"The care of birds" de francisco sousa lobo

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PASSERIFORMES



1. Entregou-me ao cuidado dos pássaros, quando eu tinha nove anos. 2. Nunca me enrabou, o sacana, Deus o abençoe, mas costumava segurar na minha mão de cada vez que via uma ave rara… 3. …e remexia lá em baixo nos baldios da Irlanda, de noite, quando até um pisco de peito ruivo soava a rouxinol nas suas orelhas peludas, enormes.


1. Agora que também eu sou um ornitólogo de sessenta anos, gostava de ter uma criança comigo. 2. Alguém para entregar ao cuidado dos pássaros. 3. Para corrigir as contas. 4. Para provar ao mundo que não sou pedófilo… 5. ‘Desculpe, minha senhora, mas é a mãe do Vincent?’ 6. ‘Sou, sim senhor. ‘


1. Para que se lembre que o amor pelas crianças pode passar sem a caça. 2. ‘O meu nome é Peter Hickey. Vamos apanhar aves?’ 3. ‘Aí está um sítio bom para a rede de anilhagem.’ 4. ‘Nós ficamos aqui, não é, Benny?’


1. ‘Os Passeriformes são a minha ordem de aves mais querida.’ 2. ‘Desenho-os à vista, por isso pedi uma licença de anilhagem.’ 3. ‘Mesmo assim tenho que te avisar de duas coisas. Primeiro, a espera pode ser longa.’ 4. ‘Segundo, às vezes os pássaros respondem, falam comigo.’ 5. ‘Isso, deita-te aí, Vincent, vamos esperar aqui.’


2. Ent達o, asinhas de anjo?


1. ‘Asinhas de anjo…’ 2. ‘Podes parar com isso? Eu tenho um problema com barulhos ritmados, e os pássaros também.’


1. ‘Obrigado.’ 2. A-ha, apanhámos uma felosa!’


1. ‘Isso, Vincent, vai vê-la... Eu cá não posso levantar-me para já... Tenho uma...‘ 2. ...Perna dormente.’ 3. ‘Já está a passar...’ 4. ‘Este tipo de ave só se pode identificar quando canta ou chama...’


1. ‘Por isso, aqui estou eu com ela na mão, mas sem maneira de saber se é uma felosa musical ou uma felosa comum.’ 2. ‘Diz-me pequenita, de que espécie és? E porque cantam os pássaros?’ 3. ‘Vai para o caralho.’


1. ‘Perdão?’ 2. ‘Cantamos para dizer isso.’ 3. ‘Para dizer o quê?’ 4. ‘‘Vai para o caralho’, ó lerdo. Pode ser alongado, ornamentado, como se diz, pode ser belo, mas aquilo que queremos realmente é assustar outros seres vivos.’5. ‘Entendido.’ ‘O que é que ele disse, Peter?’


1. ‘Por isso vai lamber sabão, seu macaco rabeta. Deixa-me ir, pedófilo da treta.’ 2. ‘Antes disso diz-me, pequenita, não cantas para encantar, ou pela glória, ou por cantar simplesmente?’ 3. ‘Bruxo, claro que gosto de molhar o biscoito. Mas as passaritas gostam de mim por causa da minha maneira de mandar outros para o caralho.’ 4. ‘Estás a topar?’ 5. ‘Deixa só acabar de anilhar...’ 6. ‘OK, Vincent, a felosa está anilhada.’ ‘Mas o que é que ela disse?’


1. ‘Antes de o deixar voar, vou guardá-lo nesta caixa, para o desenhar à vista.’ ‘É de vidro?’ 2. ‘Acrílico.’ ‘Hooeet.’ 3. ‘Ouviste isto? Temos uma felosa musical.’ 4. ‘Eu devia era fazer uma obra de arte contemporânea, convertendo o canto dos pássaros em transcrições patéticas.’ 5. ‘Hooeet para felosas musicais Zip Zap para felosas comuns.’


1. ‘Ha, ha, uma obra de arte.’ 2. ‘Ando tolinho de todo.’ 3. ‘Hooeet.’ 4. ‘Cuidado com a linguagem, pequenita.’ 5. ‘Os esquiços já estão quase feitos.’ 6. ‘Estamos quase despachados.’


1. ‘Ora cá estão. Duas páginas de esboços.’ 2. ‘Agora vou libertar-te, pequenita. Abre a portinhola, isso mesmo...’ 3. ‘Pó caralho, pó caralho, pó caralho.’


1. O canto das aves. È uma coisa maravilhosa, não é, Vincent? 2. Parece que o mundo inteiro está cheio de caralhadas.



1. ‘Olá Robin.’ ‘Ah, olá.’ 2. ‘Sabe que eu tive um sonho em que o Robin entrava? O Robin estava em cima de um carro puxado por cavalos selvagens. Estava tudo bastante fora de controlo. O que é que acha? Tem qualquer coisa de Krishna, não?’ ‘De Cristo? Eu não...’ 3. ‘Esqueça. Que tal foi o seu dia?’ 4. ‘Tudo bem, faculdade e isso.’


1. ‘Aposto que é muita miúda gira, muita caça grossa...’ 2. ‘Já agora, sabe que no meu tempo, lá na Irlanda, os médicos advertiam contra o onanismo? Dizia-se que era a fonte de muitos males. Não sei o que andam agora a dizer, agora que o mundo está neste lindo estado, ainda para mais com a internet. O Robin sabe o que é que mostram agora em horário nobre?’ 3. ‘Desculpe lá, mas tenho de ir...’


1. ‘Agora a sério, o que é que é transmitido às crianças? Que os seus corpos devem estar disponíveis?’ 2. ‘O que é que vocês acham? Vocês, jovens?’


1. ‘Meu Sagrado Coração de Maria. Rezo por todos aqueles que não vos contemplam. Rezo pelo Robin.’ 2. ‘Ora lá está, aquele som ritmado.’ 3. ‘Avé, Avé, Avé Maria...’


1. ‘Avé, Avé, Avé Maria...’ 2. ‘Ora bem, já o parei, com isto.’ 3. ‘Por isto e pelo Vincent eu te agradeço Senhor.’


1. ‘Está lá? Vincent? Qual Vincent?’ 2. ‘O que é que ele andou a contar?’


1. ‘Eu disse ‘o mundo inteiro está cheio de passaradas.’ Eu nunca...’ 2. ‘Eu nunca disse isso... e que mal é que há em dar a... Está lá?’ 3. ‘Estou?’


1. ‘Este mundo está perdido.’ 2. ‘Anda tudo doido.’


1. ‘Mesmo que eu tenha dito caralhadas.’ 2. ‘Merda de...’ 3. ‘Puritanos.’


1. ‘Sim, rezo todas as noites, penso em Jesus.’ 2. ‘Só que parece que já não há ninguém à espera, do outro lado...’ 3. ‘Gostava de ter uma fé de criança.’ 4. ‘Isso é possível?’


1. ‘Às vezes visitam-me sonhos bizarros, senhor padre.’ 2. ‘Sonho que estou no meio de uma confissão e reparo...’ 3. ‘Reparo...’ 4. ‘Que estou nu e com esta coisa... dura.’ 5. ‘Acha isto normal?’


1. ‘Mas não vim aqui para psicanálises.’ 2. ‘Desculpe lá, senhor padre.’ 3. ‘Queria saber se me podia ajudar a recrutar miúdos para o meu clube de anilhagem.’


1. ‘Sim, rapazes, talvez entre os dez e os doze anos.’ 2. ‘Eles veriam natureza...’ 3. ‘Eu veria fé.’


1. ‘Estava-te a contar que fui ao padre Oisin e ele concordou em ajudar-me.’ 2. ‘Posso escolher novos rapazes cada semana.’ 3. ‘Mas tu gostas é de miúdas, não é?’


1. ‘Às vezes acho que tu gostas disto, de vir para aqui contar quantos rapazes é que vês.’ 2. ‘Parece que tens um...’ 3. ‘Síndroma de santo.’



ESTORNINHOS



1. ‘Os estorninhos são criaturas bem feias.’ 2. ‘No entanto sabem imitar cantos bonitos.’ 3. ‘E quando voam em bandos grandes...’ 4. ‘Tornam-se miraculosos.’ 5. ‘Temos muita coisa a aprender dos estorninhos. Sozinhos somos de segunda. Juntos podemos brilhar.’


1. ‘Então, há alguém interessado em anilhar aves?’ 2. ‘Vá turma, manifestem-se.’ 3. ‘Então vou eu.’ 4. ‘Vou ver pássaros de perto.’


1. ‘Esqueci-me de dizer...’ 2. ‘Os estorninhos são muito bonitos quando os vemos de muito...’ 3. ‘Muito perto.’


1. ‘Trabalho? Estou reformado. Faço ilustrações de aves para guias. O resto já sabes. Ensino miúdos a anilhar.’ 2. ‘Fui um contabilista alcoólico. Agora continuo alcoólico, mas já não conto para nada. E tu, o que fazes?’ 3. ‘Poesia. E ensino inglês.’


1. ‘A minha família toda gostava de poesia. A minha avozinha chegou a apaixonar-se por esse tal de Yeats. Quase que lhe saltou em cima.’ 2. ‘Recitava as suas palavras eternas num tom pré-orgásmico, como se Nosso Senhor estivesse prestes a acabar com tudo.’ 3. ‘Eu cá detesto essa treta toda. Toda a poesia é uma espécie de lamúria distendida.’ 4. ‘Pode ser isso, ou outra coisa. As palavras podem ser membros fantasma, braços que nunca julgámos ter.’ 5. ‘Membros fantasma.’


1. ‘Já descobriste porque cantam os pássaros?’ 2. ‘Oh não, outra vez não. 3. Vamos só levantar a tenda.. a rede quero dizer.’


1. ‘Tens um segredo qualquer, não tens? Vê-se.’ 2. ‘Sobre o porquê do canto dos pássaros?’ 3. ‘Sobre alguma coisa.’


1. ‘Existem por aí muitas teorias sobre o canto dos pássaros.’ 2. ‘Algumas pessoas dividem tudo entre canto e chamamento.’ ‘São os dualistas’ 3. ‘Eu acredito que os pássaros cantam para a maior glória de Deus.’


1. ‘Estás a falar a sério?’ 2. ‘A coisa é que nem eu sei.’


1. ‘Olha para aqueles estorninhos.’ 2. Estão a formar uma tempestade.’



1. ‘Então, Bernardette, podes contar-me um bocadinho sobre os teus poemas? O que é que escreves? E donde é que tiras a inspiração?’ 2. ‘Escrevo poesia concreta. Às vezes desenho.’ ‘Deixo que a página fique um massacre.’ 3. ‘Isso soa... interessante, faz-me lembrar Artaud...’ ‘Recitas um pouco para mim?’


1. ‘Não sei nada de cor. E para alem do mais, é tudo visual.’ ‘Vá lá. Vê-se bem que estás a mentir.’ 2. ‘Seria embaraçoso.’ ‘Como quando uma pessoa se apaixona?’ 3. ‘Mais como um engate enganado.’ 4. ‘Peço desculpa se soei mal.’


1. ‘Não faz mal. Tens os teus encantos.’ 2. ‘Tenho a certeza de que és uma grande poetisa. Devias era saber os teus poemas de cor, como São João da Cruz.’ 3. ‘Gostas de São João?’ ’Odeio visceralmente toda a poesia.’ 4. ‘Então e os passarinhos, quando é que cai um na rede?’ 5. ‘Quando me beijares’.


1. ‘Então vamos ver pássaros...’


1. ‘Meu Deus, são tantos. O que é que são?’ 2. ‘Estorninhos, não vês? Não vês o que está a acontecer?’


1. ‘Deus mandou estes pássaros. Não gostou de nos ver.’ 2. ‘De que é que estás a falar? Não se pode simplesmente libertá-los?’ 3. ‘São demasiados. Vai demorar horas.’ 4 ‘Então vá, vamos começar.’


1. ‘Já cai a noite, Bernardette.’


1. ‘A única lua é preta.’


1. ‘Mas não podemos deixá-los assim. Não podemos voltar para o carro.’ ‘Não tens uma lanterna?’ 2. Nem lanterna nem faca.’


1. ‘Então, porque choras? Por causa do barulho que fazem?’ ‘Porque me abandonaste?’ 2. ‘Não é barulho...’


1. ‘Devíamos ir para casa.’ ‘Não, devíamos ficar cá e salvá-los de madrugada. Se houver um pássaro que seja que eu possa salvar, não me importo de passar a noite aqui.’ 2. ‘Achas que podias telefonar a alguém, para trazerem uma lanterna?’ 3. ‘O Mortimer não é muito fiável. E o padre Oisin não acharia bem, encontrar assim, a meio da noite, a sua catequista preferida.’ 4. ‘Está bem. Vá, vamos dormir.’


1. ‘Peter?’ Peter. Estás aí?’


1. ‘Estavam todo mortos, Mortimer. Tudo por causa de mim.’ 2. ‘Foi uma espécie de acidente. Não fiques todo católico com esta coisa.’ 3. ‘Tudo estava perfeito. Tinha finalmente encontrado uma rapariga que...’ 4. ‘Deus mandou aqueles pássaros.’ ‘Deus mandou aqueles pássaros para a morte.’


1. ‘Esse Deus está na tua imaginação. Fora isso, foi um acidente.’ 2. ‘Aprende com os caçadores. Como é que achas que eles conseguem dormir?’ ‘Estão-se cagando.’ 4. ‘Caga de alto.’


1. ‘Senhor Hickey? Peter? Então como é isso vai?’ 2.’Ah. Olá Robin. Isto vai mal, devo dizer que não me sinto bem.’ 3. ‘Quer que lhe faça um chá?’ 4. Estou bem aqui com o meu Laphroaig. Queres um copo?’ ‘Não, obrigado, não é preciso.’


1. ‘Sabes que mais, Robin? Os estorninhos são criaturas nojentas.’ 2. ‘São uma doença que levámos para a América.’ 3. ‘Deviam ser exterminados.’


1. ‘Vou trabalhar aqui nas minhas ilustrações de passaritos.’ 2. ‘Podes ir estudar, vai lá para essas... matemáticas.’ ‘É psicologia.’


1. ‘Ha, ha. O que é que andas a ler?’ 2. ‘Lacan?’


1. ‘Está lá, Bernadette.’ 2. ’Queria só pedir desculpas por uma noite de pesadelo. Gostava que nos voltássemos a ver.’ 3. ‘Sim, qualquer desculpa serve para sair de Londres. Não vai haver morte desta vez, a morte não vai ter o seu domínio.’


1. ‘Sim, conheço bem o Dylan Thomas. Sou um tipo arcaico. O quê?’ 2. ‘Eu... conheço poesia. Leio. Mas continuo a achar que é tudo falso, uma grande bazófia. Mas tu és a excepção.’ 3. ‘Tenho a certeza que consegues estar acima da mancha humana.’



AVES DE RAPINA



1. ‘Estamos sempre do lado dos pequeninos, não é, Thomas?’ ‘Vivemos num filme da Disney.’ 2. ’Esquecemo-nos que todos comem todos, aqui em baixo.’ ‘O que é que isso quer dizer?’ 3 Construímos pirâmides com as aves de rapina e os seres humanos lá em cima, numa espécie de nível aristocrático.’


1. ‘Sim, ainda lá está.’ ‘Quando é que vai picar?’ 2. ‘Quando vir um rato a mexer.’ 3. ‘E desde que a gente não se mexa.’


1. Parece um deus, não é?


1. ‘Pois, é fácil esquecer que podiam estar os vermes lá em cima, como os grandes consumidores.’ 2. ‘Vermes?’ 3. ‘Desculpa.’ 4. ‘Queria dizer que é tudo um grande ciclo. Uma beleza confusa.


1. ‘Vermes.’ 2. ‘Esquece por agora os vermes...’ 3. Olhai o francelho.’


1. ‘Pode-se praguejar contra ele por matar ratos Mickeys. Pode-se também apreciar o lugar intacto, miraculoso, na ordem das coisas.’ 2. ‘Flutua assim, por nada suportado, com esforço mínimo.’ 3. ‘Há uma corda invisível entre Deus e o francelho, uma corda que se estende até nós.’


1. ‘Há uma triangulação, de cada vez que se vê um francelho a peneirar.’ 2. ‘O interior desse triângulo é o que nós chamamos beleza.’ 3. ‘Então e os vermes?’


1. ‘O Mortimer foi o quê?’ 2. ‘Meu Deus.’ 3. ‘Onde é que é essa esquadra?’


1. ‘Sim, sim, conheço Pimlico.’ 2. ‘O que é que é o CEOP?’


1. ‘Antes de mais, deixe-me só dizer-lhe que não tenho computador e não percebo nada de internets.’ .2 ‘Mas conheço o Mortimer. Pode ter sido abusado em criança, mas olhe, também eu fui.’ 3. ‘Ele foi apanhado a pagar.’


1. ‘Se calhar foi um erro, um lapso, se calhar ele estava no meio de uma... investigação. Ele gosta de policiais... 2. ‘Ouça, ouvimos sempre essas desculpas... Não quero nem posso entrar em pormenores, mas há uma fronteira e o seu amigo atravessou-a.’ 3. ‘Ele não é um violador. Se eu fosse ver uma matança do porco, como é que isso estragaria o facto de eu ser vegetariano?’


1. ‘Lá que o senhor seja vegetariano é muito bonito, mas não sigo a sua lógica. Ou se calhar sigo, e acho horrível.’ 2. ‘Se tem alguma coisa a dizer de relevante para esta investigação, diga. Peço-lhe encarecidamente.’


1. ‘Houve um tempo...’ 2. ‘Antes, havia uma inocência. Uma criança podia ficar amiga de um adulto, e vice-versa.’ 3. ‘Agora está tudo... pervertido. Roubaram-nos essa história.’


1. ‘Sim, e a culpa é dos pedófilos.’ 2. ‘Sim, se calhar. Não sei, há coisas estranhas a acontecer, formou-se uma nuvem escura.’ 3. O meu amigo é... amigável. Nunca fez mal a uma mosca, quanto mais a uma criança...’


1. ‘Eu já sabia das suas... preferências.’ ‘Sim?’ 2. ‘Confiávamos um no outro, confessávamos. Ambos temos cicatrizes, e isso deixa-nos... paranóicos.’


1. ‘O mal disto tudo deve ter sido a paranóia. Foi isso que levou o Mortimer a fazer o que não devia.’ 2. ‘Meu senhor, se eu lhe contasse o que o seu amigo pagou para acontecer, isso iria...’ ‘Não, não quero ouvir isso.’ 3. ‘É impossível contar a história da amizade entre um estrangeiro e uma criança, há todas estas... muralhas agora. São horríveis, essas muralhas.’


1. Você constrói muralhas?’


1. ‘Espero bem que sim. Já vi muita coisa, é a minha profissão.’ 2. ‘Se uma muralha é aquilo que é preciso para impedir estas coisas...’ 3. ‘Não está mesmo a perceber o que lhe digo...’


1. ‘Perfeitamente. Só que acho tudo pouco lógico.’ 2. ‘Você falou em cicatrizes. Como é que essas cicatrizes o afectam? E, já agora, como é que conheceu uma pessoa do calibre do senhor Mortimer?



1. ‘Tenho de ir embora. Desculpe lá isto tudo...’


1. ‘Senhor Hickey? Peter?’ 2. ‘Está tudo bem?’




ROLIEIROS



1. ‘Obrigado pela visita, tenho tido uma vida bastante solitária desde que ele foi condenado.’ 2. ‘Tenho tido sonhos estranhíssimos, com pássaros a chamarem-me pedófilo. Mas não sou pedófilo, sabe?’ 3. ‘Não sou mesmo. Por isso se veio aqui com más intenções pode tirar o cavalinho da chuva.’


1. ‘Eu estou a fazer um doutoramento sobre o Henry Darger, e ando à procura de pessoas desse tipo. O Mortimer falou-me no seu nome...’ 2. ‘Como é que você sabe o meu tipo? E quem é esse Darger?’ 3. ‘Não sabemos ao certo quem foi o Henry Drager, mas desenhava diariamente... meninas... como o senhor.’


1. ‘Eu...’ 2. ‘Só desenho pássaros.’ 3. ‘Se quiser pode ir embora.’


1. ‘Podemos falar sobre pássaros...’ 2. ‘Não sei o que é que o Mortimer lhe disse...’ 3. ‘Uma vez vi um pássaro, em Portugal, do tamanho de um corvo... Azul, mas de peito acastanhado.’


1. ‘Nunca tinha visto uma coisa assim.’ 2. ‘Terá sido no verão? Se foi, talvez fosse um coracias garrulus, um rolieiro.’




1. ‘Vim aqui com um propósito, Peter’


1. ‘Peter, tu não estás bem.’ 2. ‘Tens o coração partido em dois.’ 3. ‘Tu é que devias olhar as aves do campo, tu é que não sabes o que quer dizer amar as criancinhas. Estás confuso, Peter, perdido entre desenhos e redes, desconhecendo que o teu próprio coração é como uma rede, cheia do esterco do mundo.’


1. ‘Tu és aquele que não sabe, pois para saber terias primeiro que sentir, para sentir terias primeiro que ver, e para ver terias primeiro que arder.’ 2. ‘E não me confundas com o Herman Hesse, seu tolinho aí de olhos fechados.’ 3. ‘Não me confundas com o teu messias.’


1. ‘Pois eu vim trazer a escuridão aos corações dos homens divididos.’ 2. ‘Eu vim levar-te para alem da remissão...‘ 3. ‘Pedófilo.’


1. ‘Eu.. matei um gaio, Bernardette. Matei-o.’ 2. ‘Gostava de te ver.’ 3. ‘Eu sei que já passaram três meses, mas não tenho mais ninguém com quem falar.’


1. ‘Não há ninguém na minha vida.’ 2. ‘É tudo um vazio.’ 3. ‘Não há ninguém.’


1. ‘Então qual a razão de virmos às Seven Sisters?’ ‘Gosto destes penhascos, Peter.’ 2. ‘Quando andava mais em baixo, costumava vir aqui todos os fins de semana.’ 3. ‘Depois vi uma pessoa a lançar-se, em Beachy Head, e deixei de vir sozinha.’


1. ‘Preciso de companhia.’


1. ‘De outra forma faz-te sentir triste?’ ‘Sim’ 2. ‘Deus, não nos estamos a ajudar um ao outro, pois não?’


1. ‘Estas flores também não ajudam.’ 2. Parecem uma rampa de lançamento para o próximo suicídio.’ 3. ‘Peter, já estou cansada. Vamos parar, fazer o piquenique aqui?


1. ‘Por entre as flores? Isso é um bocado deprimente.’ 2. ‘Peter, porque é que mataste aquele gaio? Não foi um acidente, desta vez.’


1. ‘A voz dele...’ 2. ‘Sabes, eu consigo falar com os pássaros.’ 3. ‘A voz dele era horrível. Como a do Mortimer, mas com um tom sarcástico.’


1. ‘Eu estava bêbedo de vinho e de oração.’ 2. ‘Torci-lhe o pescoço.’ 3. ‘Depois vi que era belo. Deviam-me mandar prender.’


1. ‘Talvez precises de anti-psicóticos, Peter. O marido da minha prima é psiquiatra...’ 2. ‘Não. Eu não acredito na medicina. Para além do mais, Deus fala comigo, às vezes, através desta coisa que eu tenho....’


1. ‘Às vezes acho que os gregos tinham razão. Existe um deus no fim da garrafa.’ 2. ‘É mais fácil acreditar nele de noite, quando já passou a tempestade do dia, e se faz silêncio.’ 3. ‘Não sabia que fumavas.’ ‘Foi a condenação que me provocou isto. Trinta anos de abstinência pelo cano abaixo.’


1. ‘Suponho que não haja beijo, agora.’ 2. ‘Peter, tenho imensa pena, mas conheci uma pessoa...’ 3. ‘Não faz mal, também mereces alguém melhor do que um Papageno parvo. Deus enviou aqueles estorninhos. Deus está do teu lado.’


1. ‘Olá.’




NEGRO DE CORVO


1. ‘Confesso...’ 2. ‘Tenho maus hábitos.’ 3. ‘Preciso de me redimir.’ 4. ‘Tem de ser. É isso ou então rebentar com os miolos.’


1. ‘Nunca me enrabou, o sacana...’ 2. ‘A-hem...’ 3. ‘Desculpe, senhor padre.’ 3. ‘Entro muitas vezes em parques infantis, à procura da Evelyn, à procura de coisas... doentias.’


1. ‘Mas é ou não é... um daqueles?’ ‘Não sei mesmo...’ 2. ‘O que é que deveria dizer o seu epitáfio?’ 3. ‘Peter Hickey esteve para os pedófilos como os observadores de aves estão para os caçadores... Peter Hickey sonhava com anjos que não o podiam amar de volta... Peter Hickey...’


1. ‘Olhe que ainda não começámos a confissão propriamente dita...’ ‘Tem mais alguma coisa a dizer?’ ‘Confesso...’ 2. Peter Hickey chora. Não ouvimos as suas palavras. 3. Os sons que faz parecem-se com pássaros cantando timidamente.


1. ‘A primeira vez foi na Tailândia... Um amigo preparou-me... uma surpresa.’ 2. ‘A princípio foi horrível...’ 3. ‘Aquelas quatro mãozinhas...’ 4. À procura, como animais treinados...’ 5. Não ouvimos as suas palavras, outra vez.


1. ‘Depois foi essa menina, a Evelyn.’ 2. ‘Nunca me vou perdoar, senhor padre.’ 3. ‘O que é que lhe fez?’


1. Porque é que não me fulminas? Como a Justine? Como àquele pobre diabo na bíblia, que tocou na arca? 2. Os teus relâmpagos caem sobre os inocentes. Nunca houve sexo, disse eu ao teu padre, como se isso desculpasse o que quer que fosse. 3. ‘Peter, Peter, está bêbedo?’ 4. ‘Levanta-te ou chamamos a policia.’ 5. Não é permitido aos católicos usarem o corpo, nem em oração. O corpo é um excedente de Deus. ‘Vou chamar a policia.’


1. Não se cala. Aposto que vai bufar. Aposto que não tardarão a chegar, os protectores de crianças. 2. Porque é que me confessei? Sabia de antemão que isso iria abrir um hiato negro. Sabia de antemão que isso iria começar um processo irrevogável.



1. ‘Tem estado ali, prostrado na cama.’ 2. ‘Diz que está à espera que um relâmpago o fulmine.’ 3. ‘Os outros pacientes chamam-lhe pedófilo. Ele diz que sim.’ 4. ‘Eu tenho grandes dúvidas.’


1. ‘Só dá passeios quando o tempo está de chuva. Talvez por causa da ideia dos relâmpagos.’ 2. ‘Peter, está a chuviscar. Não queres ir dar um passeio? Peter? Estás bem?






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