Um Pouco da História de Cadernos Negros - período de 1978 a 2008

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UM POUCO DE HISTÓRIA DE CADERNOS NEGROS PERÍODO DE 1978 A 2008 UMA HISTÓRIA QUE ESTÁ APENAS COMEÇANDO

Por ocasião das três décadas de Cadernos Negros foi lançado um volume especial que incluiu um texto com o histórico da série. Reproduzimos a seguir esse texto para que quem se interessa pela série conheça um pouco mais sobre sua criação e as batalhas que envolvem a sua manutenção.


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m um país como o Brasil, com o histórico de ausência de identidade, de servidão à cultura estrangeira, dificilmente uma manifestação como os Cadernos Negros sobreviveria. Mas sobreviveu. Já se vão trinta anos da publicação do primeiro exemplar da antologia literária afro-brasileira Cadernos Negros. Não se pode negar a importância desse aniversário, que deve ser comemorado não apenas pelos idealizadores e participantes diretos do projeto, mas por toda a comunidade afro-brasileira. Sim, comunidade, conforme a definição de Hugo Ferreira: “Você vive em uma comunidade quando tem idéias comunitárias, quando é algo entre irmãos”. A primeira edição dos Cadernos foi lançada em 1978; ano de muitas mudanças no Brasil, como a revoga, pelo então presidente Ernesto Geisel, do Ato Institucional N– 5 (AI-5), pondo um suposto fim aos anos de chumbo º que se instalaram no Brasil com a ditadura militar em 1964. 1978 também era ano de eleição e os sindicatos e movimentos estudantis viviam um período de reconstrução da luta política e de suas ideologias. Além disso, 1978 marcava noventa anos de assinatura da Lei Áurea. No mundo, a década de 70 viu vários países africanos, como Angola e Moçambique, deixarem de ser colônias de países europeus; a ONU elegia o ano de 1978 como o “Ano Internacional Anti-apartheid” e nos EUA, ao mesmo tempo em que se discutiam ações afirmativas, ainda ecoavam movimentos como o dos “Black Panthers” e o “Black Arts Movement”, este último preconizando uma estética negra na arte. A luta contra a discriminação estava em curso. No Brasil, nasciam movimentos como o MNU (Movimento Negro Unificado), formado no CECAN (Centro de Cultura e Arte Negra), espaço onde os jovens se reuniam e participavam de discussões políticas. 19


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Lançamento do Cadernos Negros 1 na livraria Teixeira (centro de São Paulo).

Reunião do Quilombhoje na casa do Cuti, no bairro da Bela Vista, em São Paulo, com Sônia, Oubi, Chicão, Esmeralda, Regina Helena, José Alberto, Cuti e Jamu. Sentadas, em primeiro plano, estão Miriam e Vera Alves.

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Era nesses espaços e grupos que a juventude negra, engajada em movimentos de caráter político-social, gestava seus próprios meios de comunicação. Jovens como Jamu Minka se envolviam cada vez mais com mídias alternativas: “Eu vinha de uma experiência alternativa, um tablóide muito famoso na época: Versos. Era um tablóide de esquerda que criticava todas as ditaduras do Cone Sul. Em seguida fui para o CECAN para fazer o jornal dessa entidade, o Jornegro”. Havia outras publicações, como o “Árvore de Palavras”, também idealizado e produzido por Jamu Minka, que eram distribuídas no centro de São Paulo. O movimento Soul explodia e essa juventude estava então se reunindo no centro da cidade – no viaduto do Chá – e também nos bailes blacks, tomados nessa época pelo movimento soul, que explodira na metrópole desde meados da década de 70. O jovem negro, nesse momento, começava, em quantidade, a entrar nas universidades, acessando a produção cultural: cinema, literatura, teatro – diferentemente de gerações anteriores, que tinham mais dificuldade de ingressar num curso superior e acessar os bens culturais pertencentes a esse universo. Eram jovens negros que estavam se destacando da realidade já há tanto tempo tradicional: analfabetismo, exclusão, subempregos, marginalidade. Nesse momento de engajamento político e envolvimento com os bens culturais, conseqüentemente, nasceu a necessidade de auto-reconhecimento, de encontro com as raízes, de busca de identidade, logo, de ícones nos quais se espelhar, como relata Hugo Ferreira: “Eu confesso que eu nunca cheguei, até 1975, a pegar um livro do Solano Trindade. Só tive contato em 1976, porque eu participei do Teatro Popular Solano Trindade, com a Raquel Kambinda. (...) Aí você chega, por exemplo, em 78, tem a comemoração dos 80 anos de Solano Trindade e todos aqueles negros velhos estavam ali, vivos, como o seu Correia Leite, um cara íntegro, honesto (...)”. Entretanto, esses jovens universitários eram exceções; a grande massa da juventude negra continuava não tendo acesso aos bens culturais e essa mesma população estava sendo sistematicamente levada, cada vez mais, para as periferias da cidade a partir dos projetos de habitação popular do governo. Em meio a esse contexto de exclusão espacial, econômica e cultural, associada a uma conscientização política, que então renascia, o movimento negro tomava força. Aquele jovem negro chegando à universidade e não encontrando representações de seu povo na literatura, nos estudos históricos e socioló21


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Lançamento do Cadernos Negros 2. Da esquerda para a direita: pai do Paulo Colina, os autores Neuza Maria Pereira, Abelardo Rodrigues, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina e Aristides Barbosa.

Lançamento do Cadernos Negros 1 na livraria Teixeira. Jamu Minka (autor) e o sociólogo Florestan Fernandes.

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gicos, se pergunta: por quê? Tinha-se até então a imagem – o senso comum – de que o negro não produzia literatura e conhecimento, isso também nos relata Hugo Ferreira: “Em 1978 aconteceu muita coisa; aconteceu essa contestação do 13 de maio pelo MNU. O Movimento Contra a Discriminação Racial surgiu em função de quê? Em função de barrarem os atletas negros no (clube) Tietê. Porque era aquele negócio: negro era bom pra correr, mas para ir pra piscina, não. Não podia entrar (...) Negro não era bom pra nadar. Como você pode não ser bom pra nadar se você não pode entrar na piscina? E até hoje eu vejo o seguinte: o negro não é escritor por quê? Porque não tem oportunidade de escrever”. Apesar de existirem exemplos eminentes de produção literária de qualidade, como Solano Trindade, Abdias do Nascimento, Lino Guedes, entre outros, não era o bastante. Não bastava ser exceção, o jovem negro ansiava por ser agente da construção de sua trajetória na literatura: “O negro estava presente na literatura tradicionalmente como tema e não como agente”, afirma Márcio Barbosa. Cuti completa: “Porque faltou e falta ainda dentro dessa literatura brasileira feita por brancos os traços da nossa subjetividade. Nós estamos representados nessa literatura pela visão que o branco tem de nós”. Havia necessidade de ser a própria voz e ser também a voz daqueles que não tinham voz, conforme Jamu Minka: “Fui percebendo a questão da falta de identidade negra mais crítica, de personagens mais de acordo com o que a gente vivia”. O clima geral, porém, era de “deixa disso”. Na universidade, Cuti encontrou quem dissesse que no Brasil não havia preconceito; assim, dentro dessa noção, por que fazer uma literatura como que denunciando um racismo em tese inexistente? Dentro dessa idéia, esses estudantes que queriam fazer literatura não deixando de lado sua vivência da questão racial encontraram vários opositores, nas palavras de Hugo Ferreira: “A direita, que eram os deputados, vereadores, falava que não existia preconceito no Brasil. A esquerda, que era o Partido Comunista, virava pra gente e falava: ‘vocês estão dividindo a luta de classes’”. Mesmo dentro do movimento negro houve quem se opusesse àquela mobilização literária idealizada pelos Cadernos usando o argumento de que literatura era coisa de burguês. Ainda que em meio a tanta oposição, Cuti, Hugo e seus companheiros seguiram em frente: “Nosso país não podia mais viver sem a nossa experiência de vida colocada em forma de literatura por duas razões: nós negros precisávamos estar representados e também o branco precisava ser visto de outra maneira”, segundo Cuti. 23


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Cuti no lanรงamento do Cadernos Negros 4.

Hamilton Cardoso declama em roda de poemas do Cadernos Negros 4.

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Em meio a essa necessidade de auto-retratação e efervescência políticocultural nasce um projeto de vida. Cuti, então estudante de Letras, ciente da escassa produção literária feita por negros que reproduzisse seu cotidiano, suas dores, amores e ideais, sente a necessidade de produzir mais e agregar a esse projeto outros autores negros: “A idéia de Cadernos era exatamente a idéia de experimentação, a gente poder estar livres para experimentar estilos, formas de literatura. E aconteceu que lá no CECAN (Centro de Cultura e Arte Negra), que ficava no Bexiga, nós tínhamos um jornal chamado Jornegro e nesse jornal reuniam-se várias pessoas que escreviam poesia. Daí nasceu a idéia”. Outro idealizador, o jovem Hugo Ferreira, que na época fazia mestrado em História, uniu-se a Cuti na estruturação do projeto: “Eu fiz um projeto que era uma tese, o Cuti entrou com a antítese dele e surgiu uma síntese que são os Cadernos (...) Então a minha idéia era criar um coletivo de escritores. Como? Primeiro publicando. Ter uma publicação que publicasse quem quisesse ser publicado”. Mas por que Cadernos Negros? Hugo Ferreira, o “inventor” do nome, explica: “Em 1977 tinha morrido a Carolina (Maria de Jesus), e ela escrevia em cadernos; a gente também escrevia nossas poesias em cadernos, somos da geração anterior ao computador e muita gente não tinha máquina. Uma coisa muito simples se tornou uma coisa muito forte, os cadernos eram algo nosso”. Então, a antologia de poesias feita por afro-descendentes chamou-se Cadernos Negros. O primeiro número contou com a participação de Celinha, Oswaldo de Camargo, Eduardo de Oliveira, entre outros. Para reunir os textos Cuti comunicou a respeito do livro para alguns poetas que já conhecia, reuniu os poemas, orçou o valor da publicação com a gráfica e repassou aos autores aguardando o dinheiro para imprimir os livros. O lançamento do primeiro número dos Cadernos aconteceu no Feconezu (Festival Comunitário Negro Zumbi), em Araraquara, onde se reuniram quase duas mil pessoas naquele ano de 1978. O que muita gente não sabe é que alguns dias depois foi feito um segundo lançamento, só que agora na famosa, na época, Livraria Teixeira, situada na Rua Marcondes, centro velho de São Paulo, e contou com presenças importantes, como a de Florestan Fernandes: “O lançamento na Livraria Teixeira foi por intermédio do professor Eduardo de Oliveira, que era amigo do dono da Livraria e propôs o lançamento lá. A livraria foi muito receptiva e houve até uma exposição dos livros lá fora. Foi como um lançamento tradicional em que os autores autografam os livros, algum fala alguma coisa. 25


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Carlos de Assumpção faz performance sobre o poema "Protesto".

Quilombhoje em 1985. Foto da quarta capa do livro Reflexões sobre a Literatura Afrobrasileira. Da esq. para a dir.: Márcio Barbosa, Esmeralda Ribeiro, Oubi Inaê Kibuko, Cuti e Miriam Alves. Sentados no chão: Sônia Fátima, Abílio Ferreira e Jamu Minka.

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O discurso foi feito por Aristides Barbosa, jornalista hoje já falecido”, relembra Cuti. Há que se destacar o paradoxo desses dois eventos de lançamento. O primeiro, mais popular, voltado para um público em sua maioria de negros, em um evento do movimento negro, sem caráter unicamente literário. E o segundo, para um público bem menor, em torno de 50 pessoas, em um ambiente freqüentado pela elite cultural. Talvez nesse momento estivessem se evidenciando, para cada um dos participantes dos Cadernos, as escolhas que teriam de fazer mais tarde. Apesar da inicial afinidade ideológica que Hugo Ferreira e Cuti mantinham, houve o momento de trilharem caminhos diferentes. Hugo era visto, por outros integrantes do grupo, como panfletário por não desagregar a literatura (arte) da ideologia (política), por seu desejo de que os Cadernos fossem mais populares no sentido de alcançar o público não-formado apenas por universitários e de que os textos publicados não fossem de autores já conhecidos e possuidores da técnica literária já reconhecida, mas de homens comuns que desejassem escrever: “Eu recebi muitas críticas dizendo que meu texto era panfletário. (...) Mas eu não sou escritor, eu sou militante”, declara Hugo. *** Mas como os Cadernos poderiam sobreviver? “No primeiro número dos Cadernos, se você pegar, já anuncia o segundo e o segundo já anuncia o terceiro. Já coloquei ali anunciando o próximo porque eu queria que as pessoas se empenhassem em realizar um trabalho a longo prazo”, relata Cuti. Fazendo todo o trabalho praticamente sozinho, Cuti contava eventualmente com auxílio de algumas pessoas. Oswaldo de Camargo revisava textos, Sônia Fátima cuidava da parte financeira e ajudava na organização dos textos (na época não havia seleção de textos): “Na segunda edição o Cuti veio me chamar e fui participar e ajudar na organização e na parte econômica”. Mas ninguém o amparou tanto quanto sua esposa, Marinete. Durante todos os anos em que Cuti se dedicava à produção dos Cadernos, Marinete, a Nete, o auxiliava de várias maneiras, buscando novos leitores, nos lançamentos, enfim, segurava as “pontas” em casa enquanto esposa e, apesar de não ser escritora, teve um papel muito importante na história dos Cadernos: “Eu acompanhei o levantamento e recolhimento do material. O Cuti ficava atrás das pessoas, era aquela dificuldade de fechar o livro, eu via o sofrimento dele, eu sentia isso dentro da minha casa”, relembra. 27


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Felipeta de divulgação de lançamento de livro.

Lançamento do Cadernos Negros 5. Ao centro, aparecem Vera Lúcia Barbosa em pé, (autora no CN 24) e o colaborador Toninho. À direita está o artista plástico Luiz Cláudio Barcellos, autor da capa.

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Os autores participantes dos Cadernos se reuniam para discutir os próprios textos, que seriam publicados na antologia, e textos de outros autores, como Solano Trindade, Lima Barreto, enfim, basicamente discutiam literatura. Esse grupo de discussão era formado por Cuti, Oswaldo de Camargo, Abelardo Rodrigues e Paulo Colina; os encontros aconteciam na casa do Cuti ou em bares da região do Bexiga. Desses encontros nasceu o nome Quilombhoje para o grupo que tinha como diretriz a discussão do papel do negro na Literatura Brasileira. O Quilombhoje tinha atividades separadas da publicação dos Cadernos, porém as relações eram estreitas, pois os autores escreviam para os Cadernos e discutiam suas produções no Quilombhoje. Com o passar do tempo, novas pessoas tomavam contato com os Cadernos e se interessavam em participar: “O Oubí (Inaê Kibuko) me apresentou os Cadernos Negros, eu já participava de algumas atividades políticas do movimento negro, eu tinha vindo do movimento Soul da década de 70, tinha feito parte de um movimento chamado Black São Paulo, que era mais de entretenimento, música, mas era um movimento que tinha conotação étnico-racial (...) Como eu escrevia algumas coisas também, comecei a pensar que poderia escrever mais coisas nesse sentido. Foi um estímulo conhecer os Cadernos Negros”, relembra Márcio Barbosa.

Oubí Inaê Kibuko autografa o livro Cadernos Negros 10, em lançamento no Sesc. À direita, de terno, está o poeta Marcílio Nascimento.

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Márcio Barbosa autografa livro. À esquerda aparece Márcio Damázio, responsável pela pioneira Livraria Eboh.

Éle Semog autografa livro.

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Assim como Márcio, outros “novatos”, já no início dos anos 80, começavam a se aproximar do grupo que já existia, como Esmeralda Ribeiro, que chegou ao Quilombhoje também nessa época: “Eu sempre estava nas reuniões na casa do Cuti, mas sem muito compromisso, era o momento tão falado da entrada dos novatos. Eu particularmente estava com muita garra, muita força, querendo aquela descoberta. Estando no Quilombhoje nós começamos a pensar em como ajudar o Cuti, pois sabíamos que ele fazia os Cadernos Negros sozinho”. Os novos integrantes, Miriam Alves, Oubí, Márcio e Esmeralda, traziam consigo um vigor jovem associado a uma enorme vontade de fazer literatura e espalhá-la por todos os cantos, como nos relata Márcio: “A idéia era divulgar mais a literatura para as pessoas que curtiam baile, que curtiam escola de samba e que não freqüentavam o CECAN. Isso foi dando certo, íamos no Vai-Vai para fazer o pessoal se interessar pelos Cadernos e ir nos lançamentos, assim muita gente passou a se interessar.” Porém, esse sangue novo tinha opiniões que divergiam do que já estava estabelecido pelo ideário dos integrantes mais “antigos” do Quilombhoje, enquanto grupo de discussão literária e produtor dos Cadernos Negros: “A gente sentiu um certo choque de como encarar a literatura, a gente encarava de uma forma mais política, de forma que ela podia trazer alguma transformação real para ajudar as pessoas, mobilizar outras pessoas. E eles não davam

Reunião na casa do Cuti. Regina Helena (à esquerda), Cuti e José Alberto.

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Lançamento do Cadernos Negros 16 no Sindicatos dos Bancários de São Paulo, em 1993.

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tanto peso a essa parte mais de militância, embora a atuação deles fosse importante”, conclui Márcio. Esse “eles” a que Márcio, que hoje divide com Esmeralda Ribeiro a gestão do Quilombhoje e da publicação anual dos Cadernos Negros, se refere eram Oswaldo de Camargo, Paulo Colina e Abelardo Rodrigues, estes que participaram ativamente das primeiras publicações e rodas de discussão literária, todos com formação acadêmica e visão que dividiu o Quilombhoje em duas frações: uma que priorizava as discussões literárias mais “fechadas” e outra formada pelos novos integrantes, que ansiavam por uma maior popularização do Quilombhoje e dos Cadernos no sentido de que esses trabalhos fossem mais divulgados e contassem com maior participação da comunidade. “A gente achava que a literatura podia ter um papel muito maior. Eles tinham uma preocupação mais formal, estética, mais intelectual, no sentido tradicional da palavra, então deu esse choque”, revela Márcio. No meio dessa divergência de idéias, do racha que aconteceu no grupo, estava Cuti. Vivia o dilema de ficar ao lado de seus antigos companheiros acadêmicos Oswaldo Camargo, Paulo Colina e Abelardo Rodrigues e os novos integrantes, jovens ávidos por dar nova direção aos Cadernos. Cuti então fez a escolha que, naquele momento, achou que era a melhor: “Eles saíram e me deram um xeque-mate para eu escolher com quem eu iria ficar. E eu resolvi ficar com os novos e eu acho que fiz o certo. Fiquei com os novos que na época eram o Jamu, Miriam Alves, Esmeralda e depois o Márcio e o Oubí. Foi bom porque a partir daí os Cadernos Negros evoluíram, pois o trabalho em equipe dá muito mais resultado”. Então o Quilombhoje iniciou, em 1983, uma nova formação. Ao longo do tempo, pessoas entraram e saíram. As reuniões passaram a ocorrer na casa da Sônia, foram criadas regras de disciplina rígidas e isso teve como conseqüência a saída de membros como Jamu Minka e Miriam Alves. Em 1994 foi Oubí Inaê Kibuko que se retirou do grupo. *** Em 1993, Cuti, por motivos pessoais, deixou de fazer parte do grupo, mas continuou publicando seus textos nos Cadernos. Durante o período em que trabalharam, houve muitos obstáculos, principalmente financeiros, para se manter a publicação dos Cadernos. Porém o caráter cultural do coletivo se mantinha, continuavam a discutir literatura nas reuniões e a divulgá-la nas “rodas de poemas”, com direito a música e declamações: “O poema já chegou, o poema já chegou, veio do quilombo, o poema já chegou”, declama Cuti, 33


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Arnaldo Xavier e leitoras.

Leitores conversam sobre o livro.

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relembrando a época das rodas de poemas. Em 1999, Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa passaram a ser os únicos remanescentes da formação inicial do grupo. Mas os componentes que saíram continuam colaborando com os Cadernos e discutindo literatura dentro do Quilombhoje. Co-fundadores, como Abelardo Rodrigues, trilham seus próprios caminhos. Oswaldo de Camargo continua atuando ativamente e é um intelectual respeitadíssimo. “Oswaldo é um grande amigo e suas opiniões são sempre enriquecedoras”, afirma Márcio. Antes, com o amadurecimento do Quilombhoje, tinham vindo as responsabilidades: era necessário cuidar das questões burocráticas; disso se ocupou Esmeralda, enquanto os outros se dividiam entre selecionar os textos, revisar, mandar para a gráfica etc. Cada membro do grupo teve a oportunidade de publicar seu livro individual e isso, segundo Cuti, fez com que os integrantes do grupo se sentissem valorizados. Tantos os Cadernos Negros quanto os livros individuais eram feitos de forma cooperativa, sem patrocínio. Essa postura perdura até nossos dias, o que faz com que qualquer pessoa que escreva e tenha desejo de publicar seu texto possa participar do processo de seleção da coletânea. Esse processo de seleção é coletivo. Nos primeiros volumes de Cadernos não havia seleção, os textos enviados eram automaticamente publicados. Essas publicações têm sido importantes também para dar visibilidade

Almoço com Toni Morrison, escritora afro-americana ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 1993. Do lado esquerdo estão Miriam Alves e Toni Morrison; à direita está Esmeralda Ribeiro.

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Divo (à esquerda), da Editora Anita, e o professor Eduardo de Oliveira (ao centro) confraternizam-se com participantes do lançamento do Cadernos Negros 17.

Dj Hum toca no lançamento do Cadernos Negros 25.

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à produção literária da mulher negra, esta que foi e é tão importante no Movimento Negro e que nas primeiras edições esteve presente em pequeno número e que, no Cadernos Negros volume 30, aparece em maior quantidade, demonstrando assim que a escrita da mulher negra vem se articulando e ocupando seu espaço único e específico dentro da literatura afro-brasileira: “Os Cadernos são de grande importância porque eu não conhecia mulher negra que tivesse um trabalho (literário), exceto a Carolina de Jesus. Mas poetisa negra que falasse do nosso amor, da nossa vida, dos nossos filhos, das nossas coisas, não era comum. E hoje a gente vê Elizandra, Esmeralda Ribeiro, Conceição Evaristo, Miriam Alves e tantas outras. Então eu acho que tem um sabor diferente, a gente está aí, as mulheres negras estão falando de suas angústias, suas belezas, estão escrevendo e isso é importante”, assevera Marinete Silva, a Nete. Sendo assim, o lançamento deste volume especial dos Cadernos revela a força e importância histórica e social da literatura afro-brasileira e o papel que a série tem tido em sua divulgação, nas palavras de Cuti: “Eu já acreditava que só as coisas que duram é que criam raízes. As coisas efêmeras não criam raízes, portanto não dão frutos.” A permanência e resistência dos Cadernos é uma das conquistas, assim como a publicação de uma versão em inglês nos EUA e a inclusão de uma edição especial de Cadernos, “Melhores Poemas”, na lista de livros indica-

Miriam, Tico e Lia no lançamento do Cadernos Negros 28 no Masp, em São Paulo.

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Esmeralda Ribeiro e Cristiane Sobral no lançamento do Cadernos Negros 24 em Brasília.

Banca com Cadernos Negros em oficina de literatura com jovens na Zona Norte de São Paulo.

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Lançamento do Cadernos Negros 26 no Sesc Paulista.

dos para o vestibular da UFBA (Universidade Federal da Bahia), desde 2006, além de a série ser material e objeto de pesquisas acadêmicas no Brasil e fora dele. Através do Quilombhoje e dos Cadernos Negros, mulheres e homens negros têm perpetuado sua cultura e suas raízes, nesse sentido ambos exercem o papel de ferramenta de resistência: “Os Cadernos são uma arma principalmente”, conclui Márcio. Arma de luta não só no âmbito da comunidade negra do Brasil, mas na vida de cada pessoa que passou ou passará pelo Quilombhoje. Todos os que se dedicaram, escreveram e acreditaram merecem parabéns pelas três décadas de vida, perseverança e união dos Cadernos Negros. E que venham mais 30 anos!

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