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A Multiplicidade Da(s) ViolĂŞncia(s) um Real bem feminino Congresso 2014


Titulo: A Multiplicidade Da(s) Violência(s), um Real bem feminino Coordenação: Joana Lima Maria Joana Alves Pereira Maria Manuela Antunes da Silva Edição: MDM – Movimento Democrático de Mulheres Projeto – Viver Direitos, Vencer Violências – da escola ao espaço público Coordenação Editorial: Maria Manuela Antunes da Silva Revisão: Joana Lima e Maria Manuela Antunes da Silva Fotografias do Congresso: Maria Joana Alves Pereira Capa: Frederico Pompeu Paginação: Frederico Pompeu Impressão e Acabamento: Tipografia Lousanense 1ª edição: Julho de 2014 ISBN: 978­989­98737­1­1 Depósito Legal: Reservados todos os direitos.


ÍNDICE INTRODUÇÃO ........................................................................................................1 REGULAMENTO DO CONGRESSO TEMÁTICO........................................................6

Sessão de Abertura Prof. Doutor Joaquim da Costa Leite...............................................................10 Maria Manuela Antunes da Silva ....................................................................12 Maria Manuel Baptista | Género, Feminismo e Pós­feminismo .........................15 Regina Marques | A urgência de quebrar a re­vitimização .................................21

Painel I TRÁFICO E PROSTITUIÇÃO ! CRIME, VIOLÊNCIA, EXPLORAÇÃO EXTREMA COM ROSTO FEMININO Sandra Benfica | Tráfico e Prostituição – Refletir e agir para romper silêncios...34

Painel II ASSÉDIO MORAL ! USOS E ABUSOS DO PODER EM TEMPO DE PRECARIEDADE Isabel Lousada | Mulheres entre muros: do moral ao social.............................44 Leonor Valente Monteiro | Breve reflexão sobre assédio moral e sexual no local de trabalho .....................................................................50 Andrea Araújo | As realidades e os contextos do assédio moral no local de trabalho ...................................................................................59

Painel III VIVÊNCIAS ÍNTIMAS E SOCIAIS DESEQUILIBRADAS ! DO NAMORO À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Mário David Soares .............................................................................................68 Joana Sofio | Outras formas de pensar a violência .............................................74 Carina Novais | Prevenção da(s) violências no namoro: Perceções de jovens do distrito do Porto ..................................................................................................77


Delcia Pereira | (DES)AMOR – Experiência de Sensibilização no contexto do Projeto MEATUS ..........................................................................81 Joana Lima | Educar e sensibilizar para vivências íntimas equilibradas, em escolas livres de violência no namoro............................................................84 Daniela Santos, Luís Almeida, Luís Monteiro, Sara Tuna (Alunos e alunas do Curso de Novas Tecnologias da Comunicação da UA) Margarida Almeida (Docente do Departamento de Arte e Comunicação da UA) | “Unlove, um vídeo jogo em construção .......................................................................87

Encerramento Filomena Pires | Ata – Painel I | Tráfico e Prostituição – Crime, violência, exploração extrema com rosto feminino...............................94 Inês Amorim | Ata – Painel II | Assédio Moral – Usos e abusos do poder em tempo de precariedade .......................................96 Carla Adriana Pinto | Ata – Painel III | Vivências íntimas e sociais desequilibradas – do namoro à violência doméstica...........................100 Natacha Amaro | Encerramento do Congresso “A multiplicidade das violências – um real bem feminino”................................103




Introdução Integrado no Projeto “Viver Direitos / Vencer Violências – da escola ao espaço público”, o Movimento Democrático de Mulheres (MDM) realiza este Congresso Temático subordinado ao tema “A Multiplicidade da(s) violência(s) – um real bem feminino”, em continuidade com a sua longa história de intervenção e luta em prol dos direitos das mulheres e contra os vários tipos de violência(s) a que sis­ tematicamente têm sido sujeitas. Em resultado das longas lutas de movimentos de mulheres e de outras instituições que, durante anos, foram reivindicando me­ didas de combate à violência, e também por pressão da comunidade internacio­ nal foram sendo adotadas algumas medidas de combate à(s) violência(s) e criados alguns instrumentos que consideramos positivos de apoio à mulher ví­ tima de violência(s). Entre esses instrumentos destacam­se as várias alterações legislativas, no­ meadamente a Lei n.º 107/99, de 3 de Agosto, o Decreto­Lei n.º 323/2000, de 19 de Dezembro, e depois a Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, que revoga a Lei n.º 107/99, de 3 de Agosto e o De­ creto –Lei n.º 323/2000, de 19 de Dezembro. Estas alterações provocaram con­ sequentes alterações ao Código Penal (a 29.ª alteração ao Código Penal está consignada na Lei n.º 19/2013 de 21 de Fevereiro). No seguimento destes instrumentos, foram sucessivamente implementados os planos nacionais sobre a Igualdade de Género, Cidadania e Não­Discriminação [PNI]; Prevenção e Combate à Violencia Doméstica e de Género [PNPCVDG]; Prevenção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos [PNPCTSH], cujos relatórios de avaliação nos poderão ajudar a compreender a sua eficácia. A 1 de janeiro de 2014, entraram em vigor o V PNI, o V PNPCVDG e o III PNPCTSH). Todos eles re­ levam da responsabilidade da CIG em articulação com ministérios e organizações não governamentais. Uns passos mais avançados, mas ainda tímidos, na análise política do pro­ blema são dados com a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Domestica (Convenção de Istambul), aprovada em 11 de Maio de 2011 e ratificada pelo governo portu­ 1


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

guês, ao reconhecer que a realização de jure e de facto da igualdade entre as mulheres e os homens é um elemento chave na prevenção da violência contra as mulheres; e que a violência contra as mulheres é uma manifestação das rela­ ções de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens, que levou à dominação e discriminação das mulheres pelos homens, privando assim as mu­ lheres do seu pleno progresso. Enfim, podemos dizer que, apesar dos caminhos percorridos e das alterações que foram introduzidas no plano legal e no apoio às vítimas, a verdade é que se mantêm ambiguidades, se não mesmo agravado os problemas ligados às a(s) vio­ lência(s) sobre as mulheres, aparecendo por exemplo algumas “inovações e no­ vidades” das suas manifestações pelo uso das novas tecnologias e redes sociais, e a emergência de comportamentos violentos e de género mais tradicionais, em novos estratos das populações nomeadamente juvenis e mesmo infantis. O contexto político, económico e social dos tempos presentes tem agravado as condições de vida das mulheres à escala nacional e internacional. Tal agrava­ mento e empobrecimento constituem por si só um factor favorável ao alastra­ mento e expansão da(s) violência(s), havendo uma generalizada confirmação desta ideia em vários sectores da população em Portugal e na União Europeia, de que os media têm sido divulgadores neste primeiro triénio de 2014. Dados da Associação de Apoio à Vítima (APAV) indicam que, em 2013, foram registadas, em Portugal, 17.384 denúncias de violência doméstica, mais 414 face ao ano anterior. A 22 de fevereiro, Dia Europeu das Vítimas de Crime, o Ministério da Justiça refere que, durante o ano de 2013, deram entrada na Comissão de Protecção às Vítimas de Crime 135 novos processos de violência doméstica e 122 novos pro­ cessos relativos a vítimas de crimes violentos, num total de 257 novos processos. Revela, ainda, que a violência doméstica foi uma das principais causas de homi­ cídio. Em 150 vítimas, 40 eram mulheres, vítimas de violência doméstica. Se são múltiplas as formas e formatos que dão corpo à violência elas são tam­ bém um real bem feminino. Durante o ano de 2012, no período assegurado pela CIG (dias úteis, das 9 às 17:30), foram atendidas 1955 chamadas telefónicas, sendo que, destas, 1649 cor­ respondiam a situações de violência doméstica (VD). Do universo das chamadas re­ 2


Introdução

lacionadas com VD, 89% referiam­se a vítimas do sexo feminino e as restantes a ví­ timas do sexo masculino (relatório de avaliação intercalar ao IV Plano da VD) Uma em cada três mulheres da União Europeia (UE) foi ou será vítima de pelo menos um episódio de abuso sexual, físico ou psicológico, conclui um estudo da Agência Europeia para os Direitos Fundamentais (FRA). O maior estudo sobre violência de género alguma vez realizado na EU, agora divulgado, revela a persistência do problema e um forte pendor de género: 97% das vítimas de violência sexual, física ou psicológica são mulheres. Os resultados dizem ainda que a violação dentro do casamento não é uma ra­ ridade e que uma em cada cinco grávidas foi violentada pelo parceiro actual. Uma outra novidade da pesquisa é a inclusão de “novas ou recentes” formas de violência de género, que recorrem à tecnologia, concluindo que 11% das in­ quiridas foram alvo de “avanços inapropriados” nas redes sociais e através de mensagens escritas de telemóvel (sms) ou de correio electrónico (emails). As mulheres entre os 18 e os 29 anos são mais vulneráveis, com 20% das jo­ vens a reportarem ciberassédio Por sua vez, no estudo «Mulher­s e desigualdades de género no contexto da crise», realizado ao longo do mês de Fevereiro de 2014, na lista das desigualda­ des de género, a violência surge em terceiro lugar, mas, para as mulheres portu­ guesas, assume um papel de maior destaque: 52 % das inquiridas consideram que esta é a principal desigualdade de género, o valor mais alto de todos os 28 Estados­membros, com a média europeia a situar­se nos 34%. As cidadãs da União Europeia (UE) consideram que o facto de receberem um salário inferior ao dos homens para igual trabalho é a «mais importante» desigualdade de que são alvo, seguindo­se a falta de condições para conciliar a vida pessoal, familiar e profissional. Ambas as questões «pioraram em consequência da crise», cons­ tataram as inquiridas. Estes dados foram divulgados no passado dia 4 de Março, no âmbito de um seminário para jornalistas de toda a UE, sobre igualdade de género e represen­ tação política feminina. A ausência de mulheres em cargos de chefia nas empre­ sas, tráfico de mulheres e prostituição, desigualdade na divisão de tarefas domésticas e familiares, poucas mulheres em cargos de responsabilidade política e a persistência de estereótipos de género são as outras desigualdades de género 3


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

mencionadas pelas inquiridas no estudo realizado pela Unidade de Monitoriza­ ção da Opinião Pública da UE. No que respeita as desigualdades salariais, constata­se que em média, na União europeia, as mulheres trabalham 57 dias de graça para conseguir igualar os homens na folha do ordenado, enquanto que em Portugal elas trabalham 65 dias de graça para atingir o valor médio do homem. Portugal é o país onde a desigualdade de género mais se agravou na UE. Juntamente com Portugal também Irlanda e Espanha registaram uma tendência de agravamento das desigualdades, o que não se desligará das políticas de aus­ teridade e empobrecimento em vigor nestes países. Segundo os resultados do último Eurobarómetro (março de 2014) as dispari­ dades salariais, o desequilíbrio entre a vida profissional e privada e as violências são os aspectos tidos por um conjunto de inquiridos como sendo dos maiores obstáculos à igualdade entre mulheres e homens. A maioria das mulheres (57%) considera a sua resolução a prioridade das prioridades seguindo­se a proteção dos consumidores, as melhorias da saúde pública e a coordenação de políticas económicas, fiscais e orçamentais. O MDM, desde 2005, desenvolve projetos financiados pelos fundos estrutu­ rais da UE, sobre temáticas da(s) violência(s) e igualdade de género. Atualmente, estão em desenvolvimento três projetos: no Porto (Sensibilizar e Prevenir Desi­ gualdades. Agir na minha Escola), em Aveiro (Viver Direitos / Vencer Violências – da escola ao espaço público), em Évora (Criar Mundos de Igualdade. Agir e con­ vergir para mudar) e terminou recentemente o projeto “Tráfico de Mulheres – Romper Silêncios”, que foi desenvolvido em Lisboa e Algarve, todos eles finan­ ciados no âmbito do IV PNI, do IV PNPCVDG e do II PNPCTSH. O conjunto de experiências vivenciadas no desenvolvimento destes projetos, os contributos de parceiros e especialistas, o património de reflexão acumulado traduzir­se­ão no aprofundamento das temáticas, no enriquecimento transversal de problemáticas de índole pessoal, social e política nas quais as mulheres são sujeitos de histórias. Neste Congresso, numa dialética constante entre a lei, as políticas e a realidade, teremos em conta as respostas políticas e as estratégias públicas que têm sido seguidas no combate às violências, para o que se procura manter um olhar crítico e transversal sobre causas e soluções. 4


Introdução

Neste CONGRESSO TEMÁTICO a que chamamos “A multiplicidade da(s) vio­ lência(s) – um real bem feminino”, e com este enquadramento, estarão em aná­ lise múltiplas violências da escola ao espaço público e intrafamiliar que se abatem especialmente sobre as mulheres, sejam a violência no namoro e a vio­ lência doméstica, o tráfico e a prostituição, ou o assédio moral no local de tra­ balho em paralelo com uma gritante onda de violência económica, social e politica que também as impede de sonhar e traçar o seu projecto de vida saudá­ vel e autónomo. Procuramos pois direcionar a nossa reflexão sobre estas temáticas, em dois planos convergentes: Problematizar as práticas e o quadro legislativo e normativo que temos para travar o nosso combate às violências Equacionar qual o papel que cabe às organizações de mulheres no momento presente de crise, empobrecimento, recessão económica e desemprego feminino e juvenil, para um combate feminista em prol da igualdade e dignificação das mulheres e dos seus direitos e aspirações. Aveiro, 14 de março

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A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

Regulamento do Congresso Temático “A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino” Dia 14 de março de 2014 Artigo 1º Funcionamento do Congresso O Congresso funciona sempre em plenário, entre as 9:30 e as 18:30 horas. no Anfiteatro do Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade de Aveiro. Após a sessão de abertura, o Congresso organizar­se em painéis. Cada painel terá uma coordenadora e uma relatora. As relatoras integram a comissão de redação e farão a síntese dos paineis na sessão de encerramento do Congresso. No final de cada painel, haverá um período de debate, podendo intervir as(os) congressistas que sinalizarem essa intenção, levantando o braço. O tempo das intervenções não deverão exceder os 5 minutos, podendo, contudo, a Mesa de­ terminar encurtar esse tempo em função do tempo disponível. Artigo 2º Objetivos do Congresso 1. Aprofundar as múltiplas violências que se abatem especialmente sobre as mu­ lheres. 2. Discutir as respostas políticas e as estratégias públicas que têm sido seguidas no combate às violências – da lei à realidade. 3. Debater o papel que cabe às organizações de mulheres neste combate. Artigo 3º O horário do Congresso 9:30 horas ­ receção das(os) participantes 10:00 horas – sessão de abertura 11:00 horas – Pausa para café 11:15 horas – I painel – Tráfico e prostituição – crime, violência, exploração ex­ trema com rosto feminino. 6


Regulamento

13:00 horas – almoço. 14:30 horas – II Painel ­ Assédio Moral ­ Usos e abusos do poder em tempo de precariedade. 15:30 horas – III Painel ­ Vivências íntimas e sociais desiquilibradas ­ do namoro à violência doméstica, 17:30 horas – Conclusões e encerramento. Artigo 4º Serão elaboradas e publicadas as atas do Congresso, com todas as intervenções e conclusões.

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sessĂŁo de abertura


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino Prof. Doutor Joaquim da Costa Leite Vice­reitor da UA

­ INTERVENÇÃO NA ABERTURA DO CONGRESSO ­ Muito bom dia Eu gostaria de aproveitar esta oportunidade para, em nome do Senhor Reitor da Universidade de Aveiro, dar as boas vindas a todos os presentes, e gostaria de registar o significado do momento em três notas breves. A primeira para, em nome da Universidade, dar as boas vindas a este Congresso do Movimento Democrático de Mulheres cujo tema é “A Multiplicidade da(s) Violência(s) – Um Real Bem Feminino” e, naturalmente, agradecer a escolha da Universidade de Aveiro para a realização deste encontro, agradecendo a todos aqueles que trabalharam para que nós aqui estejamos reunidos. Uma segunda nota para salientar a importância das questões de género no seu sentido mais lato. É sem dúvida reconhecida na Universidade de Aveiro, em vários aspetos, desde logo como tema de ensino e como tema de investigação, mas também, penso que o posso dizer, como campo de comunicação e verificação de boas práticas, com algumas características marcantes. Mencionarei só, a título de exemplo, que se visitarem a página da Universidade de Aveiro e consultarem a lista dos antigos reitores, irão constatar que o atual Reitor foi precedido por duas Reitoras. Suponho que se trata de um caso raro no panorama académico português: a Sra. Professora Isabel Alarcão (Julho de 2001 a Janeiro de 2002); e depois a Sra. Professora Helena Nazaré (Janeiro de 2002 a Fevereiro de 2010), que se mantém na mesma área de atuação, no campo internacional, liderando a European University Association. Uma terceira nota, de referência pessoal. Para alguém da minha geração, há, por um lado, uma satisfação enorme em testemunhar o resultado positivo de uma luta de muitas décadas. Há progressos extraordinários, alguns deles observados, simplesmente, circulando nas ruas, ou vendo alguns filmes. É fácil verificar os progressos verificados, por exemplo no domínio do corpo por parte da mulher, mas também em aspetos mais simples e que me parecem de grande 10


Sessão de Abertura

significado para todos, não apenas para as mulheres, mas também para os homens, que é a liberdade de circulação em espaços públicos. As pessoas mais velhas lembram­se das restrições que havia em relação, por exemplo, ao fumar em público, ao entrar num café, o à­vontade em circular nas ruas, nos transportes públicos, etc. E em relação a isso, de facto, basta ter algum tempo de memória para ter registado progressos extraordinários e que não são apenas marcantes no que respeita ao espaço de liberdade que a mulher conquistou, mas que enriquece toda a forma como nós, homens e mulheres numa sociedade aberta, nos tratamos e nos desenvolvemos. Talvez por isso é que se torna absolutamente surpreendente verificarmos que, a despeito de todos esses progressos de realização social, continuamos a constatar comportamentos que nos deixam atónitos, e a manutenção de valores culturais atávicos, que resistem muito mais do que esperaríamos. É perturbador verificar a realidade da violência que persiste, porque nos revela aspetos negativos da natureza humana, nomeadamente na componente masculina. Essa constatação obriga­nos a ressaltar a importância do tema que está hoje aqui em discussão. É um tema que importa investigar para conhecer; debater para encontrar soluções; e organizar para que sejam implementadas medidas dignas de uma sociedade civilizada. Fica assim salientada a importância que a Universidade de Aveiro reconhece a este tema, e a este Congresso. Por isso concluo: Bem vindos, e bom trabalho!

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A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino Maria Manuela Antunes da Silva Direção Nacional do MDM Comissão Organizadora do Congresso “A multiplicidade da(s) violência(s) – um real bem feminino”

­ INTERVENÇÃO NA ABERTURA DO CONGRESSO ­ Caras(os) Amigas(os) Agradeço, em nome do MDM, a vossa presença e participação, no Congresso Temático “A multiplicidade da(s) violência(s) – um real bem feminino”. Agradeço a participação, nesta sessão de abertura, do Senhor Vice­reitor Prof. Doutor Joaquim da Costa Leite, em representação do Senhor Reitor, e da Profª Doutora Maria Manuel Baptista, diretora do Programa Doutoral em Estudos Cul­ turais da Universidade de Aveiro e Universidade do Minho e docente do Depar­ tamento de Línguas e Culturas, onde o nosso Projeto tem a sua sede. Agradeço ainda a participação nesta sessão de abertura da nossa amiga Dou­ tora Regina Marques, dirigente do Secretariado Nacional do MDM, e sua repre­ sentante em vários organismos, como o Conselho Consultivo das ONGs da CIG e o Conselho Económico e Social, a nível nacional, e, a nível internacional, a Fede­ ração Internacional Democrática de Mulheres (FDIM). Este Congresso é promovido no âmbito do Projeto “Viver Direitos / Vencer Vio­ lências – da escola ao espaço público”, que é um curto projeto, de pouco mais de um ano, onde nos temos esforçado, apesar dos múltiplos problemas, sobretudo financeiros (que exigem de nós a máxima imaginação para fazer muito de muito pouco), por intervir na promoção da igualdade e na prevenção da violência no namoro, estimulando a aprendizagem de competências para relacionamentos in­ terpessoais mais saudáveis; contribuir para o aprofundamento da reflexão espe­ cializada sobre as múltiplas violências que marcam a vida das mulheres; estimular a interdisciplinaridade em abordagens múltiplas do fenómeno das violências que atinge especialmente a população feminina, através de uma dinâmica de rede com agentes da região, que intervêm a nível educativo, social e cultural. Não posso deixar de agradecer especialmente os apoios que temos sentido por parte da Universidade de Aveiro, através da Reitoria, do Departamento de 12


Sessão de Abertura

Línguas e Culturas e do Programa Doutoral, do Gabinete Pedagógico, através da Drª Gracinda Martins, sua coordenadora, do Departamento de Comunicação e Arte, em especial da professora Margarida Almeida. Mas também quero deixar um agradecimento ao Departamento de Educação, aos Serviços de Ação Social, ao Provedor do Estudante, ao GRETUA (teatro ex­ perimental de estudantes da UA), ao Núcleo de Alunos da Educação Básica, aos alunos do Departamento de Comunicação e Arte, com quem estamos a trabalhar diretamente, e que hoje farão aqui uma demonstração desse trabalho. Não poderia também deixar de referir a relação de parceria que mantemos com as escolas e com um grupo de professores do ensino secundário que se dis­ pôs a realizar trabalho, com os alunos, na área da igualdade de género e de com­ bate à violência no namoro, com associações locais, Sindicatos de Professores, União de Sindicatos de Aveiro e o Projeto Meatus, da Caritas Diocesana de Aveiro. A intervenção do MDM ao nível do combate às violências é longa, quase tão longa quanto a sua história, com mais de 40 anos. Contribuimos, sem dúvida, para alertar os poderes públicos para o flagelo das violências. Tivemos ao nosso lado outras instituições e ONGS. Assistimos e acompanhámos os progressos que foram sendo feitos, nomeadamente com a criação de instrumentos legais de apoio às vítimas e prevenção das violências. Salientamos o importante contributo que, a nível internacional, tem sido dado para comprometer os Estados no combate às violências, nomeadamente com a Convenção de Istambul, de 2011, que reconhece a igualdade entre as mulheres e os homens como um elemento chave na prevenção da violência contra as mu­ lheres, mas mantemos a nossa perplexidade e preocupação, ao verificar que há retrocessos nos últimos anos, que não se compaginam com os direitos humanos em geral e com os direitos das mulheres em particular, que tão duramente foram conquistados ao longo do século XX e, em Portugal, após o 25 de abril de 1974. É neste contexto que decidimos realizar este congresso, porque sentimos neces­ sidade de avaliar a evolução da problemática das violências no nosso país, de per­ ceber se é possível estabelecer um nexo causal entre a situação de crise económica e social que estamos a viver, as políticas de austeridade que têm sido desenvolvidas, e o recrudescimento das violências no espaço privado e público; de refletir sobre o papel que pode desempenhar o movimento de mulheres no combate às violências. 13


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

Estes são objetivos deste congresso, que vai desenvolver­se em 3 paineis: Tráfico e prostituição; o assédio moral nos locais de trabalho; a violência no namoro e a violência doméstica. Esperamos encontrar algumas respostas para os questiona­ mentos que se nos colocam neste momento tão difícil para a vida das mulheres. Teremos aqui, hoje, muitos contributos para esta nossa reflexão, quer das in­ tervenções especializadas dos nossos convidados, quer de participantes no debate. Esperamos, sinceramente, que o Congresso “A multiplicidade das violências – um real bem feminino” corresponda às vossas expetativas. Pela nossa parte, é um prazer estar convosco. Aveiro, 14 de março de 2014

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Sessão de Abertura Maria Manuel Baptista Diretora do Programa Doutoral em Estudos Culturais da UA/UM

Género, Feminismo e Pós­feminismo ­ INTERVENÇÃO NA ABERTURA DO CONGRESSO ­ Muito bom dia a todos e todas. Sejam bem­vindos à Universidade de Aveiro, um local que procuramos que seja de acolhimento, como acabou de dizer o Senhor Vice­reitor. Foi também com este espírito que procurámos acolher o projecto do MDM, da melhor maneira que pudemos e soubemos, no nosso Departamento de Línguas e Culturas. Agradeço muito o convite para estar aqui, hoje, a abrir este Congresso. Há muitas razões para um programa doutoral em Estudos Culturais estar ligado a este projecto e estar ligado a esta causa dos Estudos de Género. Em primeiro lugar, quer do ponto de vista epistemológico e científico, quer do ponto de vista académico, os Estudos Culturais ­ de que nós somos o primeiro programa doutoral em Portugal, juntamente com a Universidade do Minho – estudam, de forma central, as questões de género. Ou seja, se há uma temática que podemos considerar como incontornável, embora não seja a única nos Estudos Culturais, é esta e eu vou tentar, aqui, explicar um pouco porquê e fazer o enquadramento teórico, que nos ocupa quando abordamos as questões de Género. Mas antes de chegar à questão teórica, queria dizer­vos que não só a questão de Género para nós é central, mas também a questão da Violência, que é uma temática transversal dos Estudos Culturais e, portanto, dentro do nosso programa doutoral. Este projecto junta Género e Violência, por isso não poderia estar mais no centro das nossas preocupações e das nossas actividades. Para terem uma ideia, o programa funciona há quatro anos e temos sensivelmente 30 alunos por ano, metade dos quais são internacionais. Mais concretamente, uma boa parte dos nossos investigadores são oriundos da CPLP, do Brasil, de Moçambique, Angola, Cabo Verde, etc. Aí as questões de género colocam­se ainda com maior acuidade, sobretudo em África, onde praticamente está tudo por fazer, como bem sabemos. Não admira por isso que tenha sido acabada de criar, como uma spin­off do próprio programa doutoral em Estudos Culturais, uma Associação de Combate à Violência. Trata­se de uma ONG que integra alunos e docentes, alguns dos quais 15


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também estão presentes aqui e pertencem ao MDM. Esta ONG chama­se IRENNE, que significa paz, em grego, e é a primeira de um conjunto de Associações, Cooperativas e Empresas Sociais, enfim, de um empreendedorismo social que gostaríamos de dinamizar a partir do programa doutoral em Estudos Culturais. Nós não estamos à espera que o Estado nos venha financiar directamente, nem estamos à espera que as Câmaras Municipais nos venham chamar para desenvolver projectos; nós vamos de facto fazê­los e vamos ajudar a construir uma maior sensibilidade à questão da responsabilidade social e do empreendedorismo social, através da cultura, obviar claramente a questões de género, e a questões de violência, que são para nós centrais. Deixando agora um ponto de vista institucional e procurando centrar­me numa perspectiva mais teórica, a pergunta que hoje há a fazer é a que muitos de nós já ouvimos em muitos fóruns e em muitos meios de comunicação e que é a seguinte: faz ainda hoje sentido, no século XXI, ser feminista em Portugal? É muito curioso que, quando assistimos em Portugal a um debate em torno das questões de género, homens e mulheres, qualquer que seja a sua inserção política ou social, é muito comum começarem por dizer: ‘eu não sou feminista, mas...’. Isto é muitíssimo interessante e serve para nos interrogarmos: esta pessoa que afirma não ser feminista por que está na causa feminista há 20, 30, 40 anos? Que lugar é este da cultura portuguesa, que sinaliza um certo desconforto face à palavra “feminista”? Quando ouvimos com atenção os discursos e os analisamos mais profundamente de um ponto de vista crítico, torna­se claro que este “não sou feminista”, em Portugal, parece querer dizer: “eu não vou para a rua queimar soutiens”! Com efeito o que as pessoas dizem é que ‘eu não sou feminista, mas, ainda assim, não posso deixar de reconhecer e implicar­me ao saber que as mulheres são maltratadas’’. E isto é uma coisa que me coloca algumas interrogações e nos coloca a nós, no programa doutoral dos Estudos Culturais: o que é que isto quer de facto dizer? A segunda questão, que nos preocupa, e que nos ocupa, é uma outra que remete para uma segunda perplexidade: é este um assunto de mulheres? É este um assunto que só deve preocupar as mulheres? Ou ainda uma outra: as questões de género são questões só sobre mulheres? É muito em torno destas três questões que o programa doutoral em Estudos Culturais tem promovido investigação nesta área. O feminismo, para nós na área dos 16


Sessão de Abertura

Estudos Culturais, começa normalmente por ser sinalizado com Simone de Beauvoir, que todos nós conhecemos. A Simone de Beauvoir, que nos vem de um contexto filosófico do existencialismo, vem chamar a atenção para os direitos da mulher, para o outro que a mulher é. Estas questões estão, com efeito, na base dos Estudos Culturais, que nascem nos anos 60, em Birmingham e que, no primeiro momento, procuram estudar quer a cultura das minorias marginalizadas e desinteressantes para as ciências humanas e socias clássicas, quer as culturas massificadas. Curiosamente, os Estudos Culturais serão rapidamente desafiados por este primeiro feminismo, que vem através da Simone de Beauvoir, e que instiga a pensar mais longe, ou seja, os Estudos Culturais ainda em formação foram profundamente desestruturados pelos Estudos Feministas. E isto é de tal importância que sempre que os Estudos Feministas ou de Género avançam, os Estudos Culturais não podem deixar de reflectir essas mudanças. Este desafio que tem sido constante no tempo, e que é simultaneamente um processo muito instabilizante, é muito criativo porque nos obriga a pensar tudo de novo. Vou dar­vos um exemplo, entre muitos outros: os Estudos Pós­coloniais (outra das temáticas dos Estudos Culturais) nascem na sequência dos Estudos Feministas. Mas não só: os próprios estudos sobre o Poder, que nos vêm dos actuais estudos de Género (na sequência e ultrapassando a própria Simone de Beauvoir) têm tido um impacto significativo nos Estudos Culturais. Neste âmbito as questões que hoje se nos colocam a partir dos estudos de Género passam pela investigação não só do Poder, mas também dos Sistemas do Poder, que de alguma maneira produzem homens e mulheres, tais como nós os conhecemos, em que o homem, obviamente, é reconhecido como uma figura dominante, e a mulher o outro do homem. Chamo­vos igualmente a atenção para as questões do micro­poder. As questões macro são as questões mais visíveis, são as questões mais de situação, de produção também de corpos, de normas das sociedades. Mas também existe o micro­poder, que se relaciona com aquilo que hoje de uma forma mais corrente designamos por violência doméstica, tudo aquilo que se passa ao nível da intimidade das pessoas, que é micro e, como o micro, é mais difícil de detectar e analisar. Para nós, nos Estudos Culturais, as questões de Género não interessam apenas às mulheres. As questões de género interessam às mulheres, interessam aos 17


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homens, interessam a todos os seres humanos. Mais: talvez valesse a pena, como dizia o meu Vice­reitor, aqui à chegada, ‘eu venho como um homem de boa­ vontade”, pensarmo­nos como seres humanos, em primeiro lugar, antes de nos pensarmos enquanto homens e mulheres. Reconheço, no entanto, que existe uma tensão muito grande dentro dos Estudos Feministas, do ponto de vista teórico e do ponto de vista prático: por um lado, teoricamente, já não basta dizer que eu continuo a ser feminista, porque a ideia é implodir o género e passa a falar em seres humanos; mas, por outro lado, temos de continuar a ser feministas. Temos que ter as duas valências, ou antes temos de ser simultaneamente pós­feministas e continuar a ser activamente feministas, como se partes do século XXI também fossem ainda século XX, XIX, século XVIII…. Já vos disse que nós temos bem a noção, por exemplo, do que se passa em África (também na que fala português), onde há dificuldades de género fortíssimas, com profundas causas e consequências culturais, sociais, económicas e políticas, Portanto, temos boas razões para continuarmos a ser feministas. Mas também temos que ser pós­feministas, olhando as questões de género para além do feminismo. É que, de facto, as questões de género não são questões de natureza, nem biológica, nem sexual, genital ou psicológica. Aquilo a que os Estudos Culturais chegam hoje como sendo a contribuição teórica mais interessante vem­nos de Judith Butler, cuja obra não está sequer traduzida em português, e que introduz a ideia de “Undoing Gender”, ou seja, a necessidade de ‘desfazer o Género’. O repto é o seguinte: importa não pensar mais o Género e a sexualidade como sendo um elemento da natureza, a qual nos imporia imediatamente um tipo de conduta, de forma de estar, de ser, de sentir… E quando lemos Judith Butler, que chama a atenção, quer para a nossa realidade social e cultural, quer mais especificamente para a linguística ­ imaginem que até a linguística é para aqui chamada (como muito bem sabe, aqui, a senhora doutora Regina aqui presente) – deparamo­nos com este desafio: e se pensássemos o género e a sexualidade como performatividade? Bom, podem­me dizer, ‘isso é muito bonito, mas as mulheres continuam a ser submetidas e mortas’. E isso é verdade. Por essa razão, temos de ser sempre feministas, anti­feministas, pós­feministas. Aliás, como diz a própria Judith Butler, 18


Sessão de Abertura

quando lhe perguntam se ela já não é feminista, ela responde: ‘claro, sou, continuo a ser: sou feminista e anti­feminista e pós­feminista’. Mas como implodir o género? Como é possível pensar, sem ser a partir da questão de género? Eu vou dar­vos aqui uma pequena nota, a partir daquilo que o Facebook já publica (não ainda em Portugal…). Às vezes a realidade vai mais longe, vai à frente da própria teoria e da própria possibilidade do conhecimento teórico e da imaginação. Na edição desta semana da revista “Visão” pode ler­se o seguinte título: ‘O Facebook sem limite de identidade?’ E o texto inicia­se do seguinte modo: ‘hoje nos Estados Unidos, se for utilizador do Facebook tem mais de 50 opções para customizar o seu próprio género’. Ou seja, para além de no Facebook cada um poder dizer se é homem ou mulher, há já 50 possibilidades entre o ser homem e o ser mulher. Por exemplo, eu posso escolher agénero, ou seja sem género, não me identificando com as identidades existentes. Há ainda o andrógino, pessoa com qualidades masculinas e femininas; cisgénero, identidade de género associado ao sexo biológico, havendo o Cis feminino e o Cis masculino; o FTM, feminino para o masculino; MFT masculino para o feminino; género fluído, pessoa que concebe o seu género como dinâmico ou alvo de flutuações, consoante o que sente a cada momento; género em questão, não se definiu ainda em relação ao género ou identidade de género e/ou está a equacionar formas de expressá­lo; o intersexo, alguém cuja constituição sexual, perfil hormonal e anatómico não encaixa no corpo tipicamente feminino ou masculino; pangénero, transgénero, two­spirit… Não vou aqui referir os 50. Isto que pode trazer alguma confusão ao senso­ comum, mas significa, no mínimo, que o género não é uma coisa que esteja inscrita na natureza, e que podemos mesmo implodi­lo. Esto é uma forma de o implodir e de pensar o problema de género a partir de um outro lugar. Compreendo que este registo possa ser uma conversa muito pós­moderna, que não serve para quem ainda não saiu sequer da época medieval e é vítima de violências e preconceitos ancestrais. Mas a nossa contemporaneidade obriga­ nos a dar três passos à frente e outros tantos atrás. É que nenhuma destas histórias terminou ainda, e não são só as mulheres que são vítimas de violência. Por exemplo, nós, a partir dos Estudos Culturais, estudamos também a violência 19


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

de Género relacionada com a homossexualidade. Veja­se que, por exemplo, em Africa, só há três ou quatro países que não têm a homossexualidade descriminalizada, e isto também é violência de Género. Em suma, quando começamos a olhar para as questões de Género e para as questões da violência, começamos a ver aqui um conjunto muito grande de problemas: muitas histórias, muitos tempos que decorrem paralelamente e todas estas histórias são contemporâneas umas das outras, todas elas se interligam e é por isso que nós, nos Estudos Culturais, falamos em bio­poder e bio­tecnologia do corpo. Não vou entrar hoje por aí, quero apenas desejar­vos um bom trabalho, e sublinhar que, pela nossa parte faremos tudo para que o programa doutoral de Estudos Culturais dissemine esta ideia de que os Estudos de Género não levantam apenas questões sobre mulheres (embora tendo ainda como preocupação incontornável a situação das mulheres) e, sobretudo, que o Género não é um tema que interessa a todos e não apenas às mulheres.

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Sessão de Abertura

Regina Marques Secretariado Nacional do MDM

A Urgência de quebrar a re­vitimização ­ INTERVENÇÃO NA ABERTURA DO CONGRESSO ­

Neste CONGRESSO TEMÁTICO a que chamamos “A multiplicidade da(s) violên­ cia(s) – um real bem feminino”, estarão em análise múltiplas violências que se abatem especialmente sobre as mulheres, sejam a violência no namoro e a vio­ lência doméstica, o tráfico e a prostituição, ou o assédio moral no local de trabalho. Desta complexidade, procuraremos traçar qual o nosso papel e a nossa proposta no quadro atual que, para além dos números de mortes, de queixas à PSP/GNR que não param de aumentar, nos parece ter novas dimensões, novos contornos. O MDM, movimento inserido na trama social e política da movimentação das mulheres no nosso país, deu início a esta discussão pública, em tempos em que pouco se ouvia falar de violência doméstica e sobretudo mal se conhecia como fenómeno social de estudo com interesse académico. O tribunal de opinião con­ tra a violência organizado pelo MDM, numa verdadeira sala de audiência no CEJ, em Lisboa, ainda nos anos 80, na encenação criada para o efeito, condenava a violência sobre as mulheres, absolvia então a vítima, dava uma forte reprimenda ao agressor, ao mesmo tempo que fazia acusação pública à sociedade, sempre pronta a culpabilizar as mulheres pela sua determinação e audácia, violava prin­ cípios da igualdade entre mulheres e homens, não assegurando a garantia dos direitos à igualdade na família, na vida social e no trabalho. Uma organização como o MDM tem um papel que não é comparável ao das instituições públicas ou privadas com responsabilidades na assistência e trata­ mento do crime enquanto tal. A sua responsabilidade é no âmbito da intervenção social e politica, com vista à melhoria das condições de vida das mulheres que são afetadas pelas violências, tendo em conta que a violência é fruto do estatuto condicionado e injusto de que gozam as mulheres em geral, na sociedade dos nossos dias. Parece­nos de sublinhar que, em resultado das longas lutas de movimentos de mulheres e de outras instituições, que durante anos foram reivindicando me­ didas de combate à violência, e também por pressão da comunidade internacio­ 21


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

nal, foram sendo adotadas algumas medidas de combate à(s) violência(s) e cria­ dos alguns instrumentos que consideramos positivos de apoio à mulher vítima de violência(s). Entre esses instrumentos destacam­se as várias alterações legislativas, no­ meadamente a Lei n.º 107/99, de 3 de agosto, o Decreto­Lei n.º 323/2000, de 19 de dezembro, e depois a Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, que revoga a Lei n.º 107/99, de 3 de agosto e o De­ creto–Lei n.º 323/2000, de 19 de dezembro. Estas alterações provocaram con­ sequentes alterações ao Código Penal (a 29.ª alteração ao Código Penal está consignada na Lei n.º 19/2013 de 21 de fevereiro). No seguimento destes instrumentos, foram sucessivamente implementados os planos nacionais, pelos sucessivos governos, no âmbito dos quais temos tam­ bém desenvolvido uma vasta atividade. Uns passos mais avançados juridicamente, mas ainda tímidos na análise po­ lítica do problema, são dados com a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica (Convenção de Istambul), aprovada em 11 de maio de 2011 e ratificada pelo go­ verno português. Esta Convenção reconhece que a realização de jure e de facto da igualdade entre as mulheres e os homens é um elemento chave na prevenção da violência contra as mulheres, e que a violência contra as mulheres é uma ma­ nifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e ho­ mens, que levou à dominação e discriminação das mulheres pelos homens, privando assim as mulheres do seu pleno progresso. Enfim, em nosso entender, apesar dos caminhos percorridos e das alterações, que foram introduzidas no plano legal e no apoio às vítimas, a verdade é que se mantêm ambiguidades, novas vitimizações, e mesmo agravado os problemas li­ gados às violência(s) sobre as mulheres, aparecendo, por exemplo, algumas “ino­ vações e novidades” das suas manifestações pela situação de empobrecimento e de austeridade, pelo uso das novas tecnologias e redes sociais, com a emer­ gência de comportamentos violentos e de género mais tradicionais, em novos estratos das populações nomeadamente juvenis e mesmo infantis. No último ano, a situação agravou­se de facto. Vejamos alguns dados: 22


Sessão de Abertura

Os números da Associação de Apoio à Vítima (APAV) indicam que, em 2013, foram registadas, em Portugal, 17.384 denúncias de violência doméstica, mais 414 face ao ano anterior. A 22 de fevereiro deste ano, Dia Europeu das Vítimas de Crime, o Ministério da Justiça referia que, durante o ano de 2013, deram entrada na Comissão de Proteção às Vítimas de Crime 135 novos processos de violência doméstica e 122 novos processos relativos a vítimas de crimes violentos, num total de 257 novos processos. Revela, ainda, que a violência doméstica foi uma das principais cau­ sas de homicídio. Em 150 vítimas de homicídio, 40 eram mulheres vítimas de violência doméstica. Durante o ano de 2012, no período assegurado pela CIG (dias úteis, das 9 às 17:30), foram atendidas 1955 chamadas telefónicas, sendo que, destas, 1649 correspondiam a situações de violência doméstica (VD). Do universo das chama­ das relacionadas com VD, 89% referiam­se a vítimas do sexo feminino. Uma em cada três mulheres da União Europeia (UE) foi ou será vítima de pelo menos um episódio de abuso sexual, físico ou psicológico, conclui um estudo da Agência Europeia para os Direitos Fundamentais (FRA). O maior estudo sobre violência de género alguma vez realizado na EU, agora divulgado, revela a persistência do problema e um forte pendor de género: 97% das vítimas de violência sexual, física ou psicológica são mulheres. Os resultados dizem ainda que a violação dentro do casamento não é uma ra­ ridade e que uma em cada cinco grávidas foi violentada pelo parceiro atual. Uma outra novidade da pesquisa é a inclusão de “novas ou recentes” formas de violência de género, que recorrem à tecnologia, concluindo que 11% das in­ quiridas foram alvo de “avanços inapropriados” nas redes sociais e através de mensagens escritas de telemóvel (sms) ou de correio eletrónico (emails). As mulheres entre os 18 e os 29 anos são mais vulneráveis, com 20% das jo­ vens a reportarem ciberassédio. O Relatório da deputada búlgara Antonya Parvanova, aprovado na Comissão dos Direitos da Mulher do PE, em 9 de janeiro de 2014, e apresentado ao PE em 31 de janeiro, constata uma manifesta insuficiência de dados disponíveis sobre a violência contra as mulheres, recolhidos de forma sistemática. A maioria dos casos de violência doméstica e de abuso sexual não é denunciada, o que dificulta 23


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

a sua verdadeira avaliação. Constata, por outro lado, que o PE desde 2010 tem instado várias vezes, ano a ano, mas sem êxito, a Comissão a criar diretivas e a apresentar uma estratégia à escala da EU, tendente a pôr fim à violência contra as mulheres. Sublinha a dimensão transfronteiriça da violência, sobretudo rela­ cionada com a livre circulação de pessoas, o tráfico para fins laborais e prostitui­ ção, que exige uma abordagem da EU e uma assunção de medidas de proteção às potenciais vítimas, mas também medidas de apoio aos estados na prevenção e legislação penal de forma harmonizada. Não deixa de ter muito interesse para a nossa reflexão a exposição de motivos que nos apresenta o relatório, tais como: ­ A violência contra as mulheres representa uma violação persistente dos direitos humanos e é uma forma de discriminação baseada no género; ­ Trata­se da causa fundamental da desigualdade entre homens e mulheres, uma vez que é um obstáculo à plena participação das mulheres na vida económica, social política e cultural; ­ As mulheres que sofrem de violência enfrentam traumas psicológicos e físicos, a longo prazo; ­ Além disso, esta forma de violência implica encargos económicos consideráveis, nomeadamente, ao nível dos custos com os cui­ dados de saúde, as despesas nos domínios legal e policial, a perda de pro­ dutividade e de salários. Cerca de 20 a 25% das mulheres da Europa foram vítimas de atos de violência física, pelo menos uma vez durante a vida adulta, e mais de 10 % sofreram vio­ lência sexual com recurso à força. A percentagem de mulheres que sofreram al­ guma forma de violência ascende a 45%. Estima­se que 12 a 15% das mulheres na Europa sejam vítimas de violência doméstica e que todos os dias morram sete mulheres na União Europeia vítimas destes atos (PE 504.467). Como resultado dos cortes orçamentais decorrentes da crise económica, o argumento mais utilizado é que os países não podem atribuir mais recursos à luta contra a violência baseada no género e à sua prevenção. De acordo com os estudos realizados, estima­se que o custo económico da violência perpetrada contra as mulheres, na UE em 2011, seja de 228 mil milhões de euros por ano, dos quais 45 mil milhões de euros são despendidos em serviços, 24 mil milhões de euros em perdas económicas e 159 mil milhões de euros em dor e sofrimento. 24


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Assim sendo, os custos das medidas preventivas são substancialmente inferiores ao custo da violência (PE 504.467). Em Portugal, a questão financeira tem também prevalência, tanto mais que, de facto, será a questão financeira que mais retrai as mulheres de assumirem com independência o afastamento do agressor. Dados da Comissão de Proteção às Vítimas de Crime (CPVC), fornecidos pelo Ministério da Justiça no Dia Europeu da Vítima de Crime (22 fevereiro 2014) mostram que, em 2013, o Estado apoiou 137 vítimas de crimes com uma verba próxima dos 1.059.600 euros, distribuídas por 74 vítimas de violência doméstica e 63 vítimas de crimes violentos. O valor médio do apoio prestado às vítimas de violência doméstica foi de cerca de 2.400 euros, ou seja, 400 euros por mês, durante um período de seis meses. Comparando com o ano de 2012, isso significa que houve um aumento de quase 87%, depois de nesse ano terem sido pagos mais de 95 mil euros em in­ demnizações. No que diz respeito às vítimas de crime violento, “a predominância dos crimes em que as vítimas foram apoiadas foram os homicídios, os homicídios tentados e as ofensas à integridade física grave, particularmente aos filhos de vítimas de violência doméstica, cujas mães foram assassinadas e os pais, ou se suicidaram de seguida ou foram detidos e condenados a pesadas penas de prisão. Em rela­ ção a estes, a Comissão de Proteção às Vítimas de Crime apoiou 63 pessoas, com uma média de indemnizações de 14 mil euros, o que dá um total de cerca de 882 mil euros. Este valor representa uma diminuição de mais de 20 mil euros em relação a 2012, já que, nesse ano, a Comissão pagou mais de 902 mil euros a vítimas de crimes violentos. Se são múltiplas as formas e formatos que dão corpo à violência e se as saí­ das são bem precárias, as violências são de facto um real bem feminino. Como dissemos, o contexto político, económico e social dos tempos presen­ tes têm agravado as condições de vida das mulheres à escala nacional e interna­ cional. Tal agravamento e empobrecimento constituem por si só um fator favorável ao alastramento e expansão da(s) violência(s), havendo uma genera­ lizada confirmação desta ideia em vários setores da população em Portugal e na União Europeia, de que os media têm sido divulgadores neste primeiro triénio de 2014. 25


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

No estudo «Mulheres e desigualdades de género no contexto da crise», reali­ zado ao longo do mês de fevereiro de 2014, na lista das desigualdades de género, a violência surge em terceiro lugar, mas, para as mulheres portuguesas, assume um papel de maior destaque: 52 % das inquiridas consideram que esta é a prin­ cipal desigualdade de género, o valor mais alto de todos os 28 Estados­membros, com a média europeia a situar­se nos 34%. As cidadãs da União Europeia (UE) consideram que o facto de receberem um salário inferior ao dos homens para igual trabalho é a «mais importante» desigualdade de que são alvo, seguindo­se a falta de condições para conciliar a vida pessoal, familiar e profissional. Ambas as questões «pioraram em consequência da crise», constataram as inquiridas. Estes dados foram divulgados no passado dia 4 de março, no âmbito de um seminário para jornalistas de toda a UE, sobre igualdade de género e represen­ tação política feminina. A ausência de mulheres em cargos de chefia nas empre­ sas, tráfico de mulheres e prostituição, desigualdade na divisão de tarefas domésticas e familiares, poucas mulheres em cargos de responsabilidade política e a persistência de estereótipos de género são as outras desigualdades de género mencionadas pelas inquiridas no estudo realizado pela Unidade de Monitoriza­ ção da Opinião Pública da UE. No que respeita as desigualdades salariais, constata­se que em média, na União europeia, as mulheres trabalham mais 57 dias para conseguir igualar os homens na folha do ordenado, enquanto que em Portugal elas trabalham 65 dias de graça para atingir o valor médio do homem. Portugal é o país onde a desigualdade de género mais se agravou na UE. Juntamente com Portugal também Irlanda e Espanha registaram uma tendência de agravamento das desigualdades, o que não se desligará das políticas de aus­ teridade e empobrecimento em vigor nestes países. Segundo os resultados do último Eurobarómetro (março de 2014) as dispari­ dades salariais, o desequilíbrio entre a vida profissional e privada e as violências são os aspetos tidos por um conjunto de inquiridos como sendo dos maiores obstáculos à igualdade entre mulheres e homens. A maioria das mulheres (57%) considera a sua resolução a prioridade das prioridades seguindo­se a proteção dos consumidores, as melhorias da saúde pública e a coordenação de políticas económicas, fiscais e orçamentais. Sem dúvida que, com a crescente feminização 26


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da pobreza, baixos salários, precariedade laboral, as mulheres maltratadas são cada vez mais vulneráveis. Com este enquadramento, procuramos direcionar a nossa reflexão sobre estas temáticas, as múltiplas violências ­ da escola ao espaço público e intrafamiliar que se abatem especialmente sobre as mulheres, sejam a violência no namoro e a vio­ lência doméstica, o tráfico e a prostituição, ou o assédio moral no local de trabalho, em paralelo com uma gritante onda de violência económica, social e política que também as impede de sonhar e traçar o seu projeto de vida saudável e autónomo. Considerando esses dois planos convergentes, importa­nos: ­ Problematizar as práticas e o quadro legislativo e normativo que temos para travar o nosso combate às violências; ­ Equacionar o papel que cabe às organizações de mulheres no momento pre­ sente de crise, empobrecimento, recessão económica e desemprego feminino e juvenil, para um combate feminista, politicamente comprometido, em prol da igualdade e dignificação das mulheres e dos seus direitos e aspirações. Dito de outro modo: importa­nos questionar as políticas da violência versus a violência das politicas, responsáveis pela sujeição das mulheres, da maioria das mulheres das camadas mais vulneráveis, a uma vida de martírio e sofrimento, desperdiçando o seu potencial simbólico de trabalho e de geração de riqueza. A prevalência tão significativa da violência na família constitui um sério pro­ blema de saúde pública, um obstáculo oculto para o desenvolvimento social e económico. Para além de cicatrizes, de hematomas, fraturas, dentes partidos, perda de capacidade auditiva, desprendimento da retina, doenças de transmissão sexual, abortos e inclusivé mortes, as mulheres vítimas de violência psíquica e hu­ milhações podem passar a sofrer de forma crónica as ansiedades, os medos, a angústia, a depressão, a hipertensão, a diabetes, asma ou a obesidade. Frequen­ temente, sofrem de prolongadas dores de cabeça, transtornos sexuais, insónias. Tudo isto, com reflexos no seu comportamento, produtividade no trabalho, na sua capacidade para se proteger e/ou para buscar ajuda e denunciar o seu caso. A violência doméstica contra as mulheres tem também um alto custo social e económico para o Estado e a sociedade, e pode transformar­se numa barreira para ao desenvolvimento pessoal e socioeconómico. Alguns estudos estimam que o abuso sexual e os maus­tratos físicos diminuem a possibilidade de acesso ao tra­ 27


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

balho das mulheres em cerca de 3% e diminuem à volta de 20% o seu sucesso educacional e na sua saúde, o que se repercute também na sua atividade laboral. Nas economias de mercado, onde o corpo da mulher é cada vez mais objeto de marketing e mercadoria publicitária, para as mulheres de 15 a 44 anos, a vio­ lência dentro da família representa quase um ano de vida perdido por cada cinco anos de vida saudável. Muitas das manifestações da violência são de facto formas de tortura, de en­ carceramento, de terrorismo sexual ou de escravidão. Muitas vezes, esta violên­ cia na família e/ou no trabalho sob a forma de assédio é cercada de invisibilidade. A institucionalização, muitas vezes vista como a alternativa para a mulher sair de casa e beneficiar de um apoio, também contribui para o reforço dessa invisi­ bilisação, porque constrange os contatos, obriga­a a manter­se desconhecida, sempre na sombra e dos não­ditos. Daí um passo para a estigmatização, a soli­ dão, o infernal ciclo de subordinação e alienação. Ciclo que urge romper. A violência doméstica exige uma intervenção concertada e permanente por parte dos vários organismos do Estado e das instituições que atuam nesta pro­ blemática, reconhecida hoje como crime público. As associações de apoio social e moral às vítimas têm aumentado, consti­ tuindo hoje um sinal positivo da consciência coletiva das comunidades relativa­ mente à necessidade de combate a este flagelo. Também cresce a sensibilidade de que a violência doméstica tem vários precedentes conflituosos e de desres­ peito, que se esboçam na fase de namoro, sustentadas em relações sociais assi­ métricas de classe e de género. A violência aparece­nos como uma relação de supremacia, desrespeito e abuso de poder do homem sobre a mulher, sendo as mulheres, as idosas, as imi­ grantes, as pessoas com orientação sexual diferente, as mais sacrificadas e ofen­ didas, na sua integridade física, psicológica ou moral. Defendemos que, nos comportamentos violentos há sempre algo da perso­ nalidade que se estilhaça mas que, pode ser restaurado. Dos estilhaços há sem­ pre algo que se perde mas muitos podem ser recompostos e reconfigurados. Há algo que se apaga inelutavelmente mas pode ser recriado pela palavra repara­ dora e pela ação ligada ao pensamento e à razão, com a adequada materialização dos suportes materiais e económicos . 28


Sessão de Abertura

Nesta linha, e num plano mais individual, mas que se repercute no grupal, cremos que é possível restabelecer mundos de igualdade. Mundos que todos temos em nós cruzados com o meio social e de trabalho, que nos circunda e com a história que percorremos. O Mundo pessoal, o íntimo, o social, o económico, o politico nem sempre estão soldados e unidos, mas são parte integrante do nosso mundo. Entre si manifestam­se contradições, às vezes insuperáveis, que são a tónica das nossas fragilidades e dificuldades, ao mesmo tempo que são di­ ferenciadores da nossa personalidade e estilo. Através da sensibilização e discussão com as próprias vítimas e instituições, sobre os direitos e causas deste enorme e complexo problema, se acrescenta uma dimensão que pode ser um traço diferenciador para as organizações de mulheres, e que a nós nos muito interessa. Podemos ser portadoras dessa pala­ vra reparadora em torno da luta emancipadora das mulheres, pondo o seu cerne nos direitos das mulheres, como sujeitos da história, na recusa das versões fa­ milialistas que fazem hoje muito caminho no discurso dominante. (Veja­se a pu­ blicidade paga pelas instâncias oficiais, que ligam sempre toda a ação das mulheres vítimas à sua relação indiscutível com os filhos, colocando unicamente na esfera privada a responsabilização e/ou alteração das atitudes e comporta­ mentos. É nessa esfera que se propõem a maioria das medidas de apoio que, em muitos casos, se tornam ciclos de revitimização, porque fazem recair sobre a própria o peso das reincidências e das impossibilidades. Com esse mesmo sentido, a Convenção de Istambul (Istambul, 11.05.2011) sobreleva no seu artigo 12º o determinismo das mudanças de comportamentos de ordem cultural ou tradicional… desculpabilizando em certa medida as politicas publicas (de proteção social, emprego, reinserção social) num ambiente em que, por exemplo, os mais de metade dos desempregados (mais de 400 000) não têm qualquer subsidio ou apoio. Cito o artigo “As Partes (Estados) tomarão as medi­ das necessárias para promover as mudanças nos padrões de comportamento so­ cioculturais das mulheres e dos homens, tendo em vista erradicar os preconceitos, os costumes, as tradições e qualquer outra prática baseados na ideia da inferio­ ridade das mulheres ou nos papéis estereotipados das mulheres e dos homens”. Como fazer para romper o cerco do individualismo e do desanimo? Não há soluções lineares… 29


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

A reflexão em torno da igualdade de direitos e de combate às discriminações, aliada à descoberta pessoal do seu valor intrínseco, da sua história, do seu papel, é mesmo em nossa opinião, o melhor contributo para que as vítimas rompam o cerco da revitimização e se assumam como sujeitos de direito e de luta, capazes de reivindicar apoios, porque a eles têm direitos. No fundo, o nosso contributo para esta causa na luta contra a violência do­ méstica – seja no namoro, seja na família – tem que ser uma luta pelo direito à integridade física e psicológica, a par do direito ao trabalho, e ao emprego, o di­ reitos à saúde em todas as suas dimensões, desde logo a saúde da mulher, da prevenção primária à terciária, o direito à escolaridade e formação, contra todas as formas de humilhação e subalternidade, uma luta pelo direito à decisão sobre si, uma luta contra a opressão da sociedade e naturalmente de uns sobre os ou­ tros, pelo reconhecimento de ser uma pessoa com direitos e dignidade, nomea­ damente o de participar na vida ativa do país pela sua transformação social, onde se reconheça que a justiça social e a igualdade entre mulheres e homens é um bem que a todos diz respeito e respeita. Como se diz muitas vezes, continua a existir enorme distância entre as pala­ vras ditas e escritas e a realidade crua da vida, ou entre a lei e a vida. Persistem muitas lacunas na lei e na prática da assistência, nomeadamente no acesso a apoio judiciário face à urgência na intervenção, mas também de ou­ tros organismos públicos. São lacunas relacionadas com o suporte financeiro da vítima, com o tempo de espera da Segurança Social, entidade responsável pela concessão de vários apoios, mas também, e fundamentalmente, relacionadas com a inserção social e no em­ prego. A formação profissional com vista a uma reabilitação de capacidades e des­ coberta ou redescoberta de potencialidades é um elemento que pode gerar nas mulheres sofridas, sentimentos de confiança, autoestima e reconhecimento, mas não é o único apoio possível nem o remédio para todos os males. A fragilidade e vulnerabilidade da situação de cada uma das mulheres e do próprio ambiente que as rodeia, exigem ações conetadas e múltiplas, não sendo indiferente para a solução o estatuto social e financeiro de cada uma das pessoas envolvidas. Mulheres pobres, trabalhadoras, desempregadas, sem independên­ cia económica, estão naturalmente mais débeis e vulneráveis para encontrarem saídas do que aquelas que têm autonomia financeira. 30


Sessão de Abertura

Velhas e novas questões obrigam­nos a tematizar a violência, a prostituição e o tráfico de mulheres e crianças, ou o assédio moral e sexual, como efeitos com­ plexos mas óbvios de politicas, de politicas geradoras de abissais desigualdades, centradas em estratégias de dominação e subordinação, responsáveis pela cons­ trução e disseminação de valores. Valores oriundos da Europa de que Portugal é parte integrante e corresponsável, e que, de forma massiva, homogénea, glo­ balizada e acrítica, nos são dados pelos media, tanto na informação como na programação, e também no marketing e publicidade, cujos modelos centrados nas emoções e afetos inspiram hoje o conjunto de instrumentos mediáticos, que de forma homogénea inspiram a vida das pessoas. A comunicação pública e política dos tempos em que vivemos valoriza o indi­ vidualismo, o efémero, o insólito, o artificial e o acessório, o lado sensorial e sen­ sitivo do que se mostra. E mostra­nos sempre corpos. Em geral, um corpo erotizado e não fonte de afetos e de relação. Mostra­nos um corpo de mulher despojado de relações com o social ou o profissional, que são as vertentes ne­ cessárias para a fundação de um sujeito emancipado. Enfim, no discurso mediático publicitário que nos invade não é valorizada a dife­ rença de opinião, a singularidade dos sujeitos individuais ou coletivos. Fala da me­ mória e da história, não como processos construídos pela luta individual e coletiva alicerçada na esperança e convicção de mudanças, no sonho sempre presente de obter melhorias e projetos de sociedade, mas como somatórios de indivíduos de carácter e talento raros e quiçá iluminados, que se oferecem como modelos para serem imitados, sem que se gaste muito tempo a serem compreendidos. Enfim, espera­se que a degradação social e económica das famílias e o seu generalizado empobrecimento não aumente a penalização das mulheres, não aumente sobretudo a penalização e o castigo múltiplo das múltiplas violências daquelas que, nas palavras de Maria Lamas, são “as vítimas milenares de sacri­ fícios milenares”. Este é o nosso sonho tornado projeto. Aveiro 14 março 2014

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Painel I


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

PAINEL I – Sandra Benfica Secretariado Nacional do MDM

Tráfico e Prostituição – Refletir e agir para romper silêncios Não tendo a pretensão de abarcar todas as questões relacionadas com a pro­ blemática do tráfico de mulheres e da prostituição, optei, nesta comunicação, por abordar a temática na perspetiva da intima relação entre os dois fenómenos, no contexto do atual desenvolvimento do sistema capitalista e da expansão da “indústria do sexo”. O Congresso “A multiplicidade da(s) violência(s) – um real bem feminino” con­ vida­nos a refletir sobre as múltiplas violências que se abatem especialmente sobre as mulheres e creio que o tema que vamos abordar neste primeiro painel, tráfico e prostituição, é expressão lacerante de formas de exercício de violência contra as mulheres, de crimes de rosto feminino e de classe social, absoluta­ mente incompatíveis com a dignidade da pessoa humana e com os seus direitos fundamentais. A prostituição e o tráfico de mulheres são realidades que revelam à saciedade a hedionda face do sistema económico capitalista, no qual não existem limites para a obtenção de lucro, mesmo quando isso significa explorar, de forma vil, corpos e sonhos de mulheres e crianças. Revelam igualmente como persiste a desigualdade, a descriminação em função do sexo, e como é frágil o estatuto so­ cial das mulheres nas sociedades contemporâneas. Na atualidade, estima­se que, em todo o mundo, existam entre 40 a 42 mi­ lhões de pessoas na prostituição, incluindo mais de 2 milhões de crianças. Na sua grande maioria (80%), as pessoas prostituídas são mulheres e raparigas me­ nores. 75% têm entre 13 e 25 anos. 90 a 95% são dependentes de um proxeneta e os clientes são quase todos homens. Na Europa Ocidental, 1 a 2 milhões de pessoas envolvidas na prostituição, na sua maioria migrantes, “são vítimas de tráfico de seres humanos.” O tráfico de pessoas também se escreve sobretudo no feminino. 75% das ví­ timas são mulheres e raparigas, traficadas sobretudo para a exploração sexual e 34


PAINEL I – Tráfico e Prostituição – Crime, violência, exploração extrema com rosto feminino

prostituição (98%) e trabalho forçado (55%). 50% das vítimas são de menor idade. Só para a Europa Ocidental, estima­se que seja traficado anualmente 1 milhão de novas mulheres e jovens, passando 90% delas por bordéis em Espa­ nha, Itália, Grécia, Alemanha, Bélgica, Holanda, Suiça e Portugal. Estes números e fatos dão­nos uma ideia, vagamente aproximada, do signifi­ cado deste sistema organizado de exploração, mas pensa­se que fiquem muito aquém da sua verdadeira dimensão. Os alertas surgem de todo o mundo: este é um negócio em franca expansão. Não sendo novo, apresenta hoje características que derivam das profundas al­ terações ocorridas no sistema capitalista, nas últimas três décadas. Na verdade, desde a década de 90 do século passado, a prostituição e o tráfico de mulheres e crianças, para esse fim, começou a assumir proporções de grande escala, na sequência da industrialização e globalização da exploração sexual. Assim, milhões de mulheres e jovens alimentam o gigantesco mercado da “in­ dústria do sexo”, cujo lucro anual está estimado em 186 mil milhões de euros. Richard Poulin contextualiza esta realidade, no quadro do atual processo de globalização, responsabilizando o triunfo das políticas e valores neoliberais pelo desenvolvimento da indústria do sexo, “no qual o sexo pago e a sua representa­ ção, a pornografia, ganharam nas ultimas décadas, uma normalização”. A prostituição foi definitivamente submetida às regras do mercado, massifi­ cou­se, diversificou­se, expandiu­se e tornou­se cada vez mais aceite. É, agora, para um largo número de países e até de organizações de defesa dos direitos das mulheres e dos direitos humanos, um “trabalho como outro qualquer” onde se vende e compra um mero serviço, “uma profissão” e até mesmo uma oportuni­ dade de “carreira”. Os corpos das mulheres e meninas foram assim reduzidos à condição de produto, de mercadoria, que pode ser comprado, vendido, trocado, revendido, descartado. O carácter intrinsecamente violento da prostituição tende a ser suprimido, por campanhas, publicidade, filmes, aliás bastante eficazes, que a glamorizam e a tornam inócua. Introduzem­se, pouco a pouco, novos conceitos e nomes para as coisas: a prostituição foi substituída por “trabalho sexual”; as pessoas prosti­ tuídas por “trabalhadores e trabalhadoras do sexo”, da mesma forma, proxenetas e donos de bordéis passaram a ser “proprietários de negócios” e “parceiros co­ 35


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

merciais”. Só os clientes se mantêm assim mesmo, esses eternos desconhecidos, nunca responsabilizados. De acordo com a nova terminologia dita moderna, esta forma de violência contra as mulheres passou a ser um direito de ganharem di­ nheiro como bem quiserem, de “controlarem o seu corpo”, uma forma de auto­ nomia, de empoderamento, de empreendedorismo e até de liberdade. Mas os discursos sobre prostituição e tráfico, ainda assim, são conveniente­ mente distintos. Neles, o tráfico de pessoas continua a merecer um forte repúdio, e não há no mundo quem o defenda publicamente, ou negue tratar­se de uma severa violação dos direitos humanos. Mas essa distinção é falsa, hipócrita e muito perigosa. Os países que legalizaram a prostituição, ou melhor, legalizaram o lenocínio, ou ainda melhor, legalizaram a autorização para a exploração sexual de outrém, mantêm legislação antitráfico, afirmando não existir uma relação entre os dois fenómenos. Como se justifica então que 62% do tráfico na UE tenha por fim a exploração sexual? Que a Holanda, país onde a prostituição é legal, seja hoje o principal des­ tino das vítimas de tráfico de seres humanos na Europa? Que mais de 2/3 das prostitutas na Alemanha sejam estrangeiras – a maioria do leste da Europa ­ e constituam casos de tráfico para exploração sexual? Na verdade, o tráfico de mulheres e a prostituição são indissociáveis, e a sua negação visa exclusivamente branquear a prostituição, como um sistema orga­ nizado para o lucro, protegendo a indústria e os lucros por ela gerados! A tremenda expansão do crime de tráfico, ilícito portanto, deve­se, justifica­ se, e só é possivel também, porque, em países onde o sistema prostitucional foi legalizado ou regulado pelo Estado, este encontrou espaço para a sua incorpo­ ração em ramos empresariais, ditos “legítimos”, da “indústria do sexo” que o protejem. Portanto, não falamos apenas de redes criminosas marginais, mas tam­ bém de cumplicidades mais veladas, ou não, de entidades várias e de estados que lucram, e muito, com este crime, considerado já a terceira atividade crimi­ nosa mais lucrativa do mundo, e a que regista maior crescimento com ganhos na ordem dos 32 mil milhões de euros. Nesses países, o número de mulheres traficadas não para de aumentar, os bairros, onde mulheres e raparigas são exploradas, levam agora nome de “luz vermelha”, e as ruas, os nomes das aldeias e vilas de onde são originárias. A vida 36


PAINEL I – Tráfico e Prostituição – Crime, violência, exploração extrema com rosto feminino

tornou­se um inferno sem fim para as vítimas, inferno que engorda os bolsos dos seus donos e empresários e dos estados, pela via de impostos decorrentes da violação dos direitos humanos. Nem o proxeneta nem o cliente fazem distinção entre mulheres traficadas e não traficadas. Tão pouco se são de maior ou de menor idade. A única coisa que lhes interessa é saber: a um, o máximo lucro que pode obter e, ao outro, o mínimo a pagar. O caso da Alemanha é paradigmático e deixo­vos alguns exemplos disso. Esse país, onde a prostituição se tornou legal em 2002, é conhecido agora como o “maior bordel da Europa”, estimando­se que existam 400 000 pessoas no sistema prostitucional – para termos uma ideia mais clara, isso significa, por exemplo, o dobro do número registado em 2002, o maior número de prostitutas per capita da Europa ou até da Tailândia. No entanto, apenas 44 dessas pessoas estão oficialmente registadas, junto dos organismos de assistência social. Como já referi anteriormente, 2/3 dessas pessoas são estrangeiras, em situa­ ção de tráfico humano. Servem diariamente 1,2 milhões de homens. A indústria tem declarados cerca de 3.000 estabelecimentos de prostituição no país (red light disctrits) e, só em Berlim, existem 500 bordéis. Por exemplo, a cadeia “Pa­ radaise” oferece o conceito do “mega­bordel”, em sistema de franchising, onde tudo é permitido (um deles tem 12 andares). Mas o negócio é verdadeiramente diversificado, sendo muito populares os bordéis “de taxa fixa”, onde os homens podem pagar apenas €49 para uma noite de tanto sexo quanto possam aguentar – “Sex – Made in Germany ­ cheaper than anywhere else”. Os lucros são astro­ nómicos: 18 mil milhões de euros. Muito recentemente (27 de fevereiro), foi aprovado um relatório pelo Par­ lamento Europeu, sobre exploração sexual e a prostituição e o seu impacto na igualdade de género (343 a favor, 139 contra e 105 abstenções). Nele, o PE re­ conhece “que existem várias ligações entre a prostituição e o tráfico, e que a prostituição, tanto a nível mundial como europeu, alimenta o tráfico de mu­ lheres e raparigas menores”. Este relatório constitui um passo importante para a luta das mulheres contra a prostituição e o tráfico e assim foi celebrado por centenas de organizações de mulheres na Europa, que se empenharam na campanha “Juntas por uma Europa livre de prostituição“, da qual o MDM faz parte, e que apela ao reconhecimento 37


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

de que a prostituição é uma violação dos direitos das mulheres e não uma forma de liberdade ou de igualdade de género, mediante a promoção do direito das mulheres para controlar o que querem fazer com o seu corpo. Permitam­me que sublinhe alguns dos aspetos mais significativos deste relatório: 1º O reconhecimento que, não obstante se considere que existe uma prosti­ tuição “forçada” e outra “voluntária”, formulações que o MDM não subs­ creve porque considera que a prostituição é uma forma de escravatura incompatível com a dignidade da pessoa humana e com os seus direitos fundamentais, está intrinsecamente associada à desigualdade de género, tem impacto no estatuto das mulheres e na sociedade e é obviamente uma forma de violência contra as mulheres; 2º O reconhecimento de que o mercado da prostituição fomenta o tráfico de mulheres e crianças e agrava a violência contra as mesmas, especial­ mente em países onde a “indústria do sexo” foi legalizada, e que o tráfico funciona como uma forma de introduzir a oferta de mulheres e raparigas menores nos mercados da prostituição; 3º O reconhecimento de que considerar a prostituição como «trabalho se­ xual» legal, despenalizar a indústria do sexo em geral e legalizar o lenocínio não constitui uma solução para proteger as mulheres e raparigas menores, vulneráveis à violência e à exploração, bem pelo contrário, produz antes um efeito adverso, na medida em que as expõe a um nível mais elevado de perigo de violência e promove, ao mesmo tempo, o crescimento dos mercados da prostituição”. Observa que 80­95 % das pessoas que se pros­ tituem sofreram algum tipo de violência antes de entrar na prostituição (violação, incesto, pedofilia), que 62 % relatam ter sido violadas e 68% so­ frem de perturbação de stress pós­traumático – uma percentagem seme­ lhante à das vítimas de tortura. Salienta que a normalização da prostituição tem um impacto na violência contra as mulheres. Assinala, em particular, os dados que revelam que os homens que compram sexo apresentam maior probabilidade de cometer atos sexualmente coercivos sobre mulhe­ res e de exercer outros atos de violência contra mulheres, manifestando, muitas vezes, uma atitude misógina. Manifesta ainda preocupação perante o aumento do número de jovens rapazes que recorrem ao mercado da 38


PAINEL I – Tráfico e Prostituição – Crime, violência, exploração extrema com rosto feminino

prostituição como forma de entretenimento, tratando as mulheres e rapa­ rigas menores como brinquedos sexuais, em atos que frequentemente se tornam violentos; 4º O reconhecimento de que as pessoas que se prostituem são particular­ mente vulneráveis a nível económico, social, físico, psicológico, emocional e familiar e correm um maior risco de violência e danos, mais do que em qualquer outra atividade. Salienta que a atual crise, os problemas econó­ micos, a pobreza e outras situações de exclusão e de maior vulnerabilidade (como das pessoas com deficiência e dos jovens integrados no sistema de proteção de menores) são as principais causas de prostituição entre jovens mulheres e raparigas menores. Realça ainda que a crise económica e social provocou mais desemprego, obrigando muitas vezes as mulheres mais vul­ neráveis, incluindo as mulheres que pertenciam a estratos sociais mais ele­ vados, a entrar no negócio da prostituição/sexo, para poderem ultrapassar situações de pobreza e de exclusão social; 5º Reconhece, finalmente, que as politicas que promovem a legalidade da prostituição e do lenocínio, como sendo simplesmente «trabalho», aju­ dam a manter as mulheres na prostituição e que as politicas, que conside­ ram a prostituição uma violação dos direitos humanos das mulheres, ajudam a manter as mulheres fora da prostituição. Assim insta os estados membros a adotarem medidas constantes do chamado modelo sueco, no qual a prostituição é interpretada como mais um expoente da violência masculina contra mulheres e crianças e está reconhecida oficialmente como uma forma de exploração, como um problema social, que é prejudicial, não só a nível individual para as pessoas prostituídas, bem como um problema geral para o conjunto da sociedade. A Suécia alterou as suas leis em matéria de prostituição, em 1999, para proibir a compra de serviços sexuais e despenalizar a pessoa que se prostitui. Por outras palavras, é o lenocínio e a pessoa que compra serviços sexuais (praticamente sempre o homem) que está a cometer uma infração penal, não as mulheres que se prostituem. Simultaneamente, são oferecidas às mulheres, respostas sociais de saída da prostituição. 39


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

O impacto desta legislação na Suécia parece ser enorme. Segundo os dados co­ nhecidos, a prostituição tem diminuído e constitui, 10 anos depois, um décimo da observada na vizinha Dinamarca, onde a compra de serviços sexuais é legal e a den­ sidade populacional menor. A lei mudou também a opinião pública. Em 1996, 45 % das mulheres e 20 % dos homens eram a favor da criminalização dos compradores masculinos de serviços sexuais. Em 2008, 79 % das mulheres e 60 % dos homens eram a favor da lei. Além disso, a polícia sueca afirma que o modelo nórdico teve um efeito dissuasivo no tráfico para exploração sexual. Outros países seguiram o mesmo caminho, em 2009, como a Noruega, a Islândia e, recentemente, a França. O debate está pois em aberto e acirrado. Um número elevado de organizações da rede dos direitos dos trabalhadores sexuais na Europa redigiu uma carta a todos os membros do Parlamento Europeu pedindo a rejeição do relatório. Argumentam que “os modelos de criminalização dos/as clientes de serviços sexuais constituem um retrocesso na luta pelos direitos dos/as trabalhadores/as do sexo, criminalizam o trabalho sexual, aumentam, de forma inequívoca, a vulnerabilidade dos/as tra­ balhadores/as do sexo, a diferentes formas de violência e atentam contra os direi­ tos fundamentais do ser humano, sendo por isso medidas e intenções inadmissíveis atualmente, representando um atraso civilizacional para a Europa”. Em Portugal, várias associações subscrevem essa carta e são, porque não há coincidências, as mesmas organizações que suportam as campanhas pela regu­ lação/legalização da prostituição no nosso país, o que teve grande expressão na proposta de criação num bordel na Mouraria. O MDM tem denunciado e combatido coerentemente os argumentos pró­ regulamentação da prostituição que se baseiam em falsidades, promovem a ideia que a prostituição e o tráfico não estão interligados, que existe uma pros­ tituição “forçada” e outra “livre”, que a legalização torna mais segura a prosti­ tuição para as mulheres e lhes garante direitos laborais e sociais. É preciso lembrar que a prostituição não é um ato individual de uma pessoa que aluga o seu corpo por dinheiro, é antes um sistema organizado para o lucro, um negócio no qual intervém cliente, proxeneta e pessoa prostituída e que rende ao proxe­ netismo milhões. É preciso lembrar que numa atividade que vive da exploração do corpo das mulheres não há “liberdade”, “zonas seguras” ou “direitos”. 40


PAINEL I – Tráfico e Prostituição – Crime, violência, exploração extrema com rosto feminino

O MDM considera a prostituição e o tráfico como formas de exercício de vio­ lência contra as mulheres e como realidades indissociáveis das desigualdades sociais e das desigualdades entre mulheres e homens, que persistem na socie­ dade e que são causadoras de intoleráveis formas de violência, opressão e agres­ são da dignidade e dos direitos das mulheres e das crianças. Como afirma a exposição “tráfico de mulheres – escravatura dos tempos mo­ dernos”, concebida no quadro do projeto “romper silêncios”, e que se encontra em exibição aqui na Universidade de Aveiro, para o MDM defender os direitos das mulheres, lutar pela sua dignidade, respeitar a sua condição e reconhecer o seu estatuto social, passa também por se opor ao tráfico de mulheres e denun­ ciar as suas causas. Por isso, opomos­nos intransigentemente a qualquer promoção do lenocínio, encapotado ou não, e batemos­nos pela exigência de novos caminhos para o país e para as mulheres, consubstanciados, assumidos e concretizados em polí­ ticas – legislativas e sociais – de promoção do direito ao trabalho e ao emprego estável, do direito à saúde, à educação, à segurança e a proteção sociais, e de criação de medidas para proteção das mulheres prostituídas, criando condições efetivas para a sua inserção social, em nome dos valores da igualdade, justiça, desenvolvimento e progresso. Termino com a seguinte citação, que julgo revestir­se de uma enorme atualidade: “Dizem que a escravatura desapareceu da civilização europeia. Isso é incorreto. Ela ainda existe, mas agora incide apenas sobre as mulheres, e chama­se prostituição.” Pergunto­me se Victor Hugo, em 1862, quando a escreveu, no soberbo “Les Misé­ rables”, teria imaginado que, em pleno século XXI, esta frase serviria de capa do “Apelo de Bruxelas”, que pugna pela abolição da prostituição na Europa, rompendo silêncios e dando voz a tantas das suas personagens que ainda subsistem? Aveiro, 14 de março de 2014

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painel II


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino PAINEL II – Isabel Lousada Investigadora da CESNOVA Membro do Conselho Nacional do MDM

Mulheres entre muros: do moral ao social Vivemos hoje uma crise económica que extravasa, em muito, o âmbito da eco­ nomia, invadindo o domínio do social do moral. Contudo, se temos de ter presente esta realidade atual, nada obsta a que não lancemos um olhar em viés pela linha do tempo e, retrospetivamente, não iden­ tifiquemos outros momentos na História que, apesar de contornos necessaria­ mente diferenciados, nos permitem retirar algumas ilações acerca do que estes termos, moral e social, podem querer, ou não, dizer. Ao escolher o título para a intervenção que hoje faço, utilizei ambos os domí­ nios, e não foi inocente esta junção: «Mulheres entre muros: do moral ao social» serve de pano de fundo para eleger, ainda que sinteticamente, três ou quatro ideias, essenciais para a promoção do progresso civilizacional, onde o bem­estar social seja respeitado e o universo feminino reconhecido na sua dignidade ao abrigo dos Direitos Humanos, ocultado, ainda, na versão mais antiga da Decla­ ração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de Dezembro de 1948. Também em tempos idos, no decalcar da letra redonda, impressa na Consti­ tuição Portuguesa, se colocava, em hemisférios que diríamos diametralmente opostos, homens e mulheres, cujos direitos e deveres eram reclamados e exer­ cidos de modo igualmente diverso. A moral, comumente ligada a outras áreas da vida em sociedade, eivada de preconceitos e de estereótipos, que até hoje não vingámos eliminar, servia o princípio da dominação, de uma visão patriarcal, misógina, de uma quase condenação da existência da mulher a quem o livre ar­ bítrio era sonegado. E assim foi durante longos anos, até à libertação da condição feminina, com a revolução de abril. A vida mudou para as mulheres, nos últimos 40 anos, não só com a promoção de mecanismos capazes de enquadrar a sua entrada no mercado de trabalho, mas também a conciliação da esfera profissio­ nal e familiar. Esta caminhada tem sido feita de avanços e recuos, que vão com­ prometendo direitos adquiridos. 44


PAINEL II – Assédio Moral – Usos e abusos do poder em tempo de precariedade

Nasci numa época em que não era indiferente nascer­se homem ou mulher, menino ou menina, mas ainda assim nasci num país do continente europeu, de raça branca, sem deficiência aparente, com nome de pai e mãe e numa mater­ nidade pública (somente há poucos dias soubemos que, face a um movimento cívico organizado em sua defesa, se vai manter aberta), a Maternidade Alfredo da Costa que, por sinal, e bem, nos lembra também mulheres pioneiras, como foi Adelaide Cabete que, juntamente com o seu mestre Dr. Alfredo da Costa, pug­ nava por uma mudança social, dirigindo a sua atenção para as mulheres grávidas e pobres. Na sua ação, enquanto denunciavam os jogos e a indiferença dos po­ deres, iam combatendo as elevadíssimas taxas de mortalidade infantil, defen­ dendo a manutenção dos postos de trabalho das operárias nas fábricas, a fim de que estas pudessem cuidar dos seus filhos mais novos, sem perturbar a frágil ordem financeira dos seus também frágeis agregados familiares. E o moral e o social vinham amiúde sustentar a travagem no acesso das mu­ lheres que começavam a enveredar por outras profissões, por outras carreiras, alimentando fantasmas e “velhos do Restelo”. Depois veio outro tempo, em que caminhamos, não sem esforço é certo, mas com determinação, numa construção política sustentada em serviços públicos gratuitos e acessíveis a todos e todas, e que hoje, contra tudo o que seria expetável, desejável e defensável, estão em derrocada, em consequência de medidas políticas desajustadas. A Saúde e a Edu­ cação, em especial, têm sido alvos preferenciais de consecutivos ataques orga­ nizados, com a destruição sistemática do serviço público de qualidade, o que está a comprometer a sua qualidade e viabilidade. A educação e a saúde públicas de qualidade para todos e todas são pilares da democracia. Sem eles, poderemos anunciar para breve a falência social das novas gerações. E tal situação, a acontecer, ultrapassará o nível do amoral, por ser uma imoralidade. Serviram estas impressões, que convosco partilho, para chegar, mais em con­ creto, à situação presente que designei por «Mulheres entre muros: do moral ao social». Estamos de facto, emparedadas. São os estereótipos que, apesar de camuflados, em tempos de crise se am­ plificam e exponenciam, tornando ainda mais crítica a situação das mulheres, 45


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

em particular das mais desfavorecidas, cada vez mais em risco. Se a presença das mulheres é notada como sinal de progresso numa vasta maioria de profis­ sões, em que outrora sequer poderiam sonhar (e há estudos bem documentados que o provam à saciedade), a verdade é que se mantem uma inacreditável desi­ gualdade, mesmo em termos salariais. As profissões maioritariamente exercidas por mulheres tendem a ser mais mal pagas que a dos seus pares, a desejada independência económica chega sempre mais tarde para elas do que para eles. E com recursos reduzidos, é mo­ ralmente “reprovável” para tantas, os sacrifícios que fazem, com tão escasso pe­ cúlio, para cuidar dos idosos, dos mais jovens, dos deficientes. Aliás, a este propósito, deveria ser muito interessante o resultado de um estudo que focasse o modo como os salários estão a ser usados, no seio da família, com dados de­ sagregados por género. Juntemos a todas estas questões a da parentalidade, cujo ónus recai invariavelmente, sobretudo sobre a mulher. Passemos ao assédio no local de trabalho e serei muito breve, tendo em conta as intervenções, mais dirigidas a esses pontos, que terão lugar em seguida. Vou incidir a minha intervenção no assédio moral, não deixando de referir que, rela­ tivamente ao assédio sexual, ou Mobbing (outro nome por que é conhecido tam­ bém) algumas organizações têm vindo a desenvolver projetos com alguma envergadura (UMAR/CITE/Associação ComuniDária, entre outras). Ao falarmos de assédio (por vezes coexistem diferentes tipos de assédio) repor­ tamo­nos a atos, atitudes e comportamentos exercidos na vertical (em regra pelo patrão/superior hierárquico) ou na horizontal (perpetrados por pares, tantas vezes pelos próprios colegas), traduzindo­se num contínuo, permanecendo no tempo e não episodicamente, fugindo às práticas definidas no contrato de trabalho e às re­ gras sociais, podendo manifestar­se através de diferentes graus de intensidade. Já Pierre Bourdieu na Dominação Masculina (1998) se refere à subordinação e à sua envolvente mais “invisível”, entrando no domínio da violência simbólica, segundo a qual “a dominação do homem sobre a mulher é exercida por meio de uma violência simbólica, como partilhada inconscientemente entre dominador e dominado, determinado pelos esquemas práticos do habitus […]. É um acto subtil que oculta relações de poder que alcançam, não apenas as relações entre os géneros mas toda a estrutura social”. 46


PAINEL II – Assédio Moral – Usos e abusos do poder em tempo de precariedade

Para aumentarmos o nosso capital cultural que nos permita sair da crise, aos mais diversos níveis, para rompermos com a “condição de instrumentos de pro­ dução ou de reprodução do capital simbólico e social”, somente uma educação igualitária, firmada nos princípios do respeito, ao abrigo dos Direitos Humanos, poderá ir ao encontro da sociedade que elegemos para passar da condição da escravatura à liberdade, de escravas a cidadãs. Quando o assédio é hierárquico, na medida em que os lugares de decisão e os lugares de topo são maioritariamente preenchidos por homens, há também a prevalência dos estereótipos de género, que se fazem sentir com violência. O objetivo é vencer pelo cansaço, pelo medo. Nem sempre o assédio moral implica o uso da força, mas em qualquer caso implica abuso de poder. Várias fases se podem identificar nestes processos a que estão mais vulneráveis os(as) funcionários(as) com alguma estabilidade, pois as empresas e os patrões não querem abrir mão de verbas, para os(as) indemnizar por rescisão de contrato ou pretendem promover despedimentos por justa causa, para depois contratar trabalhadores(as) mais jovens, com salários mais baixos e altos índices de precariedade. Ameaças, mais ou menos veladas, inti­ midações que interferem com o próprio ritmo de trabalho, desprezo e desqua­ lificação do trabalho são algumas das situações mais frequentemente identificadas. Ainda assim, outras como as críticas à forma de falar, de vestir, de estar, aversão pela etnia ou nacionalidade também configuram assédio. Uma das questões mais perniciosas nesta matéria diz respeito à invisibilidade, a que as vítimas estão sujeitas, pelo que um dos fatores, frequentemente apon­ tados como fundamentais para o combate ao assédio moral, situa­se ao nível da informação. Regra geral, a relação debilitadora conduz ao isolamento e, como em qualquer situação de violência, a vítima sente­se impotente, pelo que, como recomendam psicólogas e psicanalistas, o primeiro passo para combater este crime deverá passar por verbalizar, procurar apoio, partilhar, compreender que o fenómeno é mais frequente, infelizmente, do que se poderia pensar e que há mecanismos legais para enfrentá­lo. Quando as condições de trabalho se degradem, face à repetição por meio de gestos, palavras ou atitudes, que ameacem a integridade física ou psíquica de alguém, deve ser procurada uma orientação fundamentada, quer nas organiza­ 47


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

ções não­governamentais, quer nos mecanismos legais instituídos, porque con­ figuram uma distorção do seu contrato de trabalho, em que a ameaça de despe­ dimento poderá servir para manter sob coação os funcionários. Antes de terminar, devemos lembrar que, mesmo com os headhunters, cuja prática se carateriza pela prevalência do marketing agressivo para o recruta­ mento, pode constituir uma peça chave na prevenção destas situações, a pro­ moção de boas práticas, nomeadamente através da informação acerca do tipo de empregador que receberá a pessoa a contratar, sobre o que poderá ter levado à saída e/ou despedimento dos outros funcionários, anteriormente contratados. Importa, apesar de tudo, deixar claro que expressões, no que diz respeito ao feminino, como a “A loira que é burra”, assumindo a forma de graçola, ou outras expressões de chacota, fazendo alguém de bobo da corte, aludindo abusiva­ mente a um dialeto, como “a chinoca”, ou fazendo troça de algum traço físico, como “a bucha”, são tão repudiáveis como a privação de informação, ou o im­ pedimento da conclusão de um trabalho. A este título, consideramos qualquer dos exemplos anteriormente apresentados, como assédio, podendo este ser uti­ lizado para vários fins, como represália, rescisão de contrato ou desqualificação do trabalho. Urge romper silêncios para afastar do isolamento as vítimas. Regra geral, por medo e/ou vergonha, são poucos os casos que chegam à denúncia, embora saiba­ mos que os sintomas, já de grande fragilidade, manifestam­se, em casos extremos, no suicídio. O combate passa também pela solidariedade e por uma ação coletiva. No início da minha vida ativa corria a frase de que “o ócio era o ópio do povo”. Uma das técnicas usadas neste processo de assédio é precisamente deixar sem ocupação, ou dar trabalho em excesso, aos subordinados. Em qualquer circunstância é preciso usar de bom senso. Não é por alguém se exaltar que se passa a poder imputar esse momento e essa atitude, como assédio moral. Para haver assédio é, uma vez mais repetindo, necessário existir o fenó­ meno da recorrência.

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PAINEL II – Assédio Moral – Usos e abusos do poder em tempo de precariedade

Movimento Democrático de Mulheres http://www.mdm.org.pt/ Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego http://www.cite.gov.pt/ Autoridade para as Condições do Trabalho www.act.gov.pt Portal para a Igualdade http://www.igualdade.gov.pt/ União de Mulheres Alternativa e Resposta http://umarfeminismos.org/ Associação Portuguesa de Mulheres Empresárias http://www.apme.pt/ Associação Portuguesa de Mulheres Juristas http://www.apmj.pt/ Associação ComuniDária http://www.comunidaria.org/

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A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino PAINEL II – Leonor Valente Monteiro Advogada Direção Regional do Norte da APMJ – Associação Portuguesa de Mulheres Juristas Fundadora da Associação Projeto CRIAR

Breve reflexão sobre assédio moral e sexual no local de trabalho “De todas as pessoas que chegam ao mercado de trabalho, uma em cada quatro será ví#ma de mobbing, pelo menos uma vez ao longo da sua carreira” Heinz Leymann

Iden#ficar prá#cas de Mobbing ou Assédio moral O mobbing ou assédio moral apresenta como denominador comum o facto de se tratar de uma conduta persecutória reiterada e prolongada que leva ao des­ gaste da resistência $sica e psíquica do/a trabalhador/a. Essencial para o apura­ mento de uma situação assediante é a acumulação dos atos pra#cados e as consequências deles decorrentes.1 O fenómeno não é apreensível pela análise das diversas ações agressivas per si, mas apenas através da sua leitura global.2 Os fatos têm, portanto, de ser analisados no seu conjunto, pois isoladamente podem parecer reves#r pouca gravidade. Assim, no decorrer da análise da situação em causa, não se pode atender aos fatos de forma isolada, pois podemos cair no risco de os minimizar e, em consequência disso, desprotegermos a ví#ma. Quem pra#ca o mobbing tem intenção de lesar ou de atormentar outrem (o/a trabalhador/a). Por detrás de qualquer a#tude de assédio existe sempre um com­ portamento pra#cado com o obje#vo de afetar a dignidade da pessoa ou criar um ambiente in#midatório, hos#l, degradante, humilhante ou instável, podendo 1

MARIA REGINA GOMES REDINHA, Assédio moral ou mobbing no trabalho, Texto publicado in studos em Homenagem ao Professor Raul Ventura, Coimbra Editora, 2003

2

HEINZ LEYMANN, The Mobbing Encyclopaedia, v. “The defini#on of mobbing at workplace”, h%p://www.leymann.s

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PAINEL II – Assédio Moral – Usos e abusos do poder em tempo de precariedade

mesmo exis#r a intenção de o(a) agressor(a) de se livrar da ví#ma, o que não acontece quando estamos perante um mero conflito ou perante uma atuação impulsiva, independentemente do mal­estar que possa causar e da infração que possa representar (quer disciplinar, quer penal ou laboral)3. Entre os fatores causais do mobbing, ocupa posição de relevo a própria dis­ criminação, seja em função do sexo, mo#vos raciais, religiosos ou polí#cos, seja fundada em deficiências ou doenças, orientação sexual, ou ainda no estatuto de representante sindical4. O mobbing ou assédio moral é portanto uma violência provocada e dirigida a uma específica pessoa, devendo ser considerada uma conduta persecutória, re­ iterada e prolongada, de desgaste da resistência $sica e psíquica do/a trabal­ hador/a, o qual tem como fator originário a própria discriminação (levada a cabo por alguma das razões acima invocadas). “O assédio sexual não é mais do que um passo no assédio moral”5 Ora, através da leitura do Relatório da Agência para os Direitos Fundamentais da União Europeia podemos chegar à conclusão de que uma, em cada três mul­ heres da União Europeia, foi, ou será ví#ma de, pelo menos, um episódio de abuso sexual, $sico ou psicológico. Também um projeto levado a cabo pela Fundação Internacional para as Mul­ heres nos Media (Washington) e pelo Ins#tuto Internacional para a Segurança dos Media (Londres), através do qual foram efetuadas 1000 entrevistas a jornal­ istas do sexo feminino de diferentes órgãos de comunicação, em todo o mundo, se pode ler6 que dois terços das mulheres jornalistas inquiridas foram ví#mas de violência, tendo sido alvo de insultos a ameaças de morte, muitas vezes per­ petrados pelos seus patrões e, na maioria dos casos, no local de trabalho. Ainda demonstra este estudo que mais de um quinto das inquiridas sofreu violência 3

Guia informa#vo – prevenção e combate de situações de assédio no local de trabalho: um instru­ mento de apoio à auto regulação – CITE Março 2013, pag. 9

4

cfr. MARIE­FRANCE HIRIGOYEN, O assédio no trabalho. Como dis"nguir a verdade. 2002. ­ descreve assédio discriminatório.

5

MARIE­FRANCE HIRIGOYEN ob.cit.

6

Relatório final projeto levado a cabo pela Fundação Internacional para as Mulheres nos Media (Washington) e pelo Ins#tuto Internacional para a Segurança dos Media (Londres), denominado “Violência e assédio contra as mulheres nos órgãos de informação: uma imagem global“

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A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

$sica, relacionada com o seu trabalho, e quase 15% referiu ter sido alvo de vio­ lência sexual. De fato, pode considerar­se que o assédio moral e sexual no trabalho é um problema de género, na medida em que afeta mais as mulheres que os homens. Alguma Doutrina e Dados Esta$s#cos IÑAKI PIÑUEL Y ZABALA classifica o assédio moral como “A praga laboral do século XXI”7. HEINZ LEYMANN, psicólogo que já conta com uma ampla inves#­ gação sobre o assédio moral, observou ser o local de trabalho o “úl#mo campo de batalha no qual alguém pode aniquilar outrem sem qualquer risco de chegar, sequer, a ser processado” 8. Também através dos estudos esta&s#cos de BRUNO SECHI9 foi registada a ex­ istência de 1 (um) milhão de ví#mas de assédio moral, de nacionalidade Italiana. GABRIELLA FILIPPONE10, por sua vez, averiguou que 5% da força de trabalho em Itália é a#ngida pelo assédio moral. Já na Noruega, STÅLE EINARSEN E ANDERS SKOGSTAD11 constatam que 8,6% da população se considerava ví#ma de assédio no trabalho nos seis meses anteriores à realização do estudo que ambos os inves#gadores conduziram no final do Séc. XIX. Outros documentos Ins#tucionais Europeus também indicam que este fenó­ meno social tem de começar a ser encarado de forma séria, já que, conforme indica a Resolução do Parlamento Europeu n.º A5­0283/2001 [2001/2339 (INI), a#nge 1,8% dos trabalhadores da União Europeia. Só no ano 2000, 12 milhões de cidadãos/ãs, responderam no sen#do de já terem sido sujeitos a processos de assédio moral num período de 12 meses (Paoli & Merillié).

7

“Mobbing – cómo sobrevivir al acoso psicológico en el trabalho, Santander”, 2001, p. 50.

8

“Mobbing. La persécu#on au travail”, Paris, 1996, p. 25.

9

“A%en# al mobbing”, Diri%o & Diri', 2000 in t

10

“Mobbing: abusi nel posto di lavoro”, Diri%o & Diri', p. 105

11

“Bullying at work: epidemiological findings in public and private organisa#ons”, European Journal of Work and Organisa#onal Psychology, 1996, nº 5, p. 195

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PAINEL II – Assédio Moral – Usos e abusos do poder em tempo de precariedade

No ano 2007, foi elaborado um estudo sobre o setor da banca Portuguesa12 e o mesmo apontou para percentagens muito elevadas, de cerca de 39,8% pessoas frequentemente assediadas, principalmente mulheres. E as consequências deste #po de assédio são devastadoras, já que 9 em cada 10 ví#mas de assédio apresentam stress pós­traumá#co, com sofrimento e grande ag­ itação neurovegeta#va, pelo que não podemos con#nuar indiferentes à sua prá#ca.13 Tipos de Mobbing A fim de iden#ficar quais os #pos de assédio que podem a#ngir uma ví#ma, considerei interessante trazer aqui uma descrição desses possíveis #pos ­ se bem que de forma não aprofundada. O mobbing é chamado ver#cal, quando é levado a cabo ao longo da cadeia hierárquica, sendo ver#cal­descendente se os/as perseguidores/as são superi­ ores hierárquicos da ví#ma, ou ver#cal­ascendente se a violência provier de pes­ soas subordinadas. O mobbing é horizontal, quando quem o pra#ca for os/as colegas de trabalho; O mobbing combinado acontece quando o ataque reveste simultaneamente as duas modalidades anteriores (ver#cal e horizontal). Atendendo ao critério da mo#vação, há autores/as14 que dis#nguem três modalidades de assédio: 1) assédio perverso, quando a finalidade é a gratuita destruição de outrem ou a valorização do seu próprio poder; 2) assédio des#­ nado a contornar as restrições ao despedimento; 3) assédio ins#tucional, quando incluído numa estratégia de gestão de pessoal. Existem ainda os side mobbers, sendo aqueles/as que, embora não par#cipem nas a#vidades agressivas, assistem à conduta hos#l sem nada fazerem, con­ Paulo Pereira de Almeida “Assédio Moral no Trabalho – resultados de um estudo”, in Revista “Diri­ gir”, Abril/Junho de 2007 e Ana Teresa Verdasca, “Portuguese Valida"on os tyhe nega"ve acts ques­ "onnaire Revised (NAQ­R), CRITEOS, 2007, e 1ª conferência Portuguesa “O Assédio Moral no Trabalho”, ISEG, 29 e 30/11/2007

12

13

Elisabeth Grebot em “Harcelement au travail”, paris, 2007

MARIE­FRANCE HIRIGOYEN, O assédio no trabalho, p. 98 ss; BRUNO SECHI, “I danni derivan# dal mobbing”, PAUL BOUAZIZ, “Harcèlement moral dans les rela#ons de travail. Essai d’approche ju­ ridique”, Droit Ouvrier, Maio, 2000, p. 193­194. 14

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A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

tribuindo para o isolamento e exclusão da ví#ma.15 Normalmente são side mob­ bers colegas de trabalho, ou outros superiores hierárquicos, mas também podemos incluir nesta figura os/as fornecedores/as da empresa onde a ví#ma exerce a sua a#vidade laboral. No Plano Jurídico – Legislação Portuguesa Em termos legais, conforme tentarei explicar, é de toda a conveniência que a ordem jurídica Portuguesa comece a dar expressão jurídica aos dados sociais acabados de referir, dados que já foram aceites pacificamente por toda a doutrina. Na verdade, apesar de o assédio moral estar a suscitar, nos úl#mos anos, a atenção da legislação, enquanto fenómeno social e de exis#rem mecanismos de defesa no ordenamento jurídico contra atos vistos juridicamente de forma iso­ lada16, estes não são porém de todo suficientes para acautelar devidamente a defesa destas ví#mas. Há que entender que este #po de a#vidade criminosa configura especifici­ dades que a lei tem de começar a reconhecer17, de uma vez por todas, e nessa medida a lei deveria adequar­se à realidade do fenómeno em causa, nomeada­ mente ao nível penalista – onde ademais este #po legal de crime nem sequer existe. Por outro lado, os tribunais decidem pouco sobre o fenómeno, isto é, existem poucas decisões judiciais sobre esta matéria, o que significa que poucas ví#mas recorrem à via judicial. Mas, tal não encontra a mesma expressão a nível esta&s­ #co, pois sabemos que existem inúmeros casos de assédio moral e sexual no tra­ balho, pelo que não faz sen#do que pra#camente não existam decisões judiciais sobre o tema em causa. Este facto indicia claramente que os direitos destas ví#­ 15

ROBERTA NUNIN, “Alcune considerazioni in tema di mobbing”, Italian Labour Law e­Journal, vol. 2, n. 1, 2000, t

16

Exemplo disso são as concre#zações legais quanto ao direito à ocupação efe#va, a proteção contra a baixa arbitrária de categoria — art. 23º, LCT —, ao condicionamento às transferências ad nutum — art. 24º, LCT —, a limitação do ius variandi — art. 22º, LCT, entre outros ar#gos.

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Geradora de consequências psicológicas nefastas, já que (entre outras, muitas, circunstâncias) ad­ mi#r que se é vi#ma deste crime é por em causa a vigência do seu próprio contrato de trabalho, logo a sua subsistência e da sua família (se a houver), podendo a própria denúncia ser geradora de assédio retaliatório, e ainda mais gravoso para a saúde da ví#ma.

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mas não estão a ser salvaguardados e vem demonstrar a necessidade de atuação a este nível, no plano legal. É verdade que o próprio Código do Trabalho proíbe o assédio e prevê como sanção para a sua prá#ca uma contraordenação muito grave (ar#go 29.º), con­ s#tuindo a prá#ca de assédio sobre qualquer trabalhador ou trabalhadora uma infração disciplinar, independentemente das funções que desempenha a pessoa que assedia. E este ar#go prevê duas formas sancionatórias para os casos de assédio moral: – Uma coima entre os 2.040 euros e os 61.200 euros, dependendo do vol­ ume de negócios e do grau de culpa, – A sanção acessória, através da publicidade da decisão. O Código do Trabalho também não fica indiferente aos casos de reincidência e de par#cular gravidade dos efeitos da violação onde, caso se verifiquem, serão aplicadas as seguintes sanções: – interdição de a#vidade no estabelecimento onde se verificar a infração até dois anos; – privação da possibilidade de par#cipar em arrematações ou concursos públicos por período até dois anos. Igualmente, o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas considera discriminação o assédio que é come#do, tanto contra um/a candidato/a a em­ prego, como a um/a trabalhador/a (ar#go 15º). O próprio Decreto­Lei n.º 441/91 – sobre Segurança, Higiene e Saúde no tra­ balho ­, no ar#go 4.º, define como princípio geral que “Todos os trabalhadores têm direito à prestação de trabalho em condições de segurança, higiene e de proteção da saúde.” Contudo, uma vez que não existe um #po legal de crime específico para estas situações de assédio moral e/ou sexual no trabalho, caso a ví#ma pretenda ser indemnizada terá de recorrer ao regime da Responsabilidade Civil, previsto no ar#go 469º do Código Civil. Ora, através deste mecanismo legal abrimos a porta 55


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a uma enorme dificuldade de prova, uma vez que o mesmo obriga a que se prove o nexo de causalidade entre os danos e a conduta assediante, sendo que o ónus da prova é sempre do/a trabalhador/a assediado/a. Ou seja, é ao/à trabalhador/a que incumbe provar que foi assediado/a18. O Código Civil ainda prevê a Responsabilidade Obje#va do/a empregador/a, no caso de serem os/as colegas e trabalho a assediar (500ºCC), mas o regime de prova é idên#co e igualmente complexo de obter. Ora, é no âmbito de um processo­crime que a prova se torna mais simples de obter, para além de que permite que a indemnização cível seja solicitada parale­ lamente ao processo­crime em curso, sem necessidade de ter de se recorrer a outro tribunal e a outro/a juiz/a, tendo a ví#ma de contar novamente a mesma história, revi#mizando­a. Por outro lado, a ví#ma, em processo penal, pode sem­ pre falar em audiência e discussão de julgamento e o seu depoimento pode ser atendido como elemento de prova, enquanto no processo cível apenas será ou­ vida caso seja solicitado o seu depoimento de parte – o que pode não acontecer. A tudo isto acresce o facto de no processo­crime exis#r a figura do Ministério Público, figura que tem o poder de encetar diligências de prova, que de outro modo seriam di$ceis de alcançar. Futuro próximo No ano de 2011, com a adoção da Convenção de Istambul19, o Conselho da Europa disponibilizou um instrumento inovador para enfrentar o combate à vi­ olência de género contra mulheres, onde se insere o assédio moral e sexual no local de trabalho. Portugal assinou a Convenção de Istambul a 11 de Maio de 2011 e a sua ra#ficação pelo Parlamento foi feita a 13 de Janeiro de 2013, após uma decisão do Conselho de Ministros de 15 de Novembro de 2012. Entrará em vigor no dia 01 de Agosto do corrente ano de 2014. Tal fato vai obrigar a que, num futuro próximo, sejam introduzidas novas ofensas criminais, adaptando a legislação portuguesa à realidade social em que se vive. 18

“É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão…” (ar#go 487º do Código Civil)

19

Decreto do Presidente da República n.º 13/2013. D.R. n.º 14, Série I de 2013­01­21 e da Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013

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PAINEL II – Assédio Moral – Usos e abusos do poder em tempo de precariedade

Conforme se viu, se atentarmos àquilo que hoje existe a nível jurídico­penal, quanto ao tema que aqui debatemos, neste momento apenas podemos recorrer à conjugação de vários #pos de crimes, vistos de forma isolada, para tentar punir criminalmente o agente pela prá#ca do crime de assédio moral/sexual20. No entanto, veja­se que a Convenção de Istambul prevê que os Estados ten­ ham de adotar medidas legisla#vas que se revelem necessárias para assegurar a criminalização da conduta de quem, intencionalmente, lesar gravemente a in­ tegridade psicológica de uma pessoa por meio de coação ou ameaça (ar#go 33º), bem como quem, intencionalmente, ameaçar repe#damente outra pessoa, levando­a a temer pela sua segurança (ar#go 34º). Refere também o ar#go 40º da Convenção Istambul que os Estados deverão adotar as medidas legisla#vas ou outras que se revelem necessárias para assegurar que qualquer #po de com­ portamento indesejado de natureza sexual, sob a forma verbal, não verbal ou $sica, com o intuito ou o efeito de violar a dignidade de uma pessoa, em par#c­ ular quando cria um ambiente in#midante, hos#l, degradante, humilhante ou ofensivo, seja passível de sanções penais ou outras sanções legais, sendo que este úl#mo ar#go comporta mesmo a epígrafe “assédio sexual”. Ora, adotar um #po legal de crime de assédio moral e de assédio sexual no local de trabalho parece­nos condição sine qua non para uma boa defesa das vi#mas e para a efe­ #va condenação dos que assediam no local de trabalho. E, apesar de exis#r em Portugal um Projeto de Lei21 depositado na Assembleia da República com a fi­ nalidade de a#ngir esse obje#vo, a verdade é que este projeto se encontra “es­ tagnado” desde o ano 2000. Por conseguinte, enquanto a Convenção de Istambul não obrigar a que se volte a dar importância a este projeto, as ví#mas têm de ser aconselhadas a: – Procurarem reunir o máximo de provas de tudo o que interesse para a demonstração da existência do assédio e das suas consequências; – Pedirem relatórios médicos que possam ser auxiliares de prova, – Obterem e guardarem num local seguro (fora da organização onde são 20

Nomeadamente através dos Art. 143º ss. Ofensas integridade $sica, Art. 153º Ameaça, Art. 163º Coação Sexual, Art. 170º Importunação Sexual, Art. 181º injúrias, tudo do Código Penal

21

Projeto n.º 252/VIII “Proteção laboral contra o terrorismo psicológico ou assédio moral” no seguinte link: www.parlamento.pt/Ac#vidadeParlamentar/Paginas/DetalheInicia#va.aspx?BID=5974

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A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

assediadas), todos os comunicados, diretrizes, ordens de serviço, emails, cartas… que possam demonstrar o crime, – Tomarem sempre posição por escrito quanto a tudo o que de errado es­ teja a ser decidido e pra#cado rela#vamente a si, – Escreverem tudo o que vai ocorrendo, de forma cronológica e fatual, com vista a que fiquem com registos de tudo o que se passou, – Par#lharem o máximo possível o que se passa com pessoas próximas – estas serão possíveis testemunhas no futuro. É verdade! Caminhamos para a inevitável inclusão do #po legal de crimes desta natureza no Ordenamento Jurídico­Penal Português. Mas, como sempre, as men­ talidades demoram a colocar as vontades a trabalhar ao serviço da Humanidade.

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PAINEL II – Assédio Moral – Usos e abusos do poder em tempo de precariedade PAINEL II – Andrea Araújo CIMH – Comissão para a Igualdade entre Mulheres e Homens da CGTP e União de Sindicatos de Aveiro

As realidades e os contextos do assédio moral no local de trabalho O assédio moral e a violência, em geral, no trabalho constituem realidades presentes em muitos locais de trabalho e, embora não possam ser confundidas, são realidades próximas, porque o assédio constitui uma forma específica de vio­ lência e a violência, em geral, nos locais de trabalho, atenta contra a personali­ dade, a dignidade e a integridade física ou psíquica dos trabalhadores e das trabalhadoras. Não sendo fenómenos novos, tendem porém a banalizar­se, em resultado de estratégias patronais para afastar trabalhadores/as incómodos/as ou indeseja­ dos/as, pela persistência de elevados níveis de desemprego, que frequente­ mente forçam os trabalhadores e as trabalhadoras a aceitar situações humilhantes, pela utilização de modos de organização de trabalho e de práticas de gestão stressantes, desumanizadas e potenciadoras de grande competição entre trabalhadores/as, pela intencional desvalorização do trabalho. O assédio contamina o ambiente de trabalho e pode ter uma consequência devastadora sobre as vítimas, e sobre os colegas que observam a intimidação e o clima de constragimento e medo que se instalam e que conduzem à degrada­ ção das condições de trabalho. Provocando danos na saúde das vitimas, tem consequências pessoais graves tais como perda de auto estima, ansiedade, rejeição ao local de trabalho, per­ turbações do sono, de pele, apatia, irritabilidade, perturbação da memória, pro­ blemas gastro­intestinais, etc, que conduzem muitas vezes a baixas intermitentes ou mais prolongadas, com repercussões ao nível das condições de higiene e se­ gurança das empresas ou serviços e com consequências inevitáveis no absen­ tismo e no normal desenvolvimento de uma relação laboral saudável e digna, aumentando inevitavelmente os riscos de segurança e de saúde no trabalho, quer internos quer externos. 59


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Na realidade o assédio moral está presente de uma forma transversal em todos os setores de atividade, dos serviços à indústria, da educação à saúde, no público e no privado, sendo possível trazer exemplos concretos de todos os se­ tores. Mas para tal, seria necessário ficar a debater mais dois dias e portanto, optei por selecionar alguns exemplos para se ter uma ideia mais clara como se processa o assédio num local de trabalho. No Sindicato dos Bancários por exemplo foi elaborado um estudo que revela que em 560 bancários inquiridos, 64 relataram situações de assédio moral, sendo prática comum na banca o Diretor convocar os trabalhadores/as do banco para reuniões até altas horas da noite. É também regra na Banca os Diretores e Ad­ ministradores saírem muito depois da hora de expediente, obrigando os traba­ lhadores/as a seguirem os seus exemplos, e quem não o fizer fica mal visto, pode ser isolado pelas chefias e até pelos colegas. O mesmo pode acontecer a quem não cumpre os objetivos de vendas, forçando trabalhadores/as a vender todo o tipo de produtos financeiros: cartões de crédito, moedas de coleção, seguros. Também na Banca existem casos de grávidas que no final de licença quando se apresentam nos seus locais de trabalho são deslocalizadas para outros balcões muitas vezes a mais de 50 Km, algumas têm até recebido emails intimidatórios para não exercerem o direito de amamentação. Mas também se pode aqui dar o exemplo daquela trabalhadora que se recu­ sou a assinar mais um contrato a prazo, quando já estava efetiva, e que foi colo­ cada no hall de entrada do banco, sem qualquer função, apenas dispondo de uma pequena secretária e de um telefone (tipo segurança). Retiraram­lhe o com­ putador e deixaram de lhe trabalho. Nos centros comerciais, a moda é as lojas de grandes grupos terem, nas entra­ das, contadores de pessoas (são barras de metal com alarmes e contadores). As trabalhadoras que ali trabalham são avaliadas em função das vendas, em relação ao número de pessoas que entram na loja. Se repararem, muitas destas trabalha­ doras, para não serem contabilizadas como clientes e não serem prejudicadas na sua avaliação, quando entram na loja, baixam­se. Esta também é uma forma de assédio, pois forçam os/as trabalhadores/as a aceitar estas situações humilhantes. Do setor têxtil trago­vos o exemplo de uma trabalhadora que, segundo a em­ presa, não estava a apresentar níveis de produção considerados satisfatórios. 60


PAINEL II – Assédio Moral – Usos e abusos do poder em tempo de precariedade

Por isso retirou­a da sua posição habitual na linha de produção e colocou­a numa máquina de costura, colocada propositadamente de frente para a sua linha de produção, em destaque, perante todas as colegas da secção de costura. Tal si­ tuação prolongou­se no tempo e tinha como efeito a humilhação da trabalha­ dora, afetando a sua dignidade pessoal. A trabalhadora levou a empresa a tribunal e esta foi condenada por mobbing no trabalho, ou assédio moral, que significa a mesma coisa. Aspeto comum a todas estas situações é o seu enquadramento numa estra­ tégia de agravamento da exploração por parte do patronato, confiado no apoio explícito e implícito da política de direita dos últimos 37 anos, que interrompeu um tempo novo de avanço impetuoso nas conquistas e direitos de quem trabalha e designadamente das mulheres, que foi a Revolução Libertadora do 25 de abril, de que este ano comemoramos o seu 40º Aniversário. Por fim gostaria de vos deixar o depoimento de uma trabalhadora que hoje é dirigente sindical e membro da Comissão de Igualdade entre Mulheres e Homens da CGTP que como ela diz: “foi o assédio moral que fez mim delegada sindical”. Trago este depoimento, porque, na minha opinião, ele aponta caminhos/suges­ tões, que podem ajudar à resolução do problema. Trata­se da intervenção de Cristina Pereira, “combater e aconselhar as víti­ mas”, feita no debate “Combate ao Assédio no Trabalho”, realizado pela CGTP, em 11.12.2013. EU FUI VÍTIMA DE ASSÉDIO MORAL Sempre que ouço falar de Assédio moral, lembro­me dos muitos dias em que mal saía a porta do prédio onde morava e tomava o percurso até ao local onde apanhava o autocarro para o SUCH, em Vialonga, as lágrimas me impediam de ver o caminho que fazia e eu não as conseguia dominar. Lembro­me do isola­ mento a que fui votada e da indiferença dos colegas. Lembro­me de muito sofri­ mento e, em especial, lembro­me bem de cada um dos métodos que foram usados comigo. Esta situação passou­se entre 2006 e 2009. Quando este processo começou, eu há mais de 2 anos que desempenhava funções de técnica­superior de Recur­ sos Humanos e decidi solicitar que me reclassificassem. 61


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

Como não recebi qualquer resposta da empresa, fiz uma participação ao ACT e começaram aí os meus problemas: Pouco tempo depois da visita do Inspetor, co­ locaram mais uma pessoa no meu gabinete, argumentando que eu já não tinha capacidade para tanto trabalho e obrigaram­me a dar­lhe formação. Durante esse período, que durou mais de um ano, o diretor de exploração, várias vezes me pediu trabalho com urgência perto da minha hora de saída e me vi obrigada a ficar a exe­ cutá­lo, noite dentro, trabalhando 15 ou mais horas consecutivas num único dia. Na manhã seguinte quando o entregava, o trabalho era severamente criticado, nunca estava perfeito. Por vezes, à minha frente pedia às minhas colegas que procedessem a alterações; outras, dizia­me simplesmente que agora já não era necessário. Mais tarde começou a retirar­me funções: primeiro o recrutamento, depois a gestão de contratos, e, uma a uma, todas as tarefas foram sendo reti­ radas de Vialonga, onde eu as executava, e entregues ao Departamento de RH em Lisboa ou entregues à colega a quem dei formação. Retiraram­me o acesso a circulares internas e outra informação essencial ao desempenho de tarefas, para influir negativamente na minha prestação de trabalho. Perto do fim do se­ gundo ano, retiram­me a classificação das faltas dos trabalhadores e as restantes funções e por último, foi­me retirado o acesso à Internet, ao mail e ao telefone. Enquanto me retirava funções, este diretor de exploração tinha muitas con­ versas a meu respeito com as minhas colegas de gabinete e até com as opera­ doras de lavandaria. Tudo serviu para denegrir a minha imagem, o meu divórcio, a minha família, a minha incompetência, a minha forma de vestir... A mim, o mesmo diretor, aconselhava­me, muitas vezes em tom paternal, a meter baixa porque estava doente, porque eu precisava de ter acompanhamento psicológico nesta fase, porque estava a passar por muitos problemas pessoais… Isto todos os dias, várias vezes ao dia, e sempre na frente das minhas colegas. Às vezes isolada, no seu gabinete, eu era um alvo. Aí me dizia: que o meu tra­ balho não tinha qualidade, que eu fosse de baixa ou para onde quisesse, que lhe saísse da frente, que o melhor seria pedir a demissão, que no secretariado ti­ nham impressos para eu preencher se fosse uma pessoa normal, que a empresa apenas precisava de gente que quisesse trabalhar e vestisse a camisola. Nenhum de vós consegue imaginar quantas formas de humilhação “esse ser” domina. 62


PAINEL II – Assédio Moral – Usos e abusos do poder em tempo de precariedade

Com o passar do tempo, comecei a sentir que não podia manter­me neste local de trabalho, eu andava deprimida, angustiada, chorava quando tinha de ir para o trabalho e mal me perguntavam o que se passava, tinha enxaquecas fre­ quentes e a tensão alta… Um dia falei com a Médica de Medicina do trabalho. Nessa conversa, entre lágrimas contei­lhe que pensava despedir­me. Eu tinha atingido o meu limite… Entre outras coisas, fui ouvida e aconselhada a falar com o meu médico assistente. Foi o que fiz. Foram­me passados 12 dias de baixa clínica. Vim para casa, me­ dicada para a depressão. Foi esse o tempo que precisei para entender os con­ tornos da situação e os seus objetivos e me permitiu definir uma estratégia a adotar para a enfrentar. Durante essa baixa, logo no início, recebi um telefonema do SUCH para me apresentar no departamento de recursos humanos da sede e foi­me proposta a rescisão por mútuo acordo. Eu até estava disposta a aceitar se me pagassem con­ juntamente com o valor da indemnização, os valores que me deviam de todo o trabalho suplementar realizado no ano anterior. Não me podiam dar uma resposta, iriam levar a minha proposta à Adminis­ tração. Dei­lhes 3 dias para me darem uma resposta. Quando me responderam, o prazo já se tinha esgotado e a baixa tinha­me proporcionado tempo suficiente para me restaurar. Não cheguei a tomar a medicação para a depressão mas a minha força anímica era outra. Eu tinha entendido quais eram os objetivos deste diretor de exploração e tomado uma decisão: ­ Não aceitaria a rescisão do meu contrato, por dinheiro nenhum. ­ Eu tenho dignidade! ­ Eu não posso aceitar humilhações! ­ Eu tenho direito ao meu posto de trabalho! No final da baixa quando me apresentei ao serviço, já não tinha computador, nem secretária, tão pouco tinha uma cadeira onde me sentar, o meu horário tinha sido alterado e estava publicado, tendo sido comunicado ao ACT. Eu deveria passar trabalhar ao sábado e a folgar um dia rotativo por semana. Dirigi­me ao Gabinete onde, por acaso, nesse dia, estava o Diretor Regional do Sul, comuniquei­lhe que de acordo com a Lei, não aceitava a mudança do horário 63


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

de trabalho e exigi o direito à ocupação efetiva. Se o não fizessem, eu participaria isso de imediato ao ACT. Nessa manhã, secretária, computador, telefone, pastas de arquivo pessoais, tudo me foi colocado no lugar. Comecei a denunciar aos meus colegas a minha situação e tomei conhecimento de outras que estavam a ocorrer, e até de colegas que pelos mesmos motivos, já se tinham despedido. Construi uma boa relação com a maior parte dos colegas. Esta relação, tirou­ me da minha redoma de isolamento, fez com que algumas delas tomassem a minha defesa e por isso fossem também ameaçadas. O ACT levantou um auto notícia ao SUCH, por não me ter atribuída a categoria, mas não lhe conheço o desfecho. O tal diretor de exploração foi­se embora sem nunca ter sido acusado de assédio. Eu, não fui reclassificada, deixei de exercer funções de técnica superior, continuo a ser administrativa e mantenho o meu posto de trabalho. Quero apenas dizer­vos que foi o assédio moral que fez de mim delegada sindical, porque conquistei o respeito e a confiança dos meus colegas e aceitei representá­los. QUE CONSELHOS DARIA A UMA VÍTIMA DE ASSÉDIO? NÃO TENTE RESOLVER SOZINHA A SITUAÇÃO – O Assédio provoca problemas de saúde – Pode dar aos outros a impressão de que a vítima é o problema – Unidos somos mais fortes ORGANIZE AS PROVAS – Anote todas as humilhações sofridas (data, hora, local ou setor, nome do/a agressor/a, colegas que testemunharam, detalhes do que lhe foi feito ou conteúdo da conversa,). – Guarde emails, ordens escritas e outros documentos que provem a sua situação

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PAINEL II – Assédio Moral – Usos e abusos do poder em tempo de precariedade ORGANIZE O SEU APOIO %DENTRO DA EMPRESA&

NÃO SE ISOLE – Mantenha uma boa relação com todos os/as colegas. NÃO CALE – Não demonstre medo. O medo reforça o poder ao/a assediador/a! Não lhe admita ofensas ou injúrias. – Exponha a situação aos/às colegas que já foram vítimas desse/a assediador/a – Procure ter o apoio dos/as colegas que testemunharam uma ou mais situações. – Conte o que se passa consigo aos/às colegas da sua confiança – Coloque a sua situação aos ORT’s na empresa e peça que a encaminhem superiormente – Conte a sua situação ao “Médico do Trabalho” EVITE – Conversas com o/a asediador/a, sem testemunhas. Faça­se, sempre que possível, acompanhar de um/a colega de trabalho ou representante sindical. ORGANIZE O SEU APOIO %FORA DA EMPRESA& – Dirija­se ao seu Sindicato, fale com um/a Dirigente Sindical – Faça queixa à ACT (carta registada c/AR) – Em caso de necessidade, procure o seu médico/a assistente. – Procure o apoio de amigos e familiares – são fundamentais para manter e elevar a sua autoestima.

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painel III


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino PAINEL III – Mário David Soares Professor Conselheiro do Comité Económico e Social Europeu Relator do Parecer “Erradicação da Violência Doméstica contra as Mulheres” de 18 de setembro de 2012

Muito boa tarde a todos e a todas. Eu comprometi­me a participar neste congresso e faço­o com muito gosto. Em primeiro lugar, queria dizer­vos o que é o CESE, o Comité Económico e Social Europeu. Para aqueles que não conhecem, é um órgão consultivo, que tem de pronunciar­se em relação a toda a arquitetura legislativa da União Europeia, no que diz respeito às questões de natureza económica e social, de cidadania, etc. Foi instituído pelo Tratado de Roma, o que significa que nasceu com a CEE. É constituído por representantes de vários setores (empresarial, trabalhadores assalariados, agentes culturais, agricultores, ambientalistas e outras organizações da sociedade civil), em proporção com o número de habitantes de cada país. Como é um órgão consultivo, exige­se­lhe que os pareceres que emite sejam construídos na base do consenso, o que lhe confere uma qualidade que o diferencia de outros órgãos. Eu fui o relator do parecer sobre “Violência doméstica contra as mulheres” de 18 de setembro de 2012. Não seria o parecer que eu escreveria, se fosse eu sozinho a escrevê­lo, mas ele é o parecer possível, em resultado do consenso dos vários setores representados. Dada esta explicação, devo dizer que o Comité Económico e Social Europeu, para além dos pareceres a que é obrigado, através da estrutura legislativa da União, pode apresentar pareceres de iniciativa própria, desde que a análise de uma determinada situação seja considerada perturbadora para a sociedade, ou merecedora de um debate social e político. É o caso deste parecer, que é da iniciativa do Comité Económico e Social que, aliás, emitiu dois pareceres por sua iniciativa sobre as questões da violência de género. Curiosamente, no primeiro parecer, que foi de 2005, eu fui o único homem que integrou o grupo de estudo e fui o seu presidente. 68


PAINEL III – Vivências íntimas e sociais desequilibradas ­ do namoro à violência doméstica

Já no segundo parecer, que foi agora em 2012, houve mais homens no estudo e eu fui o relator. Sempre tive a perceção de que estas questões não são só problemas que respeitam às mulheres, mas que têm a ver com o exercício da cidadania, daí eu não me conformar com toda a brutalidade, que atinge especialmente as mulheres, e entender que os problemas sociais têm de ser resolvidos de uma forma global. Também pensei que, neste Congresso, muita coisa já teria sido dita, quando fosse a minha intervenção. Então optei por me centrar nas recomendações e conclusões dos pareceres do Comité (a parte mais importante, porque aponta as linhas de orientação). A primeira recomendação que o Comité apresenta, neste parecer, é a de que a questão da violência contra as mulheres deve ser entendida como uma questão de direitos humanos, o que faz dela um sério problema, que exige uma responsabilidade acrescida dos Estados, que não podem demitir­se da sua resolução, desde logo através das suas próprias constituições. Mas, como os estados têm obrigação de defender os direitos humanos de todos os seus cidadãos e cidadãs, não podem reduzir a sua intervenção, neste âmbito, a umas tantas leis que criminalizem os agressores. Exige­se que os estados tenham uma visão mais holística do problema. Sendo um atentado aos direitos humanos, o estado tem a estrita obrigação, não só de eliminar, de resolver o problema através da sua constituição e das suas leis em geral, mas também tem a estrita obrigação, que é decorrente da sua natureza de estados democráticos, de defender os seus cidadãos, em todos os aspetos da sua vida, que contribuam para a eliminação deste gravíssimo problema. A segunda recomendação é de que deveriamos alterar os paradigmas da segurança e de risco. O problema da violência doméstica tem que ser assumido como uma questão de segurança global, porque afeta não só a vida individual, mas afeta também a vida comunitária. Por exemplo as crianças são das maiores vítimas da violência doméstica, direta e indiretamente. Mesmo que não exista violência doméstica sobre elas, se for exercida sobre as mães, as crianças são igualmente vítimas. Sabemos que isso afeta a sua própria vida futura, porque a violência doméstica afeta psicológicamente, de uma forma muito grave, todo o agregado familiar que a ela está exposto. 69


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

A terceira conclusão é sobre a política de prevenção da violência. E sobre esta questão, que já foi aqui focada, há muito, muito trabalho a fazer. Em primeiro lugar, é preciso combater (e isto foi referido no painel anterior) as questões da tradição e da cultura, que subjugam as mulheres e lhes atribuem diferentes e desvalorizados estatutos sociais. A tradição e a cultura não podem justificar tudo. A comunidade cigana, por exemplo, não tem direito de impedir que as crianças vão à escola, com a justificação da tradição e da cultura, ou que casem aos 12 anos ou 11 anos, como hoje também já ninguém aceita a prática da excisão do clitóris e até dos lábios vaginais das crianças e das mulheres. Este combate que tem que ser feito respeitando as culturas, mas não aceitando que, por razões culturais, se possa violar direitos humanos, exige também um trabalho muito, muito profundo de prevenção. A cultura está intimamente ligada ao exercício do poder. Quando uma determinada cultura muda de paradigma no que respeita ao exercício do poder, tudo se altera. A cultura vai evoluindo e, evolui tanto mais, quanto mais aumenta a participação das mulheres, quanto mais as mulheres participam no exercício do poder. E como já foi referido, durante a manhã numa das intervenções, questionar a subalternização das mulheres no exercício do poder é fundamental, se quisermos alterar culturas de subjugação, onde a violência sobre as mulheres é não só permitida, como justificada e incentivada. As mulheres são 50,8% da população mundial. Não podem ser arredadas do exercício do poder. Mas não pode ser um poder fictício e reduzido, por exemplo, ao momento da constituição das listas para as eleições, pondo uma mulher a seguir a um homem, quando depois quem ganha sempre são os homens. Se olharmos para os secretariados dos parttidos políticos, por exemplo, quem é que lá está, em geral? São os homens, com duas pinceladas de mulheres, muitas vezes para completar as quotas. O exercício do poder implica outro tipo de condições. Eu lembro­me que, há muitos anos, uma das formas que os sindicatos na Holanda utilizaram, para aumentar a presença das mulheres nos órgãos dirigentes de topo, foi contratar educadoras de infância para que tomassem conta das crianças, enquanto as suas mães, dirigentes sindicais, participavam tranquilamente nas reuniões, porque 70


PAINEL III – Vivências íntimas e sociais desequilibradas ­ do namoro à violência doméstica

sabiam que os seus filhos estavam bem cuidados. Portanto, para o exercício do poder não basta dizer que as mulheres têm direitos, é necessário criar as condições para que elas os exerçam. Fica aqui também uma outra questão, que tem a ver com a identidade das mulheres e dos homens. Os homens são normalmente identificados como agressivos, detentores da força e da ação, ao contrário das mulheres que são mais passivas e submissas. É aquela ideia de que um homem não chora, de que um homem não pode ter afetos, não pode transmitir esses afetos. E estas questões da identificação de comportamentos de género também não podem deixar de ser tidos em conta e desconstruídos, para que se produzam mudanças positivas. Queria também falar­vos das políticas de proteção social, que constituem outra das recomendações. Mas não é possível falar das políticas de proteção, sem referir a crise económica e financeira que vivem os estados. Hoje, as medidas de proteção às mulheres estão em risco, porque os grandes cortes que fazem os estados são feitos nos orçamentos sociais. A recomendação refere, por exemplo, quanto às políticas de proteção, a necessidade de um trabalho digno, bem remunerado, sem discriminação salarial. Isto é muito importante, porque estamos numa situação em que o desemprego prolifera, o trabalho é precário, e nós sabemos que as primeiras vítimas do desemprego, do trabalho precário, do trabalho a tempo parcial (sem que essa seja uma opção, porque isso significaria receber metade do salário) são as mulheres. Nas circunstâncias de crise profunda, que estamos a viver, são sempre as mulheres as mais atingidas, e de uma forma especial as mulheres migrantes e as mulheres com deficiência. Por isso, a recomendação do CESE refere que, precisamente por estarmos em situação de crise, o investimento no desenvolvimento de políticas sociais de proteção, por parte dos estados, aumente. Até porque a própria crise também é geradora de agressividade nas famílias, tornando a vida das vítimas ainda mais intolerável. Outra questão que colocámos no parecer tem a ver com a importância da homogeneização dos critérios estatísticos. Isto é, nós precisamos hoje, para termos uma real perceção do que se passa, de ter critérios estatísticos que possam ser idênticos em todos os países da Europa. Quando, em 2005, fui presidente desse grupo de estudos sobre a violência doméstica, fiquei aterrado com os documentos que a Comissão nos forneceu. Um documento referia, por 71


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

exemplo, que havia mais violência doméstica na Suécia do que em Portugal. E eu, que conhecia a Suécia, mas conhecia muito melhor Portugal, percebi que as estatísticas não refletiam a realidade dos países, mas a consciência que, em cada um deles, havia sobre o conceito de violência doméstica. Violência doméstica não é só um olho negro, umas costelas partidas, mas também a agressividade psicológica, que muitas vezes doi mais do que a violência física. Então percebemos que os padrões de análise da violência eram diferentes. Haveria menos violência doméstica em Portugal? É claro que não. Havia, porventura, mais consciência do que era a violência doméstica na Suécia. Outra recomendação é a importância que deve ser dada à educação, o que também já foi aqui referido. A escola pode constituir mesmo uma espécie de laboratório, porque aí é possível ter a perceção de como é que está a evoluir a consciência do que é a violência doméstica. Ou seja, a escola, que se constitua em laboratório social, pode observar e intervir diretamente sobre os jovens, nomeadamente sobre a violência no namoro, e prevenir a violência doméstica nas relações adultas. Os professores têm de receber uma formação adequada, que lhes permita não só analisar, como discutir, apreciar, conversar com os jovens sobre estes fenómenos de igualdade de género e de prevenção da violência. Uma questão que tem de se ter em conta é o conteúdo dos manuais escolares, se veiculam, ou não, conceitos sexistas. E nesse sentido, é fundamental fazer uma análise dos materiais escolares, com um enorme cuidado, porque o sexismo não é imediatamente visível. Muitas vezes, surge de uma forma subliminar. Daria ainda mais duas notas sobre a recomendação. A primeira tem a ver com a corresponsabilização de homens e mulheres na família. É fundamental intervir para combater o preconceito de que é responsabilidade das mulheres tratar dos filhos, ou dos familiares mais velhos. É preciso formar para a ideia da corresponsabilização profunda. Não se trata de, de vez em quando, os homens cuidarem das crianças e das pessoas idosas, trata­se de dividir tarefas porque, ambos, homens e mulheres, são igualmente responsáveis, naquela família, por cuidar do filho, por cuidar dos pais, porque essa é uma responsabilidade partilhada. Uma das ideias centrais desta recomendação é ainda a necessidade de ganhar a participação dos homens para o combate à erradicação da violência doméstica. Isto implica também intervir junto dos agressores, ajudando­os a ultrapassar os seus instintos brutais. Uma das nossas colegas do grupo de trabalho tinha 72


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experiência de intervenção nesta área e testemunhava situações em que o próprio agressor passava a ser um elemento ativo de combate à violência doméstica. Esta foi uma abordagem muito interessante do problema e exigiu um enorme cuidado na sua redação, por forma a que ficasse bem claro que não se tratava de desculpabilizar o agressor, mas dar­lhe o direito a uma intervenção terapêutica, independentemente da intervenção criminal, para que possa ser tratado. Devo dizer que esta questão não foi muito pacífica entre nós, mas, enfim, ficou registada a recomendação, tanto mais que o próprio agressor, muitas vezes é oriundo de famílias onde existiu agressão. Ficaram também duas notas: a de que as organizações que trabalham com as mulheres devem ser profundamente ajudadas e financiadas, porque têm um papel fundamental no combate e na prevenção da violência e a de que esta não é só uma questão de voluntariado, exige a implicação de pessoas especializadas e, para isso, é necessário mais financiamento para as organizações que trabalham com vítimas da violência doméstica. Constatamos que, apesar de estar a aumentar a violência doméstica, tem diminuido o financiamento e, em situações de crise como esta, deve acontecer exatamente o contrário, essas organizações têm de ser apoiadas. Porque este é um fenómeno amplo, complexo, abrangente e suficientemente grave de violação dos direitos humanos, o grupo de trabalho recomendou à União Europeia que dedicasse um Ano Europeu à Luta Contra a Violência de Género. Finalmente, recomenda­se a ratificação da Convenção de Istambul por todos os países da União Europeia. E sabem quais foram os dois primeiros países que assinaram a Convenção? Não foi a Alemanha, não foi a França, não foi a Inglaterra. Foi a Turquia e a Albânia. Devo dizer­vos que a primeira intervenção que fui fazer, após a realização deste parecer, foi exatamente na Turquia. A verdade é que só quando, pelo menos 10 países ratificarem a Convenção de Istambul, que é uma Convenção do Conselho da Europa (não abrange só os países da União Europeia) ela entrará em vigor. Obrigada pelo convite, espero ter contribuído, de alguma forma, para esta reflexão tão importante que o MDM está a promover com a realização deste Congresso.

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A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

PAINEL III – Joana Sofio Coordenadora do Projeto Criar Mundos de Igualdade – Agir e Convergir para Mudar

Outras formas de pensar a violência O Núcleo de Évora do Movimento Democrático de Mulheres está atualmente a desenvolver um projeto financiado pelo Fundo Social Europeu e apoiado pela Co­ missão para a Cidadania e Igualdade de Género, intitulado “Criar Mundos de Igual­ dade – Agir e Convergir para Mudar”. Neste Congresso sobre a “ Multiplicidade da(s) violência(s) – um real bem feminino”, estão em análise as variadas violências que atingem particularmente as mulheres. Pretendemos com a nossa intervenção partilhar experiências e a nossa perspetiva sobre estes temas, decorrente do tra­ balho que tem vindo a ser desenvolvido nos últimos anos no distrito de Évora e no Litoral Alentejano (Concelhos de Santiago do Cacém, Grândola e Sines). Sucintamente, os principais objetivos do projeto são: Prevenir a Violência no Namoro envolvendo alunos/as de escolas de ensino secundário, profissional e superior; dinamizar redes locais e regionais contra a Violência Doméstica, para a Igualdade entre Mulheres e Homens; Valorizar o papel da mulher na sociedade; criar transversalidade disciplinar com parceiros (de índole artístico, cultural, edu­ cação, saúde, autarquias, media locais) e sensibilizar a sociedade para o combate à Violência Doméstica. Realizámos um seminário de apresentação e outro de aprofundamento das temáticas em análise. Promovemos círculos de interesse temáticos com mulhe­ res líderes. Realizámos várias ações de sensibilização e informação junto da co­ munidade escolar sobre Violência no Namoro, Tráfico de Seres Humanos, Mutilação Genital Feminina, Saúde Sexual e Reprodutiva, Igualdade de Oportu­ nidades e de Género. Fomentámos a produção de materiais de informação, sen­ sibilização e difusão em colaboração com a comunidade procurando elos culturais e afetivos e linguagens criativas em defesa dos valores da igualdade. Chamámos a esta intervenção OUTRAS FORMAS DE PENSAR A VIOLÊNCIA porque idealizámos, neste projeto, dar o protagonismo às mulheres e não à violência. 74


PAINEL III – Vivências íntimas e sociais desequilibradas ­ do namoro à violência doméstica

Um dos primeiros produtos visuais que criámos para ações de sensibilização do combate à violência doméstica, foram os cartazes da Campanha Casa (Não) Violenta, onde as imagens apresentadas dão protagonismo a utilizações subtil­ mente violentas de objetos ligados ao espaço doméstico e são apresentadas jun­ tamente com dados relativos aos crimes ocorridos na esfera da vida privada. Realizámos ateliês de expressão plástica, com as utentes de alguns centros de acolhimento a vítimas de violência doméstica, no Alentejo. Os diálogos com as utentes destes espaços foram momentos privilegiados de cruzamentos com a equipa do projeto. Num momento em que os dados estatísticos apontam que um em cada quatro jovens é vítima de violência, nas relações de intimidade, urge falar e debater esta temática. É prioritário alertar para diferentes formas de violência no namoro, para a gravidade das consequências desta questão e promover estratégias de combate à violência. Nas ações que realizámos dedicada a esta temática junto da comunidade es­ colar, os/as alunos/as apontaram o problema e resolveram de forma criativa criar imagens de combate a esta realidade. Foram várias as questões referidas pelos/as estudantes, como o controlo, os ciúmes, os vários tipos de agressões, sempre relatadas e presenciadas pelos alunos e alunas com quem tivemos a oportunidade de conversar. Contactámos diretamente com muitas pessoas diferentes, mulheres de seto­ res profissionais distintos e com diferentes perspetivas sobre a violência. Mulhe­ res líderes, mulheres autarcas, mulheres vítimas de violência, mulheres desempregadas... Surgiu a ideia de usar a criatividade deste grupo heterogéneo de pessoas para discutir e tentar sensibilizar a comunidade para as questões da violência. Em 2014 são celebrados os 104 anos da declaração e reconhecimento do 8 de março como Dia Internacional da Mulher. “Sonos Falados” surgiu como um projeto artístico de caráter colaborativo que contou com a participação de 104 mulheres de setores profissionais distintos. A proposta consistiu em distribuir por um conjunto distinto de mulheres uma pequena almofada e colocar­lhes o desafio de fazer uma intervenção plástica na mesma. A almofada enquanto ob­ jeto é o local físico onde são depositados diariamente os sonhos, as ansiedades, 75


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

os medos e as ambições que se vão encadeando diariamente. O desafio foi assim um convite a tentar representar simbolicamente o seu depositário de sonhos e/ou medos, isto é, deixar sobre a almofada as formas que contornam algumas das suas preocupações ou sonhos. “Sonos Falados” é o título da exposição dos 104 objetos intervencionados pelas 104 mulheres que participaram neste projeto e que foram convidadas quer a nível individual quer pelo trabalho que desen­ volvem em algumas instituições. Promovemos, deste modo, iguais oportunidades para todas as mulheres ex­ pressarem os seus pensamentos sobre estas questões. O resultado foi inequivo­ camente relevante, pelos conteúdos, pela experiência em si e pela diversidade de mensagens de apelo ao fim da(s) Violência(s) sobre as mulheres. Projeto Criar Mundos de Igualdade| Agir e Convergir para Mudar Movimento Democrático de Mulheres – Núcleo de Évora Rua de Machede, nº53 A 7000­864 – Évora Tl:266707171| Tlm: 962664470/967840360 Email: mdmevora@hotmail.com

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PAINEL III – Vivências íntimas e sociais desequilibradas ­ do namoro à violência doméstica

PAINEL III – Carina Novais Cordenadora do Projeto “Sensibilizar e Prevenir Desigualdades: Agir na Minha Escola”

Prevenção da(s) violências no namoro: Perceções de jovens do distrito do Porto |A comunicação “Prevenção da(s) violências no namoro: Perceções de jovens do ­distrito do Porto” é resultado de um trabalho de investigação­ação desenvolvido pelo MDM | Núcleo do Porto no âmbito do projeto “Sensibilizar e Prevenir Desigual­ dades: Agir na Minha Escola”. Este projeto tem como objetivo geral sensibilizar e in­ formar o público jovem sobre discriminações e violências que afetam a vida das mulheres. Há um investimento em desenvolver vários tipos de ação que tenham re­ presentatividade no meio escolar e que vão atuar enquanto ações de prevenção das violências. Os resultados apresentados neste Congresso incidem sobre uma das te­ máticas abordadas nas ações de sensibilização desenvolvidas ao longo deste ano – a prevenção das violências nos relacionamentos de intimidade. O trabalho de pre­ venção exige uma metodologia pedagógica ativa que seja capaz de conhecer as per­ ceções e as representações de jovens, mas que seja também capaz de informar, sensibilizar e estimular a reflexão e o diálogo. Este trabalho vai seguir várias linhas de atuação direta, nomeadamente a promoção de debates estimulados por vários recursos, como sejam o teatro invisível (atores surpreendem os jovens com situações de violência entre casais de namorados) e os jogos lúdico pedagógicos (cartões dis­ tribuídos pelos/as participantes convidam­nos a debater com o grupo várias situa­ ções que devem ser inseridas numa caixa “é violência no namoro” ou numa outra caixa “não é violência no namoro”). Atuamos dando protagonismo aos jovens, não são meramente destinatários das nossas ações. Estimulamo­los à construção de ma­ teriais pedagógicos que permitam aplicar conceitos apreendidos de uma forma ar­ tística e criativa, são exemplos: cartazes interventivos, spots de rádio, representação teatral, vídeos de sensibilização, spots de animação. Estes materiais refletem o in­ dispensável envolvimento de jovens e de parceiros neste projeto e são de elevada relevância, uma vez que permitem a sensibilização de públicos mais vastos e diver­ 77


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sificados, bem como a disseminação deste projeto. O estabelecimento de uma rede de parcerias com escolas do distrito do Porto – Porto, Valongo, Gondomar, V.N. de Gaia, Matosinhos ­ permitiu desenvolver ações de sensibilização e informação que envolveu diretamente alunos/as e comunidade docente e não docente. A investiga­ ção é parte integrante deste trabalho e, assim, é aplicado um inquérito por questio­ nário antes e após a implementação das ações. Num primeiro momento, este instrumento permite conhecer as origens sociais dos jovens e as suas perceções re­ lativamente à violência no namoro. Num segundo momento, este instrumento per­ mite medir o impacto da ação implementada, isto é, se a intervenção do MDM teve algum efeito na mudança de perceções dos jovens participantes. Temos amostra cri­ teriosa de 670 jovens, equilibrada segundo o género (H=53.3% e M=46.7%), com uma ampla faixa etária (dos 12 aos 24 anos e cuja idade média é de 16 anos) e pro­ venientes de diversos contextos sócio­económicos (oriundos do operariado, de tra­ balhadores de execução, de trabalhadores independentes, de trabalhadores técnicos, de empresários, dirigente e trabalhadores liberais). Os resultados obtidos sugerem, desde logo, uma associação evidente entre o conceito de “violência no namoro” a comportamentos exercidos de forma física e verbal, uma vez que as situações “agres­ são física” e “insulto” foram as que recolheram a maioria de concordância (totalidade da amostra), o que vem refletir que estes jovens representam a violência no namoro através de atos visíveis e fáceis de detetar através da observação. Mas, ultrapassados estes padrões e colocando em debate outro tipo de violências, como seja a violência psicológica, não há um reconhecimento desta como tal, considerando aliás “ser um exagero chamar, a isso, violência no namoro”. Exemplos discutidos “controlar o que a outra pessoa está a fazer, é ou não é violência no namoro?”. As opiniões dividem­ se e é igualmente partilhada por rapazes e raparigas, sendo que a maioria vai consi­ derar que não se trata de um exercício de violência sobre a/o parceira/o, mas um exercício de afeto porque “quem controla é que gosta, quem se preocupa e se inte­ ressa”. O trabalho que se exige orienta­se para a desconstrução da normalização do “controlo” e do “poder” e os efeitos obtidos são positivos, uma vez que vai diminuir drasticamente o número de jovens que não reconhecem o controlo como exercício de violência. Controlar o que a outra pessoa veste irá ser entendida como uma si­ tuação de violência no namoro (59%), mas as opiniões ficam muito divididas e a per­ centagem de jovens que não o reconhecem é muito elevada (41%). Reconhece­se um total controlo dos rapazes sobre as raparigas neste parâmetro considerando que 78


PAINEL III – Vivências íntimas e sociais desequilibradas ­ do namoro à violência doméstica

“as raparigas que namoram não devem exibir o corpo porque fazê­lo é um ato de provocação face ao parceiro”. Esta posição é, inclusivamente, partilhada pelo sexo feminino com algum significado. Refere uma jovem “as raparigas têm namorado e vêm para a escola todas provocantes. Estão mesmo a pedi­las…”. O trabalho desen­ volvido pelo MDM permitiu desconstruir estas perceções relativamente ao corpo/papel da mulher e os resultados obtidos após as sessões mostram que dimi­ nuem drasticamente os jovens que não reconhecem o controlo do que se veste como violência no namoro (de 41% para 10%). Quando discutimos “fazer cenas de ciúmes em público” verificamos que é a situação que causa maior discordância entre este público estudado. Assim, vão considerar que não é exercer violência sobre a outra pessoa, porque o ciúme é reflexo de afeto e quando é levado a uma situação de ex­ tremo como manifestações públicas deve ser entendido como tal. Exige­se a des­ construção do mito “tem ciúmes porque ama” e os resultados obtidos são de significativa mudança (de 52% de jovens a afirmarem “não é violência no namoro” passamos a obter apenas 10%). Assim, podemos afirmar que estes jovens ampliaram o “conceito de violência no namoro” a situações de violência psicológica. Sabendo que este conceito é multidimensional, acrescentamos outros indicadores nesta dis­ cussão. Abordamos a violência social remetendo­nos para situações que afetam os indivíduos na sua vida em circunstância social, por exemplo, controlar o telemóvel. Face a esta situação, verificamos que embora os jovens considerem tratar­se de um exercício de violência (56%), 44% não o irá reconhecer, considerando que “se confia, não tem porque temer” e que “temos direito a saber com quem se relaciona”. O res­ peito pela privacidade e pelos espaços individuais são chaves essenciais para traba­ lhar estes preconceitos e, assim, o impacto da ação tem efeitos relevantes, uma vez que iremos obter uma maioria (88%) informada e que reconhece este ato como um ato de violência sobre o/a parceiro/a. Discutindo a situação “impedir que se relacione com outras pessoas” vamos encontrar jovens sensibilizados e que reconhecem aqui abuso e violência. No entanto, os/as que não o reconhecem deste modo (28%) dizem­nos “quer ir ao cinema com as amigas? Vai com o namorado!” remetendo para a necessidade de intervir sobre o preconceito “mulher/propriedade” e os re­ sultados obtidos diminuem para 10% os/as jovens que pertenciam a este grupo. Ainda no que se refere à violência social, esteve em debate a situação “impedir que frequente determinados locais”. 56% dos/as participantes considera que é violência no namoro e 44% considera que não é violência no namoro. Estes últimos referem 79


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que é um ato de proteção e é exercido maioritariamente dos rapazes para as rapa­ rigas, mas é uma perceção partilhada por ambos. Dizem­nos: “para que é que uma rapariga vai a uma discoteca se já tem namorado? Eu confio nela, não confio nos ou­ tros”. A intervenção exigida orienta­se, mais uma vez, para a desconstrução do pre­ conceito “mulher/propriedade” e para a transmissão dos significados de “confiança” e de “respeito”. Obtemos resultados que mostram jovens mais esclarecidos, de 56% para 83% dos que reconhecem esta situação como exercício de violência no namoro. Por fim, o questionário aplicado integra uma pergunta aberta que permite (de forma anónima e confidencial) conhecer casos de violência no namoro. Perguntamos “és ou alguma vez foste alvo de algum tipo de comportamento como os que falamos nesta sessão?”. Foram 40 os jovens (média=15 anos) que assumiram viver ou terem vivido experiências de violência, maioritariamente do sexo feminino (37 jovens). Os testemunhos remetem para as diversas dimensões da violência no namoro: Física ­ “Quando eu queria acabar com ele, ele não queria e obrigava­me a namorar com ele, se não batia­me”; Verbal ­ “insultava­me”; Psicológica ­ “Controlava tudo o que eu fazia. “Ameaçava terminar a relação se não fizesse o que ele queria.”. “Controlava a forma de vestir”; Social ­ “não tinha amigos rapazes. Não me deixava relacionar com outras pessoas, entrava no meu facebook, mexia no meu telemóvel.” Controlar, forma de vestir, mexer no telemóvel, cenas de ciúmes em público e não deixar fre­ quentar locais.”; Sexual ­ “Fui violada por ele.” Quando pensamos num trabalho de prevenção e de intervenção sobre as violências com um público jovem é importante conhecer as suas perceções, mas também o impacto das ações implementadas. Deste modo, podemos concluir que este trabalho desenvolvido no âmbito do projeto “Sensibilizar e Prevenir Desigualdades” teve um impacto significativamente positivo na mudança de perceções destes jovens. No final das sessões, encontramos jovens mais informados, esclarecidos e sensibilizados para a vivência de relacionamentos íntimos sem violências. São jovens capazes de reconhecer diversas situações de vio­ lência, de gerir conflitos, de saber o que é crime público e de aceder a vários recur­ sos/organizações existentes na sociedade. Estes resultados servem­nos ainda como orientação para o futuro, já que temos que reconhecer que a mudança de perceções não é significado de mudança de comportamentos, mas é certamente parte desse processo e é nessa direção que o MDM trabalha.

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PAINEL III – Vivências íntimas e sociais desequilibradas ­ do namoro à violência doméstica PAINEL III – Delcia Pereira Cáritas Diocesana de Aveiro

(DES)AMOR – Experiência de Sensibilização no contexto do Projeto MEATUS O Projeto Meatus surgiu no âmbito de uma candidatura da Cáritas Diocesana de Aveiro ao Programa Operacional Potencial Humano, Eixo 7 (Igualdade de Gé­ nero), medida 7.3 – Apoio Técnico e Financeiro às Organizações Não Governa­ mentais. Este Projeto iniciou a sua atividade a 31 de dezembro de 2012, com o objetivo de constituir uma resposta de alargamento dos domínios de intervenção ao nível do distrito de Aveiro, assim como, de reforço e apoio à atuação do Nú­ cleo de Atendimento às Vítimas de Violência Doméstica do Distrito de Aveiro, com sede na Cáritas Diocesana de Aveiro. O Projeto Meatus direciona a sua intervenção para um público­alvo distinto e abrangente – vítimas diretas de violência doméstica; crianças e jovens; técni­ cos/profissionais e comunidade em geral. O trabalho realizado com os destina­ tários apresenta­se subdividido em cinco tipos de ações exclusivas e que passo de seguida, de forma sintética, a especificar. A Ação 1 focaliza a sua atividade na implementação de programas psicoedu­ cativos, no âmbito da Igualdade de Género, para públicos estratégicos, nomea­ damente reclusos preventivos e beneficiários do rendimento social de inserção. A Ação 3 está direcionada para a intervenção junto de Profissionais de áreas­ chave, através da dinamização de sessões de sensibilização de 12h, no âmbito da Igualdade de Género e da Prevenção e Combate à Violência de Género, se­ guindo os referenciais disponibilizados pela Comissão Para a Cidadania e Igual­ dade de Género. De forma a complementar a intervenção do Projeto, na área da prevenção, a Ação 4 promove ateliers de sensibilização e formação para a educação interpares na temática violência no namoro/igualdade de género, especialmente para jo­ vens do ensino secundário e profissional. A Ação 5 concentra o seu trabalho na implementação da metodologia dos GAM (Grupos de Ajuda Mútua), para mu­ 81


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lheres vítimas de violência doméstica. Por fim, a Ação 6 constitui­se como um espaço de produção e divulgação, através da conceção de materiais informativos e de sensibilização, criados pelos alunos/as das diferentes escolas do distrito de Aveiro, subordinadas às temáticas da promoção da Igualdade de Género e de combate à Violência de Género. Contexto de Sensibilização Ação Interpares Nesta atividade foram realizados ateliers de sensibilização, no âmbito da violência no namoro/igualdade de género e intervenção/formação para educação interpares, com a duração de 2 horas cada sessão, tendo sido realizadas por grupo 5 a 7 sessões, dirigidas a alunos do ensino profissional e secundário. Objetivos Divulgar campanhas nacionais em matéria de direitos humanos; Promover atitudes e comportamentos de respeito pela diferença e pela multiculturalidade; Promover a consciência coletiva baseada em valores de igualdade e de res­ peito pela diferença; Educar os jovens através dos seus pares, de forma a prevenirem e comba­ terem a violência nas suas relações de intimidade. No âmbito da dinamização da ação interpares, foi possível através do teatro fórum e de jogos dinâmicos obter algumas verbalizações referentes aos compor­ tamentos que estes jovens têm nas suas relações de intimidade: “É normal vermos o telemóvel ou o facebook um do outro, porque se não há nada a esconder, então qual é o problema?” “Entre um casal não devem existir segredos, porque o casal deve ser um só” “Empurrar o/a namorado/a é normal, não é agressão mas sim uma pro­ vocação ou uma defesa” 82


PAINEL III – Vivências íntimas e sociais desequilibradas ­ do namoro à violência doméstica

“O meu namorado não se sente confortável que eu ande com mini saias e decotes, por isso devo respeitá­lo e dar­me ao respeito, deixando de usar roupa mais vistosa” “Se eu tiver namorado/a, por uma questão de respeito, não devo ter mui­ tos amigos do sexo oposto” “Se o meu/minha namorado/a não tiver ciúmes de mim, é porque não gosta verdadeiramente de mim” “Se o/a meu/minha namorado/a me pedir para ter relações sexuais com ele/ela, mesmo que essa não seja a minha vontade naquele momento porque estou cansada/o, devo fazê­lo para o/a agradar e porque faz parte de uma relação” “Devo controlar o/a meu/minha namorado/a, porque não se deve dar demasiada liberdade” “Por gostar tanto dele/a, tive de deixar se ser eu própria/o, para evitar conflitos entre nós. Deixei de estar com os meus amigos para poder estar mais tempo com ele/a” Conclusões Apesar das inúmeras ações de sensibilização efetuadas ao nível do distrito de Aveiro, que visam a promoção da desconstrução dos estereótipos sociais associados a cada um dos sexos, a cultura continua a ter um forte peso na sociedade e a ter o poder de legitimar e perpetuar comportamentos que passam de geração em geração, sem serem questionados, interiorizados como dados adquiridos – valores machistas ainda persistentes na atualidade. Os jovens continuam a ter uma visão distorcida do que é, ou deve ser, uma relação de intimidade saudável e isso acaba por se refletir nos seus com­ portamentos/atitudes, normalizando o controlo que exercem, os ciúmes excessivos (tidos como provas de amor), as perseguições e as consequentes agressões físicas, nomeadamente o empurrão…

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A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino PAINEL III – Joana Lima Cordenação do projeto “Viver Direitos, Vencer Violências – da escola ao espaço público”

Educar e sensibilizar para vivências íntimas equilibradas, em escolas livres de violência no namoro O projeto VDVV, que tem neste congresso um dos seus pontos altos, aparece na sequência de outros 2 projetos que o MDM promoveu no Distrito de Aveiro, e marca também 8 anos de intervenção sobre a temática da violência no namoro. Temos procurado desenvolver ações e construir produtos de sensibilização para este tema, mas também ir mais longe no processo de reflexão e intervenção, com a consciência crescente de que esta temática necessita de uma abordagem que vá muito além da sensibilização específica para os aspetos da violência no namoro, com o aprofundamento da multiplicidade das questões de género, dos fenómenos das violências nos contextos pessoais, familiares e sociais dos jovens, que constituem o nosso público alvo. Tem sido objetivo deste projeto dinamizar o trabalho colaborativo, em rede, com outras instituições que atuam neste âmbito, com escolas, com a universidade de Aveiro. Por outro lado, como metodologia de trabalho, temos procurado envolver os próprios jovens na criação e desenvolvimento das nossas ações e produtos. Aqui. na universidade trabalhamos em ações concretas com o Grupo experi­ mental de Teatro (Gretua) – já assistimos, no início do Congresso, a um pequeno filme que realizámos, concebido e interpretado pelos jovens atores do Gretua e que tem sido exibido em espaços sociais de convívio, na Universidade e nas es­ colas ­ e com alunos do DECA (Departamento de Comunicação e Arte), cujo tra­ balho já desenvolvido será apresentado mais à frente, neste painel. Trabalhámos ainda com um grupo de professores e professoras do ensino se­ cundário na produção de uma unidade didática, que apresentámos a 25 de no­ vembro, no “Dia Mundial da Erradicação da Violência sobre as Mulheres”, onde 84


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se incluiu um conjunto de programações de aulas de várias disciplinas. Nestas programações faz­se a abordagem de temáticas sobre a igualdade de género, as violências, nomeadamente a violência no namoro, procurando demonstrar que é possível a escola intervir, mesmo no âmbito do currículo formal, com o objetivo de promover uma educação e uma cultura de não violência. Este projeto termina em maio, mas nós vamos continuar a nossa intervenção, como aliás sempre fizemos. O horizonte temporal do nosso projeto é curto, não permitindo levar muito por diante ideias chave que foram surgindo, ao longo do tempo, em que temos desenvolvido o nosso trabalho. É este o caso da promoção de uma “Rede de escolas livres de violência no namoro”. Parafraseando a célebre frase de Eduardo Galeano “La utopía está en el ho­ rizonte. Camino dos pasos, ella se aleja dos pasos y el horizonte se corre diez pasos más allá. Entonces para que sirve la utopía? Para eso, sirve para caminar.” E como não nos falta vontade de perseguir a utopia, vamos continuar a caminhar. Na verdade, os jovens passam a maior parte da sua vida na escola e aí iniciam, em regra, os seus relacionamentos íntimos. Por isso a escola não pode deixar de desempenhar um importante papel na sua educação e sensibilização para vi­ vências íntimas equilibradas e em igualdade. O papel das escolas na formação integral dos indivíduos, nomeadamente na escola pública, tem sido alvo de ataque sistemático, que não nos parece de todo inocente. Lamentamos, o facto da disciplina de educação cívica ter sido retirada dos programas e de se reduzirem cada vez mais, os espaços para a interdisciplinari­ dade e para a intervenção social. Achamos e sabemos, pela experiência na construção da unidade didática já referida, que é possível sensibilizar os professores, para que estes individual­ mente ou através dos grupos de docência, integrem no currículo formal das suas disciplinas as questões de género e do combate às violências. Mas a escola tem de ir mais longe do que isto. Tem de se organizar com tempos, espaços e recursos humanos motivados e preparados para sensibilizar e educar para vivências ínti­ mas equilibradas. Para darmos seguimento a esta utopia, contamos com os nossos parceiros, que terão de ser alargados a mais escolas e outras entidades da comunidade 85


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educativa, como as associações de pais, aos professores através dos seus sindi­ catos e das suas associações de ordem científica e pedagógica, às autarquias, às instituições que estão envolvidas na prevenção e no combate à violência, para, em conjunto, chegarmos a uma proposta para apresentar ao Governo, Ministério da Educação e Secretaria de Estado da Igualdade. A construção de uma rede de escolas livres de violência no namoro terá de contemplar investimento público na formação de professores, na contratação de técnicos(as), como psicólogos(as) e assistentes sociais, na constituição de equipas técnico­pedagógicas multidisciplinares nos agrupamentos e escolas não agrupa­ das, na revisão dos currículos, das tarefas e horários de professores e alunos. Queremos discutir estas ideias com os atuais e futuros parceiros e construir uma proposta bem estruturada, que possamos levar aos órgãos de poder, no­ meadamente à Secretária de Estado da Igualdade (que no dia 25 de novembro manifestou a opinião de que é necessário investir nas escolas para combater a violência no namoro), ao Ministro da Educação, ao Governo e outras instituições de poder. Voltando aos produtos do Projeto VDVV, queríamos repetir o sucesso que ti­ vemos no anterior projeto com a produção da curta metragem “de mãos dadas com o medo”, e construir um novo e inovador produto. Demos para isso especial importância à criação de um ao vídeo­jogo sobre a violência no namoro. A proposta para a elaboração deste produto foi muito bem acolhida pela UA, nomeadamente pelo DECA (na pessoa da professora Margarida Almeida) e foi integrada na disciplina de projeto do último ano da licenciatura em Novas Tec­ nologias da Comunicação. Mas vou deixar­vos agora assistir à apresentação deste trabalho, que ainda está a decorrer, pelos próprios alunos/criadores.

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PAINEL III – Vivências íntimas e sociais desequilibradas ­ do namoro à violência doméstica

Daniela Santos

Luís Almeida

Luís Monteiro

Sara Tuna

Alunos e alunas do Curso de Novas Tecnologias da Comunicação da UA – Universidade de Aveiro

Margarida Almeida Docente do Departamento de Arte e Comunicação da UA – Universidade de Aveiro

Unlove, um vídeo jogo em construção Antes de mais, boa tarde. Nós somos quatro alunos do curso de Novas Tec­ nologias da Comunicação, como a Joana acabou de referir. Estamos no terceiro ano e foi­nos proposto a elaboração de um projeto, para a Unidade Curricular de Projeto, que essencialmente prevenisse e sensibilizasse jovens acerca da temática da violência no namoro. Através de pesquisas que temos efetuado, percebemos que se trata de uma temática de grande atualidade e que, fundamentalmente, é necessário atingir os jovens em relação a ela. Por­ tanto, quero aqui afirmar também que algumas das coisas que eu poderei dizer podem estar sujeitas a alterações, uma vez que o projeto irá estar finalizado, entre meados de junho e julho. Por isso, é possível que alguma coisa que vou comunicar não coincida com o produto final. Para já, o projeto tem o nome de Unlove e venho aqui explicar o que é isto afinal. Acima de tudo, tentámos perceber o que é que nos motiva a fazer isto. E, quando falamos de motivação, para o efeito deste projeto, é­nos essencial per­ 87


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ceber o que tínhamos de fazer. Percebemos que era necessário mudar algumas mentalidades dos jovens, que era necessário existir um processo de conscien­ cialização dos jovens e, acima de tudo, tentar alcançar metas para a sensibilização e a prevenção. Para isso tivemos de definir – e foi essencial definir – onde, e com quem, íamos atuar em concreto. Percebemos que o público­alvo a quem se ia dirigir o nosso trabalho, em resultado das pesquisas que fizemos, das pessoas com quem falámos, que estão a acompanhar o nosso projeto, deveria estar na faixa etária entre os 16 e 20 anos. Ou seja, “apanhar” os alunos que estão no fim do ensino secundário e abranger também os alunos que iniciam o ensino supe­ rior. Não estou, contudo, a pôr de parte, de forma alguma, os jovens que não dão continuidade aos estudos, e não ingressam no ensino superior. Então, o que viemos aqui fazer foi dizer que estamos a criar um jogo trans­ média, que se destina a sensibilizar e a informar sobre as questões relacionadas com esta temática da violência no namoro. Desde logo, percebemos que tínha­ mos que abranger alguns tipos de violência; a física, a psicológica, a sexual e a social. Percebemos também que, para o jogo, era essencial incluir um tipo de violência que está em todas elas, a violência verbal, que estará presente, quando retratamos, durante o jogo, algum tipo de violência. Quando falo em jogo transmédia, o que é que quero dizer com isso? Um jogo transmédia é um jogo em que é preciso recorrer a vários media digitais para lhe dar continuidade. Ou seja, para jogar este jogo poderemos recorrer ao telemóvel para tomar algumas decisões, dando assim ao jogador uma experiência de utili­ zação. O recurso ao telemóvel é importante porque é um instrumento que maio­ ritariamente os jovens possuem, e assim será mais fácil provocar uma experiência de utilização ao jogador. Ainda relativamente ao jogo, abordamos vários conceitos. Em primeiro lugar, o utilizador que queira jogar este jogo vai ter de encarnar uma personagem, um avatar, que é um boneco. Essa personagem poderá ser do sexo masculino ou fe­ minino e, a partir daí, o jogo irá decorrer com uma narrativa pré­definida, própria do jogo, em que as atitudes, decisões que o utilizador tomar, com a sua perso­ nagem, irão influenciar a narrativa. Ou seja, se um utilizador tomar uma decisão no início do jogo e outro utilizador tomar outra decisão, possivelmente a narra­ tiva será diferente, portanto, a história do jogo será diferente para esses jogado­ res. A seguir à escolha da personagem, o jogador terá um mapa e esse mapa irá permitir que o utilizador se mova entre diversos cenários, em diversos locais. 88


PAINEL III – Vivências íntimas e sociais desequilibradas ­ do namoro à violência doméstica

Inicialmente, o jogador irá começar em casa e, dentro de casa, ele poderá estar na sala, estar no quarto, estar na cozinha e, nesses espaços, existirão di­ versos elementos que vão proporcionar uma experiência de jogo. Por exemplo, o jogador pode ter uma relação com um parceiro ou parceira. Nesse caso, ima­ ginemos que a parceira esteve lá, mas que de momento saiu. O jogador pode ter acesso ao telemóvel dele (dela) e isso vai provocar uma experiência de utili­ zação, em que o utilizador poderá ser um agressor e/ou uma vítima, noutras si­ tuações. Para ir ao telemóvel, vão existir alguns desafios/jogos para vencer, ou seja, pode ser necessário obter o código do telemóvel e isso vai estimular parti­ cipação do próprio utilizador. Ao mesmo tempo que isto acontece, iremos ter de lidar com um outro conceito. Por exemplo, se o jogador está com uma parceira, ou um parceiro no café, e está a ter uma discussão, ou a ter uma conversa que menos lhe agrade ou que mais lhe agrade, o que é que acontece? No canto in­ ferior, ou possivelmente no ecrã do jogo, serão visíveis as caras dos bonecos, dos avatares, que reagem conforme as atitudes, ou as decisões que “eu” tomo. O avatar irá mudar de expressão, porque o jogador irá conter vários níveis de sen­ timentos ­ de ansiedade, de felicidade (estes níveis sentimentais ainda não estão totalmente definidos, estão numa fase embrionária) ­ ou seja, o jogador terá que jogar de modo a controlar esses níveis. Obviamente que, se um nível de felicidade estiver muito elevado, certamente poderá ter atitudes diferentes, do que se tiver um nível de felicidade diminuto. Ou seja, esses desafios também vão existir durante o jogo. Por exemplo, a na­ morada, ou o namorado, deixou o computador na sala e ele pode ir, ou não, ver o que está no computador, cabe­lhe a ele decidir. Ou seja, o jogador é colocado no papel de agressor ou de vítima. Em suma, com esta experiência de jogo, aquilo que pretendemos acima de tudo, para além da prevenção e sensibilização que já percebemos que é muito necessária, até por tudo aquilo que temos ouvido aqui, é que o utilizador, enquanto jogador, passe por um processo de crescimento pessoal e que esse processo de crescimento seja realizado através de situações com que ele se vai confrontar, durante o jogo. Outro elemento que queremos incluir no nosso jogo é aquilo a que chamamos “comunidades”, ou seja um wall. O que é isto de um wall? Um wall é um espaço em que cada jogador poderá partilhar, desabafar sobre um sentimento, um acon­ tecimento próprio ou de outra pessoa. É uma partilha, um mural de desabafo, 89


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino

digamos assim. No entanto, estará limitado ao registo numa comunidade. Para a comunidade existir são necessários três tipos de utilizadores. Há um utilizador master, que fornece um código de ativação de comunidade. Essas comunidades são criadas pelos administradores, que podem ser professores, que precisam do utilizador master para ter esse código de acesso. Esses administradores poderão criar as comunidades e aceitar, ou rejeitar, os membros da comunidade. O que é que isto implica? Implica que, quando o administrador quiser ir a esse wall ver as partilhas existentes numa comunidade ‘x’, tem a opção de filtrar os resultados e ter acesso apenas às partilhas que esses jogadores fizeram. Apesar deste conceito de comunidades, quero aqui referir que é um jogo in­ clusivo, ou seja, o facto de alguém não estar registado numa comunidade não faz com que não possa jogar. Pode jogar na mesma, não vamos excluir ninguém por estar ou não estar na comunidade. A única coisa diferente, o único momento diferente é que, aqui, quando alguém for ver as partilhas e filtrá­las por comu­ nidade, terá também opção de filtrar outras, mesmo que essas outras pertençam às comunidades. Espero sinceramente que isto tudo tenha algum valor e que seja uma ferra­ menta que ajude na intervenção, neste processo de sensibilização e prevenção da violência no namoro.

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encerramento


A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino Filomena Pires Direção Nacional do MDM

Ata – Painel I

Tráfico e Prostituição – Crime, violência, exploração extrema com rosto feminino A intenção assumida pela oradora, Sandra Benfica, não foi de abordar o tema abarcando a totalidade das questões relacionadas com o tráfico e a prostituição. Adotou a perspetiva de que há uma relação intrínseca entre os dois crimes. Abor­ dou­os tendo em conta o contexto atual do sistema capitalista e a expansão da indústria do sexo que se constitui como um sistema altamente organizado de ex­ ploração, onde não há limites para concretizar o objetivo de obter o máximo lucro, num completo alheamento pela dignidade humana. Fez referência ao contexto em que algumas organizações trabalham defen­ dendo a profissionalização da prostituição, procurando ganhar adeptos para a aceitação de que se trata de um trabalho como qualquer outro, com a ajuda cúmplice da publicidade, que tem dado suporte a esta normalização. A nada disto é alheio o crescimento do aviltante negócio da prostituição, que tem rosto de classe e de mulher. Foi caracterizada a realidade vivida em vários países da Europa, nomeada­ mente na Alemanha, na Holanda e na Suécia e salientada a relação direta entre o tráfico e a exploração sexual, a pobreza, o tráfico e a prostituição. A responsabilização do cliente, agora recomendada pelo Parlamento Europeu, só por si, não resolve este atentado aos direitos humanos. São urgentes respostas sociais integradoras, medidas políticas que efetivamente dignifiquem a vida das mulheres, sobretudo num tempo em que o empobrecimento e o desemprego ganham cada vez mais rosto feminino, em que lutamos por direitos básicos como o direito à saúde, à escola pública e à segurança social. Para além destas questões, outras foram introduzidas no debate, que decorreu de forma muito interativa, permitindo aprofundar algumas destas temáticas. Assim, foi ainda referido que a busca de uma vida melhor não pode continuar a ser fator de risco, pelo que é muito importante alertar os jovens que emigram, 94


Encerramento

mesmo quando portadores de contratos legais, para os perigos do tráfico de seres humanos. Chamou­se a atenção para a necessidade de rever algumas das leis existentes, mas também para a necessidade de aplicação das que existem, considerando inadmissível que, a pretexto da crise, os meios disponibilizados pelo governo para o combate a estes crimes tenham sido reduzidos, apesar dos casos terem aumentado cada vez mais. Falou­se ainda na urgência em investir na prevenção de forma concertada, sistemática e coerente. Fez­se também referência à sub representação das mulheres, no exercício do poder, como fator que pode influenciar a falta de proteção das mesmas, o atraso no estudo destes fenómenos, em Portugal, que não facilita o seu combate. Foi denunciado a existência de um fenómeno, cada vez mais visível e arrepiante, de alunas do ensino básico, que se prostituem a troco de comida. Em suma, o tráfico e a prostituição foi classificado como um problema de cidadania, que implica va­ lores éticos e medidas políticas alternativas e urgentes.

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A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino Inês Amorim Advogada

Ata – Painel II

Assédio Moral – Usos e abusos do poder em tempo de precariedade Em primeiro lugar quero apresentar os meus melhores cumprimentos à or­ ganização deste congresso, enaltecer a acuidade das temáticas aqui hoje discu­ tidas, mormente no que ao assédio moral diz respeito, painel cuja súmula me foi incumbida. Ora, da intervenção da oradora Isabel Lousada resultou uma primeira reflexão sobre os efeitos da crise nos domínios do social e da moral. Disse ainda hoje existirem preconceitos estereótipos apesar de desde há 40 anos terem vindo a ser, com avanços e recuos, desmistificados sobretudo com a entrada da mulher no mercado de trabalho. Mas a moral e o social vêm frequentemente a travar o acesso às mulheres à esfera pública, mormente no que a determinadas profissões e carreiras tidas de topo diz respeito. Defendeu a oradora que as mulheres estão emparedadas, e emparedadas em es­ tereótipos exponenciados pela crise. Veja­se a desigualdade (salarial) entre homens e mulheres que resulta na chegada tardia para elas da independência económica. Mais, social e moralmente ainda há a ideia de condenar a mulher que não partilha ou entrega todo seu rendimento com os/aos seus, aqueles de quem cuida, os idosos, os filhos, etc.; A oradora abriu um parêntesis para refletirmos sobre a utilidade de avaliarmos a diferença entre os géneros no uso que fazem dos seus rendimentos! Quanto ao assédio, a Dra. Isabel Lousada, enunciou as linhas do assédio: – na vertical: patrão vs empregado/a – na horizontal: interpares. O assédio, disse, é formado por atitudes perpetradas ao longo do tempo, com diferentes intensidades e em diferentes tipos; é uma violência simbólica, um ato 96


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subtil, mas sempre uma manifestação da relação de poder e não necessaria­ mente uma relação entre géneros. Se no assédio vertical /ou hierárquico nota­se a influência da relação de gé­ nero por serem maioritariamente os homens a ocupar os lugares de topo, no as­ sédio horizontal a diferença de género não é tão evidente e revela­se sobretudo nas relações de maior competitividade. O assédio moral, em todos os casos, é uma forma de abuso de poder: as ví­ timas podem ser funcionários ou funcionárias em situações mais estáveis a quem não se quer pagar indemnização pela rescisão; compreendem ameaças, intimidações, desprezo pelo trabalho ou sua qualidade, ou até acometimento da vítima a funções abaixo das suas qualificações, criticas à forma de falar, vestir e estar, aversão pela etnia ou nacionalidade, deixar a vítima sem ocupação ou sobrecarregá­la. A oradora terminou a sua exposição concluindo que urge, para combater o assédio, informar! O assédio moral induz ao isolamento, urge romper silêncios! Da intervenção da Dra. Leonor Valente Monteiro resultou um número assus­ tador: uma em cada quatro pessoas que ingressa no mercado de trabalho viven­ cia uma experiência no local de trabalho! Ora o assédio, disse, manifesta­se pelas condutas persecutórias, reiteradas e prolongadas. A desinformação neste problema manifesta­se num alheamento que é trans­ versal. As próprias vítimas tendem a justificar o assédio: ou porque estava sozi­ nha, ou porque o agressor era atrevido, ou teve azar, ou estava sujeita, ou arranjou­se mais nessas ocasiões. O isolamento da vítima é uma realidade preocupante. A vítima não fala o que até pela ausência de jurisprudência nestes assuntos se nota. As situações existem mas não são denunciadas; A Dra. Leonor notou e bem que na legislação portuguesa não há tipo legal para o assédio moral, o que conduz a uma impunidade. Aliás, a Dra. lançou até o repto para que se sugira a tipificação do crime. Algo que terá de acontecer até por força de legislação europeia. 97


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Não há respostas então, no âmbito penal, (o que não é crime, não pode ser pu­ nido como crime) no âmbito civil (a vítima tem o ónus da prova e a prova nestes casos em que as ameaças são veladas e os comportamentos subtis é muito difícil). A convenção de Istambul prevê a monitorização dos Estados e urge tipificar como crime o assédio moral. Terminou a sua intervenção com os conselhos de: – reunir provas; – obter/guardar ordens de serviços;­ contrariar a oralidade???; – redigir atas das reuniões com o agressor; – partilhar com alguém. Finalmente, a Dra. Andrea Araújo, na sua intervenção reforçou que o assédio é violência, que tende a ser banalizado com o afastamento dos trabalhadores indesejados, manifesta­se também nos elevados níveis de desemprego que im­ pelem à aceitação de situações humilhantes, técnicas de organização stressantes e desumanizadas. O assédio traduz­se na degradação das condições de trabalho, provoca pro­ blemas de saúde, perda de autoestima, ansiedade e perturbações de sono, com repercussões ao nível do absentismo. Nos exemplos que trouxe, a oradora referiu a situação dos Bancários – reuniões até altas horas da noite – horas extraordinárias forçadas e recorrentes – objetivos de vendas a todos os níveis – grávidas que regressam e são “recolocadas” e a quem se “sugere” que prescindam do direito de amamentação. No comércio – os rankings de vendas “legitimam a humilhação como meio para “exigir” níveis de produtividade. A Dra. Andrea trouxe­nos o retrato na primeira pessoa de uma vítima de assédio moral. No depoimento que leu destaca­se: – trabalho pedido na hora de saída, que era severamente criticado ou desaproveitado – boicote à sua prestação de trabalho, ocultando­lhe informação essencial – conversa com outros “nas suas costas” 98


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– conselhos para meter baixa, culpabilizando­a à frente dos parceiros, quando já a saúde estava a mostrar­se em perigo – reagiu, procurou ajuda, contou! De todas as intervenções resultou que a desinformação ou falta de informação acerca desta problemática é o seu maior aliado. Assim, muito úteis se tornam iniciativas como esta que alertam para o assédio moral. Bem hajam!

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A Multiplicidade da(s) Violência(s) – um real bem feminino Carla Adriana Pinto Professora, colaboradora do Projeto “Viver Direitos Vencer Violências – da escola ao espaço público”

Ata – Painel III

Vivências íntimas e sociais desequilibradas ­ do namoro à violência doméstica Aos catorze dias do mês de março de dois mil e catorze, durante o III painel do Congresso, foram apresentadas as seguintes intervenções: Mário David Soares apresentou o parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre a erradicação da violência doméstica contra as mulheres, elaborado na reunião plenária de dezoito de setembro de dois mil e doze. Deste parecer res­ saltam as seguintes conclusões e recomendações: – O problema da violência doméstica contra as mulheres diz respeito a todos, homens e mulheres, pelo que deve ser resolvido por todos. Trata­ se de um flagelo que deve ser abordado como uma questão de direitos humanos, pelo que responsabiliza os estados visto que têm como obri­ gação a defesa dos seus cidadãos. Assim, devem ser adotadas medidas que previnam este risco, na convicção de que a violência contra as mu­ lheres no espaço doméstico não é um problema individual, mas uma questão de segurança e ordem públicas; – Os estados devem desenvolver medidas de prevenção, respeitando as di­ ferentes culturas e tradições. Esta questão da cultura está ligada ao exer­ cício do poder na medida em que normas e valores adquirem importância quando aqueles que os defendem detêm o poder. Daí que a participação das mulheres é essencial para transformar mentalidades, alterar a ima­ gem tradicional do seu papel na sociedade e resolver o problema da vio­ lência de género. Por outro lado, a prevenção deve incluir, também, uma ação sobre o agressor ou potencial agressor. Pretende­se tentar recuperar o agressor e proteger as mulheres bem como prevenir episódios futuros; 100


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– Os estados devem garantir políticas de proteção às mulheres vítimas da violência. A presente crise económica e as políticas de liberalização das economias têm afetado as políticas sociais, reforçado a discriminação se­ xual no trabalho, bem como aumentado as desigualdades (em especial entre as mulheres pertencentes a grupos minoritários, as migrantes e as mulheres com deficiências), exacerbando as condições que geram violên­ cia, pelo que urge insistir nesta proteção e reforçar os serviços de apoio às famílias e em particular às mulheres maltratadas; – Os critérios estatísticos para o registo da violência de género devem ser homogeneizados, entre os diferentes estados, de modo a permitir a mesma leitura e a comparação de dados; – Os estados devem garantir que a educação contribua para a transforma­ ção das mentalidades. A escola deve fomentar uma educação não sexista e coeducativa baseada na igualdade de direitos e de oportunidades. Para tal é fundamental que a formação dos docentes inclua questões como a violência de género; – É preciso reforçar a ideia da corresponsabilização: homens e mulheres devem ser igualmente responsáveis pelo cuidado dos filhos, dos parentes mais velhos ou de familiares com necessidades especiais; – Justifica­se criar um “Ano Europeu de luta contra a violência de género”; – É necessário ratificar e implementar a Convenção de Istambul (Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, aprovado em onze de maio de dois mil e onze), a qual cria um quadro jurídico global visando prevenir todos os tipos de violência, proteger as vítimas e condenar os agressores. De seguida interveio Joana Sofio, que apresentou o projeto “Criar mundos de igualdade, agir e convergir para mudar”, desenvolvido em Évora e tendo como principal objetivo a prevenção da violência doméstica e da violência no namoro. Carina Novais (do núcleo MDM do Porto) e Délcia Pereira (da Cáritas Diocesana de Aveiro) apresentaram respetivamente os projetos “Sensibilizar e prevenir de­ sigualdades. Agir na minha Escola” e o “Projeto MEATUS” desenvolvidos junto dos alunos dos concelhos do Porto e de Aveiro e tendo como principal objetivo a prevenção da violência no namoro. 101


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Estes três exemplos são fruto de um trabalho de campo, envolvendo os partici­ pantes na construção de materiais (por exemplo, almofadas com mensagens, teatro), na reflexão e mudança de atitudes, utilizando meios diversificados como jogos lúdico­didáticos, teatro, questionários antes e após a intervenção. Como conclusão, foi referido que a cultura continua a ter um forte peso na so­ ciedade, legitimando e perpetuando uma série de crenças e práticas que reme­ tem a mulher para uma posição de inferioridade e dependência e para uma visão distorcida do que deve ser uma relação de intimidade saudável. Por outro lado, apesar da maioria dos jovens ter mudado a perceção do que é a violência no na­ moro, tal mudança não significa, necessariamente, uma mudança de atuação. Para finalizar este painel, interveio Joana Lima, do núcleo do MDM de Aveiro e uma das cordenadoras do Projeto “Viver Direitos Vencer Violências – da escola ao espaço público”, que fez um balanço deste projeto, destacando a necessidade de se dinamizar uma rede de parceiros e a criação de produtos que funcionem nos diferentes contextos, de envolver os jovens na produção de materiais bem como na produção de materiais didáticos, a utilizar pelos professores, tendo como objetivo último a criação de uma rede de escolas livres de violência no na­ moro, que promova a educação integral dos jovens. Ainda no âmbito da criação de materiais pelos jovens estudantes, foi apresen­ tado, pelos próprios criadores, o vídeo jogo Unlove, que está a ser construído no âmbito da disciplina de Projeto da Licenciatura de Novas Tecnologias da Co­ municação da Universidade de Aveiro.

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Natacha Amaro Secretariado Nacional do MDM

Encerramento do Congresso “A multiplicidade das violências – um real bem feminino” Caras/os amigas/os, Cabe­me, em nome do Movimento Democrático de Mulheres, fazer o encer­ ramento deste Congresso “A multiplicidade das violências – um real bem femi­ nino”. Propúnhamo­nos, neste congresso temático, analisar as múltiplas violências que encontramos (e que muitas mulheres enfrentam!) nos diversos espaços: na escola, na família, na sociedade, da violência no namoro, à violência doméstica, ao tráfico de mulheres e crianças, à prostituição, ao assédio moral no local de tra­ balho, à própria situação social, económica e política que vivemos hoje. Ao longo deste dia, procurámos elencar e aprofundar, no sentido de podermos melhor combater, as práticas existentes, o quadro legislativo e normativo, o papel das organizações de mulheres, no contexto difícil em que vivemos, na luta pelos direitos e a dignidade das mulheres. Uma primeira consequência já deste Congresso, e a propósito do papel das organizações de mulheres, é a sugestão de realização de uma reunião promovida pelo MDM e a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (APMJ) a fim de se elaborar uma proposta de alteração ao Código Penal, a submeter à Assembleia da República, para que o assédio passe a ser tipificado como crime. É um passo que decorre da discussão hoje, aqui, realizada e que pode fazer a diferença na vida e no futuro de muitas mulheres. Mas, voltando ao encerramento do nosso Congresso, deixamos um agradeci­ mento especial a todas e todos os participantes: as/os que estiveram deste lado da mesa, como oradoras e oradores mas também as relatoras, e as/os que esti­ veram desse lado, no público. E aqui há que destacar o público em geral que, amavelmente, aceitou o nosso convite para aqui estar, as organizações e parcei­ 103


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ros do projecto do MDM “Viver Direitos – Vencer Violências” que, connosco, qui­ seram e puderam estar e as mulheres do MDM e o núcleo do MDM de Aveiro que, empenhadamente, apoiou a realização deste Congresso e assegurou boa parte da logística, bem como as dirigentes e aderentes que, de vários pontos do país, se deslocaram aqui, à Universidade de Aveiro, para participar nesta impor­ tante iniciativa. Nos três painéis que se desenrolaram ao longo deste dia foram abordados temas da maior pertinência para as mulheres, na temática mais geral das Vio­ lências, e para a ação que o MDM desenvolve. Do primeiro – “Tráfico e Prostituição – crime, violência, exploração extrema com rosto feminino” ­ a relatora Filomena Pires traçou­nos o panorama geral, espelhando a perspetiva da relação existente entre estas duas formas de violên­ cia extrema. Já no segundo painel ­ “Assédio moral – usos e abusos do poder em tempo de precariedade” ­, contámos com o contributo da relatora Inês Amorim para nos guiar nesta questão que se agudiza com a desinformação ou falta de informação, mas que também carece de mecanismos legais mais eficazes para o seu combate. Relativamente ao terceiro e último painel ­ “Vivências íntimas e sociais dese­ quilibradas – do namoro à violência doméstica” ­ a relatora Carla Adriana Pinto resumiu as diferentes apresentações realizadas em torno destas duas faces do fenómeno da violência. Este Congresso Temático, que agora termina, é de extrema relevância. Por um lado, para o Movimento Democrático de Mulheres, como contributo para a sua reflexão no acompanhamento dos principais problemas que atingem as mulheres e na ação diária do Movimento, em defesa dos direitos das mulheres. Mas também é um Congresso relevante para as mulheres na medida em que são, como ouvimos aqui várias vezes ao longo dia, as vítimas ou potenciais vítimas, mas sempre, e seguramente, alvos da violência, nas suas diferentes aceções e roupagens. Por último, quero destacar a importância deste Congresso para o necessário avanço de todas e de todos, para o desenvolvimento de uma sociedade que todas defendemos mais justa e igualitária. Obrigada a todas e a todos. 104


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