este padrão fiscalizatório federal vincula a Administração Pública em todos os âmbitos federativos, por força do princípio da predominância do interesse, tendo em conta que, sendo privativa da União a competência para legislar sobre normas de licitações e contratos, aos estados e municípios incumbe complementar esta legislação com respeito às diretrizes nacionais. Nessa linha de princípio federativo, embora as regras de fiscalização previstas na IN nº 2/2008 do MPOG tenham incidência estrita à órbita da Administração Pública federal, suas diretrizes para uma fiscalização eficaz sobre os contratos de terceirização em matéria trabalhista acabam por orientar os demais entes federativos na implementação de suas normas internas acerca da matéria, em face da legítima expectativa constitucional de uma Administração Pública comprometida com a higidez legal e com a eficiência dos mecanismos de controle da atividade administrativa (Constituição, art. 37).- (grifou-se - VIANA, DELGADO e AMORIM, op. cit, LTr 75-03/292-293). Em linhas gerais, a referida IN nº 2/2008 do MPOG impõe à Administração Pública federal contratante o dever de fiscalizar o adimplemento das obrigações trabalhistas pelas empresas contratadas em relação a seus trabalhadores terceirizados, desde as fases de abertura e de desenvolvimento do procedimento licitatório e da celebração do resultante contrato administrativo, nos seguintes termos: desde a seleção da empresa no procedimento de licitação, na medida em que o Edital de Licitação já deverá prever que -a execução completa do contrato só acontecerá quando o contratado comprovar o pagamento de todas as obrigações trabalhista referente à mão de obra utilizada-, nos casos de contratação de serviço continuado, com dedicação exclusiva de mão de obra (art. 19, inciso XVIII, da IN nº Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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2/2008), e que o contratado deverá apresentar garantia, com validade de três meses após o término da vigência contratual, com previsão expressa de que essa garantia somente será liberada diante da comprovação de que a empresa pagou todas as verbas rescisórias trabalhistas decorrentes da contratação, e de que essa garantia, caso esse pagamento não ocorra até o fim do segundo mês após o encerramento daquele contrato, será usada para o pagamento direto, pela Administração, dessas verbas trabalhistas aos trabalhadores terceirizados (inciso XIX da IN nº 2/2008 e art. 19-A, inciso IV, da mesma IN, acrescentado pela IN nº 3/2009); no momento de julgamento das propostas da fase licitatória, a Administração deve verificar se os preços propostos pelas empresas licitantes são compatíveis com o custo dos encargos sociais trabalhistas, sob pena de desclassificação da proposta por inexequibilidade (art. 44, § 3º, da Lei nº 8.666/93, regulamentado pelo art. 29, § 3º, da IN nº 2/2008); por ocasião da elaboração e celebração do contrato administrativo com a empresa vencedora no certame licitatório, devendo esse contrato ser automaticamente vinculado a todas as condições de habilitação previstas no edital e a todas as condições contidas na proposta vencedora, especialmente os direitos trabalhistas dos empregados da empresa contratada, que compõem o preço dos serviços contratados, cabendo ao ente público contratante especificar, no contrato administrativo, a responsabilidade da empresa contratada de satisfazer os direitos dos seus próprios empregados, nos valores e patamares previstos na planilha de custos por ela apresentada; como lógica e automática consequência, caberá à Administração contratante o dever de fiscalizar o cumprimento integral destas obrigações (conforme os já citados arts. 54, § 1º, 55, inciso XIII, e 66 da Lei nº 8.666/93). Também aqui é acertada a conclusão de Helder Santos Amorim, à luz dessas premissas: -Em face desta vinculação, exsurge que a execução contratual, no modelo da Lei nº 8.666/93, vai além do cumprimento de seu estrito objeto, para abranger todos os aspectos que constituam premissa à satisfação deste objeto contratual, tal como o cumprimento das obrigações trabalhistas da empresa contratada (cujos custos integram o preço do serviço), sob pena de violação direta da proposta vencedora, das condições de habilitação e, portanto, do próprio contrato 312

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administrativo-. Regulamentando o já citado art. 67, caput e seu § 1º, da Lei nº 8.666/93, o art. 34 da IN nº 2/2008 do MPOG determina que, na fiscalização do -cumprimento das obrigações trabalhistas e sociais nas contratações continuadas com dedicação exclusiva dos trabalhadores da contratada- seja exigida a comprovação de: a) regularidade para com o INSS e FGTS; b) pagamento de salários no prazo previsto em lei, referente ao mês anterior; c) fornecimento de vale-transporte e auxílio-alimentação, quando cabível; d) pagamento do 13º salário; e) concessão de férias e correspondente pagamento do adicional; f) realização de exames admissionais, demissionais e periódicos, quando for o caso; g) fornecimento de cursos de treinamento e reciclagem exigidos por lei; h) cumprimento das obrigações contidas em convenção coletiva, acordo coletivo ou sentença normativa em dissídio coletivo de trabalho, e de cumprimento de todas as demais obrigações estabelecidas na legislação laboral em relação aos empregados vinculados ao contrato administrativo. Para assegurar a efetividade dessa fiscalização pelo ente público contratante, o art. 36 desta Instrução Normativa exige que a Administração, no ato do pagamento da prestação mensal do serviço, exija da empresa a comprovação do pagamento de todas as suas obrigações trabalhistas relativas à fatura anterior, sob pena de retenção do valor da fatura para pagamento direto aos trabalhadores, por sua vez autorizado pelo art. 19-A da IN nº 2/2008 (acrescentado pela IN nº 3/2009), que permite que o ente público, mediante previsão constante do edital licitatório e do contrato administrativo, receba autorização prévia do contratado para promover ordinariamente o provisionamento e a retenção de valores relativos ao preço do contrato para esse pagamento direto, relativo a férias, gratificação natalina, verbas rescisórias e depósitos de FGTS dos empregados terceirizados (sendo de se mencionar que a Resolução nº 98/2009 do Conselho Nacional de Justiça traz previsão idêntica em relação aos contratos de prestação de serviços terceirizados de forma contínua celebrados no âmbito do Poder Judiciário), bem como efetue descontos nas faturas e realize o pagamento direto de quaisquer direitos trabalhistas que vierem a ser insatisfeitos pelo contratado. Por sua vez, o parágrafo único do art. 31 da IN nº 2/2008 estabelece que a fiscalização contratual dos serviços continuados pelo ente público contratante deverá seguir o disposto no anexo IV da referida Instrução Normativa, Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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o qual, de sua parte, institui um -Guia de Fiscalização dos Contratos de Terceirização-, que esquematiza e detalha a fiscalização do cumprimento desses direitos trabalhistas em quatro momentos distintos: a) a fiscalização inicial (momento em que a terceirização é iniciada), quando deve ser elaborada uma planilha com discriminação de todos os empregados terceirizados que prestam serviços ao ente público contratante, com a conferência de todas as anotações em suas CTPSs e a verificação dos valores dos salários a eles pagos, para que não sejam inferiores aos previstos no contrato administrativo e nas normas coletivas de trabalho a eles aplicáveis, bem como da existência de obrigações trabalhistas adicionais, estabelecidas em normas coletivas de trabalho, e de condições de trabalho insalubres ou perigosas; b) a fiscalização mensal (feita antes do pagamento da fatura), que implica a elaboração de uma planilha mensal com indicação de todos os empregados terceirizados, a função exercida, os dias efetivamente trabalhados e eventuais horas extras prestadas, férias, licenças, faltas e ocorrências, na exigência de que a empresa contratada apresente cópias das folhas de ponto dos empregados, por ponto eletrônico ou por meio que não seja padronizado (nos termos da Súmula nº 338 do TST), devendo haver glosa da fatura, em caso de faltas ou de horas trabalhadas a menor; na mesma ocasião mensal, deverá ser exigida a apresentação, pelo contratado, dos comprovantes de pagamento dos salários, vales-transporte e, se houver, auxílio-alimentação dos empregados, efetuando-se a retenção e o depósito do FGTS dos trabalhadores terceirizados, caso tenha havido prévia autorização da empresa contratada, nos termos do edital e do contrato administrativo, ou exigindo-se, alternativamente, a comprovação do recolhimento do FGTS, INSS e demais encargos sociais; c) a fiscalização diária, por meio da conferência, a cada dia, de quais empregados terceirizados estão prestando serviços, em quais funções e se esses estão cumprindo rigorosamente a jornada de trabalho, prevendo-se uma rotina para autorização de realização de horas extras por terceirizados; d) a fiscalização especial, que implica a análise da data-base da categoria dos empregados terceirizados, prevista na norma coletiva de trabalho a eles aplicável, para verificar o dia e o percentual nela previstos, bem como no controle das férias e licenças desses empregados e de suas eventuais estabilidades provisórias. 314

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Por fim, para não deixar mais nenhuma dúvida sobre constituir o inadimplemento das obrigações trabalhistas pelo contratado, em relação a seus próprios empregados terceirizados para a Administração Pública, uma grave infração do contrato administrativo de prestação de serviços e ser a rigorosa fiscalização de seu cumprimento um dever essencial do ente público contratante, os arts. 34, § 4º, e 34-A da IN nº 2/2008 impõem, de forma obrigatória, a rescisão unilateral do contrato de prestação de serviços, por iniciativa do ente público contratante, caso tenha sido por este constatado o descumprimento dos direitos trabalhistas pela empresa contratada e não tenha havido a regularização imediata da situação no prazo oferecido pela Administração: -Art. 34-A. O descumprimento das obrigações trabalhistas ou a não manutenção das condições de habilitação pelo contratado deverá dar ensejo à rescisão contratual, sem prejuízo das demais sanções, sendo vedada a retenção de pagamento se o contratado não incorrer em qualquer inexecução do serviço ou não o tiver prestado a contento. Parágrafo único. A Administração poderá conceder um prazo para que a contratada regularize suas obrigações trabalhistas ou suas condições de habilitação, sob pena de rescisão contratual, quando não identificar má-fé ou a incapacidade da empresa de corrigir a situação-. É preciso lembrar, ainda, que o princípio da legalidade administrativa impõe ao ente público contratante de mão de obra terceirizada para lhe prestar serviços de natureza contínua a sua completa e rigorosa observância, não lhe sendo dado, discricionariamente, decidir se e quando irá fazê-lo, de acordo com critérios de conveniência e de oportunidade manifestamente inaplicáveis nessas situações”.

Com efeito, nos termos da decisão do TST, “à Administração Pública contratante caberá, com exclusividade, para evitar que sua conduta seja considerada omissa e ilícita, nos termos e para os efeitos dos arts. 186 e 927, caput, do Código Civil, alegar e comprovar, cabalmente, no curso da instrução processual, que praticou todos esses atos administrativos detalhadamente estabelecidos nos apontados preceitos da Lei nº 8.666/93 e na Instrução Normativa nº 02/2008, alterada pela Instrução Normativa nº 03/2009, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), no sentido de fiscalizar, no curso e no encerramento daquele contrato administrativo, a plena observância dos direitos trabalhistas do correspondente reclamante e de que, uma vez constatado o seu inadimplemento, tomou todas as medidas e as providências Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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legalmente previstas para prevenir ou ressarcir o trabalhador terceirizado vítima daqueles atos ilícitos”. Com efeito, restou demonstrada, cabalmente, a culpa in vigilando do ente estatal, uma vez que houve a constituição de uma comissão de fiscalização das obras na Estrada Parque. Porém, essa fiscalização se restringia a questões técnicas da execução da obra, indiferente aos graves descumprimentos das normas trabalhistas que ocorriam no local. É o que se observa da constituição de Comissão de Fiscalização determinada pelo Diretor Presidente da AGESUL, a qual era composta pelos servidores Luiz Mário Anache – Arquiteto, como fiscal, Wilson Roberto Mariano de Oliveira – Engenheiro Civil, Githinon Malta – Engenheiro Civil, como membros, e João Afif Jorge – Engenheiro Civil, para substituir qualquer um dos integrantes que estiverem ausentes nos atos de fiscalização. No ato de constituição da referida comissão, consta a descrição do objeto, de acordo com cada ordem de execução de serviço. No tocante à Ordem de Execução dos Serviços nº 283/2011 de 12/09/2011 consta como objeto a execução da “REFORMA DE PONTE DE MADEIRA EM VIGAMENTO SIMPLES (V.S.), NA RODOVIA MS/184, SOBRE A VAZANTE LII – TRECHO: CURVA DO LEQUE – BURACO DAS PIRANHAS, COM EXTENSÃO DE 16,00 M, NO MUNICÍPIO DE CORUMBÁ/ MS”. Nesse sentido também são as cláusulas 11.4, 11.10, 12.1, “a” e “e” e 13.1 do modelo de carta convite carreado aos autos. Ou seja, como havia o efetivo deslocamento de representante da ré ao local das obras, é impossível que tente se esquivar de sua responsabilidade alegando desconhecer as irregularidades trabalhistas constatadas na inspeção realizada pelo Ministério Público do Trabalho e Ministério do Trabalho e Emprego. Até porque a degradação das condições de trabalho saltava aos olhos, de vez que as barracas de lona estavam montadas ao longo da estrada. Com efeito, conclui-se que o ente estatal sabia das condições degradantes a que eram submetidos os trabalhadores, 316

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porém não tomou qualquer atitude no sentido de sanear as ilegalidades. Os laudos periciais, as dezenas de fotos, a gravação em mídia, bem como os depoimentos testemunhais, revelam, de modo cabal, a degradação das condições de trabalho no local, a qual ocorria à luz do dia, em importante polo turístico da região, enquanto a ré optava por adotar uma postura de indiferença. Provavelmente, se não houvesse a ação fiscalizatória conjunta do MPT e MTE, as condições degradantes de trabalho permaneceriam inalteradas. Diante do exposto, à luz da jurisprudência do STF, da Súmula nº 331 do TST e da Instrução Normativa nº02/2008 do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), bem como dos fatos relatados, é forçoso concluir que a ocorrência de trabalho análogo à condição de escravidão se deu, sobremaneira, pela frouxidão, complacência, beneplácito e omissão fiscalizatória da AGESUL. II.5. DO DANO MORAL COLETIVO As condutas da ré, atentatórias à saúde, à segurança e à dignidade dos trabalhadores e sociedade em geral, constituem uma lesão difusa ao Estado Democrático de Direito, que se manifesta na sensação, por todos os indivíduos e mais especialmente pelos trabalhadores, de total impotência e desamparo jurídico. A ré, na verdade, agiu - e pode ainda permanecer agindo - com total desrespeito à ordem jurídica e ao Estado; agiu - e pode ainda permanecer agindo - com total desrespeito ao sentimento coletivo de que a saúde, a vida e a dignidade dos trabalhadores merecem o devido tratamento pelo empregador e pelo tomador de seus serviços também, como preceituado na Constituição da República e na legislação ordinária; agiu - e pode ainda permanecer agindo com total desrespeito ao sentimento de dignidade dos trabalhadores, num aspecto difuso, haja vista o desvalor de sua saúde e vida; agiu - e pode ainda permanecer agindo - contra a boa imagem do Estado, ao violar de modo contumaz as normas vigentes; agiu - e pode ainda permanecer agindo – contra o patrimônio imaterial da sociedade, Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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representados pela diretriz axiológica da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho. A conduta da ré implica violação não só da dignidade de cada trabalhador encontrado em situação análoga à escravidão, mas também violação de um sentimento coletivo e social de dignidade. É inadmissível que, em pleno século XXI, várias empresas, atuando na qualidade de contratadas da Administração Pública, locupletem-se de trabalho análogo à escravidão, mediante omissão e complacência da própria Administração Pública. Invoca-se, aqui, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948: “Artigo III. Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. (…) Artigo VIII - Todo homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei. (…) Artigo XXIII. 1. Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego”.

Positivada em 1948, é ainda hoje desprezada a Declaração, mas que, conforme ARNALDO SÜSSEKIND: “constitui fonte de máxima hierarquia no mundo do Direito, enunciando princípios que devem iluminar a elaboração e a aplicação das normas jurídicas” (Convenções da OIT, 2a ed., rev. e atual., São Paulo, LTr, 1998, p. 583. Destaques nossos).

Hodiernamente, admite-se a possibilidade de reparação de danos que tenham a potencialidade de lesar toda a coletividade. Leia-se, a propósito, a lição de ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS: “Não somente a dor psíquica pode gerar danos morais; devemos ainda considerar que o tratamento transindividual aos chamados interesses difusos e coletivos origina-se justamente da importância destes interesses e da necessidade de uma efetiva tutela jurídica. Ora, tal importância somente reforça a necessidade de aceitação do dano moral coletivo, já que a dor psíquica que alicerçou a teoria do dano moral individual 318

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acaba cedendo lugar, no caso do dano moral coletivo, a um sentimento de desapreço e de perda de valores essenciais que afetam negativamente toda uma coletividade. (...) Assim, é preciso sempre enfatizar o imenso dano moral coletivo causado pelas agressões aos interesses transindividuais afeta-se a boa imagem da proteção legal a estes direitos e afeta-se a tranquilidade do cidadão, que se vê em verdadeira selva, onde a lei do mais forte impera. “Tal intranquilidade e sentimento de desapreço gerado pelos danos coletivos, justamente por serem indivisíveis, acarretam lesão moral que também deve ser reparada coletivamente. Ou será que alguém duvida que o cidadão brasileiro, a cada notícia de lesão a seus direitos, não se vê desprestigiado e ofendido no seu sentimento de pertencer a uma comunidade séria, onde as leis são cumpridas? (…) “A reparação moral deve se utilizar dos mesmos instrumentos da reparação material, já que os pressupostos (dano e nexo causal) são os mesmos. A destinação de eventual indenização deve ser o Fundo Federal de Direitos Difusos, que será responsável pela utilização do montante para a efetiva reparação deste patrimônio moral lesado. Com isso, vê-se que a coletividade é passível de ser indenizada pelo abalo moral, o qual, por sua vez, não necessita ser a dor subjetiva ou estado anímico negativo, que caracterizariam o dano moral na pessoa física...” (A ação civil pública e o dano moral coletivo. Destaques nossos).

CARLOS ALBERTO BITTAR FILHO leciona que a sociedade pode ser abalada, como um todo, quando os seus valores são agredidos: “(...) assim como cada indivíduo tem sua carga de valores, também a comunidade, por ser um conjunto de indivíduos, tem uma dimensão ética. Mas é essencial que se assevere que a citada amplificação desatrela os valores coletivos das pessoas integrantes da comunidade quando individualmente consideradas. “Os valores coletivos, pois, dizem respeito à comunidade como um todo, independentemente de suas partes. Trata-se, destarte, de valores do corpo, valores esses que não se confundem com o de cada pessoa, de cada célula, de cada elemento da coletividade. Tais valores têm um caráter nitidamente indivisível. (…) “O dano moral coletivo é a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos. Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerada, foi agredido Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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de uma maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico (…) Como se dá na seara do dano moral individual, aqui também não há que se cogitar de prova de culpa, devendo-se responsabilizar o agente pelo simples fato da violação...” (Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro, in Revista de direito do consumidor, nº 12, out/dez 1994. Destaques nossos).

O mesmo autor destaca, ainda, a necessidade de fortalecimento, no direito brasileiro, do espírito coletivo, afirmando que a Ação Civil Pública, neste particular, atua como “poderoso instrumento de superação do individualismo”. Demonstrado, pois, o dano moral coletivo, decorre deste a imperativa compensação mediante o pagamento de indenização a se reverter ao FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), instituído pela Lei nº 7.998/1990, conforme estabelece o art. 11 da Lei da Ação Civil Pública. Ante a gravidade da conduta, caracterizada pela redução dos obreiros à condição análoga à escravidão, e tendo em mente a capacidade econômica da ré, requer-se o arbitramento da indenização, conforme a prudência desse Juízo, em valor não inferior a R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais). Os valores ora pleiteados, a priori, poderiam parecer elevados, mas certamente não são incompatíveis com a finalidade pretendida nesta ação, isto é, sanção por conduta lesiva e função pedagógica voltada para situações futuras. Repise-se, Excelência, que as indenizações devem ser fixadas em patamar que sejam capazes de dar efetividade a seu caráter pedagógico, que desestimule condutas congêneres futuras e molde o adequado comportamento social do ente estatal. E esse caráter é extremamente necessário no presente caso, em face dos graves ilícitos que ofendem os direitos sociais, bem como a dignidade dos trabalhadores e afrontam os conceitos de moralidade e dignidade coletivos. Nesse sentido, é a doutrina de JOSÉ RUBENS MORATO LEITE, sobrelevando a importância do Poder Judiciário: “Compete, pois, ao Poder Judiciário a importante tarefa de transplantar para a prática do disposto na Constituição Federal e na legislação ordinária acerca do dano extrapatrimonial ambiental. Somente com a reiteração dos pronunciamentos dos Tribunais no tocante à responsabilização civil dos causadores de danos ao meio ambiente, é que se atingirá efetivamente o idealizado pelo legislador. E somente assim é 320

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que se poderá amenizar os efetivos prejuízos a valores equiparados à dor causados à coletividade, por ofensa à qualidade de vida, ao mesmo tempo em que se impõe ao causador da lesão uma sanção pelo mal praticado, além de servir para desestimulá-lo a repetir a lesão ambiental” (Dano ambiental: do individual ao coletivo, extrapatrimonial; 2ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2003, p. 304. Destaques nossos).

É lição plenamente aplicável ao presente caso, em que se afronta a qualidade de vida dos trabalhadores e as regras afeitas ao meio ambiente de trabalho. De par com pretensão condenatória acima exposta, pretende, ainda, o Ministério Público do Trabalho o provimento de uma tutela capaz de inibir condutas negligentes no futuro. Passa-se a sua exposição, pois. III.6. DA TUTELA INIBITÓRIA Ao postular, pela ação, que a ré passe a cumprir obrigações relativas à segurança e medicina do Trabalho, cessando dessa forma a afronta ao disposto na Constituição Federal, na CLT e normas infralegais, pretende o Ministério Público impedir que a infração à ordem jurídica, aos objetivos fundamentais do Estado e à coletividade dos trabalhadores continue a se repetir, o que se pode conseguir pela imposição de multa judicial suficiente para coibir a prática nefasta. Multa essa que, evidentemente, só incidirá e será exigida pelo Ministério Público do Trabalho se a ré se mantiver descumprindo ou voltar a descumprir as obrigações que lhe forem impostas. Sem dúvida que se trata de um provimento judicial que se projeta para o futuro, como é inerente à tutela preventiva, seja mediante obrigações de fazer, seja mediante obrigações de não fazer. Sobre o assunto, são precisas as lições de LUIZ GUILHERME MARINONI: “A tutela inibitória, configurando-se como tutela preventiva, visa a prevenir o ilícito, culminando por apresentar-se, assim, como uma tutela anterior à sua prática, e não como uma tutela voltada para o passado, como a tradicional tutela ressarcitória. “Quando se pensa em tutela inibitória, imagina-se uma tutela que tem por fim impedir a prática, a continuação ou a repetição do ilícito, e não uma tutela dirigida à reparação do dano. Portanto, o problema da tutela Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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inibitória é a prevenção da prática, da continuação ou da repetição do ilícito, enquanto o da tutela ressarcitória é saber quem deve suportar o custo do dano, independentemente do fato de o dano ressarcível ter sido produzido ou não com culpa” (ob. cit., p. 26). “(...) é melhor prevenir do que ressarcir, o que equivale a dizer que no confronto entre a tutela preventiva e a tutela ressarcitória deve-se dar preferência à primeira” (idem, p. 28). “A tutela inibitória é caracterizada por ser voltada para o futuro, independentemente de estar sendo dirigida a impedir a prática, a continuação ou a repetição do ilícito. Note-se, com efeito, que a inibitória, ainda que empenhada apenas em fazer cessar o ilícito ou impedir a sua repetição, não perde a sua natureza preventiva, pois não tem por fim reintegrar ou reparar o direito violado (idem, p. 28-29). “A inibitória funciona, basicamente, através de uma decisão ou sentença que impõe um não fazer ou um fazer, conforme a conduta ilícita temida seja de natureza comissiva ou omissiva. Este fazer ou não fazer deve ser imposto sob pena de multa, o que permite identificar o fundamento normativo-processual desta tutela nos arts. 461 do CPC e 84 do CDC (idem, p. 29). “Já o fundamento maior da inibitória, ou seja, a base de uma tutela preventiva geral, encontra-se – como será melhor explicado mais tarde – na própria Constituição da República, precisamente no art. 5º, XXXV, que estabelece que “a lei não excluirá de apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (idem, p. 30). “(...) a tutela inibitória não deve ser compreendida como uma tutela contra a probabilidade do dano, mas sim como uma tutela contra o perigo da prática, da continuação ou da repetição do ilícito, compreendido como ato contrário ao direito que prescinde da configuração do dano (idem, p. 36). “A moderna doutrina italiana, ao tratar do tema, deixa claro que a tutela inibitória tem por fim prevenir o ilícito e não o dano” (Tutela inibitória, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1998, p. 37).

Não se pode fechar os olhos para a situação fática demonstrada nos autos. As provas das ilicitudes e dos danos são robustas. A simples possibilidade de dano em potencial já seria suficiente para justificar a ação, como já se manifestou o Eg. TRT da 12a Região, ao apreciar o processo TRT/SC/RO-V 7158/97: “O prejuízo em potencial já é suficiente a justificar a actio. Exatamente porque o prejuízo em potencial já é suficiente a justificar a propositura da presente ação civil pública, cujo objeto, como se infere dos balizamentos atribuídos pela peça exordial ao petitum, é em sua essência preventivo (a maior sanção) e apenas superficialmente punitivo, é que entendo 322

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desnecessária a prova de prejuízos aos empregados. De se recordar que nosso ordenamento não tutela apenas os casos de dano in concreto, como também os casos de exposição ao dano, seja ele físico, patrimonial ou jurídico, como se infere do Código Penal, do Código Civil, da CLT e de outros instrumentos jurídicos. Tanto assim é que a CLT, em seu artigo 9°, taxa de nulos os atos praticados com o objetivo de fraudar, o que impende reconhecer que a mera tentativa de desvirtuar a lei trabalhista já é punível” (grifos acrescidos).

Objetiva o MPT, assim, sejam impostas à ré, por decisão judicial, obrigações de fazer e não fazer que serão especificadas no pedido propriamente dito a fim de evitar que os ilícitos sobre segurança do trabalho se perpetuem e/ou se repitam, com indiscutíveis prejuízos à coletividade dos atuais e futuros trabalhadores contratados. III.7. DA ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA No âmbito das relações processuais metaindividuais, é possível identificar um sistema processual especial apto para a concretização da tutela inibitória em caráter antecipado, o qual é composto pela Lei de Ação Civil Pública e pelo Título III do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, que são normas processuais especiais em relação ao CPC. Sem embargos, pelo critério da prevalência da norma especial sobre a norma geral, os efeitos da tutela inibitória que se pretende antecipar devem ser interpretados sob o enfoque dos artigos 12 da Lei nº 7.347/85 e 84, §§ 3º e 4º da Lei nº 8.078/90, afastando-se o paradigma individualista e inadequado da normativa vertida no artigo 273 do processo comum. Dispõem, então, as normativas processuais especiais que: “Lei nº 7.347/85, artigo 12 - “Poderá o juiz conceder mandado liminar com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a agravo”, e; Lei nº 8.078/90, artigo 84 - “Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao adimplemento. § 3º “sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após a justificação prévia, citado o réu.” § 4º “o juiz poderá na hipótese do § 3º impor multa diária ao réu, (...) Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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se for suficiente ou compatível com a obrigação (...);”

O sistema processual metaindividual, portanto, assegura a antecipação da tutela inibitória autorizando o órgão jurisdicional, ex officio inclusive, a fixar astreintes, desde que (1) relevante o fundamento da demanda e (2) presente justificado receio de ineficácia do provimento final. Deveras, não restam dúvidas de que o caso em tela encerra relevante fundamento, porquanto a ré vem violando direitos fundamentais insculpidos na Constituição da República mediante descumprimento das mais elementares normas de tutela da dignidade da pessoa humana. Óbvio, pois, que a espera pelo provimento final tornará ineficaz a prestação jurisdicional, visto que não existem permissivos legais autorizantes da manutenção de condições de trabalho acima expostas. De outra banda, as obrigações de fazer e não fazer que se pretendem tutelar de modo antecipado nada mais são do que previsões legais que já deveriam estar sendo cumpridas pela acionada e que não sofrem as inflexões da irreversibilidade. No que diz respeito à antecipação do provimento inibitório final, é indene de dúvidas que a passagem do tempo tem grande importância na vida do ser humano. Dependendo do ponto de vista, o tempo cura ou destrói. E no direito não é diferente! O tempo é tão fundamental que foi acrescentado mais um Direito Fundamental: o princípio da duração razoável do processo (art. 5, LXXVIII, CF). De fato, a finalidade é evitar que a decisão demore muito e que as lesões se perpetuem no tempo, garantindo a efetividade do processo. Tal princípio, por si só, justificaria a antecipação dos efeitos da tutela, não precisando de nenhum outro fundamento em legislação infraconstitucional. O princípio da duração razoável do processo é um desdobramento do direito humano a receber dos tribunais “remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos 324

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pela constituição ou pela lei” (Artigo VIII da Declaração dos Direitos Humanos de 1948). Tratando-se de meio ambiente, “nele compreendido o do trabalho” (art. 200, VIII, CF), a tutela antecipatória de mérito encontra guarida em outro princípio constitucional: o princípio da prevenção/precaução (art. 225, CF), uma vez que os danos, via de regra, são irreversíveis, razão pela qual é preciso providências firmes para evitá-los. IV. DO PEDIDO IV.1. DA CONCESSÃO LIMINAR DA TUTELA INIBITÓRIA EM FACE DA AGESUL Diante dos fundamentos de fato e de direito acima expostos, requer o Ministério Público do Trabalho a antecipação dos efeitos da tutela, inaudita altera parte, na forma dos arts. 12 e 19 da Lei nº 7.347/85, c/c os arts. 273 e 461 do CPC, para a imposição imediata à ré, em provimento liminar, da obrigação de FISCALIZAR, EFETIVAMENTE, POR MEIO DE INSTRUMENTOS DE CONTROLE, no caso de empresas, terceirizadas ou não, regidas pela Consolidação das Leis Trabalhistas, os seguintes atributos dos contratos de trabalho dos obreiros: a) o registro de todos os empregados, podendo ser adotados livros, fichas ou sistema eletrônico, onde deverão ser anotados além da qualificação civil ou profissional de cada trabalhador, todos os dados relativos à admissão no emprego, duração e efetividade do trabalho, férias, acidentes e demais circunstâncias que interessem à proteção do trabalhador (artigo 41, caput e parágrafo único, da CLT); b) o registro do contrato de trabalho dos empregados na Carteira de Trabalho e Previdência Social, de acordo com o artigo 29 da CLT; c) o depósito do FGTS na conta vinculada dos empregados até o dia 7 (sete) de cada mês, de acordo com o que dispõe o artigo 15 da Lei nº 8.036/90; d) o pagamento do salário dos trabalhadores até o quinto dia útil do mês subsequente, nos termos do art. 459, § 1º da CLT; Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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e) a efetiva submissão do trabalhador a exames médicos admissionais, antes que assuma suas atividades, bem como periódicos e demissionais, nos termos da Lei nº 5.889/73, art. 13; f) a não contratação de menores de 18 anos, em atendimento ao disposto no art. 7º, XXXIII da CF; g) a efetiva comunicação à Superintendência Regional do Trabalho - SRTE, por intermédio da Certidão Declaratória de Transporte de Trabalhadores (CDTT), do transporte de obreiros recrutados para trabalhar em localidade diversa de sua origem, nos termos do art. 23 e seguintes da Instrução Normativa nº 76 do Ministério do Trabalho e Emprego, datada de 15 do maio de 2009; h) o fornecimento de vale transporte e auxílio alimentação, quando cabível; i) o pagamento do 13º (décimo terceiro) salário; j) a concessão de férias e o correspondente pagamento do adicional, na forma da Lei; l) assegurar a duração normal do trabalho no montante de oito horas diárias, facultada a suplementação de jornada em 2 (duas) horas na forma do artigo 59 da CLT, em relação a todos os trabalhadores, diretamente contratados ou contratados por empresa terceirizada; m) os eventuais cursos de treinamento e reciclagem que forem exigidos por lei; n) a comprovação do encaminhamento ao Ministério do Trabalho e Emprego das informações trabalhistas exigidas pela legislação, tais como: a RAIS e a CAGED; o) o pagamento dos créditos rescisórios de todos os trabalhadores, diretamente contratados ou contratados por empresa terceirizada, na forma e no prazo da lei; p) o cumprimento das obrigações contidas em convenção coletiva, acordo coletivo ou sentença normativa em dissídio coletivo de trabalho; q) os alojamentos de todos os empregados, diretamente contratados ou contratados por empresa terceirizada, a fim de que atendam às normas regulamentadoras do MTE, notadamente às disposições das NR´s 07, 18 e 31, e especificamente no que se refere aos alojamentos, instalações sanitárias, fornecimento de água potável, armários, dimensionamento de chuveiros com água 326

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quente, beliches, refeitórios e fornecimento de materiais de limpeza e higiene, atentando-se para: q.1 – o fornecimento gratuito de equipamentos de proteção coletiva EPC e equipamentos de proteção individual - EPI adequados ao risco e em perfeito estado de conservação e funcionamento (NR 6 – item 6.3.1 e NR 18 – 18.23.1); q.2 – o fornecimento gratuito aos trabalhadores, vestimenta de trabalho, assim como providenciar sua reposição, quando danificada (NR 18 – 18.37.3); q.3 – a dotação das as frentes de trabalho (canteiros de obras) de alojamentos e áreas de vivência, constituídos por instalações do tipo (NR 18 - itens 18.4.1.3; 18.4.1.3.2; 18.4.2.10.1; e 18.4.2.10.2): I) MÓVEIS (inclusive contêineres), onde cada módulo possua: a) área de ventilação natural, efetiva, com no mínimo duas aberturas adequadamente dispostas para permitir eficaz ventilação interna; b) condições de conforto térmico; c) pé direito mínimo de 2,40m; d) os demais requisitos mínimos de conforto e higiene estabelecidos na NR 18; e e) proteção contra riscos de choque elétrico por contatos indiretos, além do aterramento elétrico; ou, II) FIXAS, atendendo aos seguintes requisitos: a) com paredes de alvenaria, madeira ou material equivalente; b) com pisos de concreto, cimentado, madeira ou material equivalente; c) com cobertura que proteja das intempéries; d) com área de ventilação de no mínimo 1/10 da área do piso; e) com iluminação natural e/ou artificial; f) com área mínima de 3 m² por módulo cama/ armário, incluindo a área de circulação; g) com pé direito mínimo de 2,50m para camas simples e de 3m para camas duplas (beliches); proibindo-se o uso de mais de 2 camas na mesma vertical; e, h) com instalações elétricas adequadamente protegidas. q.4 – a dotação dos alojamentos de camas com dimensão mínima de 0,80m x 1,90m, além de colchões com densidade 26 e espessura mínima de 10 cm (NR 18 – 18.4.2.10.5); q.5 – a não permissão, em caso de utilização de beliches, que a altura livre entre as camas seja inferior a 90 cm (noventa centímetros) (NR 18 – 18.4.2.3.1); q.6 – o fornecimento aos trabalhadores de roupas de cama constituídas por lençol, fronha e travesseiro em condições adequadas de higiene, bem como cobertor, quando as condições climáticas assim o exigirem (NR 18 – 18.4.2.10.6); q.7 – a dotação dos alojamentos de armários individuais com compartimento duplo, dotados de fechaduras ou dispositivos com cadeados (NR 18 – itens 18.4.2.10.7 e 18.4.2.9.3); Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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q.8 – a dotação das frentes de trabalho dos canteiros de obras de áreas de vivência contendo (NR 18 – itens 18.4.1 e 18.4.2.11.1): a) Instalações sanitárias, incluindo local para banho dotado de chuveiros; b) local para refeições; e c) cozinha, quando houver preparo de refeições. q.9 – a manutenção das instalações sanitárias em perfeito estado de conservação e higiene, assim como separá-las por sexo, quando necessário (NR 18 – 18.4.2.3); q.10 – o fornecimento aos trabalhadores água potável, filtrada e fresca, em recipientes hermeticamente fechados, confeccionados em material apropriado, além de proibir o uso de copos coletivos (NR 18 – 18.37.2.2); q.11 – a dotação das frentes de trabalho (canteiros de obras) de material necessário à prestação de primeiros socorros, considerando-se as características da atividade desenvolvida, bem como manter esse material guardado em local adequado e aos cuidados de pessoa treinada para esse fim (NR 7 – 7.5.1) q.12 – o transporte adequado dos trabalhadores, por meio de veículos de transporte normalizados pelas entidades competentes e adequados às características do percurso, observando-se as normas de segurança vigentes (NR 18 – itens 18.25.1 e 18.25.2); r) o cumprimento das demais obrigações dispostas na CLT em relação aos empregados vinculados ao contrato.

Tudo sob pena de multa (astreinte) no valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), por obrigação descumprida e por cada constatação de omissão fiscalizatória. A multa (astreinte) será reversível, em princípio, ao FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador (Lei nº 7.998/90) –, sem prejuízo de se conferir, preferencialmente, outra destinação social em favor da coletividade, com a concordância do MPT, em sede de execução. IV.2. DO PROVIMENTO DEFINITIVO Ante o exposto, requer o Ministério Público do Trabalho a confirmação da antecipação dos efeitos da tutela, com sua concessão em caráter definitivo, e a procedência dos pedidos da presente ação civil pública para condenar a ré a FISCALIZAR, EFETIVAMENTE, POR MEIO DE INSTRUMENTOS DE CONTROLE, no caso de empresas, terceirizadas ou não, regidas pela Consolidação das Leis Trabalhistas, os atributos dos contratos de trabalho listados no item IV.1, bem como a 328

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PAGAR INDENIZAÇÃO, A TÍTULO DE DANO MORAL COLETIVO, EM VALOR NÃO INFERIOR A R$ 3.000.000,00 (TRÊS MILHÕES DE REAIS), EM VIRTUDE DOS DANOS SOCIAIS ORIUNDOS DE SUA POSTURA OMISSIVA. A multa (astreinte), bem como o montante da indenização por dano moral coletivo, serão reversíveis, em princípio, ao FAT Fundo de Amparo ao Trabalhador - (Lei nº 7.998/90), sem prejuízo de se conferir outra destinação social em favor da coletividade, com a concordância do MPT, em sede de execução. V. REQUERIMENTOS FINAIS O Ministério Público do Trabalho ainda requer: V.1. A citação da ré, para, querendo, contestar a presente ação, sob pena de se presumirem verdadeiros os fatos ora articulados; V.2. A produção de prova por todos os meios em direito admitidos, tais como o depoimento pessoal dos representantes legais do ré, a oitiva de testemunhas e a juntada de documentos; V.3. A intimação pessoal e nos autos do Ministério Público do Trabalho, na forma do disposto no artigo 18, inciso II, alínea “h”, da Lei Complementar nº 75/93 c/c art. 217 do Provimento Geral Consolidado do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região (MS); V.4. A procedência dos pedidos e a condenação da demandada ao pagamento das custas e despesas processuais. Dá-se à causa o valor de R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais), para o fim de fixação da alçada, do rito e das custas processuais. Pede deferimento. Corumbá (MS), 27 de outubro de 2011. RAFAEL DE AZEVEDO REZENDE SALGADO Procurador do Trabalho

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EXMO. SR. JUIZ DE DIREITO DA ____ VARA DO TRABALHO DE CAMPO GRANDE/MS

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, por meio da Procuradora do Trabalho que, ao final, subscreve, vem à presença de Vossa Excelência, com fulcro nos artigos 127 e 227 da Constituição Federal, além do disposto no art. 5º, inciso III, alínea b, da Lei Complementar nº 75/93, propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA pelos fatos e fundamentos a seguir expostos, em face de M.M.L., (QUALIFICAÇÃO) e L.C.S., (QUALIFICAÇÃO). 1 DOS FATOS E DA PROVA DA MATERIALIDADE E AUTORIA DA EXPLORAÇÃO DE ADOLECENTES PARA O TRÁFICO DE DROGAS Em virtude de ofício enviado pelo Promotor de Justiça Sérgio Fernando R. Harfouche, em outubro de 2011, noticiando que os adolescentes L.I.S., L.V.C.B. e T.S.L. estariam sendo “usados como ‘aviõezinhos’ por traficantes locais, caracterizando a exploração nociva de sua força de trabalho em atividades ilícitas”, instaurou-se o Inquérito Civil n. 929.2011.24.000/00 (fl. 05-35 do doc. 1). Observase que a 27ª Promotoria de Justiça ofereceu representação criminal em face dos referidos adolescentes por tráfico de entorpecentes (art. 33 da Lei 11343/06). Diante do pedido de informações, o Promotor de Justiça complementou os documentos e apresentou outros documentos, inclusive aditando a denúncia inicial para incluir mais dois adolescentes explorados, quais sejam, T.C.C. e N.P.O. (doc. 2 – fl. 40, 42-114). Dos documentos adunados aos autos do inquérito, identifica-se a exploração dos adolescentes acima mencionados Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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que vendiam substâncias entorpecentes fornecidas pelos réus, com exceção de L.I.S., pois não foi possível identificar o seu explorador. Ressalte-se que duas outras ações serão interpostas em face dos demais identificados. 1.1 Identificação dos exploradores para atividades ilícitas da força de trabalho dos adolescentes T.S.L e L.V.C.B. No dia 30 de setembro de 2011, os adolescentes T. e L. afirmaram, perante o 27° Promotor de Justiça, que o fornecimento da droga que ambos comerciavam pertencia ao Sr. M. e que receberiam o valor de R$ 10,00 pela venda (fl. 19 e 20 do doc. 1). T. declarou ainda que M. havia comprado de L., “patrão de M.” (fl. 19 do doc. 1). Identificou-se um dos exploradores dos adolescentes como sendo M.M.L., que também foi preso em flagrante, “por infração, em tese, de TRÁFICO DE DROGAS (Artigo 33 da LEI Nº 11.343(06) e também CORROMPER OU FACILITAR A CORRUPCAO DE MENOR DE 18 (DEZOITO) ANOS, COM ELE PRATICANDO INFRACAO PENAL OU INDUZINDO-O A PRATICÁ-LA (Artigo 224-B da ECA – LEI Nº 8.099/9)” (fl. 24 do doc. 1). Do Termo de Depoimento em Auto de Prisão e Apreensão em Flagrante Delito, identificou-se o outro explorador dos adolescentes, qual seja, L.C.S., como se vê do depoimento de A.L.R.A., policial militar e condutor da apreensão dos adolescentes e da prisão de M.: Que o depoente diz que M. resolveu contar de quem adquiriu tal entorpecente, afirmando que era de uma pessoa conhecida por L. […]; Que o depoente, em entrevista com o mesmo e checagem via CIOPS, percebeu que àquele homem tratava-se de L.C.S., o qual está com Mandado de Prisão a ser cumprido, expedido pela 2ª Vara de Execução Penal desta Comarca […] (fl. 26-27 do doc. 1)

A segunda testemunha do Termo de Depoimento em Auto de Prisão e Apreensão em Flagrante Delito, R.B.O.S., também Policial Militar, confirmou todas as assertivas acima (fl. 30-31 do doc. 1). Outros documentos relativos aos dois adolescentes encontram-se em fl. 104-114 do doc. 1. 332

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2 DO DIREITO 2.1 DA COMPETÊNCIA MATERIAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO E DA LEGITIMIDADE DO PARQUET TRABALHISTA O art. 114 da Constituição Federal preceitua que: Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I - as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; [...] IX outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.

A redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, a qual excluiu os termos “empregador” e “trabalhador” da grafia originária da norma em comento, não deixa dúvida de que quaisquer litígios que tenham como gênese a relação de trabalho hão de ser dirimidos na Justiça Laboral. Abandonou-se, destarte, a regra de competência anterior, que cingia a jurisdição trabalhista a conflitos emanados de vínculos empregatícios. As causas de pedir próxima e remota da presente ação civil pública são a exploração comercial de adolescentes para fins ilícitos, qual seja, tráfico de entorpecentes. Na definição da exploração comercial de crianças e adolescentes, é inequívoca a ênfase ao caráter mercantil e laboral. A vítima é vista como prestadora de serviços, com a utilização de seu labor em benefício de outras pessoas. A Organização Internacional do Trabalho - OIT, na Convenção nº 182, ratificada pelo Brasil, preceitua que a exploração para atividade ilícitas é uma das piores formas de trabalho infantil: Art. 3º. Para efeitos da presente Convenção, a expressão as piores formas de trabalho infantil abrange: [...] c) a utilização, demanda e oferta de criança para atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de drogas conforme definidos nos tratados internacionais pertinentes; Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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(Grifo apócrifo - ratificada pelo Decreto nº 3.597, de 12 de setembro de 2000)

Por todas as luzes, é inegável a natureza trabalhista da quaestio iuris, razão pela qual é inafastável a competência absoluta e material dessa Justiça Obreira, nos exatos termos do art. 114 da Constituição Federal. Quanto à legitimidade do MPT, para promover a tutela coletiva, é imperioso valer-se do art. 127 da Constituição Federal, o qual preceitua que “o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.” Partindo-se da própria definição da Lex Mater, chegamos à ilação de que o Parquet é órgão que tem como mister a fiscalização do fiel cumprimento da lei, bem como a utilização das vias necessárias, para assegurar a observância aos ditames legais que tutelam o interesse público primário. Desta forma, um dos mais poderosos instrumentos utilizados pelo Ministério Público, para cumprir a sua missão constitucional, é a ação civil pública, o remédio judicial regulado pela Lei n. 7.347/85 e voltado para coibir macrolesões a interesses plurissubjetivos. Também a Lei Complementar do Ministério Público da União (LC 75/93), no capítulo destinado ao Ministério Público do Trabalho, atribui ao Parquet trabalhista a prerrogativa de promover a ação civil pública nessa Justiça Especializada (art. 83, inciso III). Desse modo, afigura-se inquestionável a legitimidade do Ministério Público do Trabalho face à presente ação, eis que, in casu, está-se diante de típica lesão a interesses difusos e coletivos da sociedade (exploração sexual de crianças e adolescentes - dano moral coletivo) e a direitos individuais indisponíveis (direito subjetivo das adolescentes lesadas à sua integridade física e moral). O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente incumbe ao MP a propositura de Ação Civil Pública para fins de proteção da infância e da adolescência: Art. 201. Compete ao Ministério Público: 334

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[...] V - promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos interesses individuais, difusos ou coletivos relativos à infância e à adolescência, inclusive os definidos no art. 220, § 3º, inciso II, da Constituição Federal;

2.2 DA DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL E DA EXPLORAÇÃO DE ADOLESCENTES PARA O TRÁFICO DE ENTORPECENTES Nas constituições anteriores, não houve preocupação em estabelecer os princípios fundamentais dos direitos da criança, como já havia em quase todas dos Estados Democráticos de Direito. Tal constatação revelava a desídia da nação brasileira, posto que já era consenso, na comunidade internacional, a Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959, documento de que o Brasil já era signatário. Antes de 1988, vigorava o Código de Menores. Amparavase tal legislação na necessidade de que a criança e o adolescente tivessem bem-estar e ambiente harmônico. Tal preocupação, todavia, não era estruturada em forma de direitos às crianças e aos adolescentes, o que impossibilitava a exigibilidade da concretização dessas garantias. Caberia somente à família assegurar o bem-estar da criança, e o resultado prático, em famílias desestruturadas, era nenhum. A postura essencialmente assistencialista e punitiva da lei não via a criança como titular de direitos, mas como mero objeto de proteção do Direito. Com a Constituição Federal de 1988, tal panorama se altera radicalmente, ao se prever, em seu art. 227, que: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência comunitária, além de colocálos a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A Carta Magna teve, pela primeira vez, um dispositivo que sagrou efetivamente direitos às crianças e aos adolescentes. O artigo inaugurado pela Constituição prevê um modelo baseado Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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em garantias plenas, fundamentando-se na doutrina da proteção integral e coadunando-se, por conseguinte, com os matizes da Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente da Organização das Nações Unidas. O art. 7°, inciso XXXIII, da Constituição Federal estatui a “proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos”. Portanto, veda-se qualquer trabalho que exponha a criança ou o adolescente até os 18 (dezoito) anos a algum tipo de risco, sendo proibido o exercício de qualquer trabalho por menores de 16 (dezesseis) anos, ressalvada apenas as hipóteses de aprendizagem, a partir dos 14 anos. Tal disposição é reforçada no Ordenamento infraconstitucional, por força do art. 67 do Estatuto da Criança e do Adolescente. A própria Consolidação das Leis do Trabalho contém conteúdo normativo idêntico. Veja-se: Art. 403 - É proibido qualquer trabalho a menores de 16 (dezesseis) anos de idade, salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos.

trabalho.

Fala-se, portanto, em direito fundamental ao não

Assim, inquestionável que o dever de proteger a criança e o adolescente é responsabilidade não apenas do Estado, mas também de toda sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo ao exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. É, pois, a doutrina da proteção integral o arcabouço principiológico da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA), a qual outorga à criança o direito indisponível às integridades física e moral: Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-selhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. 336

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[…] Art. 5º - Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. [...] Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. [...] Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

O próprio ECA tipifica o delito de exploração da mão de obra de crianças e adolescentes para fins comerciais ilícitos, cominando pena: Art. 243. Vender, fornecer ainda que gratuitamente, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente, sem justa causa, produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, ainda que por utilização indevida: Pena - detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave. […] Art. 244-B. Corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos, com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. § 1o Incorre nas penas previstas no caput deste artigo quem pratica as condutas ali tipificadas utilizando-se de quaisquer meios eletrônicos, inclusive salas de bate-papo da internet. § 2o As penas previstas no caput deste artigo são aumentadas de um terço no caso de a infração cometida ou induzida estar incluída no rol do art. 1º da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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Como se vê, há uma preocupação mundial que clama por punições mais severas contra os responsáveis pela exploração de crianças e adolescentes para fins ilícitos ou quaisquer outros. O Brasil também tem sinalizado com estratégias públicas no mesmo sentido, ao ratificar todas as normas internacionais que lidam com a temática e promulgar leis que atendem o mesmo desiderato. No caso sub judice, o Poder Judiciário não pode permitir que tamanha atrocidade remanesça impune. Não obstante os réus estarem ou não respondendo a processo penal, impõe-se-lhes sanção de ordem civil, para que aprendam, definitivamente, a lidar com crianças e adolescentes e a respeitar os princípios legais do ordenamento jurídico pátrio. O Ministério Público do Trabalho cumpre o seu mister com o ajuizamento da presente Ação Civil Pública, cabendo ao Judiciário Trabalhista consolidar a função do Estado Democrático de Direito e a construção de uma sociedade justa e solidária, onde os direitos da criança e dos adolescentes sejam resguardados, determinar aos réus que se abstenham, definitivamente, de aliciar e explorar menores para fins de comércio de substâncias entorpecentes, bem como de exigir qualquer tipo de trabalho de crianças e adolescente até18 anos. 2.3 DOS PRINCÍPIOS COMO NORMAS JURÍDICAS DE PLENA EFICÁCIA Cumpre, nesta oportunidade, ressaltar a carga normativa que envolve os princípios constitucionais, a fim de evidenciar a obrigatoriedade da adoção de condutas positivas ou negativas (de fazer ou de não fazer), para que tais princípios tenham sua efetividade garantida. Humberto Ávila conceitua princípio da seguinte forma: Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção. (destaquei – In Teoria dos Princípios, Da definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos, 4ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2004, pág. 70) 338

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Como se vê, os princípios são normas finalísticas, pois estabelecem um fim a ser atingido. Tais fins somente podem ser alcançados com a prática de determinados comportamentos. Assim, a positivação dos princípios implica obrigatoriedade na adoção de condutas necessárias à sua realização. Nesta perspectiva, os princípios não são apenas valores, mas veiculam normas, normas estas que devem ser cumpridas. Importante trazer novamente à colação os ensinamentos de Humberto Ávila: As considerações antes feitas demonstram que os princípios não são apenas valores cuja realização fica na dependência de meras preferências pessoais. (...) Os princípios instituem o dever de adotar comportamentos necessários à realização de um estado de coisas ou, inversamente, instituem o dever de efetivação de um estado de coisas pela adoção de comportamentos, ainda que por via indireta e regressiva. [...] Logo se vê que os princípios, embora relacionados a valores, não se confundem com eles. Os princípios relacionam-se aos valores na medida em que o estabelecimento de fins implica qualificação positiva de um estado de coisas que se quer promover. No entanto os princípios se afastam dos valores porque, enquanto os princípios se situam no plano deontológico e, por via de consequência, estabelecem a obrigatoriedade de adoção de condutas necessárias à promoção gradual de um estado de coisas, os valores se situam no plano axiológico ou meramente teleológico e, por isso, apenas atribuem uma qualidade positiva a determinado elemento. (In Teoria dos Princípios, Da definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos, 4ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2004, pág. 72 – grifo nosso)

Assim, em última análise, reproduz-se aqui a construção da tese do fato-valor-norma, de autoria do Professor Miguel Reale. Com efeito, a norma, que extravasa um conteúdo obrigatório de conduta e sob cujo pálio, portanto, encontram-se os princípios, é fruto de um fato valorado pelo seio social e elevado como padrão de ação. No presente caso, o fato é a exploração de crianças e adolescentes com fins ilícitos, realidade valorada negativamente Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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pela sociedade que, portanto, elege standarts de conduta, expressos em normas, sejam estas por meio de meras regras, sejam encartadas em princípios, tudo com vistas a se evitar aquele fato negativamente apreciado. Nesta esteira de raciocínio, apresenta-se a seguinte situação: a Constituição Federal elencou como princípios, portanto, como normas, a proibição do trabalho precoce (art. 7º, XXXIII), proteção integral da criança e do adolescente (art. 227) e, como princípio vetor de vários outros princípios e regras, o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Ora, as provas que instruem a presente inicial demonstram à saciedade que os réus aliciam e exploram crianças e adolescentes com fins comerciais ilícitos, sendo esta, sem sombra de dúvidas, uma das piores formas de trabalho infantil, conforme reconhecido pela Convenção 182 da OIT, ratificada pelo Brasil através do Decreto n° 3.597/00. Esta conduta dos réus deturpa o que se encontra estabelecido pela Constituição Federal, qual seja, o estado de proteção integral às crianças e adolescentes. Importante salientar que os princípios, enquanto fundamentos vinculantes de conduta, pautam não somente a ação do legislador constituído, mas também as ações do administrador, do juiz e de todas as pessoas (físicas e jurídicas, públicas e privadas) que compõem a sociedade política. Portanto, quando ocorre o descumprimento dos princípios, os respectivos violadores devem adotar condutas ou comportamentos (obrigações de fazer ou não fazer) no sentido não apenas de corrigir a situação contrária ao direito, mas também de assegurar que a transgressão cometida não mais seja repetida, a fim de que o estado de coisas retome o padrão estabelecido pelo ordenamento jurídico e se mantenha perenemente em tal condição. Isto posto, impõe-se a condenação dos réus em obrigação de se absterem-se de aliciar e explorar, sob qualquer pretexto, crianças e adolescentes menores de 18 (dezoito) anos para fins de exploração para o tráfico de substâncias entorpecentes ou para qualquer outro trabalho não permitido por lei, sob pena de multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por criança e/ou adolescente flagrado em situação irregular, a ser revertida em 340

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favor do FDD – Fundo de Defesa de Direitos Difusos ou do Fundo Municipal da Infância e Adolescência ou, ainda, revertido a entidade sem fins lucrativos. Assim, os pedidos veiculados nesta peça inicial representam exatamente as condutas que devem ser adotadas pelos réus, a fim de que seja resguardado o estado de coisas fixado pela Constituição Federal, garantindo-se às crianças e adolescentes o direito à proteção integral, e, em última análise, a própria dignidade da pessoa humana. 3 DO DANO MORAL COLETIVO DECORRENTE DA EXPLORAÇÃO DA MÃO DE OBRA DE ADOLESCENTE A possibilidade de condenação em danos morais coletivos encontra-se em consonância com o movimento mais recente do Direito, no sentido de sua coletivização ou socialização. Trata-se de uma nova concepção do fenômeno jurídico e de seu alcance, oposto à visão individualista até então dominante, fruto de uma concepção liberal do Estado e de suas relações com os indivíduos. Nesse sentido, é possível observar a Constituição Federal de 1988 consagrando a coletivização dos direitos ao prever instrumentos como o mandado de segurança coletivo, a ação popular, além da defesa da ordem social, aí incluído a educação, cultura, o meio ambiente etc. É dentro deste contexto, que surge a noção de dano moral coletivo, como a possibilidade de reparação de danos que tenham potencialidade de lesar toda uma coletividade. Carlos Alberto Bittar Filho ensina: […] o dano moral coletivo é a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos. Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerada, foi agredido de uma maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico... Como se dá na seara do dano moral individual, aqui também não há que se cogitar de prova de culpa, devendose responsabilizar o agente pelo simples fato da violação...” Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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(in Do Dano Moral Coletivo no Atual Contexto Jurídico Brasileiro. Revista Direito do Consumidor, n 12, out/dez/ 1994.)

Esse autor destaca, ainda, a necessidade de fortalecimento, no direito brasileiro, do espírito coletivo, afirmando que a ação civil pública, neste particular, atua como “poderoso instrumento de superação do individualismo”, pois o art. 1º, inciso V, da Lei n. 7.347/85 prescreve: Art. 1º. Regem-se pelas disposições desta lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: [...] V – a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.

O dano moral coletivo, portanto, desponta como sendo a violação em dimensão transindividual dos direitos da personalidade. Se o particular sofre uma dor psíquica ou passa por uma situação vexatória, a coletividade, vítima de dano moral, sofre de desapreço, descrença em relação ao poder público e à ordem jurídica. Padece a coletividade de intranquilidade, angústia, insegurança. O certo é que a matéria já não comporta maiores indagações, ante a caudalosa jurisprudência dos Tribunais Trabalhistas, que trilha a seguinte direção: DANO MORAL COLETIVO – POSSIBILIDADE – Uma vez configurado que a ré violou direito transindividual de ordem coletiva, infringindo normas de ordem pública que regem a saúde, segurança, higiene e meio ambiente do trabalho e do trabalhador, é devida a indenização por dano moral coletivo, pois tal atitude da ré abala o sentimento de dignidade, falta de apreço e consideração, tendo reflexos na coletividade e causando grandes prejuízos à sociedade. (TRT/8ª Região, RO 5309/2002, Rel. Juiz Luis de José Jesus Ribeiro, julg. 17.12.2002). AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INDENIZAÇÃO POR DANO À COLETIVIDADE - Para que o Poder Judiciário se justifique, diante da necessidade social da justiça célere e eficaz, é imprescindível que os próprios juízes sejam capazes de “crescer”, erguendo-se à altura dessas novas e prementes aspirações, que saibam, portanto, tornar-se eles mesmos protetores dos novos direitos “difusos”, “coletivos” e “fragmentados”, tão característicos e importantes da nossa civilização de massa, além dos tradicionais direitos 342

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individuais” (Mauro Cappelletti). Importa no dever de indenizar por dano causado à coletividade, o empregador que submete trabalhadores à condição degradante de escravo. (TRT 8ª - Acórdão nº 00276-2002-114-08-005, 1ª T/RO 861/2003, Rel. Juíza Maria Valquíria Norat Coelho, julgado em 01.04.2003)

3.1 O dano moral causado pelos réus A Constituição Federal de 1988 reconheceu a relevância da proteção integral das crianças e adolescentes, princípio notadamente ignorado por exploradores de sua mão de obra. Entretanto, apesar da dificuldade da sociedade em vislumbrar as crianças empregadas no tráfico de drogas como verdadeiros trabalhadores explorados, mas esta realidade está em ascendente mudança. Em seminário nacional empreendido nos dias 27 e 28 de novembro de 2002, Eliane Araque dos Santos, então Coordenadora da Coordenadoria de Combate à exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente do Ministério Público do Trabalho, além de representante do Ministério Público do Trabalho na Coordenação Colegiada do FNPETI, proferiu exposição com foco na complexidade do tratamento do trabalho infantil, em particular no caso do tráfico de drogas: A lei 2.409 de 2002, que revogou a lei 3.608 de 1976, embora, para muitos especialistas, ainda não trate de uma forma eficaz do fenômeno do tráfico de drogas, que envolve diversos atores, com papéis desiguais, prevê medidas preventivas. Ela traz ainda dispositivos para aumentar a pena dos responsáveis por atividades criminosas que envolvem menores de 18 anos. Assim, é preciso direcionar todo o arcabouço legal e jurídico no sentido da maior penalização daqueles que exploram crianças e adolescentes nessa atividade. O desafio é a melhor definição do enfoque que deve ser dado à atividade das crianças e adolescentes no tráfico de drogas. Não é possível desconsiderar que é um trabalho, tendo em vista que é dali que elas retiram a sua sobrevivência. Isso obriga o tratamento da questão sobre um novo ponto de vista. É preciso tratar a matéria envolvendo a questão do arcabouço jurídico a partir de duas legislações básicas, sem esquecer o papel originário da Constituição Federal, que é quem delineia os princípios inscritos na legislação. A Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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primeira legislação assinalada foi o Estatuto da Criança e do Adolescente. A segunda foi a Convenção 182, da OIT. Eliane Araque tratou também do medo de morrer, assinalado na pesquisa, pelas crianças empregadas no tráfico. O direito à vida é proclamado pela Constituição em seu artigo 227. E esse direito, para além do direito à sobrevivência e o direito ao desenvolvimento em termos de saúde, cultura, lazer, trabalho e formação educacional. [...] Um dos limites que dificultam a implementação do Estatuto da Criança do Adolescente, principalmente no que diz respeito à sua aplicação para crianças e adolescentes infratores, e o fato dele ser visto e pensado a partir de modelos antigos, com resquícios de um momento histórico que já deveria ter sido ultrapassado. Isso fica nítido na discriminação das crianças envolvidas na atividade, vista simplesmente como criminosas e a falta de políticas para a inserção (ou reinserção) dessas crianças na sociedade. […] (www.fnpeti.org.br/publicacoes/fnpeti-1/arquivos-daspublicacoes/seminrio_nacional.pdf. Acesso em 30/04/2012)

Surge, então, o questionamento acerca dos efeitos que a exploração de crianças e adolescentes para fins do tráfico de drogas, gera nas vítimas e na sociedade, e, ainda, se justificam a imposição de condenação de dano moral coletivo. São inúmeras as consequências desse tipo de exploração, que marca indelevelmente a existência da vítima e intervém no desenvolvimento de sua personalidade. Tal qual a exploração sexual de crianças e adolescentes, a violência que está inserida nesse tipo de exploração provoca alterações no desenvolvimento das crianças e adolescente, levando à sensível redução da capacidade de adaptação às dificuldades do cotidiano e contribuindo para um desajuste social. Não raro o explorado, dependendo de sua imaturidade cognitiva e afetiva, acha-se o real culpado pela situação que vivencia, gerando sentimento de revolta, apatia, alienação ou corrupção de valores. A exploração de crianças e adolescentes é de caráter degradante, visto que as vítimas são tidas como objetos que podem ser manipulados sem a menor cautela, o que acarreta malefícios irreversíveis, tanto para a pessoa explorada como para a sociedade 344

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em geral, considerando-se que a habitualidade com esta situação possui efeitos que atingem o desenvolvimento do indivíduo e, em consequência, obsta a normal convivência com os demais. Nesse diapasão, é inegável o caráter gravemente lesivo da postura perpetrada por exploradores da mão de obra infanto juvenil. É de bom alvitre lembrar que, nada obstante os efeitos danosos individuais, gera efeitos morais negativos em face de toda a coletividade pois contribui como elemento patrocinador e catalizador de diversos outros delitos e o aumento da violência, o que afronta o princípio do bem comum. Estão em análise, na presente demanda, princípios basilares, como a dignidade do ser humano (CF, art. 1º, III), o valor social do trabalho (CF, art. 1º, IV), a proteção integral à criança e ao adolescente (CF, art. 227), garantia contra tratamento degradante (CF, art. 5º, inciso III), inviolabilidade da honra (CF, art. 5º, inciso X), etc. São regras constitucionais flagrantemente turbadas pelos réus e cuja autoridade e intangibilidade interessa a toda a coletividade. Observem-se os preceitos de responsabilidade civil, regrados pelo Código Civil brasileiro, os quais se aplicam ipsis literis à hipótese descortinada: Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.” [...] Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal [...] Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.

Não se olvide que o art. 227 da CF estabelece expressamente que é dever da família, DA SOCIEDADE E DO ESTADO assegurar à criança e ao adolescente, COM ABSOLUTA Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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PRIORIDADE, o direito à vida, à SAÚDE, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à DIGNIDADE, ao RESPEITO, à LIBERDADE e à convivência familiar e comunitária, além de COLOCÁ-LOS A SALVO de toda forma de negligência, discriminação, EXPLORAÇÃO, VIOLÊNCIA, CRUELDADE e opressão. Portanto, da exploração ora mencionada resultar violações de ordem física, psicológica e moral de extrema magnitude nas crianças/adolescentes exploradas com reflexos em âmbito coletivo, ou seja, na sociedade. Esta forma de tratamento dada a uma pessoa, e o que é pior, um ser que ainda não completou o seu desenvolvimento físico e psíquico é repudiada pelo ordenamento jurídico nacional, já que o Brasil assinou diversos tratados, convenções e pactos internacionais no sentido de promover os direitos humanos e de assegurar punição àqueles que desrespeitam tais regras. Ao assinar tais documentos, a sociedade brasileira comprometeu-se a fundamentar o Estado Brasileiro nos princípios da cidadania e da dignidade humana. A violação a este compromisso, por parte de um membro da sociedade, afeta à coletividade, que escolheu constituir um Estado Democrático de Direito, onde o respeito ao ser humano é pedra fundamental. Daí porque afirmamos que a concretização da democracia e a afirmação do Estado de Direito se faz dentro do contexto social, com o respeito aos direitos humanos, por cada um de seus membros. A violação de um, se for relevante socialmente, tem o poder de gerar insegurança e indignação a todos. Portanto, a conduta dos réus, ao descumprirem os diversos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais supramencionados, mostra-se incompatível com a consciência coletiva existente na nossa sociedade, que reclama respeito à cidadania, à dignidade da pessoa humana, aos valores sociais do trabalho, consoante impôs a Constituição Federal ao disciplinar o Estado Democrático de Direito. Lembremos, ainda, um texto de Luiz Guilherme Belisário, no qual afirma que a concretização dos direitos fundamentais no contexto social é a garantia da paz nacional: 346

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Podemos conceituar direitos fundamentais como um: conjunto de garantias da pessoa humana para lhe assegurar a dignidade, sendo que (...) os direitos fundamentais ganham maior concretude e alcance, uma vez que se constatou que a preservação da dignidade da pessoa humana é condição essencial para a manutenção da paz e da justiça internacional e nacional”. (in A redução de trabalhadores rurais à condição análoga à de escravos: um problema de direito penal trabalhista. São Paulo: Ltr, 2005. grifo nosso)

Daí se concluir que as violações aos direitos fundamentais e ao princípio da dignidade resultam em danos morais à coletividade, exigindo, assim, uma indenização, que terá caráter preventivopedagógico e punitivo. Sendo, então, devida uma indenização por danos morais à coletividade, resta-nos tentar mensurar o valor dessa indenização, contemporizando-se dois elementos: a capacidade econômica dos réus e a gravidade dos ilícitos cometidos. Embora de difícil mensuração, esta deverá ocorrer num patamar suficientemente alto para atingir a função preventivapedagógica e punir adequadamente os ilícitos cometidos. Neste contexto, tem-se que a gravidade dos atos praticados pelos réus e sua repercussão deletéria na esfera sóciopsíquico-moral das vítimas, aliado à capacidade econômica destes, são suficientes para desencadear uma indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) cada um deles, revertidos ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos – FDD ou ao Fundo Municipal da Infância e Adolescência ou, ainda, ser revertido a entidade filantrópica reconhecida como de utilidade pública Não se pode olvidar que, em casos como esses, o ressarcimento pelo gravíssimo ato ilícito cometido pelos réus não se esgota na responsabilidade criminal. Aliás, a punição pelo ato somente se tornará EFETIVA cumulando-se a responsabilidade penal com a responsabilidade civil. Daí a importância do pedido de indenização por danos morais coletivos, que terá efeito pedagógico e punitivo. Revista do Ministério Público do Trabalho nº 06

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4 DOS PEDIDOS Ante o exposto, o Ministério Público do Trabalho pleiteia, em caráter definitivo: 4.1 a condenação dos réus na obrigação de se absterem de aliciar e explorar, sob qualquer pretexto, crianças e adolescentes menores de 18 (dezoito) anos para fins de exploração para o tráfico de substâncias entorpecentes ou para qualquer outro trabalho não permitido por lei, sob pena de multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por criança e/ou adolescente flagrado em situação irregular, a ser revertida em favor do FDD – Fundo de Defesa de Direitos Difusos ou do Fundo Municipal da Infância e Adolescência ou, ainda, revertido a entidade sem fins lucrativos. 4.2 a condenação do réu ao pagamento de indenização compensatória por danos morais coletivos, no quantum mínimo de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), a ser revertido, FDD – Fundo de Defesa dos Direitos Difusos ou Fundo Municipal da Criança e do Adolescente ou entidade sem fins lucrativos. 5 DOS REQUERIMENTOS Por fim, o Ministério Público do Trabalho requer: 5.1 seja decretado o sigilo do processo, tendo em vista a identificação dos adolescentes explorados; 5.2 a citação dos réus no endereço para correspondência indicado no preâmbulo, para, querendo, contestar a presente ação, sob pena de se presumirem verdadeiros os fatos ora articulados; 5.3 a produção por todos os meios de prova em direito admitidos, tais como o depoimento pessoal dos réus, oitiva de testemunhas e juntada de novos documentos; e 5.4 a intimação pessoal e nos autos do Ministério Público do Trabalho, na forma do disposto no art. 18, inciso II, alínea “h”, da Lei Complementar nº 75/93 c/c art. 217 do Provimento Geral Consolidado do Egrégio TRT da 24ª Região/MS. Requer, outrossim, a procedência dos pedidos e a condenação dos réus ao pagamento das custas e despesas processuais. 348

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Dá-se à presente causa o valor de R$ 200.000,00 (um milhão e quarenta e dois mil reais). Pede deferimento. Campo Grande, 30 de abril de 2012. SIMONE BEATRIZ ASSIS DE REZENDE Procuradora do Trabalho Testemunhas

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