Contos do Absurdo #3

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neste número:

JÚLIO SHIMAMOTO

e MOZART COUTO


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“Todos os homens têm medo. Quem não tem medo não é normal; isso nada tem a ver com a coragem.” (Sartre, Jean-Paul) Chegamos ao número 03 de nossa revista com duas presenças ilustríssimas: Julio Shimamoto e Mozart Couto, dois grande mestres dos quadrinhos de terror brasileiro. Junto com outros grandes artistas, como Rodolfo Zalla, que apareceu na primeira edição, e Eugênio Colonesse, desfilaram sequencias de obras primas pelas revistas em quadrinhos do país. Neste número também a estréia de dois novos artistas: Guilherme Matos e Rita Felix da Silva, e o incrível personagem Salomão Ventura de Giorgio Galli. Você ainda ouvirá falar muito dele! Sejam bem vindos aos Contos do Absurdo. Esperamos que você, leitor, aproveite esta ao máximo fantástica jornada rumo ao bizarro, mas advertimos que quando regressar talvez já não seja mais o mesmo... Mario Mancuso Editor

Ilustração de David Ramos

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índice

Histórias em Quadrinhos

O Hábito faz o Monge.................................... Pág. 12 Leonardo Santana e Dell Rocha

Ouvi de Novo................................................ Pág. 20 Rice Araújo

Salomão Ventura: de volta para casa.......... Pág. 34 Giorgio Galli

Vampiro..........................................................Pág. 45 Bira Dantas

Pobre Diabo.................................................. Pág. 50 Mario Mancuso

Estranha Liberdade....................................... Pág. 71 Mozart Couto


Contos Sob o olhar do cão....................................... pág . 06 Guilherme Matos

Pela primeira vez........................................... pág. 15 Arthur Protassio

Musa...............................................................pág. 26 Pietro Vaughan

Coração de Pedra............................................ Pág. 41 Francisco Tupy

A ilha no fim das Rosas.................................Pág. 48 Rita Maria Felix da Silva

A arte da fuga................................................Pág. 68 Alex Moletta

Bufalo..............................................................Pág. 75 Moacir Novaes

Ilustrações Zumbi..............................................................pág . 11 Diego Ávila

Casal observando........................................... pág. 19 Arthur Protassio

Capa: Diego Ávila Conselho editorial: Mario Mancuso – Francisco Tupy Editor-chefe: Mario Mancuso Projeto Gráfico: Isabella Sarkis Todos os direitos autorais pertencem aos respectivos autores, não podendo ser reproduzida sob quaisquer aspectos sem a devida autorização dos mesmos. As opiniões e fatos aqui expressos são totalmente de responsabilidades dos autores, não significando necessariamente a opinião da revista. www.contosdoabsurdo.com.br

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Sob o olhar do cão Guilherme Matos

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cordou no meio da noite com seu cachorro latindo, pedindo por comida e atenção. “Maldito cão!” foi o que passou pela cabeça dela enquanto se levantava e procurava pelos chinelos em meio a escuridão. Ultimamente seu cachorro havia lhe enchido a paciência muito mais do que quando jovem. Agora velho e cego, muito de sua alegria se esvaira; embora continuasse dócil e amável como sempre fora, não tinha mais o hábito de pular e sair correndo toda vez que ela entrava em seu quintal. Agora passava o dia inteiro sentado em frente ao batente da porta que dava acesso ao seu lar, implorando por qualquer coisa que o distraísse de sua velhice e da inevitabilidade da morte. Ellie abriu o armário da cozinha e retirou um saco de pão velho e amassado. Repartiu o pão em pequenos pedaços mecanicamente, um ritual ao qual já estava acostumada. Olhou para o relógio do micro-ondas enquanto jogava os pedaços em uma tigela e ele lhe mostrou que eram três e trinta e três da manhã. “Droga! Devia esganar esse desgraçado!” foi o seu pensamento antes de abrir a porta. O luar iluminava o quintal com sua pálida luz azulada, como se houvesse uma gigantesca bola de neon celestial. Ellie esperava ver seu cachorro em seu lugar usual, logo em frente a porta, onde ela até havia colocado uma almofada, mas ele não estava lá. Ela vasculhou o quintal com o olhar e descobriu seu cachorro sentado ereto no centro, com o rosto virado para o canto oposto. Mesmo com a visão parcialmente nublada pelo sono Ellie percebeu que aquela não era uma posição normal para qualquer animal, muito menos para um cão velho. Era... reta demais, humana demais. Ele também mal se mexia, parecia até que não respirava, mas naquela semi-escuridão ela concluiu que seria difícil enxergar qualquer movimento de seu corpo. Mesmo assim, era um comportamento anormal que ele estava apresentando. Ellie deu dois passinhos inseguros e timidamente disse: - Charles...? Trouxe um lanchinho para você. A princípio ele não reagiu, mas depois de um tempo ele lentamente virou o corpo. Charles estava com uma expressão estranha, apática, que mesmo cego ela nunca havia visto ele ter. Parecia que não estava realmente ali, que estava em algum tipo de transe. Ele só virou metade do corpo e parou, todo retorcido em uma posição que não tinha como ser confortável.

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Então ele lentamente levantou a cabeça e... olhou para ela. Ellie não sabia como, mas tinha certeza que o olhar cego de Charles estava fixo no rosto dela. E depois ele... sorriu. Não era bem um sorriso; ele simplesmente colocou a língua para fora, como todo cão faz. Mas Ellie tinha certeza de que ele estava sorrindo e olhando para ela, quase como se soubesse de alguma coisa. Subitamente, Ellie ficou assustada e largou a tigela no chão enquanto voltava para dentro de casa. Trancou bem a porta que dava acesso ao quintal e voltou para cama. “Está sendo tola! Não há nada de errado com ele!” foi o que ela repetidamente se forçou a pensar, mas o sono não voltava. A imagem de seu cachorro negro sorrindo com aqueles olhos leitosos voltados para ela estava queimada em sua mente e ela não conseguia ver mais nada.. Só foi ficar tranquila mais ou menos uma hora depois, quando ouviu o som de Charles mastigando o pão. “Está tudo bem, ele só estava com fome” foi seu último pensamento antes de adormecer profundamente. ****** Na manhã seguinte Ellie acordou se sentindo muito mais calma, apesar do cansaço. Tinha certeza de que estava tudo bem com seu cachorro; ele só estava passando por uma fase difícil. Ela foi até o quintal para retirar a tigela de pão e talvez brincar um pouco com ele. Chegando lá, novamente ele não estava em seu lugar de costume. A tigela continuava onde ela a havia deixado, mas não conseguia ver Charles em parte alguma. “Ele deve estar em algum lugar nos fundos, se protegendo do sol”. Continuou a procurar por todos os cantos enquanto pegava a tigela. Foi então que uma súbita e aguda dor subiu pela sua mão, tão repentina que a fez largar a tigela, que se espatifou no chão. Ellie olhou para o local dolorido e viu um inchaço começando a se formar ao redor de um minúsculo ponto preto em sua mão. Então olhou para a tigela quebrada e viu centenas de formigas correndo desesperadas ao redor dos cacos e dos restos de pão. “Mas... ontem eu tenho certeza que ouvi ele mastigando...” Houve um único latido vindo lá do fundo. Lá, Charles estava nas sombras, quase impossível de se ver a não ser pelo branco dos olhos. Ele arfava ruidosamente, e Ellie podia ouvir a saliva pingando de sua língua. Novamente, aquela sensação de estar sendo observada pelo seu cão cego se apoderou dela. Ela começou a se sentir nauseada e quis ir embora.

O arfar dele parecia muito com uma risada e os olhos... bem, estavam muito brilhantes. Muito mais do que ela se recordava. Antes de ela fechar a porta atrás de si, Charles latiu mais duas vezes, uma logo atrás da outra, como se estivesse enviando um “tchau tchau”. Ellie não visitou Charles novamente pelo resto do dia. No dia seguinte, antes de ir trabalhar, ela deixou um pouco de comida ao lado da porta, mas não o viu em parte alguma. Notou, porém, que haviam chumaços de pelo aqui e ali. “Deveria levá-lo ao veterinário. Talvez ele esteja

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com alguma doença”. O trabalho exigia que ela se concentrasse de tal maneira que a fez esquecer tudo sobre seu cachorro. Quando voltou para casa no final da tarde, Ellie já não pensava mais no estranho comportamento de Charles. - Ellie? Ela levou um susto quando ouviu alguém lhe chamando por trás, mas era apenas seu vizinho Edu. Ele estava com uma cara bastante consternada. - Nossa Edu, você me assustou! O que foi? O que aconteceu? - Ellie, você viu o Tomi? Ele sumiu de casa já faz quase dois dias. - Ah, desculpe, Edu, mas não vi ele não. Ele não costuma sair de casa de vez em quando? Sim, mas não por tanto tempo. Se você o vir, liga direto para esse número, ok? Ele estendeu uma folha de papel com uma foto impressa do gato preto e um número de celular. Embaixo da foto estava escrito: “Você viu esse gato? Favor ligar para o número abaixo caso o tenha avistado”. - Pode deixar Ed. Boa sorte nas buscas. - Brigado. Enquanto Edu saía para interrogar os outros vizinhos, o namorado de Ellie, Marcos, chegou. Ele estacionou seu carro vermelho em frente a casa dela e desceu. - Ei querida, como está? – ele perguntou depois de um breve beijo. - Mais ou menos. Hoje foi um dia estressante. Se importa de a gente pedir alguma coisa ao invés de cozinhar? - Não não, sem problema. A noite transcorreu normal. Eles comeram comida chinesa e assistiram comédias bobas na TV. Charles também voltara a ser o que era antes. Até mesmo voltou ao seu lugar especial em frente ao batente da porta. Ellie então pode relaxar e ter um pouco de paz. Quando era quase meia-noite, os dois subiram para se deitar. ****** Enquanto Ellie e Marcos faziam amor, Charles começou a choramingar. A princípio isso não a incomodou, mas o ganido foi ficando mais e mais alto até que ela não conseguiu mais aguentar. - Marcos, saí, eu tenho que ver o que há de errado com o Charles. - Ele só quer comida El, você sabe disso. – ele disse enquanto arfava. - Mas eu tenho que ver mesmo assim. Depois a gente termina, Marcos. Agora saí, por favor. Com um bufo, Marcos saiu de cima dela. Ellie colocou um roupão por cima do corpo e foi até o quintal. Charles novamente estava no centro do quintal, mas desta vez estava inquieto. Ele andava para lá e para cá em um eterno “8” e a cada volta soltava um choramingo agudo. Assim que ela saiu da casa, porém, ele parou de ganir e começou a rosnar. Eram rosnados curtos mas que iam aumentando de intensidade. Quase como se ele fosse gritar a qualquer momento. Ellie não conseguia fazer nada, estava hipnotizada pelo andar de seu cão. Charles parou no meio de uma volta e a encarou. Novamente aquele olhar cego, novamente aquele sorriso. Ellie não conseguia ver mais nada. A imagem de seu cão sorridente ocupava quase tudo em sua mente. Teve uma hora que ela pensou ter ouvido “Meu bem? O que aconteceu...?” mas logo a imagem de Charles era tudo o que importava. Seu sorriso era tudo o que importava. Então ela acordou. Estava deitada sozinha no quarto, ainda de roupão e meio molhada de alguma coisa pastosa. O quarto estava escuro, de modo que ela não conseguia ver o que era aquela coisa. Cheirou-a e sentiu o cheiro de salíva canina, o que lhe deu certo alívio, apesar de não se lembrar de ter brincado com Charles. Ela nem sequer se lembrava de como havia chegado alí. Chamou por Marcos, mas não ouviu resposta. “Ele deve ter ido para casa depois que eu dormi” pensou. Foi então que ouviu uma batida muito forte em sua porta da sala. Olhou pela janela do quarto e viu dois policiais parados em frente a sua casa, esperando impacientes que ela os atendesse. Ellie enrolou bem o roupão ao seu redor e

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abriu levemente a porta. - Posso ajudá-los? - Senhora, recebemos reclamações de gritos vindos dessa residência. A senhora mora sozinha aqui? Tem mais alguém na casa? – perguntou um dos policiais com uma cara fechada e pouco amigável. - Sim, moro sozinha aqui. Meu namorado Marcos veio essa noite mas já foi embora... Foi então que Ellie olhou para a rua e viu, bem ali em frente a sua casa. O carro de Marcos ainda estava lá. Os policiais se entreolharam frente a hesitação de Ellie, e o outro deles falou: Senhora, se não se importar, gostaríamos de dar uma olhada em sua casa... meu Deus!! Enquanto falava o policial já abria a porta, permitindo um pouco da luz da rua iluminar Ellie. Ela se olhou e percebeu que o líquido pastoso que cobria metade do seu roupão e boa parte de seu corpo era sangue. Ellie entrou em desespero, mas não pode ir a lugar nenhum pois os guardas a prenderam ali mesmo. Ela tentou dizer alguma coisa, mas estava sem palavras. Não sabia de onde vinha aquele sangue, mas com certeza não era seu. Um dos policiais a jogou bruscamente no sofá, fazendo-a cair de bruços. O outro se aproximou de sua orelha e, com uma voz ameaçadora, perguntou: - Muito bem, agora me diga, onde está esse seu namorado?

Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Charles uivou. Um uivo sobrenatural, forte e penetrante, que imobilizou todos na sala. Nenhum cachorro normal deveria ser capaz de reproduzir tal som. Ellie levantou levemente a cabeça e olhou para a sala de jantar. A porta que dava acesso ao quintal estava aberta. Charles estava novamente parado e ereto no centro. Seus olhos cegos estavam vidrados nela e o maior sorriso que ela já vira em um cão deformava o seu rosto. Ela esqueceu de tudo. Os policiais, o sangue, nada mais importava. Só o que importava era o sorriso maníaco de Charles. Era tudo o que ela via e era tudo o que precisava. Quando afinal sua mente clareou, Ellie se viu deitada de costas no quintal, com dor em todos os membros do corpo, como se tivesse participado de uma luta. Haviam pedaços de tecido rasgado em sua mão esquerda, um pedaço de papel na mão direita e o luar brilhando forte no céu. Ela se sentou e examinou o tecido. Parecia ser azul e, entre os pedaços, havia um distintivo. Olhando ao redor, viu várias tiras de tecido do mesmo tipo, todos empapados de sa... Então ouviu um latido curto, quase um espirro, bem atrás dela. Ellie se virou. Charles estava sentado a meio metro dela. O sangue brilhava refletindo o luar em seu corpo e ao redor da mandíbula. Apenas os olhos não estavam sujos. O branco deles estava mais forte do que nunca. Eram lanternas de pura loucura irradiando de seu pequeno cão. Ellie não teve forças para correr. Nem sequer teve forças para gritar quando ele avançou, a boca aberta e a baba escorrendo, em direção a sua garganta... ******

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No dia seguinte a manchete de todos os jornais locais era: “CHACINA EM CASA NO SUBÚRBIO. MULHER ALIMENTAVA CACHORRO COM PARTES HUMANAS”. Logo abaixo da manchete havia uma foto de Charles, encontrada na mão direita do corpo de Ellie. Na foto, Charles estava sentado ereto, com os olhos brancos voltados para a câmera. Algumas pessoas que leram os jornais naquele dia poderiam jurar que Charles estava olhando para elas. E que estava sorrindo.

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Pela Primeira Vez Conto por Artur Protasio |

Ilustrações por Bernardo Curvello

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escuridão no céu revelava que o sol já tinha se posto há tempo. No chão, o luar iluminava todo o jardim e apenas poucas sombras eram formadas. Na penumbra, ao lado de uma imponente macieira, dois pálidos corpos conversavam deitados na grama. - Então hoje temos a noite livre? – perguntou a figura masculina. - Não, mas é só ficar de olho na casa. Não é tão ruim. – responde a garota de jovem aparência. - Ah. O Paulo sabe se virar. Ele não precisa de duas babás. - Eu tenho minhas dúvidas. – a garota beija o homem no canto da boca e começa a se levantar. – Quando voltarmos a gente continua. O sorriso de Samara era quase hipnotizador. Ela não precisou oferecer a mão para Julio. Ele já a acompanhava na mesma velocidade, escalando a árvore e subindo de galho em galho logo atrás. Achando um galho maior e chato, no topo da árvore, Samara verificou se havia espaço para Julio. Não era dos galhos mais confortáveis de se sentar, mas ele parecia agüentar ambos e a visão da velha casa na distância era ideal. - Será que vai demorar muito? – a pálida pele dos dois refletia a luz da lua. - Sei lá Julio. Você lembra como foi a sua primeira vez? - Quê? Me testando, é? Faz muito tempo, mas eu lembro sim. Foi com você. – ele sorri com o canto da boca. - Pelo menos isso você lembra. – uma inevitável risada escapou da boca da garota de olhos castanhos. O silêncio perdurou por algum tempo enquanto ambos procuravam identificar qualquer movimentação na casa por dentro de suas largas janelas antigas. O luar facilitava a tarefa ao iluminar a casa e o gigantesco quintal da mesma. Entre o pálido casal e a casa ficava o que devia ter sido um luxuoso jardim em tempos passados. Atualmente, um emaranhado de plantas e capim dominava o que deveria ser terreno suficiente

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para um campo de equitação. - Sabe o que não entendo? – Julio pouco se importava se queria ou não conversar. A indagação dele soava ingênua e natural, como se aquela dúvida fosse solucionar a razão da sua existência. – Como que até hoje nunca investigaram o casarão? É um ótimo lugar. Funciona e funcionou muito bem pra gente, mas é impossível um pai nunca ter suspeitado que sua filha puritana tenha vindo para um lugar desses em busca de privacidade. - E é por isso que eu digo que você é esquecido. Meu pai veio me procurar aí. A expressão facial de Julio era impagável. Seus olhos entreabertos xingavam Samara de mil nomes sem nunca falarem uma palavra. - Isso foi há – - Eu sei, muitos anos. Ainda assim, felizmente naquela época a polícia não deu muita bola pra ele. Hoje em dia isso não acontece mais porque o terreno é particular. - Você que pensa. Hoje em dia é fácil demais, mas a gente pode estar sendo investigado e nem sabe. - Não. É fácil e tranqüilo porque a gente não comete erros. Porque a gente não chama atenção. Por que você acha que a gente geralmente vem aqui vigiar? Sempre que um casal entra na casa, alguém tem que ficar de guarda do lado de fora. Além do mais, nunca deixamos qualquer ras Um grito feminino distante cortou o ar e o diálogo. - Até agora. – Julio não perdeu a oportunidade. Seu sorriso era sarcástico. - Paulo… – Samara comentou olhando para casa com olhos prestes a pegar fogo. - Deixa ele. Você se irrita com facilidade. É normal errar quando se é inexperiente.

- Mas pelo grito da garota parece que ele não tem idéia do que faz. - Calma, acontece nas melhores famílias. - Exato e se sujar o nome da nossa eu mato ele. De novo. A idéia de instigar a tempestade em copo d’água criada por Samara não apetecia Julio, então ele optou por ficar calado. Ainda assim, ele sabia que ela tinha alguma razão. O silêncio retorna, dessa vez constrangedor. Todos os dois observando atentamente os arredores. Julio toma a iniciativa e diz: - Vamos lá ver se está tudo bem. - Por que a preocupação repentina? Julio aponta rapidamente para a estrada que tangencia o terreno da abandonada casa. Em razão da distância, apenas se pode ver o fraco piscar alternado de luzes vermelhas e azuis por entre o matagal do quintal. - Eu sabia que ele ia fazer merda. – Samara resmunga. Usando a noite como refúgio o casal rapidamente deixou a árvore. Um largo

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pulo e metade da distância até a casa já tinha sido coberta. Por entre as sombras a outra metade foi alvo de uma ligeira corrida. A escuridão como o perfeito disfarce. Chegando à entrada, ambos pouparam tempo pulando e entrando por uma janela no segundo andar. - Paulo! – a voz de Julio se propagava com facilidade por entre a madeira velha e os corredores vazios. - Aqui. No quarto. – a distante voz respondeu. Julio e Samara chegaram à porta do quarto e analisaram a situação. Um grande e antigo cômodo em que tudo era velho e decadente. O chão de madeira rangia e a quebrada maçaneta da janela mostrava que ela não tinha sido aberta em anos, assim retendo o cheiro de poeira e mofo. Exceto pela cama. Uma gigantesca e conservada cama pairava no meio do quarto. A madeira da sua estrutura brilhava e os lençóis cheiravam a amaciante. No centro do colchão, iluminada pelo luar que atravessava a janela, deitava uma jovem envolta em um fino lençol roxo. O que o lençol não cobria, revelava ser um escultural corpo nu, mas de coloração estranha que parecia perder vida e ficar pálido. Paulo terminava de vestir sua calça quando Samara exigiu respostas:

- Ela tá viva? – a autoridade era audível. - Depende de o que você considera “viva”. – Paulo respondeu sem perder a oportunidade e o senso humor. Enquanto Samara se aproximava do corpo, Julio continuava com as perguntas: - Por que ela gritou? - Não sei. Estava tudo bem. Estávamos abraçados e nos beijando e de repente o olhar dela mudou. Parou de sorrir e gritou. Eu não sabia o que fazer e mordi. - Idiota. Ela viu seus dentes. Seu olhar pervertido também não deve ter ajudado muito. Julio desvendou o mistério com facilidade. - Ela está com um pulso fraco. Deve acordar em algumas horas, mas a gente precisa sair daqui. – Samara informa. - Por quê? – Paulo indaga. - Porque a sua gritaria chamou a atenção da polícia. Pegue os lençóis que eu vou carregar a garota. Samara lidera. Paulo rapidamente puxa os lençóis da cama, desenrola o que ainda está preso ao corpo da garota e coloca tudo debaixo do braço. Samara abre a janela com um forte e preciso chute. Julio ajeita o corpo feminino sobre o seu ombro e observa a profunda marca de dois dentes caninos marcados no pescoço. Dois buracos quase idênticos, simétricos e eqüidistantes sem qualquer indicativo de sangue vazado ou uma área dolorida em volta. - Apesar de tudo, Paulo, foi uma bela mordida. Nada mal para uma primeira vez. Julio sorri com o canto da boca.

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E em instantes a casa estava vazia novamente. Policiais perplexos deduziram ter sido um trote de jovens marginais. Sem as figuras pálidas, a casa voltou a ficar vazia como parecia estar pelas últimas centenas de anos. Camuflada para a civilização.

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MUSA Pietro Vaughan

CAPÍTULO 1 Há mais de um mês o sonho se repete todas as noites. Peter Sloane caminha nas ruas escuras da mesma cidade. Ruas com casarões e prédios antigos. Peter avança com cuidado, pisando em sombras e na neve escorregadia que cai. Ele está nesse percurso há horas sem encontrar-se com qualquer pessoa. Ele ainda não conseguiu descobrir se isso é bom ou ruim. Só sabe que está cansado, com fome e frio. O terno antigo não aquece seu corpo. Seus dentes batem com força. Todas as noites ele passa pelas mesmas casas, com suas janelas e portas fechadas, sendo conduzido para o mesmo lugar. Aos poucos o sentimento de urgência cresce. A ansiedade é quase incontrolável. Tudo se repete. Peter respira fundo para se controlar. Andando por alguns quarteirões ele ouve música. A mesma música de todas as noites, talvez o vento o esteja confundindo, mas desta vez ele tem certeza que também ouve vozes e risos. Ele esquece a prudência e avança rapidamente na direção da música. Quando se aproxima do portão, o silêncio impera no lugar. Mesmo assim, ele empurra o portão e entra. Quando levanta a cabeça vê que há várias mulheres a observá-lo da janela do andar superior. Ele não consegue distinguir seus rostos, mas sabe que são estranhamente familiares. Ele hesita antes de abrir a porta principal. Na verdade ele quer fugir, mas uma voz interior ordena: “Abra!”. Ele obedece. A sala está vazia, não há móveis apenas uma vitrola velha no centro da sala, tocando “walk on the wild side” do Lou Reed em um disco de vinil riscado. Peter interrompe a música erguendo a agulha. De repente o cenário muda de lugar. A sala desaparece e ele se vê em um quarto com apenas uma cama velha de casal e embaixo do lençol o corpo que ele sabe que é de uma mulher. Ele já esteve naquele quarto uma centena de vezes.

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Só não se recorda quando. Mesmo não querendo e sendo impulsionado a isso ele caminha na direção da cama e puxa o lençol.

CAPÍTULO 2 Peter acorda com um sobressalto. Ele olha para as paredes do quarto, fazendo um reconhecimento do local. Senta-se na cama para em seguida deitar-se de novo sobre os lençóis suados. Com os olhos bem abertos observa uma aranha caminhando no teto do quarto. Depois de alguns minutos, pega o celular para ligar para a terapeuta, para contar que mais uma vez sonhou a mesma coisa. Desiste, colocando o celular sob o criado-mudo. Depois de quinze minutos se levanta. Abre a janela do quarto para entrar um pouco de ar fresco. A luz da manhã acinzentada de domingo fere seus olhos castanhos. Ele procura por algo novo na paisagem de todos os dias. Algo que possa fazer a diferença em sua vida. Seus olhos fazem uma busca rápida até que ele finalmente descobre uma nova vizinha, do outro bloco do condomínio de apartamento que ele mora e há dois andares abaixo. O apartamento esteve vazio há tanto tempo que Peter nem se lembra de quando viu alguém morando ali. Ele passa um tempo observando a vizinha, uma loira bonita com ricos cabelos cacheados e olhos claros que não parece perceber a presença dele ou se incomodar com o observador. Ela um pouco mais velha do que geralmente ele gosta, com prováveis trinta e poucos anos, anda de um lado para o outro do apartamento carregando caixas pesadas e pensando na arrumação do apartamento. Ele acompanha toda movimentação dela até que finalmente, ela olha para cima e seus olhos verdes entram em colisão com os olhos castanhos dele. Ele recua com a força do olhar dela. Um arrepio corre pela espinha dele e incomodado com aquele olhar ele se esconde atrás da cortina. Mas seu desejo de observá-la é tão grande que ele passa a acompanha-la mesmo escondido.

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O telefone toca. Peter olha para o aparelho decidindo-se se devia ou não atender. Finalmente atende. A voz sorridente de sua editora-chefe o faz lembrar-se que ele tem uma vida e uma carreira e principalmente que é um homem de sucesso e por um momento ele se esqueça da vizinha. - Cadê o meu livro? - Lilian Boyd pergunta logo de cara. Peter dá uma risada cínica. - Está quase pronto – ele mente, nos últimos dias mal conseguiu escrever. - Ótimo – diz Lilian. Eles conversam mais alguns minutos. Lilian quase que diariamente liga para lembra-lo dos prazos de entrega dos manuscritos dos livros infantis e para contar-lhe sobre a próxima sessão de autógrafos para os fãs ávidos dos novos livros de Peter Sloane e principalmente para saber se ele está vivo. Depois de desligar, Peter começa a trabalhar. Liga o computador e passa os próximos minutos olhando para a tela sem escrever uma única palavra que faça sentido. A vizinha não sai de sua cabeça. Ele está conectado a ela. Imagina-se conversando com ela. Qual seria seu nome? Sua voz? Seu desejo sexual por ela chega as alturas. Ele precisa tê-la. Peter se levanta da cadeira andando de um lado para o outro. Perturbado com o que está se passando em sua cabeça. Vai até a janela e olha na direção do apartamento, decepciona-se porque a vizinha não está em seu ângulo de visão. Ele fica ali algum tempo esperando por ela, até que desiste e retorna a sua rotina diária de escrever. Senta-se e escreve por horas, nuca esteve tão inspirado. Horas depois quando as idéias terminam e ele lê tudo que escreveu, se horroriza com o que escreveu, um relato detalhado de suas fantasias sexuais com a nova vizinha. Um texto rico em detalhes. Cada palavra o excita. O corpo borbulha em desejo. Ele se levanta e olha pela janela. A loira não está. Ele a quer, não importa quando ou como. CAPÍTULO 3 - Você já pensou em arrumar uma namorada de verdade? – pergunta Karen Smith. - Eu estou bem sozinho. – diz Peter para a terapeuta. – Alguém em minha vida nesse momento ia atrapalhar tudo que estou fazendo. - E o que você tem feito de tão importante que não tem espaço para o amor? – Karen pergunta.

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- Eu simplesmente não quero amar. – ele responde. – Por que é difícil para as pessoas aceitarem isso. - Por que sei que você está mentindo – Karen retruca. Peter olha com raiva para a terapeuta. Eles já tiveram aquela conversa outras vezes e ele sempre deu as mesmas respostas. - Peter... você acha está bem? – Karen pergunta. - Claro que estou. Eu não quero compromisso com ninguém. Estou bem assim. - Eu já estou cansada de ouvir a mesma resposta. – Karen diz com tom de revolta na voz. -É a única que posso te dar. – ele responde de forma seca. - Tem visitado sua mãe? – a terapeuta pergunta. - Não! – ele responde. - Por quê? – ela insiste. Ele não responde se contenta em abaixar a cabeça. - Fale sobre os sonhos com a cidade fantasma? – Karen insiste. Ele levanta os olhos na direção dela. - Eu estou bem com relação a isso. – ele responde impondo convicção na voz. - Você já foi conversar com a sua vizinha? – Karen pergunta. . Peter examina a terapeuta antes de responder. Ela conhecia suas mentiras. - E dizer o que? Oi sou seu vizinho, aquele que fica te olhando da janela. Ela me achará um maluco e vai chamar a policia. - Talvez – Karen sorria – Ou ela pode acha-lo bonitinho e te convidar para um sorvete. - Prefiro ficar na minha – ele diz. - Só observá-la pela janela? – Karen insiste - Não acho nada sadio. Ao voltar para o apartamento a primeira coisa que Peter faz é olhar pela janela para ver a vizinha. Dessa vez ele a vê. Ela se arrumava para sair. Estava com agasalho para correr, movido de coragem ele se trocou rapidamente também saindo para correr. Ele deu o melhor de si para alcança-la e quando cruzou com ela a olhou com tamanha admiração que tropeçou e quase caiu. Ela é muito mais bonita pessoalmente do que pela janela. Ele pensou em abordá-la. Se apresentar. Saber quem ela era. Mas, foi covarde. Ficou parado no meio da calçada admirando aquele corpo bem feminino que se afastava. Mesmo contra a vontade, correu meia hora a seguindo de longe. Voltou para o apartamento na expectativa de vê-la mais um pouco. Surpreendeu-se ao ver uma cortina cerrada tampando sua visão. Em protesto contra aquilo, num acesso de fúria ele esmurra a parede até machucar todos os dedos.

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CAPÍTULO 4 O sonho começa do mesmo jeito de antes, porém Peter percebe que algo está diferente. Ele não está sozinho. Há mulheres nas janelas das casas a observá-lo. Ele não reconhece seus rostos e quando as olha, elas fogem fechando as janelas. Em certo momento ele ouve a mesma música antiga e desafinada tocando no disco vinil, Ao entrar na mesma casa de sempre ele olha para cima e vê a loira. Agitado com a presença dela abre a porta e entra. Desta vez a sala está ricamente mobilada e antes de subir as escadas ele puxa o braço da agulha desligando o rádio. Ele sobe as escadas correndo para chegar ao quarto e ter a oportunidade de falar com a loira. No andar superior se vê num corredor apertado cheio de portas. Ele começa a abri-las sem temer o que poderá encontrar. Porta após porta só encontra quartos vazios, sem mobílias ou sua amada. Depois de muito tempo percebe que aquele corredor é interminável e passará a eternidade ali, mas não importa ele quer encontra-la. - Peter! – ele ouve seu nome sendo chamado de forma nada amistosa. Ao virar-se vê que o corredor está tomado de mulheres. Ele sabe o que irá acontecer a seguir. Elas vão mata-lo. Elas avançam e ele não se mexe. Ele acorda. CAPÍTULO 5 Sentado perto da janela do apartamento, Peter espera que mais cedo ou mais tarde, sua vizinha abra a cortina e ele possa vê-la. Está sem inspiração para escrever. Ele não tem mais atendido os telefonemas de sua editora e sabe que em breve ela tocará furiosa a campainha do apartamento. As batidas na porta do apartamento o desperta do transe. Ele hesita em abrir a porta. Lilian apareceu antes do que ele previra. Ele não vai atende-la. As batidas continuam. Ele se levanta e se arrasta até a porta. Olha pelo olho mágico e se surpreende ao ver a loira do outro lado. Sem pensar duas vezes, ele abre a porta e ela entra. Ela está atordoada. Machucada física e psicologicamente. O bonito rosto cheio de hematomas e suas roupas rasgadas. Suas mãos tremem como quase todo o corpo. - O que aconteceu? – ele pergunta a ela. Ela não responde. Apenas lhe dá um olhar frio. Ele toca as mãos e ela o empurra com força. Ela corre do apartamento e ele corre atrás dela. A loira grita por socorro, mas ninguém a atende, com medo Peter desiste.

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CAPÍTULO 6

Peter passou as últimas duas noites esperando na janela. Quando estava quase desistindo de sua vigília, ela apareceu. Abriu a janela do apartamento e afastou as cortinas. Não estava sozinha, estava com duas amigas e mesmo de longe ele viu que ela não tinha qualquer hematoma. Ele ficou confuso. Será que havia sonhado? Ele fecha a cortina sentando-se no sofá. Poucos minutos depois o telefone toca e ele atende: - Sr. Peter Sloane? – diz uma voz masculina. - Sim. - Aqui é do Hospital St. Mercy...- a voz continua num tom grave - temos más noticiais. Peter ouve silenciosamente tudo que o representante do hospital tem a dizer. Sua mãe está morta depois de passar mais de cinco anos em coma. Ele suspira aliviado. A partir daquele momento finalmente está só. Sua mãe era sua única familiar viva. De modo estranho está feliz por sua morte. De forma mecânica, se arrumou e foi para o hospital. Lá providenciou tudo

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para o enterro e em nenhum momento derramou qualquer lágrima. No começo daquela manhã fria de domingo, diante da lápide de sua mãe, Peter pensa vida que teve e aquela que terá a partir de sua morte, quando ouve uma voz dizendo a ele: - Você é um maldito bastardo! Ele olha assustado e confuso ficou para a vizinha há poucos metros de distância. Ela estava tão próxima dele que ele podia sentir o perfume de seus cabelos e quase tocá-la. - Seu maldito! Canalha! Você merece queimar no inferno... – ela chorava de raiva e olhava fixamente para uma lápide - Eu nunca vou te perdoar. Eu descobri que você fez a mesma coisa com outras mulheres, você as violentou e as matou...só eu sobrevivi. Peter não ouvia mais nada. Sentia seu corpo formigar. Ele tem a sensação de algo perfurando seu estomago de fora para dentro. Sua respiração se torna pesada e suas forças desaparecem ao ponto dele se ajoelhar. Sangue escorre de sua boca e do buraco aberto no estomago. Tudo em volta escurece. . - Eu te odeio. – gritava a loira - Eu quero que você queime no inferno, para onde te mandei quando te matei. Peter grita de dor com a faca de cozinha cravada em seu estomago. Com a visão turva, ainda vê a loira, a única de suas vitimas que sobreviveu, fugindo do apartamento dele e ele ainda ouve a voz dela gritando por socorro. Ele nunca foi um escritor. Ele nunca teve um emprego. Sempre foi um menino mimado e mentalmente instável sustentado pela mãe. Ele nunca amou mulher alguma. Ele as seduzia, as usava e as descartava como lixo. Ele volta a ouve Lou Reed cantando enquanto ele matou a própria mãe a sufocando com um travesseiro. Ele não chora. Não há mais tempo para arrependimentos. Ele sente uma dor estranha nas mãos e quando olha para elas, as vê se despedaçando e se transformando em pó como o restante de seu corpo. Ele grita, mas ninguém mais poderá ouvir sua voz e seu corpo se desfaz em pó. Tudo é escuridão. Quando os olhos de Peter se acostumam com a escuridão ele percebe que está na mesma cidade vazia, porém agora ele sabe porque está ali e que aquele lugar é seu inferno pessoal.

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coração de pedra Francisco Tupy

O som da chuva chega repentino, batendo violentamente no vidro, entre uma trovoada e outra enquanto as gotas ficam maiores e mais barulhentas. Já não se podia ver de fora o que acontecia dentro daquela sala. A única solução era entrar. A porta que, a princípio, estava trancada, se abre. - Faz assim: deixa a moça ir comigo e esquecemos tudo para o bem de todos. Pode ser? - Quem é você? Mais um Zé Graça? Vai sair daqui morto, cara!. Em um canto da sala, um homem com idade indefinida, que bem podia ser considerado mais jovem do que aparentava, e de comportamento cínico e inconsequente frente ao perigo declarado. Do outro lado, um homem cercado de capangas, todos devidamente armados até os dentes, de pistolas, punhais e até porretes. Atrás deles, uma menina sentada e com escoriações pela face e corpo causadas por golpes de mão fechada, hematomas típicos de um sadismo covarde. O líder deles continuou falando: - Quem é você para entrar aqui assim? Qual seu nome? - Pode me chamar como quiser. Puxando uma faca, o mal feitor diz: - Sempre gosto de saber quem irei matar, a coragem se desfaz após a faca entrar na carne. Antes de completar o primeiro giro o defunto fala o nome até do tataravô. - Bacana, mas libera a menina aí, preciso voltar para casa antes do sacristão começar a arrumar o altar. Se eu chegar em casa depois da missa ter começado, vou ter problemas. - Igreja aqui só na missa com o seu caixão. Impaciente a faca desce como um raio em direção ao inconsequente herói, porém algo estava estranho, o impacto da ponta no peito da pretensa vítima, ricocheteia a lâmina. O ar de surpresa na sala é rompido pelo berro do agressor que sente seu braço ser esmigalhado por uma mão de pedra que esfarela seus ossos como se fossem torrões de terra vermelha..

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O semblante cínico dá lugar a um homem sombrio, o ar jovem agora dá espaço a um tipo de ancião desgarrado, estrangeiro deste espaço e tempo, decidido a cumprir seu objetivo com meios que desafiam a realidade e a lógica. Os capangas erguem suas armas, apreensivos,enquanto outro aponta uma pistola para a cabeça da menina. - Vocês querem mesmo do modo mais difícil? Ainda é tempo de todo mundo seguir seu caminho. Eu saio por aquela porta, esqueço tudo e vida nova para todos. Aquele que coloca a arma na cabeça da menina diz: - Cara, essa menina é só uma drogadinha que fica no beco da Igreja, fazendo sexo por trocados. Você ajuda ela hoje, amanhã ou depois ela morre de overdose, ou aids, ou vítima de algum maníaco tarado. Por que se importa? - Sabe, a realidade é tão dura, que às vezes tira até um coração de pedra da inércia. Em meio a tempestade que castiga a cidade, um trovão ecoa na noite, daquelas bem fortes e bem altos que perturbam a atenção por alguns segundos e faz com que todos os presentes fechem os olhos, Ao abri-los novamente as luzes estão apagadas. O medo era preemente entre os bandidos, mas o porte das armas os acalentava com algum tipo de segurança desconhecida. De repente, um estalo na direção da janela, uma sombra, e dois tiros sem dó. As balas espatifam a janela e acertam um gato que buscava abrigo da chuva.

Do escuro sai uma ordem do líder com o braço quebrado. Atirarem sem parar e só parem quando tiverem matado o maluco. Após uma sinfonia ensurdecedora de estampidos de armas mal calibradas e um cheiro de pólvora barata, o silencio retorna, pesado e sepulcral. A chuva começa a ceder e no horizonte já anúncia um novo dia. A segurança das pobres almas começa a refezer-se, a aurora traz aquela sensação de que o mal sempre vence quando se tem uma arma. Um deles ascende um isqueiro e verifica que o chefe no chão está bem apesar do braço quebrado parecer um boneco de pano. Todos estão vivos, mas a menina não está mais ali. - E ai, o que aconteceu? Mataram o cara? - Não sei... A menina sumiu... - Ela não pode sumir, você sabe muito bem o que colocamos nela. - Achem os dois ou estamos mortos! Imediatamente, os fascínoras começam a perscrutar a escuridão da sala, quando alguém nota em canto algo que recusava-se a iluminar-se. Um misto de curiosidade e medo fez com que se aproximasse e ao chegar próximo, um barulho inumano irrompe pelo ambiente.

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Passos pesados, carne sendo rasgada, ossos se partindo, tendões esgarçados, suco visceral respingando e amargo sabor de sangue quente na face de todos presentes. O terror reverbera na alma de cada um. Com os primeiros raios de Sol uma silhueta torna-se perceptível, porém trata-se de um contorno de algo nunca antes visto, algo impossível, algo... monstruoso. Dois bandidos, em um desespero impensado, vendo aquela massa abominavel, tentam um ataque precipitado, talvez buscando um modo rápido e indolor de morrer ou sabe-se que sofrimento aquela coisa poderia causar. Os golpes que resvalam na pele dura soam dar uma machada em uma coluna de mármore. O excesso de variáveis que fogem à compreensão: a força, a mão gelada, as garras, enfim, ambos os homens entram em choque antes de serem arremessados como insetos. Os remanescentes fingem-se de mortos, mas é quase impossível, com o medo que fazia todas as articulações tremerem. Ele não liga, vai em direção ao chefe e com uma voz nunca ouvida antes diz: - Deixe ela e as outras crianças em paz. Eu estou cansado de ver suas atrocidades, pare com isso, para seu próprio bem. - Eu não sei quem ou o que é você, mas eu sei que existem muitas aberrações por ai que querem essa garota e tantos outros interesses bizarros que nos fazem de peões nesse tabuleiro. - Eu não sei do que está falando, só quero que pare de abusar dessa vida. Não suporto ver a tristeza e a agonia. - Cara, eu to pouco me importando, mas quer saber de uma coisa...?

Com o braço bom, ele desfere um tiro que atinge em cheio o abdômen da creiatura, só que dessa vez, a bala não resvala, ela penetra. Em um movimento rápido, algo passa rente ao corpo do covarde dividindo-o em dois. A menina estava sentada embaixo de uma escada, encolhida, sufocando seu medo, sem forças para correr, quando vê a porta se abrir e o responsável por seu resgate sair, com as roupas rasgadas, com furos de bala, e uma enorme mancha de sangue no abdômen. Ela não repara em seu aspecto monstruoso e inumano... - Ce foi ferido! Você tá bem? _ E-eu preciso voltar para casa antes de amanhecer... _ Vem aqui, eu vou te ajudar? _ A igreja, me leve para a igreja... A garota sente-se pela primeira vez protegida e não tem medo do que possa ser aquela criatura. Busca forças de sua gratidão e com o desejo de fazer algo direito em sua vida arruinada encontra um ponto de equilíbrio para dar apoio e conseguir caminhar arrastando seu cavaleiro branco. O dia surge rápido e o Sol invade cada vez as dependências do local.

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A Igreja aparece no horizonte e isso a enche de animação, exausta ela retribui o favor. Para anima-lo, ela puxa conversa: - Tio, o senhor sabe cantar. Canta uma música para mim, por favor. Ele mais balbuciava do que consegue falar, o sangue encharca as costas da menina. Ela reconhece a melodia, mas não sabia de onde. _ Pronto... chegamos. _ Por trás... meu bolso, a ch... ch... cha... chave... Ao abrir a porta, o monstro cada vez mais horrendo, aponta para uma porta no topo. Ao olhar aquela escada, já se dando por fracassada, ela subitamente vê uma cadeirinha elevatória a qual padres e bispos idosos usam para chegar aos pontos mais altos. Ao som de um órgão e cânticos da manhã, ela o joga por cima da cadeira e com dois ou três botões apertados o mecanismo funciona. Naquele momento ela percebe que a aquela música que foi balbuciada, era a mesma que ela ouvia quando ficava no beco atrás da igreja. Tudo era tão lindo, e tão longe ao mesmo tempo. Ela observa o caminho parte concentrada para o corpo não cair da cadeirinha, parte nos entalhes da madeira e pinturas da parede. Finalmente, chegam ao topo, na porta mais alta da torre. - Obrigado, sem você seria o fim. - Como assim? Pensei que aqui você queria um lugar para se cuidar. Reunindo suas últimas forças, ele se escora na parede, pisando em um chão afundado por pegadas de três patas de alguém muito, muito pesado. A menina tenta entender o que está acontecendo. Ela o vê abrir um acesso a uma sacada da torre e desaparecer. Curiosa, vai atrás dele, mas não o encontra. Porém ao caminhar por aquele espaço chuta algo que tilinta ao quicar no chão: era a cápsula de um projétil. Seus pensamentos se perderam novamente, pois descobre, que de onde estava podia ver tanto o beco e também o galpão, que agora estava infestado de policiais e helicópteros. Aquela paisagem trazia tristeza e decepção, se afasta pé ante ante pé, andando de costas, como se aquele movimento representa-se o afastamento daquela realidade. Nesta caminhada simbólica e reflexiva sente uma garra em suas costas, firme e dura com unhas pontiagudas, o susto origina um ato reflexo, um grito e o ímpeto de olhar para trás, quando avista uma Gárgula. _ Por favor, não me faça mal. O que você fez com o tio? Uma estátua de pedra, imponente olhando para o horizonte, imóvel, mas com uma aura de proteção indescritível. - Oi, você está bem? Um jovem noviço com um sorriso cativante: - Por favor, não me prenda, eu não estou roubando nada. - Tudo bem, me assustei com seu grito. Mas pelo visto você também é amiga de Anathanasyus. - Atana... que? - Venha, você deve estar cansada, se quiser ficar temos uma cama sobrando. Você também deve estar com fome, não? Cansada, com sono e sem mais saber o que pensar ela desmaia, mas a última imagem é uma lasca na pedra, na altura do abdômen do Gárgula. Fim

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A ILHA NO FIM DAS ROSAS Rita Maria Felix da Silva

Dizem que começou bem no meio da África – afinal, foi de lá que as primeiras notícias chegaram. Rosas – as mais belas e estranhas que já se viu - estavam impossivelmente se espalhando por toda a parte: sobre desertos e campos férteis; montanhas e rochas; casas, ruas e pessoas... E tudo que era tocado por elas transformava-se em mais rosas. Obviamente a humanidade lançou sobre aquele evento certa quantidade de descrença e zombaria; uma medida de teorias, opiniões e credos; e tanto medo, fúria e tecnologia quanto pôde dispor – e um pouco mais que o desespero permitiu improvisar. Porém as rosas cruzaram os oceanos – convertendo as enormes distâncias aquáticas em paisagens floridas e perfumadas –, atingiram os outros continentes e nenhuma ação ou vontade foi capaz de detê-las. Aos seres humanos coube apenas fugir daquele apocalipse rosáceo, pois compreenderam que nada mais lhes restava fazer. Até que, por fim, os últimos homens e mulheres detiveram sua corrida em uma ilhota do que fora o Oceano Pacífico. Talvez os deuses tenham se apiedado deles, porque as rosas pareciam poupar aquele pedaço de chão e assim os refugiados lá viveram. A vida na ilha – uma terra cercada de rosas por cada um de seus lados - era por demais dificultosa, porém, eles teimavam em continuar vivendo, quem sabe por medo de morrer ou talvez pela consciência de que a humanidade, simplesmente, não deveria deixar de existir. Jamais se soube qual o motivo. O que realmente importa é que eram infelizes, de um modo tão desesperado e profundo, que não conseguiam explicar, nem para si mesmos, aquele abissal sentimento. Viver se tornara uma carga insuportável para eles, algo que parecia pecaminoso, porque uma parte de suas almas sussurrava que o tempo da humanidade já havia passado. Porém, eles resistiam, sentavam e choravam abraçados uns aos outros. Todavia, entre uma lágrima e outra, lembravam dos que morreram transformados pelas rosas e

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da felicidade simples, profunda e quase celestial que emanava daqueles rostos. Os exilados na ilha lembravam desses mortos e os invejavam. Dizem que foi assim, até que o último deles morreu, sentindo-se infeliz como os outros. Porém, quando fechou os olhos, no derradeiro momento, pensou na Terra coberta de rosas e imaginou que nunca houvera um túmulo mais grandioso, trágico e belo quanto o dele. Quando o último ser humano partiu, as rosas avançaram sobre a ilha.

FIM Dedicado a LEtranger.

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A Arte da Fuga Alex Moletta

Sobressaltado, Sebastião acordou com incessantes acordes firmes e densos de Tocata e Fuga de Bach que, mais uma vez, invadiram seus ouvidos e penetraram como uma faca em sua cabeça. Estava no chão. Olhou em volta e viu o assoalho manchado de sangue. Mesmo desorientado pela música alta, conseguiu ligar para a polícia. Porém, ao desligar o telefone, um calafrio tomou seu corpo. Um flash súbito o fez lembrar da decisão tomada naquela manhã: iria assassinar o avô, Ambrósio. Naquela mesma manhã fria, a neblina ainda cobria as antigas casas de madeira em estilo inglês da pequena vila ferroviária, escondida no meio da serra. Um lugar afastado e de difícil acesso, onde moravam os antigos trabalhadores da ferrovia. Uma vila úmida e isolada onde o silêncio só era quebrado pelo apito do trem a vapor duas vezes ao dia. Sebastião tocava órgão de tubos no Mosteiro de São Bento, apesar de não ser seminarista. Estava afastado da função para cuidar integralmente do avô que, há seis meses, estava entrevado numa cama. Vinha de uma família de músicos amadores e apaixonados, que obtinham da música a fuga da realidade dura do trabalho. Ambrósio, depois que se aposentou da ferrovia, adoeceu e não pôde mais sair de casa. O neto era a única companhia. Todas as manhãs, Sebastião acordava com o som alto da música do compositor alemão. Aquilo o irritava profundamente. No mosteiro, passou um ano inteiro dedicando-se a mesma composição, dia após dia, mas não conseguiu atingir a perfeição monástica no órgão de tubos. Tocata e Fuga de Bach sempre foi uma das composições mais difíceis e exigia grande habilidade, que ele ainda não tinha, como organista. Sebastião não suportava mais ouvi-la. Cada dia era um calvário para ele. Depois de uma noite mal dormida, causada pela sua insônia constante, Sebastião acordou com a maldita música estourando seus tímpanos. O velho entrevado na cama, desta vez esgotara sua paciência. Se o velho morresse tudo se resolveria. O sofri-

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mento do avô e o dele também. Chega de Bach, chega de Tocata e de Fuga, pensou. Sorrateiramente foi até a porta do quarto. Seu coração acelerou. O velho Ambrósio sempre dormia ouvindo música. Sempre foi assim, ele odiava. Precisava ter muito cuidado, o velho era rabugento e não gostava dos cuidados do neto, os dois viviam brigando por isso. Sebastião tocou na fechadura. Girou a maçaneta mais lento que o ponteiro pequeno de um relógio. Suas mãos começaram a suar. A taquicardia aumentou a temperatura de seu corpo. Ele ainda não tinha certeza se tinha coragem para matar. Mas sabia o que precisava fazer. Abriu a porta bem devagar e olhou para dentro do quarto. Ambrósio estava enrolado nos cobertores. As janelas ainda fechadas, por causa do ar seco e frio da manhã, escureciam o quarto num breu absoluto, tornando tão sombrio quanto à noite erma na vila. Entrou vagarosamente e fechou novamente a porta. Calculando um passo após o outro. A adrenalina, a taquicardia e o fedor, que tomava o ambiente, lhe causaram náuseas. Ambrósio fedia a remédio e carne podre. Sebastião não poderia mais voltar, a decisão estava tomada. Precisava por um fim. Já estava próximo da cama quando uma das madeiras do assoalho rangeu estridente. O velho virou-se na cama. - Tião? É você? - perguntou o velho com a voz fraca e rouca. No escuro, Sebastião esgueirou-se entre o mancebo e o guarda-roupas e permaneceu imóvel e silencioso feito mármore. Olhando para o avô, que o procurava no breu, sem enxergar direito por causa da catarata. O assassino espreitava a sua vítima como uma ave de rapina numa caçada noturna. - Tião? Parado, em pé, Sebastião não movia um músculo. A menos de dois metros seu avô olhava em sua direção sem enxergar absolutamente nada. O neto sabia que se permanecesse em silêncio o avô voltaria a dormir.

“Como ouviu o barulho do assoalho com essa maldita música infernal tocando? “ perguntava-se o rapaz olhando atentamente para o velho. Assim que a música terminou, começou a tocar novamente, como se desse seguidos murros em sua cabeça. Os minutos nunca demoraram tanto a passar e imóvel, o inexperiente assassino, esperava o melhor momento. O velho lentamente voltou a dormir. Sebastião saiu cuidadosamente e se aproximou do avô. O fedor que o moribundo exalava e os acordes da Tocata aumentaram seu desejo de ver aquele corpo morto que teimava em viver desaparecer da sua vida. Colocou um dos joelhos em cima da cama e levou as duas mãos ao pescoço do velho, que arregalou, com surpreso horror, os dois olhos e começou a grunhir como um porco. O grunhido do quase morto, com as vozes da música que se sucediam, se misturavam e se separavam, fazia com que as pontas dos dedos roxos de Sebastião afundassem mais na garganta seca e flácida de Ambrósio. Enquanto sufocava o avô Sebastião ouvia o réquiem de Bach coroando seu ato de misericórdia a ambos. Até que o ar deixou os pulmões de Ambrósio pela última vez.

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Em cima do cadáver, Sebastião não sabia o que sentia, êxtase, medo, culpa, alívio... Os olhos do defunto continuaram abertos numa expressão de horror e acusação, por outro lado, a culpa se sobrepôs a todos os demais sentimentos e Sebastião tentou fechar seus olhos. Mas eles não fechavam. Continuavam a olhar para seu assassino. Ele segurou as pálpebras por um instante, mas elas abriram-se em seguida. Os olhos não fechavam. Não fechavam. A raiva e a culpa o fizeram-no pegar um abridor de cartas na cômoda ao lado da cama e vazar aqueles dois olhos acusadores, estocadas seguidas dilaceraram suas córneas restando apenas dois furos ensangüentados. Enrolou o corpo no cobertor de lã como uma múmia e o puxou pelos pés. O corpo desabou no assoalho de madeira deixando um rastro de sangue. O cadáver ficou estirado no meio da sala e a neblina começou a entrar pelo vão da janela e Sebastião, com o mesmo abridor de cartas, levantou algumas tábuas soltas do assoalho, onde Ambrósio costumava guardar tudo que não prestava mais, e arrastou o peso morto, desabando-o no porão. Assim que recolocou as tábuas no lugar, Sebastião percebeu que a casa toda estava no mais profundo e fatídico silêncio. A música não estava mais tocando. Pela primeira vez, em muito tempo, ouvia o silêncio. O cansaço, embalado pelo silêncio, fechou suas pálpebras em direção ao sono, porém antes do sono profundo, a música voltou a explodir em seus ouvidos. Sobressaltado levantou-se, viu um rastro de sangue no assoalho e, depois de ligar para a polícia, correu novamente para o quarto do avô. Olhou para a cama e o quarto vazios. Mesmo sem nenhum aparelho sonoro ligado o volume da música aumentou em sua mente e num gesto de reconhecimento, dor e desespero, Sebastião deixou o quarto em direção ao abridor de cartas no assoalho da sala. Horas depois, quando a polícia chegou ao local, atendendo ao chamado na isolada vila ferroviária, em frente à antiga casa escura de madeira, gritaram por Sebastião, mas ninguém respondeu. Arrombaram a porta e encontraram as tábuas novamente soltas do assoalho revelando o crime e, ao lado, o corpo de Sebastião com o abridor de cartas cravado em seu ouvido, revelando a punição para o assassino. O grande compositor alemão e sua Arte da Fuga, não seriam mais ouvidos naquele lugar, agora inundado completamente pelo silêncio.

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Búfalo Moacir Novaes

Ela parecia tão sóbria... Talvez fosse apenas uma impressão superficial. Parada em um dos cantos do salão, não estava sorrindo ou dançando. As pulsações da música infiltravam-se em cada mínima fração daquele espaço. Menos nela. Nunca nela. Era como se houvesse ali um vácuo. Ela parecia tão sóbria. Não tinha os olhos confusos ou desesperados. Não estava ansiosa para esquecer algo. Ao contrário, parecia saber que quem busca vingança nunca pode esquecer. Jamais deve perdoar ou fechar suas feridas. Olhe e fique atento, tente ver, e vai notar que é como estar diante de um buraco negro. Silencioso. Impassível. Ela estava parada, feito um fato inevitável. Vestida de vermelho. Cabelos de um tom ainda mais escuro que as roupas. Curtos. Uma figura esguia. O inexplicável, em sua imagem, tornava-a imediatamente uma mulher bonita para qualquer olhar. Preste atenção no que digo, ela não era apenas bonita. Era uma mulher. E existe uma força monstruosa nesse aspecto de sua personalidade. Não uma moça inexperiente ou uma menina que precise de elogios. Ela era uma mulher e isso fazia toda a diferença.

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Sabia ser desejada, instantaneamente, como o demônio sabe ser rejeitado. Estava entre dois espelhos, por isso você conseguiria ver a tatuagem em suas costas nuas, uma cabeça de um búfalo negro de longos chifres e olhos vazios. Os traços do desenho eram absolutamente brutais, como cicatrizes, e ainda assim, lindos. Ela mal percebia a música, dentro da sua cabeça havia espaço somente para as batidas dos tambores, enlouquecedoras, eternas. Elas eram o seu rosnado, ecoando em cada gesto e pensamento. Moldando a vontade dela de gritar e destruir tudo ao ser redor. Obrigando aquela mulher a conter-se. Negar-se. Durante a última hora três homens e duas mulheres tentaram abordá-la e, em cada uma das tentativas, ocorria o mesmo processo, ela não sorria, olhava diretamente para a outra pessoa, como se desmontasse sua alma. O ato durava alguns segundos. Depois parecia perder o interesse e simplesmente balançava a cabeça. Negando-se. Na sexta vez, um homem de cabelos claros se aproximou dela. Ela o olhou, passando as camadas da alma até chegar ao centro. Detestava homens violentos. Odiava ainda mais quando percebia que um deles desculpava-se por todos os erros que tinha cometido em sua imprestável vida. Os tambores estavam tão altos na cabeça dela. Misturavam-se com a voz daquele polaco sorrindo e com a voz dos mortos. As batidas exigiam retribuição. Não apenas dor, mas punição. “Meu nome é Iansã” Essa foi a primeira vez que ela sorriu, em seguida, puxou o rapaz pela mão para beijá-lo. A boca dela tinha um gosto de canela ardida. Ela segurou um dos pulsos dele. Ele a seguiu, sem questionar. Juntos subiram pelas escadas de incêndio até o topo do prédio que hospedava o clube. O céu estava escuro. Nuvens pesadas combinadas com as luzes da cidade. Você não veria os raios, mas, sentiria o cheiro da chuva e os trovões. “Vamos fazer aqui?” “Sim. Vamos sim querido.” Ela se aproximou e segurou seu corpo. Depois o beijou e foi movendo as mãos até estar trançada a ele. O prazer inicial rapidamente desapareceu quando o rapaz sentiu os ossos do seu braço e pulsos sendo pressionados até o ponto de trincarem sob a carne. Não havia como afastar a boca do beijo dela, os lábios pareciam uma mistura

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de ferro e sangue seco. Não havia como gritar. O gemido sufocado e repleto de dor súbita era incrivelmente doce para o paladar dela. Os olhos escancarados, o medo por estar indefeso. Tudo era doce e justo. Sem aviso um raio atingiu o corpo daquela moça, transpassando-a, serpenteando entre os dois amantes. O trovão veio logo depois, como resultado do ar superaquecido, mas o som era pequeno, ao menos, se comparado com os tambores. A corrente elétrica ainda estalava no ar quando o homem caiu fulminado no chão. A mulher olhou para o corpo dele, para as queimaduras e ferimentos. Ele ainda respirava. Devagar e aflito. Ela abaixou-se e colocou uma das mãos sobre o peito dele. Encarava-o, esperando o coração parar de bater, inconscientemente, comparava aquelas batidas aos tambores na sua cabeça. Queria guardar o momento. Tum.... Tum... Tum... .... Tum... ... ... ... e depois o nada. Os tambores ainda estava lá, dentro da cabeça dela, entre seus pensamos. Já o coração dele não estava mais.

Ela se levantou, refez o caminho para dentro do prédio. Os trovões faziam o ar em toda cidade vibrar, vidros tremiam e concreto reverberava com os estrondos. Ainda assim, eram sons pequenos. Ao menos, se comparados aos tambores.

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