Diversidade cultural e produção de saberes: um estudo da educação matemática no Brasil multiétnico

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Meireles-Coelho, Carlos; Moretz-Sohn, Maria Cristina d’Almeida (2007). Diversidade cultural e produção de saberes: um estudo da educação matemática no Brasil multiétnico. J. M. Sousa (Org.). Actas do IX Congresso da SPCE: Educação para o sucesso: políticas e actores. Vol. 2. Universidade da Madeira, 26 a 28 de abril de 2007. (Porto): SPCE, 2064-2075. ISBN 978-989-8148-21-6.

Actas do IX Congresso da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação Vol. 2

ISBN 978-989-8148-21-6

Depósito Legal 285758/08

Temática 10: Escola, família e comunidades

Diversidade cultural e produção de saberes: um estudo da educação matemática no Brasil multiétnico Carlos Meireles Coelho e Maria Cristina d’Almeida Moretz-Sohn Universidade de Aveiro

1. Matemática cultural ou multicultural? A educação, vista por Sócrates como o requisito prévio da livre ação em todas as artes e por Mayer (1976) como uma alternativa para resolver os problemas do mundo, depois da guerra e das revoluções, mais que um processo de socialização e integração, é o ingrediente capaz de embelezar a mente e permitir voos incomensuráveis. Essas virtudes devem ser desfrutadas por todo ser humano, de forma a alimentar sua capacidade criativa e despertar suas potencialidades para os desafios do universo. Lutar contra a exclusão é uma obrigação de todo cidadão consciente que olha o seu próximo como alguém realmente próximo, seu igual. Do ponto de vista educacional, é iluminar o horizonte para as várias realidades, de diferentes padrões estéticos e éticos. A construção de significações, a génese do pensamento e a constituição de si mesmo como sujeito é o que diferencia os seres racionais dos irracionais, é o


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alicerce da plenitude do homem como “gente”, capaz de superar resistências e se abrir para o novo, o inusitado. Diante das borbulhantes questões com que a educação no século XXI se depara, encontra-se o desafio do multiculturalismo compelindo o mundo a discutir formas de entender, assimilar e encontrar resposta para a pergunta imposta por esta nova ordem social, qual seja, como construir uma pedagogia multicultural sem estereótipos que sirva para estimular e atrair a curiosidade e atenção do educando? A presente comunicação é parte da pesquisa ainda em andamento sobre o conhecimento matemático, a lógica e o silogismo empregado pelo povo indígena da etnia Xerente, buscando promover melhor entendimento da racionalidade aplicada e fazer desta uma alavanca para impulsionar e motivar os educandos no aprendizado da matemática. Transformar a herança cultural do conhecimento matemático acumulado ao longo das gerações em um fator que promova a inclusão é um desafio que o mundo moderno, caracterizado por grandes correntes migratórias, precisa de absorver, pois o conhecimento humano nasce da realidade processada segundo uma forma de coerência própria de cada cultura e avaliar esse comportamento nas dimensões individuais e coletivas é indispensável para o desenvolvimento de uma dinâmica de compreensão das ciências em geral e da matemática em particular. 2. Educação matemática e índios do Brasil No Brasil, a preocupação em promover uma educação indígena, voltada para o respeito pelas especificidades culturais, tomou vulto na década de 80, quando religiosos, antropólogos, juristas e indigenistas manifestaram receio de que a cultura indígena sucumbisse ante a ameaça de ser sufocada por um padrão educativo único, nacionalmente aceito e adotado nas escolas oficiais. O currículo escolar, ao homogeneizar o conhecimento e legitimar uma seleção de conteúdos resultante de interesses das classes dominantes, contribui para acentuar a diferenciação linguística e cultural no equivocado processo de seleção e exclusão do educando. Tadeu Silva (1999) defende que o currículo é transmissor da ideologia dominante, reproduzindo as relações de poder da sociedade capitalista, ou seja, o currículo tradicionalmente aceito reproduz o modelo de conscientização dos papéis sociais dominador – dominado e falar de uma cultura branca e escolar para os indígenas é falar do conquistador e da barbárie que a ação dita civilizatória promoveu ao longo dos séculos. As conquistas ultramarinas principalmente por portugueses e espanhóis fizeram abrir um mundo de possibilidades para o europeu que, “ciente de suas culpas oriundas do pecado de Adão”, deparou-se com o que parecia ser uma


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“humanidade edénica, anterior à que havia sido expulsa do Paraíso” (Ribeiro, 1997: 60). A vinda dos jesuítas para o mundus novus, descrito pelo imaginário europeu como o paraíso, foi um marco. Respeitados na Corte, os inacianos vislumbravam com entusiasmo a oportunidade, talvez única na história, de serem criadores de um tipo social inspirado pela filosofia cristã, até pelo otimismo utópico dos que idealizavam a livre e equilibrada vida na cidade feliz. Em vez de brâmanes e rumes, chins e malaios da Ásia de Francisco Xavier496, índios curiosos e mansos, cuja fisionomia ingénua andava nas lisonjeiras descrições do mundus novus. (Calmon, 1963: 218)

A respeito da formação rigorosa da Companhia de Jesus, firmemente orientada pelo Ratio Studiorum497 que exaltava o princípio da disciplina pela obediência, Holanda observa que “nenhuma tirania moderna, nenhum teórico da ditadura do proletariado ou do Estado totalitário, chegou sequer a vislumbrar a possibilidade desse prodígio de racionalização que conseguiram os padres da Companhia de Jesus em suas missões” (Holanda, 1995: 39). Nascida para combater a expansão do protestantismo, a Companhia de Jesus foi criada em 1534 e oficialmente aprovada pelo papa Paulo III em 1540, espalhando-se pelo mundo; em 1549 chegam ao Brasil os primeiros sete jesuítas, guiados pelo padre Manuel da Nóbrega; em 1579 possuem 144 colégios nos continentes europeu, asiático, africano e americano, chegando a somar 669 colégios em 1749. A expansão dos colégios deveu-se principalmente à constatação da dificuldade em agir diretamente sobre os adultos, sendo “mais segura a conquista das almas jovens”, se empenhando para isso na atividade pedagógica e o instrumento adequado para a tarefa seria a criação e multiplicação de escolas (Aranha, 1996: 92, 96). Muitas são as questões sobre a educação indígena, para as quais se encontram voltados os olhares desde o período colonial. O projeto educacional jesuítico no Brasil do século XVI obedecia aos interesses colonialistas de Portugal, repetindo as experiências no Oriente, onde as crianças nativas deviam aprender a ler, escrever, contar, cantar, dançar, tocar instrumentos e rezar, como forma de eliminar hábitos considerados perniciosos para a moral cristã. Evangelizar e civilizar se complementavam e davam suporte à consolidação do território conquistado, reforçando a aliança entre Estado e Igreja, além de transformar “os índios em mão de obra qualificada, por meio de aprendizagem regular e estável dos ofícios mecânicos” (Porto Alegre, 1998: 83).

496 497

O missionário Francisco Xavier partiu para o Oriente em 1541. (Calmon, 1963: 217) Ratio atque institutio Studiorum significa Organização e plano de estudos (Aranha, 1996: 92)


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Romanelli (1996: 22), ao referir-se ao colonialismo iniciado na Idade Moderna e as consequentes trocas culturais, assim se expressa: Os bens importados, segregados das circunstâncias em que foram gerados e sem condições de se integrarem naquelas para as quais foram transplantados, ou caem no vazio, ou deturpam-se. (...) O que ocorreu na ocasião da colonização das terras americanas foi um transplante de recursos materiais e humanos de uma sociedade, cuja cultura já havia atingido um alto nível de complexidade, para um meio que não oferecia condições de troca em pé de igualdade. Com essa transferência de recursos materiais e humanos, houve também a transferência de hábitos de vida diária, ideias, formas de atividade económica, formas de organização social e política e, o que é importante, formas de educação.

Na ânsia de promover a assimilação dos índios à civilização cristã, as missões jesuítas que chegaram às terras brasileiras no século XVI, mansamente empenharamse na promoção dos valores ocidentais, concentrando esforços na destruição da influência conservantista dos pajés e dos velhos ou de instituições tribais nucleares, como o xamanismo498, a antropofagia ritual, a poliginia, etc.; como eles instalavam no ânimo das crianças, principalmente, dúvidas a respeito da integridade da opinião dos pais ou dos mais velhos e da legitimidade das tradições tribais; e, por fim, como solaparam a eficiência adaptativa do sistema organizatório tribal, pela aglomeração dos indígenas em reduzido número de “aldeias”, agravando os efeitos da escassez de víveres (resultante da competição com o branco) e introduzindo desequilíbrios insanáveis nas relações dos sexos e no intercâmbio do homem com a natureza (Ab’Saber, 1997: 84).

Numa crítica ao regime das velhas missões, Holanda (1995: 127) afirma que “anjos, não homens, é o que pretendem realmente fabricar os inacianos em suas aldeias, sem conseguir, em regra, nem uma coisa, nem outra”. A respeito da aculturação indígena ocorrida no Brasil colonial, em consequência da educação promovida pelas primeiras missões religiosas, Teixeira (2000: 296) destaca que Os colonizadores ignoravam a visão de mundo que os índios tinham, obrigando-os a falar o português, a acreditar no seu Deus e a abandonar hábitos culturais que eles cultivavam há milénios. As escolas “civilizadas” que as missões impuseram aos índios foram exemplos de violência cultural sem precedentes.

Por mais louvável que fosse a boa-fé dos missionários religiosos e suas incursões na área educativa nos séculos XVI, XVII e XVIII, é inegável constatar o nascimento de um processo de desintegração da cultura nativa, marcando indelevelmente o ideário político, social, religioso e educacional do povo da colónia. O projeto educacional imposto continha sólidos valores cristãos, tendo como ”soldados principais o jesuíta, o franciscano e o carmelita” (Ribeiro, 1997) e pretendia combater o “atra498

Religião baseada na crença de que os espíritos maus ou bons são dirigidos por xamãs.


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so” com uma piedosa atividade civilizatória. Silva e Azevedo (2000: 151) lembram que Desde a chegada das primeiras caravelas até meados do século XX, o panorama da educação escolar indígena foi um só, marcado pelas palavras de ordem “catequizar”, “civilizar” e “integrar” ou, em uma cápsula, pela negação da diferença. E não se pense que este paradigma é coisa do passado. Grande parte das escolas indígenas hoje em nosso país tem como tarefa principal a transformação do “outro” em algo assim como um “similar”, que, por definição, é algo sempre “inferior” ao original.

A não identidade cultural entre o saber oferecido pela escola formal e sua identidade com hábitos, costumes e tradições da comunidade, desmotiva e sufoca o espírito da curiosidade, importante para a associação entre o saber construído pela vivência e o conhecimento teórico desenvolvido por grupos e assimilado dialogicamente. Para que esse diálogo seja possível, é fundamental o respeito ao conhecimento do outro e por suas descobertas. D´Ambrósio (1997) reconhece “a fragilidade do estruturalismo pedagógico dominante” e propõe como alternativa “reconhecer que o indivíduo é um todo integral e integrado e que suas práticas cognitivas e organizativas não são desvinculadas do contexto histórico no qual o processo se dá, contexto esse em permanente evolução.” No final do século XX, mais precisamente na década de 70, os educadores matemáticos passaram a discutir a imposição de um currículo único, universal, que apresentava a matemática da mesma forma, para todas as culturas, não valorizando o saber trazido de casa ou aprendido na rua pela criança. Esse conhecimento matemático passou a ter diversas designações desde então: sociomatemática (Zaslavsky, 1973), matemática espontânea (D´Ambrosio, 1982), matemática informal (Posner, 1982), matemática oprimida (Gerdes, 1982), matemática não-estandardizada (Carraher 1982), matemática escondida ou congelada (Gerdes, 1982). D´Ambrosio (1985) utilizou pela primeira vez o termo etnomatemática, termo que passou a designar a matemática aprendida fora do sistema formal de educação (Ferreira, 1997). 3. A Etnomatemática Com fortes conotações antropológicas, a etnomatemática identifica a matemática em práticas cotidianas e explicações construídas a partir da realidade do grupo. Sua etimologia (ethno, do grego, referente a contexto cultural; matema, do grego, significa entender/conhecer/explicar e tica sugerida pela palavra techne, que é a mesma raiz da arte e técnica) nos leva a defini-la como “a arte ou técnica de explicar, de conhecer, de entender em diversos contextos culturais (D´Ambrosio, 1993). Para Scandiuzzi (2000), “o saber vem da experiência feita, construída e acumulada através


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da teoria elaborada por um grupo de humanos e da prática vivenciada por eles” e a transmissão desse conhecimento acumulado para as novas gerações pode ser estendida para uma multiculturalidade, atendendo às especificidades das comunidades em que estão inseridos os educandos. A matemática na qual o mundo globalizado se apoia é herança da civilização ocidental colonizadora, que incorporou alguns elementos da cultura islâmica. Detentora de uma linguagem e um modo de pensar diferente dos povos conquistados, civilizações inteiras viram aos poucos seus conhecimentos desaparecerem ou serem marginalizados. Na América do Sul, as técnicas de numeração dos incas e a aritmética maia caíram no esquecimento ante a colonização espanhola. No Brasil, a riqueza das figuras geométricas tatuadas nos corpos dos indígenas indica um conhecimento matemático que precisa de ser estudado e divulgado. Pesquisas arqueológicas trazem à tona que diversas atividades como a arquitetura, tecelagem, música, requerem o conhecimento matemático para se desenvolverem (D´Ambrosio, 2005). D´Ambrosio (2001) defende que As grandes correntes migratórias, que acompanham a evolução da espécie humana, são fundamentais na influência mútua entre culturas. Essa influência muitas vezes não é destacada na historiografia da matemática. Os equívocos e omissões da historiografia têm enormes consequências na educação. Particularmente no mundo moderno, as migrações, tanto voluntárias quanto forçadas, mostram-se um fator fundamental na dinâmica cultural. Hoje, são raríssimas as comunidades nas quais não esteja presente o fenómeno do multiculturalismo, com reflexos nos sistemas escolares.

Ao propor um programa de etnomatemática na década de 70, o professor D´Ambrosio tinha por objetivo estudar a “evolução cultural da humanidade no sentido amplo, a partir da dinâmica cultural que se nota nas manifestações matemáticas” (2001). Pesquisas sobre a mente mostram que, assim como o falar, também comparar, classificar, ordenar, medir, contar, inferir, são próprios da natureza humana. Todos os indivíduos da espécie percebem a realidade e a representam através da arte, das crenças, dos mitos e das teorias, e essas percepções e representações são socialmente compartilhadas e codificadas por grupos de indivíduos. Isso é feito de maneiras distintas, dependendo do ambiente natural e cultural em que o grupo de indivíduos está inserido, o que é facilmente reconhecido no falar, na mitologia e nas práticas de alimentação, de vestimenta, de habitação, de organização urbana. Por que não nas práticas de comparação, classificação, ordenação, medição, contagem, inferência e nos esquemas de abstração em geral? (D´Ambrosio, 2001).

A análise de práticas matemáticas em ambientes culturais diferentes mostrou que “o momento social está na origem do conhecimento” e, ao dar um enfoque holístico à história do conhecimento, abriu-se caminho para uma análise crítica da gera-


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ção, produção, organização e difusão do conhecimento, buscando recursos em áreas de conhecimento aparentemente incompatíveis como a ciência da cognição, epistemologia, ciências e artes, história, política e comunicação (D´Ambrosio, 2001). Alguns críticos, auto-intitulados “puristas”, descartam a etnomatemática por a considerarem “uma variante do politicamente correto levado longe demais”, mas a esses D´Ambrosio questiona: “é ir longe demais propor uma prática pedagógica que vise eliminar a agressividade, a arrogância, a intolerância, a discriminação, a injustiça, a hipocrisia e o ódio?” (2005). A história regista que a humanidade só avançou, quando se despiu de preconceitos e se dispôs a aceitar outras formas de saber e a matemática é, de todas as ciências, “a que mais se aproxima da abstração – e o ser humano avança em termos de desenvolvimento cognitivo quando consegue fazer abstrações” (Ferreira, 1997: 26). 4. A educação inclusiva no Brasil A educação é uma forma de inclusão social e fortalecimento da autoestima. A adoção do sistema de “cotas” pelas universidades públicas brasileiras para dar oportunidades a minorias desfavorecidas seja por questões sociais ou culturais (índios, negros e egressos de escolas públicas) é uma resposta coerente e responsável do Estado brasileiro aos vários instrumentos jurídicos internacionais a que aderiu, tais como a Convenção da ONU para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD), de 1968, e, mais recentemente, à Declaração e Plano de Ação de Durban, resultante da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, ocorrida em Durban, na África do Sul, em 2001. O Plano de Ação de Durban corrobora a ênfase, já colocada pela CERD, de adoção de ações afirmativas como um mecanismo importante na construção da igualdade étnica e racial e essas medidas já se efetivam em inúmeros países multiétnicos e multirraciais semelhantes ao Brasil. Ações afirmativas foram incluídas na Constituição da Índia, em 1949; adotadas pelo Estado da Malásia desde 1968; nos Estados Unidos desde 1972; na África do Sul, em 1994; e desde então no Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia, na Colômbia e no México. (Manifesto em favor da lei de cotas e do estatuto da igualdade racial)

A opção brasileira em utilizar políticas de ações afirmativas para minimizar as desigualdades sociais é bastante louvável, mas de pouco alcance, visto que a exigência de ingresso é a conclusão do ensino médio, ensino este que esbarra na promoção de um currículo escolar pragmático, com uma linguagem e uma didática muitas vezes estranha ao meio e à compreensão do educando. Cabe então perguntar: como fazer os conteúdos mais atraentes? No caso dos indígenas, como envolver o educando no aprendizado das ciências?


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A Lei das Cotas (PL 73/99) em exercício oportuniza as minorias menos favorecidas económica e socialmente se inserirem no mundo globalizado, numa postura de igual para igual, sem medos. Ao discorrer sobre o “potencial tanático da globalização” cujo “poder deflui da telenomia interna homogeneizadora e uniformizadora do processo” Patrício (2002: 81) manifesta sua preocupação com o perigo que a globalização representa, se deixada à solta, sem cuidar “atentissimamente da identidade cultural das comunidades”, podendo até ser letal. Loureiro (2002: 386), ao analisar os limites da globalização, adverte sobre os perigos do totalitarismo cultural, o risco da asfixia das vozes culturais e aposta na escola como comunidade de aprendizagem e afirmação de valores culturais e éticos. Para Marques (2002: 118), A história da resistência das identidades culturais às forças uniformizadoras faz-nos lembrar que o poder das identidades culturais é imenso e que a ideia de uma ética universalista não pode ser imposta nem pode reduzir o alcance e a plenitude das diferenças culturais. Na verdade a ética universalista não pode passar de um mero ideal, de uma proposta sedutora que cativa pela moderação, pela prudência e pelo respeito que devota a quem se lhe opõe. É na prudência, na moderação e na tolerância que a ética universalista pode evidenciar a sua superioridade face a todas as éticas particularistas e às culturas de facção ou de seita. A ética universalista não pode ser imposta, mas apenas sugerida. A livre adesão é, neste caso, um princípio sagrado.

A Universidade Federal do Tocantins (UFT) reserva desde 2005, uma fatia de 5% do total de vagas para os indígenas, mas o número de estudantes indígenas que ingressaram representa apenas 18% do total de vagas oferecidas. Embora a UFT adote a políticas de cotas para a entrada dos estudantes de origem indígena, muitos candidatos não conseguem entrar por não atingirem a nota de corte dos vestibulares, como mostra o quadro abaixo: ingresso de estudantes indígenas na UFT ano

vagas

inscritos

ingressos

2005

100

87

16

2006

100

60

16

110

121

2007

http://www.secom.unb.br/unbagencia/ag1206-03.htm

A grande questão com que o ingresso à Universidade no Tocantins se depara é a ausência de escolas que vão além do ensino até a quarta série nas aldeias. No muni-


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cípio de Tocantínia499, por exemplo, onde se concentram os índios da etnia Xerente, das 38 aldeias existentes, 30 possuem escolas mantidas pelo Estado, que vão da 1ª até à 4.ª série. Apenas duas aldeias oferecem ensino da 5.ª à 8.ª série. Os indígenas que querem dar continuidade aos seus estudos têm duas opções: ou frequentam o Centro de Ensino Médio Indígena Xerente500 (CEMIX / WARÃ), construído pelo Governo do Estado dentro da Reserva Xerente e inaugurado em 2005, próximo a divisa dos municípios de Tocantínia e Rio Sonos ou se dirigem a área urbana de Tocantínia, que possui uma escola estadual de ensino fundamental e duas escolas de orientação religiosa: uma vinculada à Igreja Batista, fundada em 1936 e que oferece o ensino até a 8.ª série e outra à Igreja Católica conveniada com o governo do estado, fundada em 1957 e que oferece ensino da 5.ª a 8.ª série do ensino fundamental e também o ensino médio. Considerando que as aldeias estão espalhadas nos aproximadamente 1800 km² de área correspondente a reserva Xerente, esse deslocamento pode-se tornar muitas vezes inviável dada a longa distância a percorrer. Além das dificuldades geográficas, outros fatores contribuem para o abandono escolar: a não adaptação a uma escola formal, vindos de uma alfabetização na aldeia, a não identidade com conteúdos programáticos descontextualizados da sua realidade e a não proximidade de seus familiares e afetos. 5. Educação matemática para a inclusão Dados do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento indicam que os indígenas representam a população mais empobrecida dos países em que vivem. Em 1982, a ONU criou o "Grupo de Trabalho sobre Populações Indígenas", que logo se transformou no mais importante fórum internacional de discussão dos direitos indígenas. A Convenção n.º 169 sobre povos indígenas e tribais da OIT (1989) avançou no sentido do reconhecimento da integridade cultural indígena, de seus direitos à terra e aos recursos naturais, bem como à não discriminação em todas as esferas do bem-estar social. Recentemente alguns relatos de experiências pedagógicas bem sucedidas e o resultado de pesquisas, em fóruns voltados para a educação indígena, propiciaram “o

499

Segundo o censo do Instituto Brasileiro Geográfico e Estatístico (IBGE) de 2000, a população de Tocantínia é de 5.789 habitantes. O polo-base, posto médico mantido pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) em Tocantínia, revelou que o total de indígenas cadastrados é de 2.350 pessoas 500

Segundo o diretor Lenivaldo Srãpte Xerente, a escola oferece de 5.ª a 8.ª série do ensino fundamental e o ensino médio. Em 2006, a primeira turma do ensino médio se formou (5 alunos)


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aprofundamento da análise crítica sobre os diferentes aspectos – políticos, identitários, sociais, económicos, organizacionais, simbólicos – dos processos educacionais escolares em ambientes indígenas” (Silva e Ferreira, 2000: 12). O acesso aos conhecimentos produzidos pela humanidade não só pode proporcionar novos conhecimentos como favorecer a inclusão do educando, pois o domínio dos conteúdos favorece a autonomia do grupo, colocando-o em condições de igualdade. Os povos indígenas do Brasil vêm buscando uma escola que: 1.º) os coloque em igualdade de condições para dialogar com o mundo fora da aldeia; 2.º) lhes sirva de instrumento para projetos futuros dentro e fora das aldeias; 3.º) os incorpore no mundo globalizado, respeitando sua cultura e tradição. Para tanto, é preciso que compreendam e dominem as teorias e façam dela um instrumento capaz de deflagrar o potencial ilimitado próprio do homem. A etnomatemática ao colocar em evidência a diversidade, abre espaço para a resistência da comunidade na preservação dos valores, conceitos e visão própria do mundo. A apropriação do conhecimento matemático por caminhos não ortodoxos, é uma prática que vem sendo legitimada pelo sucesso de experiências não só junto a comunidades indígenas, como entre remanescentes afro-brasileiros de quilombos, agricultores e outros grupos sociais, conforme relatos divulgados nos meios eletrónicos (ver sites consultados) e em publicações especializadas. Finalizando, a exclusão social é incompatível com o mundo globalizado do século XXI e um mal de proporções nefastas para as relações humanas. Além de promover a discriminação e a violência, fragilizam a comunidade, deixando-a vulnerável e em descompasso com a nova ordem mundial, multiétnica e multicultural. A troca de vivências e tradições culturais favorece o avanço do homem no caminho de relações sociais equalitárias, justas e sem preconceitos. 6. Referências bibliográficas AB’SABER, Aziz N. et al. (1997). A época colonial: do descobrimento à expansão territorial (Tomo I, vol.1). Sérgio Buarque de HOLANDA (org.). História Geral da Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda (1996). História da educação e da pedagogia geral no Brasil. São Paulo: Editora Moderna. CALMON, Pedro (1963). História do Brasil. v. 1, Rio de Janeiro: José Olympio. D´AMBROSIO, Ubiratan (1985). Ethnomathematics and its place in the history of mathematics. For the Learning of Mathematics. Montreal, vol. 5, n.º 1, 44-48.


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