Seguranca, trafico e milicias no Rio do Janeiro

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Milícias no Rio de Janeiro

inúmeras vantagens práticas para os milicianos, como acabamos de ver, por outro lado ele traduz a ambigüidade do seu papel, a promiscuidade extrema entre o público e o privado. O miliciano é uma autoridade, mas atua à revelia dos regulamentos e, muitas vezes, da lei. Ele representa o estado na comunidade, mas ao mesmo tempo o trai, pois tira proveito da sua condição pública para extrair lucros privados. A figura do miliciano representa nesse sentido, como nenhuma outra, o tipo penal da concussão. “Só que tem milicianos que freqüentava no meio desses polícias(sic). Então a comunidade fica muito confusa. Você está me entendendo? Fica muito confusa. Se ele está cumprindo o papel dele de polícia(sic) ou de milícia.” (Entrevistado n. 1, liderança de organização de comunidades) Essa identidade esquizofrênica precisa da coação dos cidadãos para se manter, pois falta-lhe no fundo a legitimidade pública em que pretende se sustentar. Em função disso, a informação de que existe tráfico de drogas em algumas áreas de milícias é tão relevante, pois tira a última máscara que separa a milícia do seu inimigo formal, o último álibi na sua pretensão de legitimidade. Qual será a diferença entre o tráfico e uma milícia que trafica?

5.2.2. A entrada das milícias nas comunidades. A primeira coisa que precisa ser dita é que em muitas comunidades o fenômeno que veio à luz pública em 2006 é uma realidade antiga que vem se perpetuando por muitos anos. Obviamente, os episódios que tiveram maior repercussão foram justamente os da conquista da milícia de territórios dominados pelo narcotráfico, após uma fase que os moradores tipicamente chamam de ‘guerra’, a maneira do que acontece quando uma facção criminosa toma controle de uma favela antes dominada pela facção rival. Esses episódios foram relativamente freqüentes em 2006 e tiveram como resultado a expansão das milícias, particularmente na Zona Norte, para além dos seus domínios tradicionais na Zona Oeste. É neste período, como já foi descrito, que surge a palavra ‘milícia’ de forma generalizada para descrever essa realidade. “Eu estava no Ana Gonzaga e Ana Gonzaga fica aqui, Vilar Carioca fica distante e o Barbante. Quando houve a invasão, vou falar para você foi uma guerra. Nós nos escondemos, nesse dia, nós até ligamos para o CIEDS, era coisa de louco. Nós nunca escutamos tanto tiro e invadiram.” (Entrevistado n. 11, Ana Gonzaga, Campo Grande)

“A entrada deles foi uma coisa cinematográfica, porque ela disse que a creche dela fica no alto porque havia umas passarelas, a uns vinte/trinta metros e eles saltavam das passarelas de helicóptero saltando em determinados lugares e entravam e, do nada, de repente eles tomavam conta da comunidade. A segunda batida que ela falou que eles fizeram, porque essa foi a primeira para eles poderem entrar, o primeiro dia, a informação que elas tinham é que era a milícia. A segunda entrada que eles fizeram foi ... assim todas as pessoas que tinham algum envolvimento com trafico, eram pessoas por exemplo que ninguém podia imaginar. Ela contou a historia de um eletricista, ele presta serviço a varias pessoas lá, inclusive a creche que ela trabalha, e ela falou que nesse dia eles pegaram e amarraram todo mundo, todas essas pessoas que tinham envolvimento né, amarram no meio da rua, uma cena assim tenebrosa. Eles estavam acorrentados, sentados no meio da rua, para expor mesmo as pessoas, esperando a Patamo chegar para poder levar.” (Entrevistado n. 24, Del Castilho) Nessas invasões de tipo militar, não é infreqüente que a polícia acompanhe de forma aberta os milicianos para expulsar o tráfico. Em outras ocasiões, o relato indica que a polícia realiza primeiro a operação de limpeza e depois é a milícia que fica. Na verdade, os dois relatos são versões levemente diferentes da mesma história: a cooperação e integração entre polícia e milícia nas conquistas do território do tráfico. “Mas eles lá com todo o apoio deles, com caveirão, Blazer, com carro da polícia..." Entrevistador: "Entrou com o caveirão, né?" "Entrou com o caveirão. Logo no outro dia já tava lá as viaturas, tudo..." Entrevistador: "Entraram fardados?" "Fardados normalmente. Não tem... Eles fizeram isso e não tem aquele negócio de esconder, não. E logo no outro dia já começou mesmo aquele aparato de 24 horas, né, os carros de polícia parados lá no canto, lá na casa do traficante, né. [...] Polícia militar, 16º Batalhão. Normal, entendeu? Mas, aí aqui fora como não se sabe dessas coisas eles falam ‘Não, é o 16º Batalhão que ta tomando conta, expulsou o tráfico’. Mas todo mundo sabia que era a milícia. Até porque não tem nada lá, não tem DPO, não tem posto 24 horas, então por que a polícia ia estar lá se nunca fez isso? Então... Mas


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