Richard mathenhauer

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Richard Mathenhauer

Narciso Fico parado em frente ao espelho Procurando traços, risos, graças. E o espelho é quebrado. Meu rosto nele é mais pálido, Meus cabelos são mais negros, Meus olhos, graciosos e claros, Se assim os quero. E o espelho é quebrado. Todo o corpo compleiçoado, Viro o reflexo E a imagem faz-se mais tênue. E o espelho é quebrado. Exausto de ser Narciso Carrego meu lago nos braços E eis na trinca meu rosto: Sou Eu verdadeiramente No espelho quebrado. Cai então uma lágrima gelada Desfazendo toda a imagem E dela nasce uma flor entrecortada De Ilusão e Realidade. E escondo o espelho quebrado. Fico Eu, Narciso, Na trinca refletido, calado.


Richard Mathenhauer

A Morte não vos roubou a Cidadania Já não me benzo à entrada do Cemitério como quando em pequeno ia com minha avó, mãos dadas, ela explicando as diferenças dos túmulos de ricos e de pobres, como se fosse uma cidade dividida igualmente pela posição social, e mostrando quem era este e quem era aquele, talvez para apagar possíveis medos, talvez por, numa sabedoria ignorada, ensinar, como Sócrates, que devemos em vida nos exercitar para a morte. E embora já não visite o cemitério da minha cidade pelos mesmos motivos da infância, gosto de deambular pelas ruas e entre os túmulos, vendo as lápides, olhando os velhos monumentos erguidos a uma saudade e a uma dor, aqui a um filho, ali a um marido, acolá a uma esposa; e, já na idade em que acumulo em mim os meus mortos, ir debruçar-me sobre o túmulo daqueles que fui perdendo ao longo do tempo. Assim como não me benzo à entrada do Cemitério, também não rezo ao lado de onde repousam os que um dia riram e choraram comigo e por mim: quedado ali, rememoro sempre passagens, às vezes, à guisa de uma conversa, monologo alguns eventos que me aborrecem, que me alegram. Porque, com os mortos, nós temos essa intimidade sem reservas que a morte favorece. E nestas visitas à cidade dos mortos, pude notar, não de hoje, que ali também se operam mudanças como nas cidades dos vivos, uma delas, a título de exemplo, o fenômeno da superlotação. Tal acontece que fiquei, na última visita, alguns bons minutos refletindo sentado, com a licença do morador ao lado de onde repousam os que foram meus avós e dois tios: ao continuar a forma desorganizada, com jazigos em calçadas, túmulos se espremendo, logo não se há de poder introduzir caixão nas carneiras! É como nos bairros que se condensam, vizinho dando porta com vizinho. Depois de simbolicamente me despedir dos que cumpriram o preceito bíblico de voltarem ao pó, fui caminhando pela rua de pedras portuguesas até que, indignado, vi mais um descuido naquela cidade onde não há governo nem eleitores: uns dois a três metros de muro caídos, expondo os dois mundos. Certo é que os de cá, onde estava eu constatando e refletindo nestas coisas, não haverão de aproveitar a passagem aberta e ir perambular pelo mundo de lá. Todavia, os vivos, alguns vivos demais, bem podem encontrar no caminho aberto e mantido pelo descuido de quem, por incumbência deve administrar


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não somente para os mortos, mas especialmente para os vivos (que continuam a pagar tributos) e irem fazer visitas indesejáveis a alguns túmulos, como infelizmente é constatável nos vasos de bronze, estátuas de santos, nomes de finados, tampas de carneiras furtados. Ah, que não se poupam nem os mortos! Coisa triste foi o dia em que constatei que arrancaram parte do nome de uma tia e a moldura de sua fotografia, que desde criança, quando ia com minha avó, tinha o hábito respeitoso de beijar. Pensei, ato contínuo, na passagem de “Incidente em Antares” em que o autor põe na boca de um defunto que em vida fora versado em lei, que a morte não havia roubado a cidadania dos mortos! Sim, é verdade. Pode não haver governo nem eleitores, mas a cidadania não se restringe ao voto. Falta àqueles moradores que descansam (alguns tendo o embaraço de terem de dividir o cômodo com outros, conforme a família se vai mudando de endereço) um tasco de cidadania que lhes garanta a incolumidade da morada, a segurança de um muro, uma placa que lhes identifique, um vaso onde receber flores, um crucifixo que lhes preserve a fé, uma moldura de bronze onde se estampe um retrato que se possa oscular. E não bastasse isso, que dizer das violações, por vandalismo ou comércio quem há de saber? -, que fere não apenas a dignidade restante a um defunto, mas a própria lei penal (Artigos 210 a 212)? Houvesse um pouco de ficção na realidade, quem sabe um que fora em vida Homo forensis saísse do seu jazigo a berrar o crime, insuflando seus concidadãos irmanados no estado perenal a rebelarem-se e a cobrar reparação, senão, pelo menos, um cuidado maior àqueles que por si não podem mais se defender! Existe lá o administrador vivo, mas achei por bem não ir advogar menos ainda tomar satisfações, deixando, quem sabe, que algum morto, igualmente indignado com tanto descaso, resolva ir ele próprio prestar queixa. Não que eu acredite em espiritualismos, mas, não duvido de nada na vida, e, como pensei já à saída do Cemitério onde um cão avançou na minha direção, imitação triste de um Cérbero, seria muito bem-feito um susto desses dado por um morto a um vivo (posto que os vivos, mortos estão) que tem o dever de zelar por aquele território sagrado onde há pais, mães, filhos, avós, primos, irmãos, amigos cuja reverência - dos vivos eleitores – indigna-se com tais constatações.


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“Pacta sunt servanta”

Desejando com intensidade d’Alma Lembrou-se de um livro alemão E não hesitando, logo conjurou Quem com quem pudesse negociar. Superados os trâmites legais, Deu fecho pondo com sangue o nome Onde cabia assinar, Recebendo, imediatamente, o que mais desejou. E uma vez no desfrute do bem alcançado Pelos eflúvios do prazer emanados, Caiu no olvido o tratado firmado. Assim, quando o credor Dies ad quem cobrou o que lhe Era de direito cobrar, Quis o devedor do dever esquivar-se. Porém, o Diabo, como bom conhecedor da Lei, Lembrou-lhe que “o contrato é feito para ser cumprido”, E que podia chorar, reclamar, protestar, apelar: “jus sperniandi”, explicou. E assim, observado o contrato com sangue lavado, Para o Inferno o que era seu foi levado.


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"Maximin"

A Maximilian Kronberger Wir werden heute nicht zum garten gehen* - Stefan George -

Tudo se vai, é lei Universal Que a todos põe em igualdade - Indiferente ao que sentem. Era, todavia, tão jovem, Tão Belo! À sua frente a estrada era longa E os campos, promissores. Era a água que dos alpes descia Matando a sede de vida do poeta. Mas Você foi-se como raio fulminante. O velho ficou com o Livro de Versos aberto sobre os joelhos, imóvel, Olhando algum ponto da memória, Sentindo, quiçá, Que a Vida ensaiava Cerrar as cortinas agora que O último ato chegara ao fim.


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Você foi-se tão cedo! Máximo de promessas! Imagem do Ideal! Logo o livro seria fechado E seu nome uma constelação No céu escuro de uma alma. O poeta iria ao seu encontro, Àquele lugar que os mortais desconhecem Mas em que o Coração se aquieta Quando no Ser um dia perdido se vê reencontrado.

*Hoje nós não iremos ao jardim


Richard Mathenhauer

Natal

Na manjedoura natalina Coloridamente exposta na vitrine, Repousa a imagem Do Menino-Jesus. Pobrezinho nasceu no Shopping-Center. As crianças e o que lhes restou ingênuo Ainda crêem no presépio. Há os velhos, o avesso da criança, Que se benzem E crêem que ali está o próprio deus (em gesso e fitas). A grande árvore capitalina Acende e apaga suas luzes Enquanto Noel hou-hou-houa a ilusão De que se pode tudo ganhar. Basta desejar. Na manjedoura do vitrine Nas casas cristãs Papai Noel é aguardado Com seu saco carregado Do que se vê na televisão.


Richard Mathenhauer

Mas o Coração, que vai dentro Da criança, do velho, de todos mais, Continua vazio, porque o Menino Jesus - não da vitrine Não foi convidado a entrar.


Richard Mathenhauer

Numa mesa qualquer

Ei, rapaz, Traga-me um copo, um copo não, Uma taça até à boca de cicuta E venha sentar-se comigo Fazendo as vezes de Fédon e de Todos companheiros que não tenho. Não há nada de grande para dizer-lhe, Mas certamente não é tão pequeno Que não mereça ser ouvido. Se quiser, pago. Pois é bem verdade que Com dinheiro tem-se tudo, E quero então um par de ouvidos, Um par de olhos. Uma boca. Mas não tenho tempo agora, Agora é tempo de beber e ir morrendo sem a resignação grega. Não me pergunte nada. Já tenho o discurso ensaiado E nunca fui bom em improvisos. Até este meu jeito de sentar-me E de sorrir como canto da boca


Richard Mathenhauer

Ensaiei para você, sem mesmo saber que era para você, Poderia ser para qualquer um... haec est veritas! Porque logo em seguida retirarão o copo ou a taça da mesa, E limparão a mesa para um outro Vivente qualquer. Saúde!


Richard Mathenhauer

A dura arte

Ensina-me, Elizabeth, A arte de perder! Que não sei perder, Não quero perder Sobretudo perder Aqueles olhos, A larga muralha Daquele sorriso Que nunca alcancei! Ensina-me, Elizabeth, Sê minha amiga, Minha maga, mestra Da superação Das dores - desta dor excruciante Inexorável De perder!


Richard Mathenhauer

Desespero

Vou-me embora De mim mesmo! Vou-me embora!, Pensa sempre meu Coração. Não sabe ele que dele próprio não há fuga. É por isso que hoje O céu cinzento e cujo ventre cheio de chuva Deixa a tristeza mais próxima do toque, Que ele, meu Coração, Fica assim mais inquieto, E diz a toda hora, Vou-me embora! Vou-me embora!

Olho, apiedado, e angustiado, Que nada posso fazer Pois quanto mais ele quer ir-se embora Desejo Eu ir também.


Richard Mathenhauer

Um Sonho a Dali

Senti os braços laços Estendidos para fora da cama E dos cobertores. Eu sabia que se esticasse um deles Tocaria a cortina e sua textura me faria despertar. Não tinha ânimo de acender o interruptor Pois o acender seria voltar ao Mundo de Formas Conhecidas, Ao meu quarto com seu guarda-roupa, Ao copo d'água sempre aos pés da cama, aos montes de livros empoeirados.

Eu poderia, como estava, Fazer um poema sobre o sonho em que a Mulher Parada no semáforo, usando grandes óculos anos 60, Cabelos black-power e roupa de retalhos de jornal - de boas e más notícias. Eu poderia escrever uma poesia Sobre o Homem que levava sorridente Um galho de orquídea de espécie rara (talvez?) à Mulher vestida de jornal e parada no semáforo.


Richard Mathenhauer

Porém, ali tudo era calmo demais, O torpor do corpo, o calor das cobertas, A CERTEZA da paz fora da Realidade. Uma voz me disse: "Isso, você conseguiu!" Meus lábios estavam secos, Sentia-os quebradiços como cristais e a boca árida. Pensei no copo d'água ao pé da cama. - Era preciso acender a lâmpada! Num salto, pus os pés no chão frio E ali estava todo o Mundo, o guarda-roupa, O copo, os livros, as roupas...

Estava Eu. Não vestido de jornal nem com orquídeas na mão.

Apenas Eu.


Richard Mathenhauer

Cantiga do Muro

No meio do Caminho havia o Muro Havia o Muro no meio do Caminho

Do lado de cá, a mãe, Do lado de lá, o filho.

Chora, Alemanha, chora Deutschland A dor da cicatriz igminiosa do teu ventre branco.

Irmão contra irmão é o Soldado Fardado e Farpado Que atira no que quer passar

Mas não se pode passar: Uns para lá, outros para cá!

No meio do Caminho havia o Muro Havia o Muro no meio do Caminho

Os olhos espiam de janelas e prédios sombrios Ouvidos se colam na frieza do concreto e dos papéis de parede


Richard Mathenhauer

Há o arame, há o fuzil. Quem estava, para sempre está separado.

Pobre Alemanha! Cingida está.

Há um Muro em Berlin como lagarta Correndo e comendo irmãos e irmãs desta terra

Uns para lá, outros para cá. Que se arrisca a passar?


Richard Mathenhauer

Post-mortem

Não tenho nenhum castelo inglês Nem bávaro nem escocês Para assombrar, Quando, enfim, Morrer. Por isso não quero viver depois de morto. A Morte (ou diria Vida?) seria enfadonha, Eu, sem utilidade nenhuma, E qual é a utilidade mais desejável A um morto, Senão assombrar, E condignamente?


Richard Mathenhauer

Silencioso desespero

Eu me afogo Como se me afogasse Num lago calmo Circundado de altas e verdes árvores E com algumas Flores à borda d'água...

Eu me afogo Silenciosamente Sem cantar como Ophélia Sem gritar como as vítimas Dos grandes e pequenos Naufrágios.


Richard Mathenhauer

À beira do leito

Chorava o menino mais triste do mundo. Segurava a mão envelhecida e que, embora quieta, despedia-se da vida. Sentia-lhe a fronte queimar, a respiração ofegante gritar-lhe todas as palavras, mas nenhuma era ouvida daquela boca, da mesma boca que não mais lhe beijaria o rosto nem lhe chamaria pelos nomes que o amor costuma chamar. Chorava o menino mais triste do mundo à beira daquele leito. Era como se lhe rasgassem o coração, como se somente os dois, o que chorava e a que partia existissem no mundo. E de fato, um era único para o outro naquele momento. Quando se inclinou para beijar-lhe a testa queimou os lábios; e aquilo doeria para todo o sempre na lembrança daquele setembro. Beijou-a, e sabia beijá-la pela última vez. Então, soltou-lhe a mão, envelhecida, e saiu. O menino mais triste do mundo havia morrido ali.


Richard Mathenhauer

Devoção

Sou o teu mais fiel devoto: Eu me encosto em tuas largas costas, Muro das minhas lamentações, Beijo o teu ombro moreno, Santíssimo da minha fé. Aspiro o cheiro do teu corpo inteiro, Como incensos do templo. Eu provo suave o sal do teu suor Como se fosse o sal do que sou! Bebo em tua boca o vinho que são teus beijos E o teu corpo, é meu pão. Em teus olhos leio o evangelho Que me promete o paraíso ou a danação. Sou o teu mais fiel devoto: Para o teu gozo divino, estendo-me na mesa do Sacrifício E deixo-me entregue aos teus desígnios.


Richard Mathenhauer

Numa tarde chuvosa

Chove...Chove...Chove... Há tanta água caindo lá fora E há tanta água em mim! E Eu não chovo. Eu acumulo. Eu me inundo. E me afogo.


Richard Mathenhauer

Prismas

Do lado de cá Posso ver melhor a rua. Vejo os seres que vão e que vem, Ouço seus ruídos desagradáveis, Outros doces - poucos, E pondero com mais tranquilidade Sobre suas esperanças, Seus amores, preocupações; Sobre seu fim que galopa rapidamente. Do lado e cá Eu sou como o mais sábio, Como um rei melancólico Que medita com os olhos Pousados sobre seu povo: E o povo, tão povo e tão junto, Fazendo-me de deus ou de diabo, Pergunta-se como posso viver do lado de cá, Sozinho.


Richard Mathenhauer

Interrupção

Da criança solitária que foi Fez-se adolescente, E do adolescente solitário que foi Fez-se adulto. Hoje, aos 30 anos, Quer abortar o velho solitário Que se vai gestando dentro dele.


Richard Mathenhauer

Crônica

Há dias em que é preferível o prejuízo de uma falta ao trabalho à aventura de sair da cama. Há dias em que não se deve pôr os pés no chão! Porque há dias em que, inexplicavelmente, todas as coisas e seres circunstantes conspiram em nos testar. A paciência (se houver) é curta, não há mansidão possível, as filas são longas, chove, o caixa-eletrônico não funciona, a telefonista da empresa dorme sobre os telefones enquanto a nossa mão adormece segurando o gancho do aparelho, as pessoas falam alto demais, reclamam demais por as mesmas questões reclamadas ontem e anteontem e desde o princípio dos tempos, o cãozinho preto há três dias perambulando na rua não sai da frente do automóvel (buzinar coloca-o em estado de choque), o trânsito é lento, é lento o semáforo, o ponteiro do relógio... longe fica o Reino dos Céus em dias assim!


Richard Mathenhauer

Despedida

Aos poucos a paisagem foi morrendo; Dali, apenas o contorno de prédios, Casas, telhados, árvores... O céu transpirava paz, como deve ser de paz O último momento. Carros cruzavam as avenidas Mas eles eram apenas luzes móveis; Eu olhava o horizonte urbano. Dava-me uma tristeza ir-me embora, Tristeza maior de sabê-lo ali, sem o ver, Menos ainda, sem o ter, E o Amor poderia ser como aquela paisagem, Como aquele céu que anoitecia, Até como aqueles carros que se iam. Mas não era.


Richard Mathenhauer

O Filho de Maria

Ave Maria, Mãe de Jesus! Aos pés da cruz e Diante da frieza da lei e dos homens, Despejaste lágrimas impotentes. Teu filho na ignomiosa condição morreu De Salvador e Reis dos Judeus. Na fronte, a coroa do insulto, E nos pulsos, os cravos profundos Sustentando a dor do mundo Naquele corpo humano, Frágil e mortal. Teu filho tombou a cabeça, Maria, Quando tudo se consumou. A terra não tremeu, O céu não estremeceu. Uns se foram embora saciados Do cruento espetáculo; Outros, contigo permaneceram


Richard Mathenhauer

Chorando e consolando. Na cruz romana N達o morria, para ti, Maria, O Filho de Deus. N達o morria o Cordeiro do Senhor. Morria o fruto do teu ventre, Morria o teu filho, oh, Maria!


Richard Mathenhauer

Pedro

Canta o galo profético Lá longe, no horizonte desconhecido, E logo outro responde Noutro ponto do deserto urbano. Pedro, que desde os primitivos tempos Treme ao canto da ave Levanta-se da cama humilde, Arrasta os chinelos - se os tiver para arrastar E vai à cozinha onde Uma mulher, a sua mulher, nova de Rosto velho de sol a sol, Põe o café na caneca fumegante. O galo canta outra vez E Pedro sente sem saber que sente Uma tristeza dentroprofundo: A obrigação desde que o mundo é mundo De ter noites curtas e dias longos E arrancar com o suor o pão da terra. Veste Pedro a roupa surrada diária Numa mão o facão e noutra a marmita Passa os olhos pétreos sobre os seis filhos mirrados,


Richard Mathenhauer

Não beija a jovemvelhamulher, Mas murmura um “até mais” por entre restantes dentes (o amor não medra sempre). E fica o homem de pedra sentado No fio da calçada do bairro periférico Que pode ser o de qualquer bairro periférico, Enquanto aguarda o condutor Que leva Josés, Antonios, Marias, Franciscos ao destino comum da lavoura. Pedro ouve os últimos cantos do galo profético, Treme um pouco de frio, um pouco de desgosto. Sozinho. Olhando o céu, como se lhe perguntasse porquês, Sente-se traído pela vida.


Richard Mathenhauer

Lição simples

Olho pela janela a Vida lá no quintal, Como ela passa indiferente a tudo o que Vai aqui dentro! Vejo a borboleta assentada sobre o mato Insignificante (mas para a borboleta, tão importante!) Vejo os pardais, as rolinhas, as pombas, Os sabiás e tantas outras aves Cujos nomes não sei dizer E que nem por isso deixam de existir: Excursionam, atropelam-se por entre as ervas Daninhas E laranjeiras e bananeiras e pés de nada... E há tanta coisa que não sei! Todavia a vida segue, ainda que Não saiba nomear tudo o que vejo, E não obstante a minha ignorância, existem, Como existo, Ignorante do Mundo e de mim mesmo.


Richard Mathenhauer

Como peça de tabuleiro

A vida roubou-me. Deu-me a Alegria e depois a tomou de mim, Sem dizer nada, sem perguntar se Eu seria Capaz de ser, sem ser mais alegre. Ela sabia que não morreria; Mas quantas outras mortes experimentamos! E como dói essa de ter Levada minha Alegria de Olhos Tristes! Levada, mudada como peça de tabuleiro, Porque o jogo não permite peças juntas, Apenas separadas fazem sentido, para derrota ou Vitória. Sim! Quero gritar que estou roubado! Que estou menor! Não aceito a condição de peça manipulada Como se não houvesse em mim - vida. Quero chorar! Quero chorar! Quero gritar! E chorando, sou posto em nova quadra Para vitória ou derrota, afinal

(A um antigo amor que cruzou o mar português)


Richard Mathenhauer

A casa em que assisto

Sou sozinho nesta casa. Entenda-me bem: A casa em que assisto É o meu próprio corpo, Minha única choupana, Minha única fortaleza. E como um exilado Ando taciturno por dentro desta casa Ouvindo meu próprio caminhar, Buscando amigos com quem falar.


Richard Mathenhauer

Ipê-rosa

Dona Iolanda não viu o ipê-rosa neste ano. Ele, indiferente, mas de uma indiferença diferente ao do homem, Abriu-se todo num espetáculo indizível Próprio para ser admirado: “É preciso continuar...” Alto, Imponente, Sobressaindo das árvores menores e sem cores, Despertando imagens japonesas - talvez de gigantes cerejeiras – Uma pincelada caprichada de um pintor desconhecido Que quis brincar com a monocromática avenida, Com a formalidade do asfalto, com a sarjeta escura... Mas Dona Iolanda não viu o ipê-rosa neste ano, A calçada enfeitada tantas vezes de flores para pés apressados, Trabalho para os insensibilizados, Lago rosa para olhos de passado; Dona Iolanda não recolherá as flores caídas Para ter outras no dia seguinte. O ipê-rosa floresceu Lindo de doer alguma coisa no fundo do fundo do fundo...


Richard Mathenhauer

De despertar saudade! Mas Dona Iolanda nĂŁo viu as flores Do ipĂŞ-rosa neste ano.


Richard Mathenhauer

À deriva

Baixei as velas. Em verdade as rasguei e fiz delas Casacos para o frio. Cortei as cordas da âncora E quebrei o leme. Fiquei assim à deriva. Passo noites no convés solitário Da minha maturidade Olhando estrelas, lendo o céu. Durante o dia, recolho-me Aos porões – sim, aos porões! – E... choro. Vou navegando sem destino, Quem sabe um recife, Uma rocha qualquer ou uma procela encontre-me, E uma vez encontrado, Coloque fim nessa viagem.


Richard Mathenhauer

“Setembro” (À Minha avó)

Todos os dias são Setembro. Pela casa a ausência de alguém Que parece estar noutro cômodo, sempre; Quando alcançado, Revela-se vazio. Porque está de fato vazio Como todos os demais cômodos são vazios Desde Setembro.

Dentro do peito A sua presença fez-se em Saudade Que se assemelha, tão grande e intensa, A um bloco de mármore italiano, Da Itália distante de seus pais, Bloco que a memória trabalha Para dar as formas do seu rosto E os contornos frágeis do seu corpo, Retocados todo dia Para que o tempo não os desgaste


Richard Mathenhauer

Feito as velhas estátuas dos velhos jardins...

Às vezes a presença de dentro salta Para a ausência de fora. Outras, a ausência de fora Entristece a presença de dentro: Todos os dias são Setembro – aquele Setembro.

Enquanto os cômodos permanecem vazios, A memória não descansa o cinzel.


Richard Mathenhauer

No Quarto dia

Silêncio. Pleno. Lá fora chora o Céu Talvez relembrando de tua boca, de teus olhos; Aqui dentro um vazio Que me insula em mim mesmo E que me faz reviver O tempo em que estavas ao meu lado. Hoje estás por aí perdendo-te no vinho da vida, Absinto de mil suposições. E o silêncio que persiste, E o vazio que a tudo consome: Ampulheta que traga as horas, Os dias e a existência.


Richard Mathenhauer

A diferença

Manhã azul. E se não existisses Seria como tantas outras, Apenas azul, nada mais.

Logo cedo faz calor, E só calor faria Se acaso não existisses.

Pássaros cantam a sua canção Ancestral e da infância, E cantariam simplesmente Se não existisses.

E existes! A manhã não é só azul, Não faz apenas calor, Nem só cantam (simplesmente) os pássaros.

Há algo de novo e eterno Em cada coisa que foge.


Richard Mathenhauer

Richard Mathenhauer, poeta, escritor, nascido em Piracicaba, mas desde criança residente em Rio das Pedras. Graças ao incentivo de uma tia (Sônia) e de professores primários da escola Barão de Serra Negra, onde estudou até a quarta série, tomou gosto pela leitura e fez dos livros seus grandes companheiros (com predileção por Machado de Assis, Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Shakespeare). Hoje, além de um leitor é também um bibliófilo, adorador do objeto “livro”. Passou a escrever ainda criança, mas só considerou versos e prosas o que veio na adolescência. Em 2009 lançou o livro “Caderno de Tempos”, com tiragem limitada, um capricho de ter reunidas algumas de suas poesias em prosa. Em Rio das Pedras, sob incentivo e inspirado no Sarau Literário Piracicabano, de Ana Marly Jacobino, foi idealizador do Sarau Companheiro de Prosas e Versos. Um “ajuntador” de palavras, no fim das contas.


Richard Mathenhauer

Direitos reservados MATHENHAUER, Richard Poesias, crônicas Ano 2014 Foto que ilustra a coletânea do Autor

Coletânea dos Poemas e Crônicas publicados no Blog do CLIP entre os anos de 2009 até 2012


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