Revista Cores

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Sumรกrio 02

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O garoto por trás dos doze

1

Por Arthur Pires Foros de Chico Célio

N

egro, 1,70 m de altura, bastante franzino, daqueles em que as costelas saltam aos olhos e a magreza notória afunda até mesmo a maçã do rosto, Rafael (nome fictício) não se deixa suplantar pela sua aparente fragilidade física. O jovem P.S.F.S., iniciais da verdadeira identidade de Rafael, aos 21 anos, já é um dos principais vendedores de droga da comunidade da Vila Cazumba, na zona sul de Fortaleza, próximo à Cidade dos Funcionários. Como de praxe, por sua “função” dentro da comunidade, Rafael tem prestígio e impõe respeito e medo, mesmo sem querer, a muitos dos moradores. “Às vezes, noto que uns e outros me olham meio de rabo de olho2, com medo ou sei lá o quê”, diz Rafael. E completa: “Mas a maioria me trata bem, na limpeza3”.

A comunidade da Vila Cazumba, onde Rafael nasceu, cresceu e vive até hoje, começou a surgir entre o fim da década de 70 e o início dos anos 80, quando o Tancredo Neves, favela vizinha e uma das maiores de Fortaleza, já apresentava barracos apinhados, colados uns aos outros, que se expandiram rapidamente para os lados de forma inconsequente e não planejada. Dessa expansão do Grande Tancredo Neves surgiram comunidades à sua volta, como as favelas do Gato Morto, do Tasso, do Vila Verde e da Vila Cazumba. É nessa realidade que vive Rafael. O jovem é o terceiro de uma família de quatro irmãos, criados por dona Aparecida, sua mãe. Perdeu o pai, seu Abreu, ainda muito novo, aos cinco anos, mas nem por isso deixou de ter uma figura paterna que o inspirasse e influísse na sua escolha de vida. Seu tio,

Ricardo, que morreu há pouco mais de dois anos e era irmão de seu pai, o criou como um filho, pois morava vizinho ao garoto. Em periferias, é bastante comum que famílias de irmãos morem próximas umas das outras.


“Ele foi mesmo que um pai: brigava comigo, me batia, mas me ensinou muita coisa também”, afirma o jovem. “Eu acho que ele gostava também muito de mim porque só tinha filha mulher; eu era o sobrinho que ele mais gostava, eu acho, né!”, completa, saudoso. Ricardo ‘Rolão’, como era conhecido o tio de Rafael, foi por muitos anos o principal vendedor de drogas da Vila Cazumba e um dos principais do Grande Tancredo Neves. Não queria que o sobrinho seguisse o caminho do tráfico, mas também não fazia esforço em esconder do ainda menino, e dos outros familiares, que a atividade que sustentava a família era o comércio de drogas. Pelo contrário, a venda era feita a céu aberto, na porta de casa. “Ele era muito respeitado pelos moradores aqui da Vila; não tinha como esconder da gente que ele arrepiava4, pois os caras vinham aqui direto pegar (drogas)”, explica Rafael, que desde cedo, através do exemplo de seu tio, viu no tráfico de drogas um caminho real e perfeitamente possível de ganhar dinheiro fácil. Como na grande maioria dos casos, Rafael foi mais um garoto de periferia que escolheu essa sina espelhando-se em exemplos próximos à sua volta. No seu caso, o tio, mesmo sem nunca tê-lo incentivado, foi um mod-

elo a ser seguido. “Eu via que só fazendo aquilo ele sustentava a família dele e ainda ajudava a gente também”, explica. E foi exatamente após a morte de ‘Rolão’, assassinado por traficantes do Tancredo Neves, que Rafael decidiu entrar de vez para a guerra. Segundo ele, não foi muito difícil arrumar um “canal”5 para comprar a droga em grande quantidade para, então, repassá-la. Contudo, prefere não revelar o local. No começo,

conta, “só vendia maconha, mas o que tava (sic) ganhando era muito pouco, não dava quase nada pra mim”. Os papelotes de maconha, ou as ‘balas’, como são comumente chamadas, são vendidos a dois reais cada, o que gera uma receita muito pequena para quem trafica. Percebendo que o lucro gerado com a venda de maconha não estava sendo suficiente, o jovem decidiu começar uma empreitada mais perigosa, porém com lucros que chegam, em média,

dependendo de circunstâncias específicas - como o tamanho da clientela e a quantidade de mercadoria - a 400%, 500% do investido inicialmente: a venda de crack. O crack é um subproduto da cocaína que está completamente disseminado nas periferias brasileiras e avança também, a passos largos, em direção à classe média. Estudos e pesquisas de diversos órgãos que lidam com drogas têm mostrado que, nas clínicas de reabili-

tação particulares, em média, 50% a 60% dos pacientes estão internados por dependência ao crack. Nas clínicas públicas, esses índices beiram os 90%. Dessa forma, fica claro que para qualquer traficante que se utilize da venda dessa droga, que custa cinco reais uma unidade, tem-se a certeza de usuários em potencial aos montes. Outro fator que faz ser moda entre os traficantes a venda do crack é que o usuário dessa droga não se contenta com apenas uma, pois esse sub-


produto da cocaína tem efeito rápido e altamente viciante. “Já teve dia de maluco gastar mais de mil reais só aqui comigo; outros já deixaram televisão, som de carro, DVD, relógio, anel de prata, cordão de prata, de ouro, um monte de coisa”, conta Rafael. O jovem diz, com sinceridade e desleixo, não se incomodar por estar vendendo uma droga com alto poder destrutivo ao usuário: “Nem penso nisso, se o cara vem até aqui pegar, é porque ele quer; só estou fazendo o meu adianto”6. Uma vez por semana, vai até seu “canal” e adquire uma nova remessa de crack. A quantidade varia de uma semana para outra, dependendo do quanto ainda tem disponível no estoque, mas em média, compra semanalmente entre 40g e 50g da droga. Para clarear as ideias, 5g de crack são vendidos, em média, a 120 reais. Quando comprada em grande quantidade, esse valor diminui para 100 reais. Portanto, o jovem Rafael, que estudou até o 1º ano do Ensino Médio e nunca trabalhou com outra coisa que não fosse o tráfico de drogas, administra, por mês, uma quantia que varia entre 3.200 e 4.000 reais. Muito? Rafael solta uma espontânea gargalhada, se recompõe e esclarece que não: “É uma micharia7! Tem doze lá no Tancredo que tem é casa du-

plex, carro, dinheiro no banco”. A maioria da clientela do jovem é formada pelos próprios moradores, mas, segundo ele, os clientes mais lucrativos são os “playboy”8, que normalmente compram a droga em grandes quantidades. Durante a entrevista, feita no local onde sempre “despacha”9, diversos usuários surgiram, sem cerimônia. O garoto negocia a

droga com a mesma naturalidade de um comerciante que vende laranja na feira. O tráfico na favela não pára. Segundo ele, o movimento é intenso durante todo o dia, inclusive no decorrer da madrugada. Para Rafael, o pior de vender “pedra”10 é ter que ficar acordado durante toda a madrugada, “hora em que aparecem os bruxos”11. Por conta dessa rotina, diz que acorda somente depois do meio-dia para “trabalhar”. O jovem, obviamente, não é o único traficante da Vila Cazumba. Mas, como gosta de dizer, “é o que está arrepiando mais na área”, orgulha-se. No entanto, diz que os outros não

sentem inveja, relaciona-se bem com todos. Pelo menos no momento, os traficantes da comunidade convivem num clima respeitoso. O grande problema mora ao lado. Mais especificamente, cruzando a Avenida José Leon, que marca a divisão entre a Vila Cazumba e o Tancredo Neves. Historicamente, os traficantes das duas comunidades vivem numa guerra

pelo controle do comércio de drogas na região. Há momentos, meses até, em que impera o armistício, mas é preciso apenas uma “mancada”12 de um dos lados para a batalha recomeçar a pleno vapor. Essa disputa já ocasionou várias vítimas fatais, entre elas o tio de Rafael, Ricardo ‘Rolão’, que, como dito anteriormente, foi morto por traficantes do Tancredo Neves. Fogos de artifício rasgam o céu da região quando há a morte de algum traficante, seja da Vila Cazumba, seja do Tancredo Neves. Os fogos são uma espécie de ritual que eles incorporaram a essa guerra insana. “Já perdi uns camaradas13, mas é isso mesmo”, resigna-se Rafael, num misto de frieza e tentativa de apagar da memória as lembranças dos amigo perdidos. Assim como com os traficantes do Tancredo Neves, o relacionamento com a polícia é difícil. Rafael conta que a corporação sabe que o comércio de drogas ocorre na favela, e por conta disso, “come o troco”14 de muitos traficantes. Aquele que não paga o suborno aos policias, corre seriamente o risco de ser preso e ter seu negócio fechado, derrubado. “Se não pagar o troco aos homem15 (sic), a casa cai”16, diz o jovem. Os policiais passam no dia combinado e saem recolhendo


os subornos; em contrapartida, fazem vistas grossas ao comércio de drogas que acontece cotidianamente na favela. Quando indagado se também faz uso da droga que vende, se surpreende e é enfático: “Tu é doido? Traficante que usa pedra, tudo o que ganha vai só pra alimentar o vicío”. Mas admite que fuma maconha e, “de vez em quando, no fim de semana”, cheira cocaína. O fato gritante é que a maioria esmagadora dos jovens de periferia recorre às drogas pela facilidade de acesso que encontram. Rafael conta que a mãe, dona Aparecida, sabe da atividade dele, mas não o recrimina, pois

ele tem a ajudado nas despesas domésticas, apesar de não morar mais com ela. Hoje, tem seu próprio barraco, que divide com suas “namoradas”. Fenômeno comum a essas comunidades é o poder de sedução que os traficantes exercem nas garotas da periferia. Para elas, namorar um traficante é sinônimo de poder, de status dentro da comunidade. Semelhante encantamento ocorre com as crianças, que vêem na figura do traficante um exemplo a ser espelhado, tendo em vista que aqueles estão sempre com roupas novas e tênis de marca, relógios caros etc. Essa idolatria que se deposita sobre eles é também um dos moti-

vos que os fazem continuar na atividade ilícita, pois, após conseguir esse prestígio, é muito difícil se desvincular dele. “As cumades17 só faltam pular em cima de mim”, orgulha-se Rafael, abrindo um sorriso sarcástico e com um ar pouco modesto. Entretanto, antes de ser um traficante de drogas, Rafael é um jovem de 21 anos e, como qualquer outro, tem seus gostos, suas vontades e seus amigos, com quem gosta de “jogar futebol e tomar umas geladas”18. Torce para o Flamengo e para o Fortaleza. Não vai aos jogos do seu time porque a atividade não o permite. “Os jogos são sempre domingo ou quarta, e aí são dias

bons aqui pra mim”, confessa. Sorridente, simpático e brincalhão, o jovem é o contrário do estereótipo do traficante, aquele de fisionomia carrancuda, autoritário, violento e prepotente. A atividade que exerce ainda não o embruteceu tampouco o fez perder o espírito de garoto. Durante a entrevista, fez várias brincadeiras com quem passava pelo local. As estatísticas deterministas provam que comumente a vida no tráfico aponta para dois caminhos: a morte ou a prisão. Rafael parece não pensar muito nisso; vai levando a vida como um garoto e, sem saber, como gente grande. Ele é um exemplo clássico de

que muitos dos que exercem a atividade ilegal do tráfico não a fazem por escolha, como se fosse uma entre ser médico, jornalista ou traficante, mas por uma equação muito simples: o meio em que você nasce aliado com a falta de oportunidades de conhecer outro mundo, senão aquele em que nasceu. Não que Rafael seja um exemplo de vida, não que se Rafael tivesse nascido numa família de classe média teria um futuro promissor, mas Rafael nos ensina, mesmo sem querer, a ter sempre um sorriso no rosto, espírito de jovialidade e atitude perante desafios, não importa em que situação nos encontramos.


Glossário da periferia 1_Doze Gíria para traficante, que advém do Art.12 do Código Penal brasileiro que versa sobre tráfico de drogas 2_Olhar de rabo de olho Olhar desconfiado 3_Tratar na limpeza Tratar bem, tratar com educação, com respeito 4_Arrepiar Traficar, vender bem, vender bastante 5_Canal Local (ou pessoa) onde os traficantes compram a droga em grande quantidade para revender 6_Adianto Serviço, trabalho 7_Micharia Pouco dinheiro, quantia insuficiente, pequena quantidade 8_Playboy Jovens de classe média 9_Despachar Vender, negociar

“Rafael nos ensina, mesmo sem querer, a ter sempre um sorriso no rosto, espírito de jovialidade e atitude perante desafios, não importa em que situação nos encontramos”

10_Pedra Crack, tem essa gíria porque é vendida em pedrinhas envoltas em sacos plásticos 11_Bruxos Viciados crônicos, geralmente os mais impulsivos pela droga 12_Mancada Vacilo, erro 13_Camaradas Amigos, parceiros 14_Comer o troco Subornar 15_Homem Policial 16_A casa cair Ter seu negócio fechado e/ou ir para a prisão 17_Cumade Mulher, garota 18_Gelada cerveja


Histórias de Beco

quando a poeira assenta, entrevemos rostos, punhos e corações

Reportagem e ilustrações por May Araújo


Pesquisava a relação entre programas policiais, ditos popularescos, e seus espectadores que se reúnem despretensiosamente ao redor de tvs em bares quando, tão aleatoriamente quanto eles, fui levada a revisitar, com olhos de pesquisadora, o espaço que sempre cruzei desde menina: o Beco da Poeira. Adentrei-o e ali me quis estabelecer. Mudei de tema. O Centro Comercial de Pequenos Negócios ou Centro de Pequenos Negócios de Vendas Ambulantes, chama-se, na verdade, Beco da Poeira, situado entre as praças da Lagoinha e José de Alencar, no centro de Fortaleza. Um dos maiores, senão o maior centro de comércio popular do Estado. As três grandes tendas em ferro e amianto abrigam em torno de 2.050 boxes, organizados em 22 estreitas galerias, subdividas por gêneros comercializados: frutas e verduras, eletrônicos, miudezas e importados, calçados

e a grande maioria: confecções em jeans e as chamadas “modinhas”, blusas, saias e vestidos em malha fria ou radiosa. Não recordo a primeira vez em que estive no Beco. Provavelmente me deveria guiar o punho seguro de minha mãe, apressada, cruzando as vielas de tecidos; meus olhinhos infantis decerto turvos da correria e de obstáculos inúmeros: roupas, calçados, pessoas. Barulho, multidão, cores rompendo o gris bolorento dos boxes e um único norte: a destra materna. O Beco como é conhecido hoje nasceu junto comigo. Não a estrutura, inaugurada em 1991, mas a idéia, a decisão primeira: à tarde do dia 4 de novembro de 1987, na sede do Banco do Nordeste, a prefeita em exercício, Maria Luiza Fontenele, se reunia com sua equipe e acertava a reforma do terreno à época conhecido por beco da poeira para receber o “feirão popular”, ainda de frutas e verduras. Horas depois, na madrugada daquele mesmo dia, eu nasci – Mayara Carolinne Beserra de Araújo, filha de funcionário público e

costureira, destinada a cruzar tantas vezes, anos depois, o comércio erguido sobre o terreno negociado àquele dia. A tarde fortalezense é quente e abafada. Os meses iniciais do ano trazem as chuvas de São José e, por isso, o bafo morno e impróprio do asfalto entope-me as narinas. Compro um lanche qualquer no Shopping Metrô e cruzo a rua, intrigante comparar o quarteirão do shopping com as fotografias da hemeroteca: eram meados dos anos 80 quando ali habitava As Brasileiras. Enquanto Hebe Camargo estrelava, sorridente, os cartazes publicitários da grande loja de departamentos, o verdadeiro beco subsistia do outro lado da rua, a contradição estampada, barracos de madeira e alvenaria formavam becos estreitos, abrigos de 15 famílias e sustento de out-


prefeita esse mes a senhora senhora

ros 52 “locatários”: desempregados donos de biroscas imundas; cafetinas, gigolôs, prostitutas velhas e muito novas; vendedores de lanche, frutas, verduras e carnes, cujos restos – vísceras, bagaços, miúdos – tomavam o chão das vielas. Uma latrina em forma de tosco labirinto a céu aberto. O beco da poeira era o lar dos excluídos, dos descuidistas, bêbados, putas. Sob a névoa da poeira habitavam os esquecidos. Às duas horas de uma tarde quente em que há pouco chovera entrar no Beco requer antes certo preparo psicológico para a experiência sensorial de uma brusca mudança de ambiente, é quase como ser trancado em um fosso, um calabouço de teto rebaixado, quente e úmido. Se o espaço urbano por si só possui tempo e espaço diferenciados, no Beco, ambos sobrem nova subversão: há outra correria, outros modos, o tempo passa mais depressa, a passada aperta e os olhos correm vertiginosos. É dessa forma que as

vai

pessoas tornam-se não mais que vultos e as conversas, fórmulas repetidas – Quanto custa? Que cores tem? Que tamanhos? Tem desconto? Qualquer comportamento que fuja a essa dinâmica é encarado com estranheza. Minha presença inquisidora, curiosa e relaxada é quase ofensiva. Isso era o que eu pensava antes de conhecer os meus primeiros amigos de Beco. Só quem escreve assim, em primeira pessoa, sabe o que é submeter-se a esses relatos. Mas quem nunca escreveu? Diários, cartas de amor, quem nunca contou um segredo? Falar sozinho é tão mais fácil por que até nosso idioma - honesto - explica que dizer é sinônimo de afirmar e então quando se diz algo, para alguém ou um papel que seja, é como confirmar, tornar tudo verdade. Dói e amedronta expor assim sentimentos meus e de outras pessoas, mas é para isso que os jornalistas estão no mundo, não? Para expor. Não gosto de ver as coisas deste

pagar

modo, mas não se pode ignorar isso. Como gosto de ver o jornalismo? Eu vou dizer: jornalismo, para mim, é a arte de fazer amigos. Os teóricos já diziam como é preciosa e tênue a relação que criamos com as fontes, repare: chego em um lugar, apresento-me, digo ser de uma empresa jornalística ou de alguma universidade de comunicação, digo que vou fazer uma reportagem e o entrevistado diz-me, às vezes, muito mais do que preciso saber sobre sua vida. Baseado em que? Um crachá? Uma promessa de reportagem? Que louca é essa relação de extrema confiança entre estranhos e que maravilhosa ao mesmo tempo, sobretudo quando ao final de uma conversa de, sabe-se lá, 15, 20 minutos, fazemos amigos. Por que eu faço jornalismo? Por paixão a essa bendita sensação de fazer amigos pela confiança, pela honestidade, ainda que concom itantemente não saiba quase nada sobre este novo conhecido; por poder chegar às fontes não


como certos jornalistinhas que agem como se as pessoas tivessem a obrigação de lhes ceder informações, mas com uma tranqüilidade curiosa de quem quer, quando possível, ainda que brega, parodiar Roberto Carlos e perguntar: “Como vai você?” Se o fígado de alguns jornalistas não fosse todos os dias comido pelo tempo, feito Prometeu , conheço muitos que adorariam pôr isto em prática. Voltando aos meus amigos de Beco, estes me mostraram quão grande é aquele lugar sem que eu precisasse caminhar pelos corredores, levaram-me a pensar como são tantas pessoas difer-

Sob a nevoa da

a

entes convivendo embaixo daquele amontoado de amianto. Deixe-me começar do começo: estava seguindo duas atendentes de plano de saúde que entravam no Beco conversando sobre namorados, vizinhas, coisas quaisquer. Interessei-me pela conversa e logo estava em um corredor ainda desconhecido pra mim, era a principio estreito e depois mais largo, com uma lanchonete, cadeiras e mesas ao fundo. Pensei: “perfeito para desenhar, não precisarei tomar o lugar de ninguém e vou poder agir discretamente”. Sentei-me, retirei lápis e borrão e me pus a observar o cenário. À

poeira,

multidao

esquerda, duas vendedoras conversavam, uma delas olhava o chão absorta, sentada em uma das pernas, trazia a bolsa à tira-colo, onde pudesse ver; mais à frente, mais duas vendedoras conversavam; à direita, um vendedor loiro olhava o movimento e à frente três moços concentrados, consertavam relógios. Rabiscava

de sombras a vendedora absorta quando as coisas começaram a mudar: notei uma certa movimentação curiosa em torno de mim, os vendedores cochichavam entre si e me olhavam desconfiados. Não demorou para que eu entendesse: estavam com medo de eu estar desenhando os modelos de suas roupas. Decidi simplesmente não fazer

se mexe nada, não havia o que temer e estava ansiosa para saber como acabaria aquilo, quando percebessem que os estava reproduzindo. Aconteceu logo, em cerca de quinze minutos, uma das moças levantou-se várias vezes, caminhava para além da minha cadeira e me olhava, eu a percebia sobre meus om-

bros. Todas as vezes que fazia este trajeto, voltava ao box com uma novidade, em pouco tempo os relojoeiros já também me olhavam curiosos, todos sabiam o que se passava, mas ninguém dizia nada, até que a mesma vendedora levantou-se uma última vez, olhou-me por cima dos meus ombros e perguntou: “posso ver o outro de-

senho que você fez?” Estava desmoronada a muralha do silêncio, da impessoalidade e, a partir dali, decantara a poeira do Beco: os rostos não eram mais vultos, mas pessoas, com suas histórias, temperamentos, humores, e quanto humor! Logo fui incluída, verdadeira algazarra em torno dos desenhos, todos querendo


se reconhecer: “ah, mas eu não sou feio assim!”, disse irmão Toninho, “olha que essa aqui é fulana!”, “esse é ciclano!”... E me mostraram o desenho da Paizinha colado no alto da coluna. Uma boneca de longos cabelos, desenhada a lápis e com os dizeres: “Procura-se viva ou morta, recompensa R$ 0,50”. Ah, mas estava errado uma boneca tão feia, “Manda chamar a Paizinha que a menina desenhista vai ter que desenhar ela!” Mandaram chamar Maria da Paz. Enquanto desenhava a moça dos longos cabelos loiros e cacheados, de repente, aquele esforço a que nós jornalistas nos submetemos certas vezes para

A

absorta, a bolsa do dinheiro,

vendedora

mas

obter algumas repostas caiu por terra, foi nocauteado pela brincadeira dos rabiscos, e logo lá estava eu entrevistando e sendo entrevistada: o que você faz? De onde é? Você compra no Beco? E ainda me quiseram pagar pelo desenho: R$ 2,00! Recusei, óbvio. Tão mais valiosa fora aquela experiência. Dias depois retornei para, de fato, escrever minha reportagem. E eu que me dizia, com ares de pesquisadora: “vou apreender as performances dos vendedores”, conclui que só uma pessoa foi performer ali: eu mesma. Se havia alguma intervenção, era minha, com um lápis, um borrão amarela-

trabalhar ali é preciso “swing”, molejo. Hoje fez amigos, declara que aquela é a parte mais divertida do Beco, gosta do que faz e prefere estar ali a vender em feiras livres, onde se sentia insegura e o trabalho era mais pesado. Quanto à segurança, não só Rita como os outros vendedores que estavam por perto confirmaram que

do e, àquele dia, um gravador. Com a espessa poeira da estranheza decantada, surgiram rostos. Descobri que estava no corredor dos evangélicos e que ali, naquela vizinhança, eram todos amigos há três ou cinco anos. Rita de Cássia é a mais nova, tem 18 anos, trabalha pela manhã até a tarde e estuda à noite, prestará vestibular para Serviço Social. Rita foi a primeira que se dispôs a falar. “Desenrolada”, a pequena contou-me que está ali há três anos, cuidando do Box da mãe. Os primeiros dias de vendedora do Beco foram um tanto difíceis, era tímida, envergonhada e, como Rita mesmo diz, para

ia

se sentem seguros no Beco, os malandros da praça volta e meia estão por lá, mas pouco se escuta de furtos. Quem assusta mesmo é o “rapa” em busca de CDs piratas. Mas nem tudo são flores, se o Beco hoje representa oportunidade para centenas de permissionários, o preço que se paga por ela não é barato: para

essa trazia

presa ao corpo

além das taxas de manutenção quitadas mensalmente, os vendedores se submetem a péssimas condições de trabalho. A estrutura é precária, já diversas vezes condenada pela vigilância sanitária. Em tempos de chuva como os de agora, a água imunda dos banheiros volta pelos ralos. Fedentina, calor e sujeira são companheir-

os inseparáveis de um Beco esquecido pelas autoridades. Ainda que o Beco da Poeira seja um diferencial da capital cearense (tanto que certos turistas chegam a pagar guias para visitá-lo nos meses de janeiro e julho), os permissionários reclamam que não há nenhum tipo de divulgação por parte da prefeitura. “Nós só

queríamos ser reconhecidos, entende?”, disse-me João Paulo, o Loiro, questionando-me quantas vezes eu tinha visto alguma propaganda do Beco da Poeira na televisão. Jamais, Loiro, eu mesma nunca vi. E apesar disso, como ele mesmo disse, possivelmente mais da metade das lojas de confecção de shoppins da região Norte


são abastecidas com roupas “made in” Beco da Poeira. A verdade é que ali se lucra por quantidade e os maiores compradores descem aos montes na rodoviária fortalezense e têm outros sotaques. João Paulo de Souza, o Loirinho, tem 23 anos e deixou o trabalho na roça, em Morrinhos (município a 208 quilômetros da capital), sua cidade natal, pra tentar a vida em Fortaleza. Foi camelô na Washington Soares e outras avenidas da cidade, vendia calculadoras, controles remotos, mas a vida de ambulante também não rendia. Loiro já pensava em voltar pra roça quando um primo, fabricante de confecções, convidou-lhe para trabalhar no Beco. Atualmente, João cuida do Box do primo há 5 anos e afirma – com segurança – que se lhe oferecessem um emprego na Otoch ou na C&A em pleno Iguatemi, recusaria prontamente. Muitas histórias se entrecruzam, tanto quanto os corredores do complexo, a vizinhança, os grupos a cada corredor fazem da grande feira uma Fortaleza em proporção menor, com bairros, ruas, esquinas, quarteirões, casas e vizinhos. No Beco, há engarrafamento, polícia, prefeito, ele consiste, portanto, em mais um núcleo organizado dentro da cidade que absorveu dela suas características. E assim como em uma cidade, não vivem do Beco somente os permissionários, mas outros tantos, que ao redor da dinâmica da feira inauguram outro movimento, são dezenas de ambulantes às portas do Centro Comercial, ou ent-

rando e saindo de suas galerias, vendilhões que alimentam o comercio informal e, por meio dele, dão de comer a si mesmos e a suas famílias. O Beco, saído das entranhas da diversidade de uma praça pulsante e viva como sempre fora a José de Alencar – que se reinventa e repovoa, apesar das tentativas higienistas das gestões municipais de varrer “vagabundos” e ambulantes –, herdou dela a avidez de quem precisa ganhar

menina

a vida a todo custo. Os vendedores cadastrados do Beco não divergem dos informais da praça, aproximam-se, oferecem, insistem, “chegam junto” do freguês, cada passante é um potencial consumidor. Loiro é um dos que confirma a tese, contou-me que, em seu primeiro dia de trabalho, acostumado com a vida difícil de ambulante, chegou “arrepiando”: chamava o cliente, anunciava os produtos no gogó, oferecia a

Rita:

pra vender no

Beco,

mercadoria e recebia em troca, muitas vezes, desprezo. Ali o “não” é comum, mas não frustra os vendedores, a concorrência mora ao lado e por isso a necessidade de manter certa disposição constante, apesar do cansaço, e o mais importante, como disse Rita de Cássia, manter o jogo de cintura. Se não há provador, com dois panos, faz-se uma cortina; se não cabe, aperta; se a perna da calça é grande, uma dobra, um ponto e

tem de ter

jogo de cintura tudo está resolvido. O Beco da Poeira é o mercado do “jeitinho brasileiro”, constituído não só pelos permissionários, mas por marmiteiros, tapioqueiros, cafezeiras – nome popularmente dado às mulheres vendedoras de cafezinho -, malandros, catadores, artistas. Nessa dinâmica, entre as galerias, além dos visitantes, dezenas de isopores, tabuleiros e até bicicletas desafiam a estreiteza dos caminhos, ganhando a vida à custa do ganha-pão de outros tantos. Essa é a vida de Francisco Antonio da Silva, 22 anos, mais conhecido como Pastel-menino. Francisco recebeu esse apelido do oficio de vendedor de pastel e suco, ele percorre aquelas galerias há 5 anos, oferecendo pastel e esperando ansioso alguém gritar “Pastel, menino!”, indicação de mais um cliente garantido. Pastel-menino mora na Praia


do Futuro, acorda 5 e meia da manhã e deixa o serviço às 5, 6 da tarde, quando o Beco fecha as portas. Ao contrário do que, em geral, se pensa, Francisco não é autônomo nem tem a liberdade de entrar e aproveitar o movimento do Beco como bem entenda, ele é contratado para vender os pasteis e, para que ele possa caminhar pelos corredores, seu patrão paga mensalmente uma certa quantia ao sindicato, Pastel-menino

voamento, a não ser que as pessoas que as habitam hoje não sejam consideradas dignas, merecedoras, de estar ali. Fica a pergunta: quem, afinal, os gestores municipais querem ver povoar as praças do Centro? Fundado em 1991, na gestão do prefeito Juracy Magalhães, o Centro Comercial de Pequenos Negócios fora antes um projeto do programa de revitaliza-

do o novo Beco da Poeira. A esperança virou decepção: meses depois, a obra foi embargada e o dinheiro, milhões aliás, desapareceu. Agora os jornais anunciam: “De zero a 10 está em nível 8 o fechamento da aquisição da antiga te-

não sabe quanto. Manter em ordem a venda ambulante, contudo, não é uma novidade do sindicato. Na verdade, a reorganização do centro de Fortaleza, ou revitalização, foi meta de vários gestores fortalezenses. Chega a ser engraçada a contradição de batizar como revitalização o ato de expulsar ambulantes do centro. Perceba: revitalizar não é restaurar, repor a vida? E quem disse que as praças estão desabitadas, vazias? A praça ferve do movimento de passantes, que param em círculo para ver os artistas ganharem a vida com malabares, cantorias e palhaçadas. Seus bancos estão repletos de pessoas, desde consumidores do centro, cansados da caminhada, até desempregados, ambulantes, boêmios e prostitutas. As praças do centro não estão vazias para precisarem de repo-

ção do centro, iniciado por Maria Luiza Fontenele. Atualmente, na gestão da prefeita Luizianne Lins, mais uma tentativa é feita, desta vez motivada pela construção da Estação Lagoinha do Metrofor – projeto de metrô de Fortaleza -, cuja sede será onde hoje está situado o Beco da Poeira. Segundo prefeitura e governo do Estado até o fim deste ano a obra necessita estar pronta, gerando novos sentimentos de apreensão e expectativas nos permissionários do Centro Comercial, que se preparam, depois de 18 anos no mesmo estabelecimento, para uma provável mudança definitiva. Pouco antes, em 2004, esta apreensão e expectativa de mudança fora plantada uma primeira vez no seio dos vendedores. Um terreno fora comprado num acordo entre prefeitura, sindicato e construtora para que fosse inaugura-

celagem Tomaz Pompeu, na avenida do Imperador, para ser a futura sede do atual mercado do Beco da Poeira” . Novamente, expectativa e desconfiança, esperança e descrença mesclam-se entre os permissionários. A tecelagem, avaliada em 7,4 milhões de reais, dispõe de muito mais espaço do que o “esqueleto” erguido em 2004, que atualmente, para receber o Beco da Poeira necessitaria do terreno de mais 10 a 13 imóveis do entorno, segundo José Nunes Passos, secretário

Loro de Morrinhos : voce ja viu propaganda do Beco na TV?


do Centro. A mudança para a Avenida do Imperador gera especulações, os vendedores questionam se será, de fato, amplo e organizado como prometem. “Vai ter ar-condicionado, praça de alimentação...”, comentou Loiro, empolgado, seguido de um “Menos, Loiro, menos!”, do irmão Toninho. Mas o que os permissionários reivindicam não passa de condições melhores de trabalho: boa instalação elétrica, espaço mais amplo entre os boxes, um sistema de ventilação adequado, banheiros dignos. Quanto aos ambulantes do Beco, como Pastel-menino, a situação é um tanto mais preocupante, já que eles não sabem se, em uma nova estrutura, inaugurada como exemplo da eficiência da aliança prefeitura-governo do Estado, haverá a possibilidade de ambulantes circulando nas galerias novinhas. Francisco está um pouco mais tranqüilo por que, com

ou sem Beco, continuará vendendo seu pastel, já que no Centro não falta freguesia, mas sente por outros vendedores que não trabalham no mesmo “esquema” que ele. “A gente não sabe se eles vão deixar o pessoal andar lá dentro, nem se vão poder colocar barraca do lado de fora, vai que tem lanchonete lá dentro aí a gente fica sem saber como fazer...”, admite Francisco. A tarde cai tão rápido quanto chega. Será que, na tecelagem fechada, será possível distinguir o dia da noite, como debaixo dessas tendas? É hora de despedir-me com uma última pergunta: o que levam desse lugar, caso realmente se mudem? Do que terão saudades? Rita se adianta e diz “De nada, não tenho apego por esse lugar.”, mas concorda, aliás, todos concordam, de certa forma, com a resposta de Loiro: “Vou sentir falta dos meus amigos, por que lá a escol-


ha dos boxes vai ser por sorteio, então não sei se a gente vai ficar junto, é muito difícil. Os meninos aqui já são meus amigos dentro e fora do Beco, a gente é tudo evangélico, então vai pra igreja junto, sai junto e lá eu não sei como vai ser a nova vizinhança.” Quando penso que irmão Toninho, Loiro, Rita de Cássia, Paizinha, Pastel-menino, e outros tantos, carinhosos e acolhedores, não são sequer um décimo da população da grande feira, respiro fundo e entrevejo na poeira um caminho longo de outros vultos que se tornarão rostos, pessoas, punhos firmes como os de minha mãe, a me guiar por aquelas galerias, em encontros sucessivos de histórias de vida.

E me vou embora, às 17:40 da tarde quente e abafada, cruzando as vielas de verdadeiros contabilistas a calcular os lucros e a recontar estoques no fim de mais um dia de batalha, alguns fecham as malas para guardálas nos boxes minúsculos, outros para levá-las à praça da Sé e lá enfrentar a feira livre que já já começa e vira a noite até o raiar de um novo dia, em que todas aquelas pessoas, histórias de vida, se reúnem novamente. Deixo o Beco com a sensação de acompanhar uma história em marcha, mas, desta vez, não na margem, mas completamente imersa no rio da vida. E vou-me feliz, plena de imagens, relatos, grávida de tudo.


O

Pre núncio Conto da Casa do Português Por Emanuele Sales Fotos de Chico Célio


N

o dia em que foi embora para sempre da casa, Violeta Sanches acordou cedo, como era de costume, e apressou-se em verificar a caixa de correspondência. Bateu com o sino na grade da cama quatro vezes; como a criada não acudisse, resolveu descer sozinha ao jardim. Era a segunda vez em treze anos que lhe ocorria levantar-se da cama, fazer a toalete e sair da casa sem que os empregados ou o marido estivessem por perto. A primeira havia sido um mês depois do acidente, e ela nunca mais a esqueceu, embora julgasse o contrário: caíra da cama como se fosse uma criança de mãe descuidada, tombara de bruços amolecendo um dente. O dia estava claro, havia um vento seco adentrando os cômodos, diferente da aragem úmida que percorre toda cidade litorânea. Ela mesma pensava que algo estranho acontecia, a começar pela lembrança do acidente. Havia tempo Violeta Sanches não pensava no passado, achava que tivesse enterrado as lembranças com o marido morto, mas, agora quando aconteceria o improvável, ela se detinha. O quarto não mudara em nada depois que Antonio morrera. A cama onde o

marido fora encontrado arquejando sua última angústia era onde Violeta Sanches dormia todas as noites desde que entrara na casa, e o espelho do toucador, presente da sogra, estava no mesmo lugar há treze anos, como tudo lá estava. Por isso, não era de se espantar que a vizinhança chamasse o imponente e singular casarão de “a casa mal assombrada”. Mas Violeta Sanches preferia associá-lo a uma espécie de memorial, um tributo ao que se passou: ela e o marido recém casados; ela entrevada na cadeira de rodas entrando na casa pela primeira vez, subindo de carro a enorme rampa; os filhos que nunca teriam; o filho que tiveram e perderam. Do lugar de onde vislumbrava o amanhecer, não chegava a confrontar os raios solares, antes os entrevia toldados pela gaze das cortinas e impelidos pelo concreto dos arcos. Os arcos da varanda, estes sim, eram a primeira visão de cada dia. Adormecia olhando para o teto, como se ali houvesse um enigma, o talhe reto, e nessa posição despertava, nunca inclinava a cabeça. A janela do quarto dava para a confluência entre dois dos sete arcos da varanda lateral, de modo que só eram vistos por quem virasse

à direita, encarando a vidraça. Antonio fizera questão de mandar construir sete arcos em ambas as laterais e três defronte, em cada pavimento – dizia que seriam para cada um dos sete filhos que viriam ao mundo. Mesmo sem olhar pra eles, Violeta Sanches os via todas as manhãs, ao acordar. Chamava-se Alísio o filho, tinha o nome do bisavô português. Contava três anos de idade quando Antonio o trouxera à casa, embora as freiras do orfanato não soubessem ao certo a data do nascimento. Era um rapaz de feições indecisas a andar pelos jardins, sempre com um livro na mão. Àquela época pendia-lhe um buçozinho que o pai insistia em chamar de bigode. Gostava de escrever cartas, mas ninguém conseguira descobrir quem era o destinatário. “Nosso filho já é homem”, Antonio segredou a Violeta Sanches, um dia em que entrara no quarto de Alísio sem bater à porta. Levantava cedo e ia a escola, ao retornar almoçava e permanecia nos jardins ou na varanda até o anoitecer. Não saía de casa sem que estivesse sozinho, não se tinha notícias de amizades suas. O pai oferecia-lhe carona até o colégio, mas ele recusava


enquanto podia: “São só alguns passos”. Violeta Sanches esforçou-se para amá-lo como se tivesse nascido dela, como Antonio o amava. A bem da verdade, o sentimento era recíproco, mãe e filho o compreendiam. No

começo, tinha compaixão do menino de olhos atentos, sem família nem passado. Depois, nos primórdios da adolescência, Alísio cada vez mais lhe figurava um estranho, não por ele ser totalmente imune às marcas da convivência, que acaba

deixando as pessoas que vivem juntas parecidas, mas pela maneira como a olhava. Houve um tempo em que até mesmo a presença dele à mesa gerava-lhe incômodo. Foi então que, num acordo tácito, ambos passaram do esforço cínico à displicência

mínima intensidade de um som, fosse numa conversa barrada por paredes, fosse numa nota musical destoante. Pensou que Antonio estivesse no quarto, mas lembrou-se de que o marido havia ido ao armazém fazia pouco tempo. Os passos aproximavam-se da porta, não era Antonio, ela estendeu o braço

ensaiada. Evitariam encontros casuais no mundo que era a casa. Uma tarde, enquanto as criadas ajudavam-na durante o banho, ouviu alguém caminhar no quarto. Tinha a audição bastante apurada, percebia a

inabilmente e girou a maçaneta. As moças que a banhavam soltaram um grito de horror ao ver Alísio de pé, no limiar. Violeta Sanches apenas o encarou, enxergando nele um semblante de serenidade. Pediu às empregadas que jamais comentassem o episódio. À noite, durante o jantar, Alísio não sentou-se à mesa.

No dia seguinte, enquanto tomava ar defronte à entrada principal, Violeta Sanches escutou novamente os passos da tarde anterior, dessa vez vinham de cima. Olhou em direção ao céu e viu Alísio sobre o teto jardim. “Ele não deveria estar na escola?” – pensou sem tirar os olhos do rapaz. Depois, não pensou


em mais nada, revelou para si que aquela só podia ser a imagem de um anjo. Cartas de amor espalhavam-se sobre o terreno, levadas pelo vento, pareciam brotar dos pés de Alísio, todas endereçadas a ela. “São só alguns passos, minha amada” – disse ele com a voz mansa, olhando a como nunca, e atirou-se ao chão. Os meses seguintes até a morte de Antonio foram para Violeta Sanches uma provação divina, diferentes do tempo atual. Agora, ela ria quando a brisa fazia cócegas em seu nariz, tocava piano uma vez por semana e deixava-se ficar todas as manhãs no portão, a observar o movimento na avenida que ganhava cada vez mais automóveis. Sentia-se jovem ainda; era, de fato, das que resistiam muito ao peso dos anos. Correspondia-se com uma irmã de Antonio que vivia na França em companhia do irmão caçula, e decidira aceitar o convite para morar com os dois. Combinaram a ida, ambos viriam buscá-la. Na manhã em que foi embora para sempre da casa, lembrou-se exatamente de checar o correio para saber da chegada dos cunhados, quando a sua vida ressurgiu, silenciosamente, pois

estava apenas escondida. Ao cabo de cinco minutos, que para Violeta Sanches significaram mais de dez anos, a criada atendeu-lhe o chamado. “Leveme até o jardim”, ordenou. “Mas assim, senhora?”, espantou-se a criada. “Imediatamente”, disse sem hesitar. Cruzou todo o pavimento de olhos fechados, só ousou abri-los quando estava na frente da caixa de correspondência. Ali mesmo conferiu as cartas, não havia nada informando a chegada dos parentes, somente pacotes com revistas de moda que a cunhada lhe mandava. Esforço inútil, agora tinha de voltar e viver de novo. Virou-se e contemplou a enorme construção diante de si. Aquela casa tinha sido feita para ela: os arcos, os jardins, a rampa, o destino de quem ali habitasse; desde os pilares fora planejada para uma inválida, antes mesmo do acidente

– um mau agouro. Tudo na casa recendia ao que vivera e o que estava ainda por ser vivido, mas fora abortado. Nesse instante a verdade tornou-se clara. Era preciso romper. Subiu a rampa com a força dos próprios braços até chegar ao teto jardim. Lançou um último olhar sobre a cidade e as pessoas, como se estivesse a despedir-se do que não tinha sido seu. Experimentou o vento quente ressecar-lhe a pele e embaraçar-lhe o cabelo. Uma lágrima desceu-lhe aos lábios. De súbito, sentiu sobre si um olhar curioso, ouviu passos que lembravam os de Antônio e uma voz doce, quase idêntica a de Alísio: “Bonjour, cunhada! Preparada para a viagem?”.


Este conto é uma narrativa ficcional baseada em histórias ouvidas a respeito do casarão na Avenida João Pessoa, nº 5094. Muito se fala sobre a Casa do Português, mas pouco se sabe ao certo sobre a vida de quem ali morou, salvo pesquisas acadêmicas e registros historiográficos do antigo Bairro Damas, reduto de sossego na Fortaleza que crescia ao início do século XX. Para a escritura deste conto, foram levados em consideração somente dados referentes à estrutura da casa, ao momento em que foi construída e seus primeiros anos, ou seja, as décadas de 1950 e 1960. Para tanto, tomaram-se precauções durante a pesquisa. Procurouse não adentrar demais o território da realidade para não perder o mote da criação baseada em narrativas colhidas em andanças pelo Damas. A quem possa interessar a busca por registros historiográficos, seguem alguns apurados de início: o primeiro dono do prédio se

chamava José Maria Cardoso, português, negociante de madeira para a construção de ferrovias no Ceará, era casado e tinha um filho. A casa foi inaugurada em treze de junho de 1953, com tamanho que ainda hoje tem, apesar de nunca ter sido ocupada por completo nem mesmo pelas sete famílias que lá residem sob autorização dos legatários. Hoje o prédio é tombado pela Fundação de Cultura, Esporte e Turismo de Fortaleza (Funcet), sob justifica e descrição integrantes do processo: “Edifício em bloco único, de forma retangular, de dimensões 33m x 14m, possui quatro pavimentos e está a o nível da rua, no centro do terreno, com afastamento de cerca de 18m da via principal e com recuos laterais. É contornada pela rampa em forma de ferradura, que tem presença marcante no conjunto e que dá acesso a todos os pavimentos. Padrão diferenciado para a época, que revelava os valores de uma

classe social em ascensão, traduzido através da monumentalidade, da estética exótica e do porte da estrutura de concreto (...) Ressalte-se a adequada implantação da residência, que favorece a iluminação e ventilação dos vários ambientes, sobretudo nas varandas e em toda a área de lazer nos dois últimos pavimentos. Por todos esses aspectos citados, a edificação ainda hoje constitui marco visual no entorno, distinguindo-se das demais.” A arquitetura incomum chamou atenção dos órgãos públicos para a importância da casa como patrimônio material, mas o imaginário popular faz tempo a eternizou relíquia, daquelas que se contempla tentando adivinhar o passado. Não é difícil andar pelas imediações da Avenida João Pessoa e encontrar quem fale da Casa do Português nomeando-se testemunha ocular da história do imóvel – Fortaleza tem desses personagens mais fantásticos do que reais.

Adendo ao Conto O Prenúncio É o homem de barba branca no expresso Parangaba - Mucuripe que brada ter conhecido o “bendito português”, tinham sido até amigos na juventude!; é o vizinho quase centenário, que vendeu os azulejos Kablin usados no revestimento da cozinha da casa; é a moça que passa em frente quase correndo, ao retornar da escola, temendo o prédio “mal-assombrado”. Todas testemunhas de suas próprias histórias, documentos da lembrança ou devaneio, cada qual com uma explicação óbvia para construção de uma casa tão grande para a família pequena do português, para a rampa em detrimento da escada, para os arcos que contornam os pavimentos, para o teto jardim que coroa toda a estrutura. São esses os apontamentos trespassados pela subjetividade do narrador que se privilegia no conto – registros da memória e da imaginação que constituem a prova de que a mente humana se apropria do inexplicável.


A Loucura que margeia Fortaleza Por Lívia Nunes Fotos de Chico Célio

H

ospício global. Esse termo, lançado para o mundo num dos livros mais vendidos do Brasil, o Vendedor de Sonhos, parece representar bem a realidade em que vivemos atualmente. Talvez por isso, o livro com um título tão inusitado esteja suscitando tanta curiosidade entre leitores brasileiros. Buscando enquadrar-se no sistema, homens e mulheres escondem-se por trás de roupas de grife, carros do ano, sorrisos vendidos. Mantendo a falsa ilusão de serem felizes. Como resultado a tanta pressão, jogos de aparência, luta pelo poder, cresce uma população cheia de medos e marcada por distúrbios mentais, como a depressão, e a esquizofrenia. Sem falar nos transtornos de humor e ansiedade.


Como atestam os psicólogos, a loucura anda junto com a normalidade. Nos dias atuais, a linha que separa esses dois mundos parece estar ainda mais tênue. A prova disso está nas ruas, nas praças, nos becos, nas calçadas ou escondidos em quartos escuros. Andar nas ruas de Fortaleza – no centro da cidade em especial – nos dá uma dimensão dessa realidade. Esbarrar com “loucos” já não é uma cena inusitada. Os números confirmam essa tendência mundial a doenças mentais. Estima-se que 15% da população mundial (975 milhões de pessoas) precisem de atendimento em saúde mental. No Brasil, 28,3% milhões sofrem de algum transtorno mental, conforme dados do Ministério da Saúde. Um dado preocupante é o número de jovens que apresentam sintomas de doenças mentais. De acordo com pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Psiquiatria, estima-se que existam, aproximadamente, 12,6% brasileiros, entre 6 e 17 anos, com doenças

mentais. O que equivale a 5 milhões de jovens. Em Fortaleza, ainda não existe uma pesquisa que demonstrem esses números. Mas considerando os dados da Organização Mundial da Saúde que afirma que cerca de 3% da população, em qualquer lugar do mundo, está sujeita a desenvolver transtornos mentais. Podemos estimar que existam cerca de 750 mil pessoas em Fortaleza propensas a desenvolverem algum transtorno mental. Segundo a psiquiatra Nara Fabíola Costa de Brito, os distúrbios mais encontrados em Fortaleza são depressão e transtornos de ansiedade em geral. “O transtorno depressivo é muito comum e a prevalência estimada durante a vida é de 15%. O transtorno afetivo bipolar tipo I é estimado em 1%, semelhante às taxas para esquizofrenia”, informa. Outro distúrbio com grande incidência são as fobias, entretanto, por desconhecerem os sintomas, os indivíduos portadores desse transtorno não procuram auxílio

para superá-los. Para a psiquiatra, esses números refletem “os males da vida moderna, sobre uma sociedade competitiva, que pressiona cada vez mais o indivíduo a ser o melhor”. Outro fator que explica o aumento dos casos de transtornos mentais é o fato das pessoas estarem mais atentas à divulgação das informações pela mídia e ao progresso da psiquiatria nos últimos anos. “Encontra-se mais porque simplesmente procura-se mais”, destaca. Já a psicóloga e coordenadora do Caps xxx, Daniela xxxx, acredita que esse aumento é em resposta a um grande vazio existencial, que possibilita que essas crises eclodam. “Eu ficar falando apenas de crise existencial é um pouco burguês demais, porque nós temos outras questões também, como a pobreza, a falta de freios. Mas nada disso é determinante sozinho. Temos que considerar a historia da pessoa, como ela viveu, como ela se estruturou, para ver se ela vai ter um surto ou não. Qualquer um de nós

pode ter um adoecimento emocional”, enfatiza. Quanto a ligação entre pobreza e loucura, a psiquiatra Nara, vê a miséria como um fator estimulador na deflagração de distúrbios mentais. “A pessoa pode ter uma vulnerabilidade específica, que quando influenciada por um fator estressor importante permite que os sintomas se desenvolvam”, observa. A miséria é uma delas! Já para uma das coordenadoras da Rede de Saúde Mental de Fortaleza, a psicóloga Raimunda Felix, as pessoas podem enlouquecer em qualquer classe. “O determinante social tem uma influencia, mas não é a causa. Não pode ser vista como a causa primeira”, rebate. Já a coordenadora do Caps acredita que a história de vida, o histórico familiar, o contexto em que se vive pode propiciar ou não a eclosão de doenças

mentais, e isso vai da classe social alta a classe social mais baixa. “Essa coisa do determinismo é complicada (...) Não é porque a pessoa é pobre que ela vai ter o transtorno. Precisa de uma série de fatores. Tem morador de rua que não tem o transtorno mental. O que vai determinar isso é a estrutura de cada um”, destaca. Contudo, estima-se que as doenças psiquiátricas têm grande chance de se desenvolver na pobreza, onde valores humanos são esquecidos e massacrados pela dor, fome e rejeição. “Nenhum antidepressivo vai aliviar a dor de não ter o que comer, o que vestir, de viver inseguro, com medo da violência urbana (...). A questão é puramente social e não de saúde pública”, critica Nara. Para Daniela xxx, essa


realidade de dor e medo é vivenciada no cotidiano dos Caps, aonde, diariamente, chegam várias pessoas - trazidas por amigos, familiares ou vizinhos -, buscando ajuda após tentar o suicídio. Desmistificando a idéia de que a pessoa com distúrbio mental é perigosa para a sociedade. Nara alerta: “É tão perigoso quanto qualquer pessoa dita “normal”. De acordo com a psiquiatra, o psicótico ou neurótico só irá se defender - segundo a lógica dele, é uma defesa, não um ataque – das pessoas que a mente delirante dele considere como um possível perseguidor. Raimunda Felix também defende a mesma opinião. Para ela, essas pessoas são como qualquer outra. Para ajudar a desconstruir o imaginário popular de que essas pessoas são perigosas, a Secretaria da Saúde Mental de Fortaleza está promovendo encontros, rodas de conversa e atividades socioterápicas, e fechando parcerias com outras secretarias – Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Secretaria de Meio Ambiente -, a fim de inserir os pacientes dos CAPS em trabalhos solidários. De acordo com o Relatório de Gestão de Saúde Mental 2008, entre 2005 e 2008, diversas ações foram executadas visando mudar o quadro de

abandono em que se enconSegundo dados fornecidos tram as pessoas com transtor- pelo Relatório, ao longo de nos mentais. A contratação de 2008, a SMS fez um investimenequipes de saúde mental, a es- to financeiro de R$ 8.380.775,59 truturação dos serviços, a qual- com a Rede Assistencial de ificação profissional, o incentivo Saúde Mental. Dos quais, R$ ao controle social e a discussão, o 1.926.401,79 foram destinados planejamento e avaliação do pro- a parcerias com instituições cesso de implantação da Reforma que produzem serviços espePsiquiátrica em Fortaleza, que cializados, como formação de visa a desinstitucionalização e a pessoal e consultorias em saúde inclusão social, mental. No que são algumas diz respeito dessas ações. As mudanças nos à assistência Como parte farmacêutica, tratamentos têm do plano de houve um invesdesinstituresultado boas mé- timento total de cionalização, R$ 1.072.358,34 dias.Somente em os hospitais para compra de 2008, houve uma psicotrópicos. psiquiátricos estão sendo Uma noviredução de 200% na dade substituídos, no que se e seus antigos média de permanên- refere ao tratapacientes estão cia das internações mento de doensendo trataças mentais é psiquiátricas em dos em CAPS, a Oca de Saúde Residências hospitais gerais. C o m u n i t á r i a , Terapêuticas e inaugurada em hospitaisgerais. 2007. Nela elAs mudanças ementos sociais nos tratamentos têm resultado e culturais da comunidade do boas médias. Somente em 2008, Conjunto São Cristovão, como houve uma redução de 200% na curandeiros, artistas populares, média de permanência das inter- poetas são agregados, a fim de nações psiquiátricas em hospi- preparar o grupo para os detais gerais. Antes, os pacientes safios do dia-a-dia e estimular passavam, em média, 40,6 dias a consciência social. Com um nos hospitais psiquiátricos, tratamento mais alternativo, agora, sendo tratados em hos- que visa a prevenção e a cura, pitais gerais, a média caiu para a Oca utiliza práticas de mas13,3 dias. soterapia, argiloterapia e relax-

amento. “A gente trabalha com o que o território apresenta de potencialidades”, ressalta Raimunda Felix. Apesar dos avanços percebidos no tratamento de doenças mentais, há muito a ser feito. Como atesta o Relatório é necessária uma melhor articulação entre os serviços da rede assistencial, para reduzir internações sucessivas nos hospitais psiquiátricos; garantir psicofármacos de forma continuada e sistemática; capacitar profissionais do SUS para exercitar a escuta e dar suporte ao sofrimentol; fortalecer o trabalho de inclusão produtiva, dentre outros. De acordo com a psiquiatra Nara Brito, o modelo ideal de assistência à saúde mental seria aquele em os portadores de transtornos mentais graves fossem tratados no CAPS e assistidos por uma equipe multidisciplinar, compostas por psiquiatra, psicólogo, terapeuta ocupacional, enfermeiro, assistente social, dentro de um projeto terapêutico individual, desenvolvido em conjunto com a equipe de referência e visando a reinserção social e a desestigmatização. Em momentos de crise, deveria ser assistido a nível hospitalar, de preferência em leitos psiquiátricos em hospital geral, por curtos períodos. Para a psiquiatra, a idéia do CAPS é um pouco distorcida


em níveis locais. “O CAPS nasceu como um serviço substitutivo às internações psiquiátricas, tendo como público-alvo psicóticos e neuróticos graves e não pacientes com transtornos leves que deveriam ser atendidos em ambulatórios de psiquiatria”, adverte. A médica, que não defende nem o modelo “CAPScêntrico” nem “hospitalocêntrico” – focados em CAPS e hospitais psiquiátricos respectivamente -, vê na diversidade dos equipamentos a melhor forma de tratar os pacientes. A coordenadora do Caps xxx, Daniele, admite: “Casos leves, na realidade, não são para serem tratados no Caps. Caps é para tratamento de casos graves e moderados, onde há interrupção de vida social. Só que a nossa rede ainda não está preparada para assumir essa responsabilidade”. A coordenadora Raimunda afirma que embora ainda se conviva com os dois modelos, “o nosso ideal seria aquele que não precisasse mais internar ninguém no hospital psiquiátrico, onde pudéssemos dar conta disso nos hospitais gerais e nos caps. Mas isso é uma construção”. A Rede de Assistência a Saúde Mental teve um grande avanço, porém, “a consolidação de uma política que tem em sua essência a transformação do modelo assistencial e da cultura não acontece em um curto período de tempo. Acredita-se que o caminho que

está sendo construído é o caminho da transculturação, no qual a sociedade mudará sua lógica na compreensão e aceitação da loucura, como sendo inerente à natureza humana”, concluiu a Coordenação Colegiada de Saúde Mental.

Um sonho de liberdade

Ao todo em Fortaleza existem 14 CAPS, que, tecnicamente, deveriam atuar em casos de transtornos moderados e severo. Entretanto, a carência de residências terapêuticas, postos de atendimento ocasiona a sobrecarga dos CAPS, que são obrigados a atuar em casos de transtornos leves. Em defesa ao fim dos manicômios e da reinserção dos pacientes na sociedade, através da convivência diária e da volta ao trabalho, os CAPS surgiram e vem se firmando como um importante meio de acolhimento e tratamento de pacientes com variados tipos de psicoses e neuroses. Cientes da difícil realidade das pessoas que procuram tratamento nos CAPS, os profissionais do CAPS XXX uniram-se aos pacientes, para juntos encontrar o melhor caminho para alcançar a realidade ou, pelo menos, chegar mais próximo dela. “Uma vez mergulhado numa crise, quem vai dizer aonde quer chegar são eles. A gente vai dando as ferramentas. Essa melhora é subjetiva em termo de retomada de vida”, adverte Daniela. Envolvidos em atividades

terapêuticas, os freqüentadores do CAPS participam de grupos de conversa, oficinas, atendimento psicoterapêutico individual, atividades de relaxamento, em que a arte, através da música e atividades corporais e manuais, é usada como terapia e forma de expressão. Vindos de vários mundos, diferentes realidades e abatidos por múltiplas causas desencadeadoras dos transtornos, os pacientes do CAPS xxx encontram conforto e amizade entre novos amigos, com semelhantes delírios e vidas distintas, e médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, artistas, farmacêuticos, assistentes sociais, que juntos lutam por uma vida mais humana e igual. Logo ao entrar no CAPS já se percebe que não estamos num lugar comum. Diferente do que poderíamos imaginar, é um lugar alegre, bonito e com variadas rotinas, sons e cheiros. Não é difícil encontrar um personagem ansioso para falar de si e das suas idéias, por vezes, fantásticas. Mas mais ainda para serem vistos e ouvidos como pessoas pensantes e ricas de subjetividade. Ansiando adentrar aquele mundo em parte desconhecido, caminhei e, entre um passo e outro, fui encontrando personagens vivos para essa matéria. Ocupados em uma das oficinas ofertadas pelo CAPS, encontrei quatro homens entretidos no trabalho de recuperação de uma mesa. Sociáveis,


sorridentes e simpáticos, eles foram respondendo, entre risos, a uma e outra pergunta que os fazia. Há dois anos envolvidos na oficina de marcenaria, onde a terapeuta ocupacional Fernanda Maria Ramos Barbosa faz um trabalho de resgate da auto-estima, do poder de decisão e do equilíbrio, todos são unânimes ao afirmarem com um sonoro sim o prazer de participar dela. Fernanda observa que os bons resultados devem-se as decisões democráticas tomadas: “Tudo é feito com eles, com a participação deles”. Segundo terapeuta, os resultados são positivos: “Muitas

pessoas vêm apenas para fazer a manutenção. Muitas pessoas se restabelecem e voltam a ter uma vida normal. Trabalham, estudam, namoram”, comemora. Segundo a coordenadora Daniele, alguns pacientes vêem muito mais significado nas tarefas que desempenham hoje do que quando trabalhavam. “Cada caso é uma caso. Cada caso é uma história”, pontua. Apesar da curiosidade de saber um pouco sobre todos, minha atenção se deteve num homem de sorriso largo, dentes perfeitos e roupa social. Eraldo de Sousa Rocha, 40 anos, morador do Montese, de pronto se destacou. Com português


correto, voz clara e detalhada e algumas pausas para reflexão, ou mesmo pegar fôlego, Eraldo não se inibiu ao falar sobre si a uma curiosa desconhecida. Adorador de Deus e dos assuntos ligados à galáxia, o filho de mãe viúva e tio de 10 sobrinhos, disse que além de ler a bíblia, gosta de assistir ao jornal. “Eu gosto porque mostra a realidade”, comenta. Contraditório ou não, o certo é que ele seguiu falando de Deus. Entre uma conversa e outra, Eraldo disse que já traduziu uma bíblia do inglês para português e que, nos momentos livre, gosta de fazer poemas evangélicos. Mas esse jovem senhor, com alegria de criança, continua surpreendendo. Exrecepcionista de um hotel quatro estrelas de Fortaleza, Eraldo garante falar inglês e francês e engata um diálogo em francês, um pouco confuso, como nosso fotógrafo. Outra supressa foi a revelação de que mantém contato, via cartas, com a Sociedade Bíblica Trinitariana, na Inglaterra. O que garantiu brincadeiras e risos dos amigos. Porém, Eraldo não se inibiu e continuou respondendo às perguntas. Mesmo preferindo ter cursado informática “para di-

vulgar a mensagem de Deus”, Eraldo elogia a profissão de jornalista e lança a perguntas que me deixa sem resposta: Você teria coragem de fazer uma reportagem na Faixa de Gaza? Não demorou muito para eu inverter a situação, ao perguntar sobre o grande amor dele. Eraldo soltou uma sonora gargalhada e limitouse a afirmar: “tem que casar”. O homem que prefere orar a rezar, faz casinhas porque parecem com igrejas e acredita que Israel dominará o mundo sofre de esquizofrenia, mas parece não se incomodar ou não perceber problema nisso. Alto astral, ele nos prestigia com alguns versos: “Adoremos a Deus em espírito e em verdade, pois a sua volta está próxima. O filho de Deus, Jesus Crido de Nazaré”.

Saiba Mais

>> O perfil dos pacientes dos Caps são de pessoas que sofrem de transtorno mental grave a moderado, como depressão, pânico e esquizofrenia. >> Compõem a Rede Assistencial de Saúde Mental de Fortaleza: 14 CAPS - 06 CAPS Gerais, para tran-

stornos mentais de um modo geral; 06 CAPSad, para pessoas que apresentam uso ou abuso de álcool ou outras drogas e 02 CAPSi, voltados para crianças e adolescentes; 1 Residência Terapêutica; 1 Unidade de Saúde Mental em Hospital Geral, com 30 leitos; 1 Serviço Hospitalar de Referência em Álcool e outras Drogas, com 12 leitos; 2 Emergências Psiquiátricas Especializadas e 09 Emergências Clínicas em Hospitais Municipais, 18 Equipes de Apoio Matricial em Saúde Mental, apoiando ações de saúde mental na Atenção Básica; 3 Ocas de Saúde Comunitária, que realizam atividades de promoção de saúde, com os grupos de resgate de auto-estima, e massoterapia. >> Hospitais que fazem parte da Rede Assistencial Hospitalar: Hospital Nossa Senhora das Graças e Hospital Gonzaguinha da Barra do Ceará para o atendimento dos usuários através do internamento clínico e/ou psiquiátrico no Hospital Clínico; Hospital Batista Memorial – Unidade de Saúde Mental Ana Carneiro/Instituto Dr. Vandick Ponte para internação psiquiátrica dos usuários dos CAPS.


Lutas antimanicomiais anseiam o fim do isolamento

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egundo a psicologia, a loucura ou insânia é a condição da mente humana caracterizada por pensamentos considerados anormais pela sociedade. As doenças mentais, comumente enquadradas como loucura, existem há centenas de anos. Entretanto, a história da loucura vai ganhando sentido e conotações diferentes conforme a época. Se na Idade Média o louco era visto com certo misticismo, até mesmo como sagrado, a partir do século XVII, o louco vai ser visto como perturbador da ordem social, tornandose um excluído, relegado ao confinamento. Com essa mudança na forma de ver o louco, surgem os primeiros internamentos. Ao contrario do que poderia se pensar, os hospícios não foram criados para curar ou tratar e, sim, para evitar que os loucos ficassem vagando nas ruas das cidades. Maus tratos, medo, preconceito, discriminação. São algumas das palavras associadas aos manicômios. Visando desmistificar a idéia de loucura e inserir pessoas com transtornos mentais na vida em comunidade, surgiram as Lutas Antimanicomiais nos anos 70, que deram início à Reforma Psiquiátrica, definida pela Lei 10216/2001 (Lei Delgado). Nela um dos seus artigos diz que o Ministério Público deve ser comunicado até 72h todas as internações psiquiátricas,

com as devidas justificativas. Essa Lei tem impedido que muitas arbitrariedades sejam cometidas. Quem nunca ouviu falar, nem que seja por meio das telenovelas brasileiras, casos de pessoas sãs ou com pequenos surtos nervosos que foram internadas por familiares de forma irresponsável ou maldosa. Muitas delas acabaram de fato perdendo a lucidez e estão até hoje trancafiadas em muitos hospitais psiquiátricos que ainda existem Brasil a fora. Com o objetivo de transformar esses hospitais em locais de passagem e, posteriormente, extingui-los, as lutas antimanicomiais propõem a reinserção desses pacientes abandonados e esquecidos no tempo. Segundo a coordenadora da Rede Assistencial de Saúde Mental de Fortaleza, Raimunda Felix de Oliveira, essa luta é defendida pelo município: “A gente aqui em Fortaleza tem a política municipal de saúde mental que é baseado no fim dos hospitais psiquiátricos e na substituição desse modelo por um modelo de atenção psicossocial”, observa. Diferentemente de 30 anos atrás, as Lutas Antimanicomiais já alcançaram uma longa lista de conquistas. A reformulação do modelo de Atenção à Saúde Mental, que prega o fim da instituição hospitalar em prol de uma Rede de Atenção Psicossocial, estruturada em serviços abertos e comunitários, é um bom exemplo

disso. Somente nos últimos quatro anos o número de CAPS praticamente quintuplicou em Fortaleza. Pulando de três para 14. De acordo com o Relatório de Saúde Mental e Cidadania 2008, da Secretaria de Saúde de Fortaleza, “a implantação de uma rede de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico fundamenta-se nos princípios do SUS, da Reforma Psiquiátrica, da Luta Antimanicomial, da Política de Humanização”. Segundo Raimunda Felix, um dos serviços dentro desse modelo é a unidade de internação dentro do hospital geral. Na proposta de desinstitucionalização da loucura em Fortaleza está a criação das Redes Assistenciais Hospitalares em substituição aos hospitais psiquiátricos e a garantia de acesso aos serviços comunitários, evitando a internação e a permanência de pessoas com transtornos mentais em hospitais psiquiátricos. Assim, a partir das Redes Assistenciais, usuários dos hospitais psiquiátricos de Fortaleza estão sendo transferidos para uma Residência Terapêutica, onde será iniciando um processo de ressocialização e de resgate da cidadania. “As residências são casas de moradias para as pessoas que não tem nenhum vinculo familiar, que são moradoras de hospitais psiquiátricos há muito tempo” explica Raimunda. Como resultado da política Antimanicomial, entre 2005 e 2008, a

quantidade de usuários internados por transtornos mentais esquizotípicos e delirantes e transtornos do humor (afetivo), em Fortaleza, reduziu em 24,07%. Conseqüentemente a essa redução, o valor total pago pelas internações psiquiátricas referentes aos diagnósticos dessas doenças também diminuiu. Em contrapartida, houve um aumento de cerca de 280% no número de visitas domiciliares e institucionais e um acréscimo de aproximadamente 590% do número de atendimentos individuais. Em relação ao número de atendimentos grupais e atividades comunitárias, houve um aumento de cerca de 390%, comparando os anos de 2006 a 2008. Para a coordenadora, esse aumento devese a abordagem aberta dos CAPS em contato direto com a comunidade. Apesar das muitas conquistas alcançadas ao longo dos anos, é preciso criar ainda uma rede de saúde mental sólida e integrada em Fortaleza, que garanta atendimento de qualidade e o acompanhamento com profissionais qualificados e experientes. A rede de saúde mental é basicamente baseada em hospitais psiquiátricos e CAPS. É necessário diversificar. “Precisa haver mais residências terapêuticas, CAPS, ambulatórios de psiquiatria, centros de convivência, leitos de psiquiatria em hospital geral”, argumenta a psiquiatra Nara Brito.


Perfil O mundo de imaginação do poético homem sem razão

O

mundo de imaginação do poético homem sem razão Se antes as pessoas com distúrbios mentais mantinham-se isoladas da sociedade, esta lógica está sendo invertida. É comum encontramos pessoas com transtornos mentais perambulando pelas ruas de Fortaleza. Abandonados, fugitivos? Não se sabe! O certo é que esses personagens inusitados permeiam as entranhas da cidade, proclamando frases soltas, brigando com o inconsciente ou dando respostas aos sofrimentos humanos. Aos freqüentadores da pracinha da Gentilândia, no Benfica, não deve ter passado despercebida a presença de Nelson. Mesmo por trás de uma barba espessa, pele curtida pelo sol e vastos cabelos desgrenhados, percebe-se um jovem, com pouco mais de 24 anos, de rosto sofrido e olhos expressivos. Vestido com farrapos e de pés descalços, o antigo flanelinha, que hoje vive de ajuda, passa seus dias percorrendo a praça e proferindo frases, para muitos, incompreensíveis Com passos firmes, ele transita entre os passantes, buscando, com olhar ávido, alguém que lhe dispense um pouco de atenção. Entretanto, os que passam, embora alimentem curiosidades e se indaguem quem é essa pessoa? O que faz? Onde vive? Como chegou a esse estágio de loucura?

Parecem escolher permanecer na indiferença, desviando o olhar quando confrontados. O que se percebe, como observador oculto, é uma tensão pairando no ar. As pessoas fingem conviver com naturalidade, com aquele homem em plena efervescência mental, mas fecham-se em si, a fim de evitar confrontos, talvez com seus medos, preconceitos ou temores. Os que conhecem o jovem, que dorme nos arredores do bairro, protegido dos intempéries numa agência bancária das proximidades, afirmam: “Quando ele era bom (lúcido) sempre falava do sonho de voltar pra família”. Segundo Miltinho, homem conversador que trabalha vendendo lanches numa das barracas da praça, Nelson sempre dizia que iria mandar uma carta para o programa do Gugu Liberato para que o ajudassem a voltar para família. Contudo, anos passaram, sonhos passaram e com eles levaram a lucidez de Nelson. O homem, meio bicho, meio criança, que hoje circula sem rumo pelas ruas do Benfica, encontra alegria mesmo nas coisas simples. Brincar de ligar e desligar o medidor do poste, tornou-se seu passatempo. Fazer ginástica no meio da praça e jogar bola com a garotada também faz parte das suas distrações. Entretanto, nem sempre os dias


são bons, e nos momentos de raiva e agitação, descarregar as energias batendo, socando ou chutando um outro poste, torna-se a sua econômica e nem tão saudável válvula de escape. Mas Miltinho garante: Ele não é violento, ele não mexe com ninguém!”. Recordando o Nelson sonhador do passado, Miltinho e outras companheiras da labuta lembram como ele era diferente.

“Ele era muito zeloso. Andava todo arrumado, limpo”, acrescenta uma das moças. Longe do mundo real há quase quatro anos, o homem de pouco passado, que vive há 18 anos nas ruas, cruza despercebido pelos olhos das autoridades e da sociedade mascarada de “boas intenções”. Tratando-se de Nelson, as informações mesmo reais parecem desencontradas. O amigo flanelinha, que prefere manter a

identidade preservada, diz que há 12 anos conhece Nelson e que em todos esses anos nunca apareceu nenhum familiar do colega. Entretanto, Nelson garante que sempre viveu em Fortaleza e que os familiares moram nas proximidades. Querido por companheiros dos tempos de sobriedade e ajudado por conhecidos, o homem cabisbaixo, mas de sorriso largo e vibrante, passa os dias camin-

hando sem rumo, parando às vezes para cantarolar alguma música ou ensaiar alguns passos. Foi num desses momentos de passeio que, na tentativa de um diálogo, invadi o universo imaginário de Nelson e travei uma breve conversa. Desconfiado, ele olhava, baixava a cabeça e mexia nos cabelos. Parecia estar vendo um ser de um mundo distante do dele. Falou pouco, sorriu e se foi.

Citando o poeta dos loucos, Raul Seixas, diria que esse homem, de um nome só, de indisfarçável conotação, o tal Filho de Campeão, Nelson, talvez pense: “Enquanto você se esforça pra ser um sujeito normal e fazer tudo igual. Eu do meu lado aprendendo a ser louco. Maluco total, na loucura real... E esse caminho que eu mesmo escolhi, é tão fácil seguir, por não ter onde ir...”.


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