A Herdeira

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CAPÍTULO 1 1864 - 1865

A

forma como Martim Afonso Almeida entrou na vida de Maria Luísa Natalie Callaghan Queirós de Castilho foi um tanto quanto desesperadora. Ela havia sido designada para realizar os procedimentos para tratar as feridas causadas pela Guerra contra Aguirre, conflito entre o Brasil e Paraguai em 1864. O

exército brasileiro, em face da invasão do Uruguai no território gaúcho em que havia muitos criadores de gado, invadiu seu território em março de 1864 e conquistou várias regiões como Unión e Paysandú marchando para Montevidéu, capital do Uruguai. Martim retornou desse conflito com ferimentos profundos e febre alta, portanto ela precisou utilizar métodos sépticos no sentido de combater as infecções utilizando antissépticos e agentes tópicos em compressas e suturas que se revelaram eficazes no processo de cicatrização das feridas. Foram dias difíceis onde lutou à exaustão pela vida daquele soldado. Apesar de seus pais terem sido contra desde o início, Maria Luísa conseguiu concluir o curso de enfermagem na Corte, conseguindo convencê-los de que era o seu sonho cuidar de pessoas enfermas nos hospitais. Quando Martim apresentou melhora em seu quadro clínico, ela teve a chance de relatar tudo o que fizera para livrá-lo das garras da morte. ─ Infelizmente, o destino me pregou uma peça... Jamais havia permitido antes que me atingissem com precisão quase mortal no campo de batalha, enfermeira. Agora eu sei que as suas mãos foram habilmente guiadas por Deus durante a retirada do projétil em meu peito. – declarou num fio de voz ao mesmo tempo em que tomou a mão dela entre as suas, segurandoa com delicadeza no local onde sofrera o disparo pela arma de fogo. Aquele gesto a surpreendeu de imediato e apesar de ter afastado a sua mão, sentindo o rubor dominar a sua face e notou que o seu coração começava a bater em ritmo acelerado proporcionado pelo contato íntimo entre eles. Evitou seu olhar ao encarar as suas próprias mãos juntas com os dedos entrelaçados, mexendo os polegares distraidamente. ─ Não fiz mais do que a minha obrigação, Major. – murmurou constrangida.


─ Se eu puder recompensá-la de alguma forma... – disse num fio de voz, os olhos estavam semicerrados quase entregues ao sono depois de ela ter-lhe aplicado morfina por via intravenosa. ─ Já é o bastante para mim saber que está se recuperando rapidamente e que logo poderá voltar a desempenhar as suas funções no Exército, Major. Esteve entre a vida e a morte, mas Deus lhe proporcionou uma chance de continuar protegendo e defendendo os interesses do nosso país. Não existe recompensa melhor do que ver mais um coração batendo no peito com a certeza de que fiz bem o meu papel como enfermeira voluntária na Santa Casa. Agora, o senhor precisa descansar. Nos dias que se seguiram ao período em que serviu como voluntária, Maria Luísa não se ocupara somente em cuidar dos ferimentos físicos dos soldados, mas também se disponibilizara a conversar, aconselhar e a ouvir o desabafo daqueles homens marcados pelos traumas psicológicos adquiridos no campo de batalha, com o objetivo de lhes resgatar a autoestima e a vontade de viver, mesmo quando já não lhes restava mais nenhuma esperança. Através da convivência diária com o Major Martim Afonso Almeida, ela começou a se dar conta de que o que mais temia acabara de acontecer. Sequer cogitara a possibilidade de sentir na pele a dor e o desespero proporcionado pelos entes queridos que partiam para a guerra, por isso prometera a si mesma que jamais se tornaria uma mulher enlutada pela perda precoce do marido causada por uma guerra injusta e despropositada. Não queria chorar por incontáveis noites em um leito vazio e frio, com a aflição impulsionada pela falta de notícias, mas inevitavelmente precisava admitir para si mesma que teria que lidar com as consequências dos sentimentos que passara a nutrir pelo Major. Desde que Martim passou a cortejá-la, constatou de que seria capaz de fazer qualquer coisa para ficarem juntos, e isso significava desafiar as convenções de toda uma época, já que ambos precisaram se encontrar às escondidas por causa dos pais dela. Só não esperava ser a infeliz protagonista de um amor proibido num cenário conturbado pela Guerra do Paraguai.


No início do ano de 1865 estava estabelecida uma crise diplomática entre o Brasil e a Inglaterra no Império de Dom Pedro II. Tudo começou por causa de uma discussão três anos antes envolvendo três oficiais da Marinha inglesa e uma sentinela de um posto de polícia. Os dois foram presos por terem ofendido a sentinela totalmente à paisana e embriagados. O embaixador inglês William Christie exigiu desculpas oficiais e o pagamento da carga a D. Pedro II. No final do ano anterior, o Paraguai aprisionou um navio brasileiro e logo depois invadiu o Estado do Mato Grosso, com o intuito de reivindicar os mesmos direitos que os países vizinhos tinham quanto à navegação e ao comércio no rio da Prata – ponto estratégico disputado pelo Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai relativo à economia em torno da navegação nessa área. A guerra já fora declarada pelos paraguaios, mas o Império brasileiro ainda não havia se manifestado a respeito, o que poderia acontecer a qualquer momento. Maria Luísa, assim como todos, esperava ansiosa pelo desenrolar dos acontecimentos, e por isso foi procurar pelo Major Martim Afonso Almeida no quartel do Comando Militar. Ao chegar, um dos soldados permitiu que ela entrasse em seu gabinete, com a desculpa de que precisava informá-lo sobre o estado de saúde de dois soldados feridos que estava cuidando na Santa Casa. O Marquês de Resende era um dos provedores do hospital, que há muitos anos contribuía de forma atuante para a melhoria nas instalações. Quando o Major Almeida a viu, levantou-se rapidamente e correu para abraçá-la contente em voltar a vê-la. ─ Por que você se arriscou vindo aqui me ver, Maria Luísa? – indagou aturdido. ─ Eu estava com saudades... Não gostou da surpresa? – perguntou hesitante, mantendo as mãos apoiadas nos ombros do amado após abraçá-lo com força. ─ Essa surpresa foi maravilhosa, meu amor. Mas você se expôs demais ao vir até aqui. – declarou com cautela. ─ Eu sei que ninguém pode nos ver juntos em público, mas estou com um pressentimento muito ruim, Martim. O Paraguai já declarou guerra ao país e eu sei que o Imperador reunirá o maior número possível de combatentes para essa campanha. Acontece que, eu não quero vê-lo envolvido nesse possível confronto. – disse apreensiva.


Martim se afastou dela e voltou para a mesa onde reuniu alguns papéis sem conseguir encará-la, o que a fez estremecer de medo ao constatar que ela estava mesmo considerando a possibilidade de participar da guerra. ─ Então você está mesmo pensando em se envolver nesse confronto, estou certa? – perguntou hesitante. ─ Não conseguiria mentir para você, Maria Luísa. A situação entre os dois países é crítica, e o Império não vai ficar de braços cruzados enquanto os paraguaios invadem a província de Mato Grosso e do Rio Grande do Sul. As tropas já estão sendo mandadas para as áreas de conflito. Bem... eu provavelmente também serei escalado para fazer parte da tropa que partirá para o Sul do país no final do mês. Ela se aproximou dele com os olhos marejados e o fitou intensamente desejando que aquilo não passasse de um pesadelo. ─ Por quanto tempo acha que ficaremos longe um do outro? – indagou triste. ─ Não faço ideia, meu amor. Mas, uma coisa é certa: voltarei para o Brasil tão logo essa guerra acabe e assim ficaremos juntos para sempre. – disse com a esperança preenchendo o seu ser enquanto a abraçava bem forte. ─ Eu continuarei esperando, não importa quanto tempo leve até que eu possa tê-lo novamente ao meu lado, Martim. Talvez eu tenha que voltar para a fazenda, mas sempre vou procurar obter notícias suas. Enquanto isso, pretendo convencer os meus pais para que aceite a nossa relação e assim obter o consentimento deles a respeito do nosso enlace matrimonial – disse convicta. Ele ficou tão emocionado com as suas palavras que a beijou com ardor, pretendendo arrancar-lhe todos os receios que nutria em seu peito. Maria Luísa estava determinada a fazer tudo o que estivesse a seu alcance para cumprir a sua promessa, mas foi com o coração apertado que se despediu do seu amado e em seguida se retirou do gabinete a passos lentos. Maria Luísa receberia a visita dos seus pais no final de semana em sua imponente casa na Corte. O Marquês de Resende só deixava a sua fazenda em Vassouras quando tinha que tratar de assuntos urgentes no Ministério. Ele marcara uma reunião para o início da semana seguinte com o Imperador para oferecer seus préstimos que subsidiassem a batalha contra Solano Lopez, o ditador paraguaio. Outros fazendeiros importantes do Vale do Paraíba


também pretendiam colaborar financeiramente com o Governo Imperial, que tanto beneficiou a oligarquia cafeeira apesar da recente proibição ao tráfico de escravos na província. Quando finalmente o dia da reunião havia chegado, Maria Luísa e sua mãe, Lady Christine, estavam na sala de estar esperando pelo Marquês, que voltou do Palácio Imperial com o semblante abatido poucas horas depois. ─ Então, acredito que não trouxe boas notícias, não foi? – Lady Christine indagou vacilante. Ele colocou seu bastão de marfim e osso no local de sempre e se dirigiu a sua poltrona predileta, que fora produzida por um artesão português muito requisitado pelos nobres da época, e, então, fitou as duas pessoas mais importantes da sua vida com certo pesar no olhar. ─ A situação é crítica, pois os paraguaios estão abrindo várias frentes de guerra do Mato Grosso ao Rio Grande do Sul, mas até o momento a Argentina se mantém neutra perante o assunto, embora eu acredite que os paraguaios pretendem se aproveitar desta situação. Parece que as tropas daqui seguirão até as áreas de conflito, e esperamos que a situação se reverta a nosso favor – explicou seriamente para as duas mulheres que o escutavam atentamente. ─ Meu pai, o senhor já sabe quem serão os oficiais que farão parte da frente de batalha? – Maria Luísa perguntou sem conseguir esconder sua curiosidade. ─ A primeira esquadra será comandada por Barroso, mas haverá também outros oficiais importantes como o Almirante Tamandaré e o Major Almeida. ─ É sobre o Major Almeida que eu quero conversar com os senhores hoje. Ele vai me pedir em casamento assim que retornar da guerra, meu pai. – declarou com a postura altiva. Ela não tinha conseguido esperar mais para fazer aquela revelação, e desejava do fundo do seu coração que ambos aceitassem a união para o seu próprio bem. ─ Você não deve estar falando sério num momento como este Maria Luísa. Que história é essa de querer se casar com o major Almeida, eu posso saber? ─ Sim, eu estou falando sério, papai. Eu desejo muito que os senhores aceitem a nossa união...


─ Então, quer dizer que esse mancebo já estava cortejando você aqui na Corte sem o nosso consentimento, Maria Luísa? – ele interpelou-a interrompendo com bastante irritação. ─ De certo modo é a verdade, meu pai. Mas procure entender que nós nos amamos e pretendemos nos casar assim que essa guerra acabe... ─ Desista dessa ideia descabida, Maria Luísa Natalie Callaghan Queiroz de Castilho. Enquanto eu viver, você só se casará com quem eu e a sua mãe desejarmos. Nunca permitirei que minha única filha se junte a um militar abolicionista que ainda por cima não pertence a nossa classe social. Lady Christine se aproximou da filha, e em seguida pôs suas mãos nos ombros dela tentando confortá-la, apesar de fitá-la nos olhos sem deixar transparecer nenhuma emoção. ─ Entenda, querida eu e o seu pai estamos pensando no seu próprio bem, e, além disso, você já imaginou que ter um homem desses como seu esposo só faria o seu sofrimento aumentar a cada dia em que o esperasse retornar a sua casa vivo ou morto? – Lady Christine declarou sensatamente. Maria Luísa respirou profundamente e pediu licença com a intenção de se retirar para o seu quarto, pois queria ficar sozinha, totalmente entregue aos seus pensamentos. Ela estivera chorando muito por alguns minutos, mas uma ideia começava a povoar sua mente de forma persistente. Aquilo seria loucura realmente, mas ela não queria voltar para a fazenda e ficar longe das notícias sobre a guerra. Precisava ficar perto do Major, e sabia que o seu destino não seria igual ao da maioria das mulheres do seu tempo. Maria Luísa queria contribuir para a sociedade naquilo que sabia fazer de melhor: Cuidaria dos enfermos nas áreas de conflito junto aos demais médicos e enfermeiras da Santa Casa, que sairiam da Corte rumo ao Rio Grande do Sul. Seus pensamentos foram interrompidos por um barulho na porta de carvalho. Era a sua mãe que pedia sua permissão para entrar no quarto. Maria Luísa se levantou da cama hesitante para destrancar a porta e deixá-la entrar. Em seguida, se afastou da porta e se dirigiu com o semblante rígido até a janela sem dizer uma palavra. Lady Christine já conhecia aquele olhar, e se perguntava qual seria a nova ideia descabida que passava pela cabeça da sua filha daquela vez. ─ Natalie, vim aqui para avisar-lhe que amanhã bem cedo voltaremos para a fazenda. Queremos que você também volte conosco querida. – avisou hesitante.


─ Os senhores irão sozinhos desta vez. Eu pretendo ficar aqui na Corte e, como haverá uma guerra, eu seguirei com alguns colegas da Santa Casa para algum hospital de sangue no Rio Grande do Sul. – respondeu decidida a seguir o seu destino. Lady Christine ficara tão horrorizada com aquela revelação, que precisou se sentar numa cadeira próxima, temendo desmaiar sem forças com o que acabara de ouvir. ─ Em que século você acha que vive, eu posso saber? Este tipo de atitude é inconcebível na nossa sociedade e, além disso, o seu pai e eu jamais aprovaremos essa loucura. Então, trate logo de esquecer isso, está me ouvindo? ─ Os senhores não entendem que eu estou bem à frente do meu tempo, minha mãe. Eu te suplico que me ajude a seguir o meu destino e não conte ao Marquês os meus planos, por favor. Eu posso contar com a sua ajuda? – pediu, fitando a mãe profundamente com seus olhos azuis escuros. Lady Christine estava no auge de sua beleza, e ambas possuíam cabelos loiros bastante compridos, estatura alta que lhes garantia uma elegância incomum, mas com temperamentos bem diversos uma da outra. Maria Luísa era teimosa e impulsiva como o Marquês, enquanto que Lady Christine tinha o costume inglês de jamais exasperar-se, sempre adotando uma postura indiferente e fria diante das circunstâncias, exatamente como fizera ainda há pouco. Lady Christine sorriu demonstrando que aceitaria ajudá-la, e se dirigiu até a janela para abraçar sua única e adorada filha. Mesmo discordando das suas atitudes, Lady Christine nunca tivera coragem de contrariá-la em suas decisões. O Marquês de Resende, ao contrário, possuía um temperamento forte, e como era descendente de portugueses, defendia as tradições com unhas e dentes. Para ele, as ordens do chefe de família deveriam ser seguidas e respeitadas, mas sua única filha sempre fora voluntariosa demais para obedecê-lo. Acabava, por fim, cedendo muitas vezes aos caprichos dela, mais por intermédio de Lady Christine, que sabia persuadi-lo como ninguém. Minutos mais tarde, Maria Luísa estava novamente sozinha em seu quarto, e esperava que a mãe conseguisse esconder do seu pai a sua participação no que seria o maior conflito da história do país.


CAPÍTULO 2

1865

O

s primeiros cinco meses do ano foram de grande tensão na América do Sul, que enfrentava o cerco ostensivo das tropas paraguaias no Sul do país. Maria Luísa estava num hospital localizado numa cidade próxima da fronteira com a Argentina, e cuidava dos feridos que chegavam das áreas de conflito, que eram

muitos por sinal. Num certo momento, ela teve que verificar o estado de saúde de um soldado na outra ala do hospital, quando soube que Ana Néri também servia como voluntária no mesmo local. Ela ficara muito contente com a descoberta, e decidiu conversar com a primeira enfermeira voluntária do Império. No horário do almoço, uma colega de Maria Luísa a apresentou a Ana Néri, e então começaram o que seria uma grande amizade entre as duas enfermeiras. Maria Luísa havia contado que conseguira chegar até ali desafiando toda a sociedade aristocrática do Rio de Janeiro. Ana Néri dissera que também enfrentou os preconceitos na Bahia, onde muitos não viam sua participação na guerra com bons olhos. Mais tarde, ela recebera um convite de Ana Néri para acompanhá-la até o 10º Batalhão, que estava sob o comando do seu irmão, e Maria Luísa rapidamente aceitou fazer parte do grupo que estaria mais próximo das áreas de conflito. Ela recebeu uma carta de Martim, e a oportunidade de saber notícias sobre seu desempenho na guerra proporcionou-lhe um sentimento de alívio. Ela saiu do refeitório e seguiu em direção ao jardim para ler a carta que seu amado mandara. Através da carta, soube que a batalha naval do Riachuelo estava próxima, mas a sua tropa estava seguindo para Tuiuti, no Paraguai, com o objetivo de tomar o Forte do Curuzu sob a orientação do General Mitre. O rumo dos acontecimentos ainda era incerto, pois a guerra havia apenas começado e ninguém arriscaria um palpite sobre quem sairia vitorioso no final do conflito. Entretanto, o certo era que muitas vidas seriam ceifadas em nome do poder, o que certamente acarretaria em pesadas consequências para os países envolvidos no conflito. Martim escrevera também na carta uma poesia do poeta Gonçalves Dias, que falecera um ano antes a bordo de um navio que


naufragara no Maranhão, deixando lindos poemas que seriam lidos por várias gerações futuras no país. Ela estivera lendo o lindo poema chamado “Como eu te amo”, e se deteve no seguinte trecho:

“Como se ama o calor e a luz querida, A harmonia, o frescor, os sons, os céus, Silêncio, e cores, e perfume, e vida, Os pais e a pátria e a virtude e a Deus:

Assim eu te amo, assim; mais do que podem Dizer-to os lábios meus, — mais do que vale Cantar a voz do trovador cansada: O que é belo, o que é justo, santo e grande Amo em ti. — Por tudo quanto sofro, Por quanto já sofri, por quanto ainda Me resta de sofrer, por tudo eu te amo.”

Maria Luísa ficara bastante emocionada ao terminar de ler a carta, e logo as lágrimas quentes começaram a descer pela sua linda face, reflexo da imensa saudade que sentia dele e da distância provocada pela guerra que os separou de forma tão abrupta. Depois, guardou a carta na saia do vestido, e retornou à enfermaria para continuar cuidando dos feridos de batalha. Seu maior temor era que não conseguisse mais receber as cartas de Martim, que poderiam provar que ele ainda estava vivo, mesmo sabendo que ele poderia ser atingido pela arma do inimigo a qualquer momento. Apenas, ela desejava intensamente que ele voltasse são e salvo assim que decretassem o fim da guerra. Entretanto, tinha uma estranha sensação de que a Guerra do Paraguai ainda iria lhe trazer muito sofrimento e esse temor já começava a preencher o seu coração.


Os meses se passaram e várias coisas aconteceram desde então. Houve a rendição das tropas paraguaias em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, ao mesmo tempo em que o governo inglês apresentou desculpas formais ao Imperador, restabelecendo assim as relações diplomáticas entre os dois países. Martim continuava se correspondendo com ela mais frequentemente apesar das circunstâncias. Entretanto, no início do ano de 1866, o 10º Batalhão do irmão da enfermeira Ana Néri encontrou-se por acaso com o batalhão comandado por Martim, e assim os dois puderam finalmente se reencontrar após quase um ano separados pela guerra. A comoção fora tão grande entre eles, que ficaram por algum tempo abraçados numa barraca de lona, que havia sido montada pela tropa, quando repentinamente o semblante do Major se tornou duro e impassível. Ele decidiu virar as costas e se afastou-se dela no mesmo instante. ─ Você não deveria ter vindo até aqui, Maria Luísa. Você estará correndo perigo se continuar seguindo nessa missão com o irmão de Ana Néri. Eu acho que você deve voltar para o Rio de Janeiro e retomar a sua vida ao lado dos seus pais. O risco de morrer aqui é iminente, e a última coisa que eu quero é perdê-la por uma batalha vã. – disse cauteloso, preferindo manter-se de costas com medo de encará-la nos olhos. ─ Eu não pretendo voltar para casa enquanto esta guerra não terminar, Martim. Como enfermeira da Santa Casa, decidi me incorporar ao corpo de voluntários para tratar dos feridos. Portanto, por mais que desaprove a minha decisão, continuarei prestando os meus serviços pelo tempo que for necessário. – retrucou firme. Ele virou-se para fitá-la de um modo tão estranho, que Maria Luísa chegou a sentir um calafrio passar pelo seu corpo, ao pensar que ambos estavam tão próximos da morte como jamais havia imaginado antes. Se for a vontade de Deus, nós dois morreremos juntos - ela pensou sombria. ─ Amanhã, a minha tropa seguirá para Passo da Pátria e depois para Tuiuti, sob o comando do General Osório. E então, inevitavelmente teremos que nos separar... – declarou hesitante. ─ Eu ainda não sei quais serão os planos do irmão de Ana Néri, mas é provável que eu continue seguindo-o para alguma região conflituosa deste país... Não sabe o quanto me sinto infeliz ao vê-lo tão distante de mim quanto neste exato instante, e mais ainda por temer que não sobreviva a esta guerra, Martim – falou, por fim, com lágrimas nos olhos, sentindo um aperto no peito só em pensar naquela possibilidade.


Maria Luísa fez menção de dizer algo, mas deteve-se ao ver que um soldado havia acabado de entrar na barraca segurando uma carta nas mãos. Ele afirmou que a carta viera da Corte através de um mensageiro. Ela pegou rapidamente a carta, já imaginando que a sua mãe escrevera com o intuito de saber notícias a seu respeito enquanto estivesse nas áreas de conflito. Logo, constatou que teria que voltar para a fazenda dos pais, pois Lady Christine estava muito doente, resultante do temor de perder sua única filha na guerra, exigindo assim o seu retorno ao Rio de Janeiro o mais rápido possível. Ela precisava avisar aos outros sobre o seu retorno a Capital do Império, mas sequer imaginava que ninguém conseguiria dormir em paz, mesmo que por algumas horas. Tudo acontecera depressa demais, sem garantir a possibilidade de todos agirem para salvar suas próprias vidas, em meio à tragédia que dera início naquela noite de abril na Argentina. As tropas estavam dormindo em seus alojamentos e as sentinelas não viram os três homens disfarçados com lenços nos rostos, acendendo tochas para atear fogo no campo enquanto todos dormiam. Minutos antes, outro grupo sorrateiramente jogou um líquido inflamável na mata em torno do alojamento, para que o fogo se alastrasse mais rápido. No instante que os soldados brasileiros perceberam as chamas, pouco puderam fazer para contornar a situação. O pânico tomara conta do local, o que fez com que os soldados começassem a correr em desespero, a fim de alertar os demais sobre o incêndio. O major Martim estava bastante preocupado com Maria Luísa e os demais médicos e enfermeiros que estavam no alojamento, enquanto o fogo consumia o local de forma rápida e voraz. Ele precisava de ajudar para salvá-los, e por isso decidiu chamar um dos soldados que estava entre os sobreviventes para que pudesse ajudá-lo naquela árdua tarefa. Ao chegar em um dos alojamentos, percebeu que o fogo havia se espalhado e que alguns médicos e enfermeiras continuavam presos no local. Maria Luísa acordara no mesmo instante em que sentira o odor da fumaça tão próximo de si, e se disponibilizou a ajudar os seus colegas que estavam tentando retirar os feridos das macas antes que o fogo os alcançasse. Algumas enfermeiras entraram em pânico e corriam para a entrada do alojamento, chamando Maria Luísa para que as seguisse antes que fosse tarde demais. Naquele ínterim, o fogo atingiu a maior parte dos feridos que não podiam sair dos leitos, numa cena tão torturante que deixou-as ainda mais assustadas e paralisadas de pavor. Martim não demorou a conseguir uma brecha para entrar, afastando-se com cuidado das labaredas para em seguida se aproximar das enfermeiras que estavam acuadas pelas chamas mais à frente.


─ Onde está Maria Luísa? – ele perguntou em voz alta. Uma delas apontou para o local onde se achava Maria Luísa, que tentava salvar um soldado que não fora atingido pelo fogo. Ele tentou se aproximar mais, mas o esforço fora em vão e percebeu que precisava tirar as enfermeiras dali primeiro para só depois voltar e salvar Maria Luísa. Ele gritou, avisando-a de que retiraria as demais enfermeiras primeiro, aconselhando-a a manter a calma e procurar se manter afastada das chamas o máximo que pudesse. Maria Luísa havia concordado, mas ao vê-lo se afastar com as três enfermeiras, percebeu que ela mesma teria que procurar uma forma de sair com o soldado, por isso caminhou auxiliando o soldado ferido numa das passagens que havia descoberto e que não havia sido consumida pelo fogo. Martim conseguira chegar até o local seguro onde os sobreviventes estavam, e já pretendia voltar ao alojamento quando se deparou com Maria Luísa se aproximando devagar, conduzindo o ferido apoiado em seu ombro. Aquela cena o emocionara muito e soube naquele momento porque a amava tanto. Um dos médicos a ajudou a colocar o ferido numa maca improvisada no chão, dizendo que ela precisava descansar um pouco para recuperar as energias antes de retomar o seu trabalho. Maria Luísa resolveu se aproximar de Martim para abraçá-lo bem forte e depois deteve a sua atenção para a destruição provocada pelo incêndio perto dali, mantendo uma expressão sombria no rosto. Todos não tinham a menor dúvida de que aquilo fora fruto de um ato covarde dos paraguaios para eliminar as tropas aliadas, e os oficiais do comando do Exército decidiram procurar um local seguro em que todos pudesse passar o resto da noite. Mais tarde, Maria Luísa cuidou dos soldados que sofreram queimaduras diversas no alojamento provisório, e ninguém ainda parecia acreditar que por muito pouco todos estariam mortos se não fosse a rápida ação dos soldados que estavam em vigília naquela noite. Quando amanheceu, Maria Luísa estava preparando o seu retorno ao Brasil e se deu conta de que mais uma vez se afastaria de Martim como tanto havia temido. Entretanto, sabia que a sua mãe precisava dela mais do que nunca e como a amava demais, queria evitar que ela sofresse outra vez com a sua ausência. A despedida entre eles foi inevitável, mas antes mesmo que pudesse entrar na carroça coberta onde havia um condutor aguardando instruções, Maria Luísa correu para abraçá-lo com o rosto convulsionado pelas lágrimas.


─ Martim, precisamos prometer um ao outro que jamais permitiremos que algo ou alguém nos separe, não importa quanto tempo leve até essa guerra terminar. ─ Estou disposto a tudo para assegurar a nossa felicidade, Maria Luísa. O amor que sinto por você será capaz de manter o meu coração batendo no peito durante o embate contra o inimigo, pois sei que o destino se encarregará de nos unir mais uma vez. É só uma questão de tempo. – falou com as feições dominadas pelo anseio quando segurou o seu queixo com uma das mãos. Maria Luísa olhou dentro dos olhos do amado e, em um murmúrio, confessou: ─ A motivação principal para servir como enfermeira voluntária pode ter sido egoísta de certa forma, mas o medo de te perder estava me consumindo a cada dia, Martim. O meu maior receio é de que você não consiga sobreviver ao conflito... Eu serei capaz de atentar contra a minha própria vida se acaso isso acontecer. ─ Não se preocupe, meu amor. Prometa-me que independentemente de qualquer coisa, continuará aguardando o meu retorno tão logo a guerra acabe no Paraguai. ─ Não suportaria vê-lo no mesmo estado em que o encontrei quando nos conhecemos na Santa Casa, pois não estarei mais por perto para cuidar de você. Mas, pretendo cumprir a promessa de esperar o seu retorno para que possamos logo nos casar e constituir uma família como sempre desejamos. – falou com o semblante triste, em seguida, segurou o rosto dele entre as mãos e o beijou com intensidade. Maria Luísa pressentiu que algo muito ruim iria acontecer, que poderia colocar em risco a união entre eles, e sentiu um grande aperto no peito só em imaginar aquela possibilidade nefasta.



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