Seguranca, trafico e milicias no Rio do Janeiro

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Segurança, tráfico e milícias no Rio de Janeiro

trabalhos executados por essas ongs dentro das favelas acontece em detrimento do trabalho das associações – essas últimas ficariam com o trabalho mais “sujo” moralmente, enquanto as ongs ficariam com a imagem “limpa”. As disputas com as ongs não se dão apenas no campo da competição pelos recursos dos projetos sociais. Atualmente muitas organizações não-governamentais se apresentam como portavozes dos moradores de favela, papel primordial das associações de moradores. Casos evidentes de organizações e/ou indivíduos que são identificadas como representantes das favelas cariocas são AfroReggae, de Vigário Geral, e MV Bill, de Cidade de Deus, mas existem muitos outros. Nesses casos, a legitimidade desses agentes enquanto porta-voz dos moradores vem de fora, particularmente do espaço que ocupam na mídia, e menos de ações que tenham impacto sobre o coletivo dos moradores. Ao contrário, essas organizações têm atuação focalizada dentro das favelas, mas como suas ações têm reconhecimento e legitimidade externamente às localidades acabam por serem reconhecidas como representantes legítimos também dentro de seus territórios. Assim, hoje em dia quem fala “pelas favelas e sobre as favelas” não são mais as associações de moradores. No entanto, é importante refletir que a busca das associações de moradores por um novo papel também é impulsionada pela nova formatação social dos moradores de favela, reflexo de um fenômeno social mais amplo e geral. A população moradora de favela é cada vez mais heterogênea, com níveis diferenciados de renda, escolaridade, escolhas religiosas, etc. e, portanto, tem cada vez mais demandas e interesses variados. Além disso, como acontece também fora das favelas, o medo da violência e o aumento do consumo têm tornado as pessoas cada vez mais reclusas, fechadas em suas casas, e menos participantes dos espaços públicos. Por fim, também reflexo de um fenômeno geral, o crescimento do ativismo religioso e/ou ligado ao Terceiro Setor tem afastado das associações os moradores que pretendem ter uma atuação política ou social (Zaluar, 2003). Portanto, é de importância fundamental pensar e propor uma nova formatação para a associação de moradores, tendo em vista o novo contexto da “política na favela” (Machado da Silva, 1967), e particularmente as novas demandas dos próprios moradores. Diversas organizações, inclusive algumas associações de moradores, têm buscado atuar em outros espaços, utilizando outros formatos, como redes, fóruns, etc11. A partir desses novos

espaços e formatos pode ser possível discutir e encaminhar de forma coletiva questões que hoje são pensadas de forma mais individualizada e pontual, como os próprios projetos. Por exemplo, na questão da segurança pública e da defesa dos direitos humanos, diversas organizações têm encontrado espaço de atuação e de intervenção no debate público, ainda que em formatos mais afastados da atuação territorializada das associações. A demanda por serviços públicos como água e esgoto, luz, etc, não é mais a principal bandeira de reivindicação dos moradores, até mesmo porque muitas dessas demandas, de alguma forma, já foram atendidas. Os problemas que ainda existem em relação a esses serviços podem ser encaminhados aos órgãos competentes sem a necessidade de mediação da associação de moradores. Acreditamos que o tema do respeito aos direitos humanos e da necessidade de uma “segurança pública cidadã”, que considere todos como portadores de direitos – inclusive os moradores de favelas –, deveria ser a pauta do encontro entre os vários atores que atuam na cidade e, em especial, na cidade do Rio de Janeiro. Nesse campo, as associações têm muito a contribuir enquanto porta-vozes dos moradores de favelas, sendo atores indispensáveis ao debate público. Mas esse tema12 poucas vezes é objeto de reflexão e organização da grande maioria dos dirigentes de organizações de base. Mesmo porque, nessas questões, os interesses dessa parte da população são entendidos como contrários aos desejos e expectativas da maioria das opiniões presentes no debate público – que cada vez mais exige maior controle do crescimento das favelas, mais repressão policial, etc. Nesse sentido, as associações ficam sem uma bandeira específica, e acabam buscando na captação e gerenciamento de projetos um papel a desempenhar e uma fonte de legitimação para sua existência. Contraditoriamente, o que ainda legitimaria o caráter de representação coletiva específica das associações de moradores – e que ninguém mais disputa – é o seu papel de se confrontar com o Estado nas denúncias às ações violentas das polícias nas favelas. No entanto, é também esta atuação, na cena pública, que fragiliza essas entidades como força política e moral das favelas. Há sempre uma argumentação que coloca “em suspeição” a autonomia desta manifestação, no sentido de atrelar essas denúncias à uma conivência ou proteção aos traficantes de drogas que atuam dentro das localidades. É bem verdade que isso se soma a já recorrente “criminalização

11. Ver, entre outros, Leite (2004) e Farias (2005). 12. Poderíamos citar também a luta contra a remoção.


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