Revista Lupa #3

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22 SUA CASA CAIU! CARTÃO VERMELHO PARA VARELA E ZÉ BIM 12 VOCÊ JÁ PENSOU EM MUDAR DE CURSO UNIVERSITÁRIO? 05 HISTÓRIAS DA IMIGRAÇÃO JAPONESA E CHINESA NA BAHIA

REVISTA DA FACOM-UFBA. ANO II, N. 3. SALVADOR, INVERNO BAIANO 2007


Grafite de Izolag na parede da Faculdade de Comunicação da UFBA, durante o lançamento da revista Lupa 2.

Aqui tem tintas da Superloja JB.

Rua Helio Machado, 16, Boca do Rio. Tel.: (71) 3371-4224 Rua Dom Eugênio Sales, 50 Boca do Rio. Tel.: (71) 3231-3615 Salvador-Bahia


26 Lugar de Arte é na rua 28 À flor da pele

12 Estudantes mudam de curso 14 Como as escolas de Salvador tratam da homossexualidade

PASSEPARTOUT

30 Bactérias, vírus e outras pestes 32 O Quarto

35 Ilustrador Daniel Bueno

CUBO MÁGICO

MEIO E MENSAGEM

17 Artigo: Sistema Público de Radiofusão 20 Poucas revistas na Bahia 22 Telejornalismo popular, o Pátio dos Milagres

ILUSTRADO

05 Orientais na Bahia 08 Roger’n Roll, entrevista

PROVA DOS NOVE

CIRCO URBANO

04 Lupa sob a lupa Expediente

SUMÁRIO

EDITORIAL

IMPRESSÕES

18 Entre o céu e o abismo, um ensaio visual.

CARTA DO LEITOR

FALECOM

lupa.revista@gmail.com

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Lupa responde: A questão colocada pelo leitor é pertinente, mesmo não havendo sido intenção da repórter ofender nem ser preconceituosa. Na matéria, a prostituição (profissão legalizada) é tratada como “problema”, tal como os turistas estrangeiros que usam seus serviços. Ainda misturam-se, no mesmo parágrafo, prostitutas e exploradores de crianças, estes últimos, sim, delinqüentes. O que a repórter quis salientar é o comércio sexual entre nativas e estrangeiros, o mais facilmente identificável na praia do Porto da Barra.

Erramos! Na reportagem da Lupa n. 2, “A UFBA quer acabar com o vestibular?”, o nome correto do conselheiro do Ministério da Educação e diretor do curso Módulo chama-se Jayme Barros. E a psicóloga citada é Elisabeth Fagundes.

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_ Recebemos saudações da Associação Viva a Vida e da banda “Solange, tô aberta!”. _ O leitor David Lopes nos diz: “Ao ler a vossa revista reparei que uma das vossas finalidades é lutar contra a discriminação, preconceito e estereótipos, o que é de louvar. Acontece que ao ler o texto da página 8 - “Porto da Barra: e na praia é que se vê areia melhor pra deitar...” - fiquei desconfortável porquanto, como europeu, pareceu-me existir um certo preconceito sobre os mesmos . Mistura, num mesmo parágrafo, tráfico de drogas e exploração sexual de crianças e adolescentes com a afirmação de que os europeus são os principais envolvidos no comércio sexual de mulheres. Esta afirmação, só por si, seria considerada, no mínimo, discriminatória e preconceituosa em qualquer país europeu, originando protestos de organizações que combatem este tipo de problemas . São perigosas tais afirmações porquanto, como é lógico, podem criar atitudes xenófobas na população criando, assim, um mal estar nas pessoas desses países que visitam o Brasil”.


EDITORIAL

Lupa é uma publicação da Faculdade de Comunicação (Facom) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Turma da Disciplina Temas Especiais em Jornalismo Impresso 2007.1, do curso de Jornalismo. Ano II, Número 3. Salvador, inverno baiano de 2007. Distribuição Gratuita.

EXPEDIENTE

Publicar é preciso!

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onvicção de quem ensina e aprende jornalismo. Por isso, chega a terceira edição da Lupa, produzida pelos estudantes da Facom-UFBA. Neste número, chineses e japoneses nos contam o que os trouxe de terras tão longínquas. Todavia, nos deparamos com o inesperado, um baiano cônsul do Japão. _ Preocupados com a pouca concorrência, investigamos por que as revistas regionais não vingam (e trabalhamos para que nada de ruim nos aconteça e podermos chegar com muito fôlego à quarta edição). _ Assistimos os telejornais locais e, entre risos e choros, acompanhamos a rotina popularesca de seus principais figurões. Confira o que eles dizem daquilo que eles fazem. _ Sabe o que é uma borracharia? Não se engane, detrás dos pneus acontecem coisas dionisíacas, festa e dança. Uma entrevista com Roger´n roll, comandante das noites de sexta-feira. _ Ainda nesta edição, gays e lésbicas contam o que têm que enfrentar na escola, maldito preconceito, em pleno século XXI. Professores bem intencionados se esbarram com famílias preconceituosas, cujas crianças reproduzem, sem querer, a intolerância na sala de aula. E a roda gira, alimentando o círculo da ignorância. Contra tabus e violência sexista, há muito o que ser feito em matéria de educação. _ E também, estudantes que ousam mudar de curso, artistas que invadem as ruas, tatoo, ensaio fotográfico e algumas pestes literárias. Boa leitura.

As opiniões expressas neste veículo são de inteira responsabilidade dos seus autores.

Graciela Natansohn

CAPA Gravura de Alice Vargas, referente a matéria da página 22.

_Reitor da UFBA: Prof. Naomar de Almeida Filho. _Diretor da Facom: Prof. Giovandro Ferreira. _Coordenação Editorial: Profa. Graciela Natansohn (DRT/BA 2702). _Edição de Fotojornalismo: Nina Neves _Edição de Fotografia (Impressões): Prof. José Mamede. _Projeto Gráfico e Direção de Arte: Alice Vargas (www.avargas.com.br). _Redação: __Circo Urbano: Sara Manera (editora), Larissa Paim, Laís Furtado, Vinícius Carvalho. __Prova dos Nove: Carlos Eduardo Oliveira (editor), Carolina Garcia, Juliana Lopes, Laíla Terso, Nina Neves, Renata Cerqueira, Wellington Oliveira. __Meio e Mensagem: Davi Carneiro (editor), Antonio Salles Junior, Luana Assiz e Diego Mascarenhas. __Impressões: Nina Neves (editora), Thiago Martins. __Passepartout: Nilton Lopes (editor), Carolina Garcia, Luigi Piccolo, Tarsila Guimarães. __Cubo Magico: Luigi Piccolo (editor). Colaboraram: Rabuga, Nilton Lopes, Carlos Eduardo Oliveira, Breno Fernandes, Marcos Palácios, Eric Luis Carvalho. _Revisão: Sara Manera, Laís Furtado, Carlos Eduardo Oliveira, Davi Carneiro. _Ilustração e Imagens: Aleco, Alice Vargas, Andrea May, Daniel Bueno, Malu Aragão, Rabuga, Tiago Oliveira, Vânia Medeiros. _Fotografia: Nina Neves, Carlos Eduardo Oliveira, Davi Carneiro, Diego Mascarenhas, Sergio Brito. _Diagramação: Alice Vargas, Edinaldo Junior. _Capa: Alice Vargas _ Comercial: Diego Mascarenhas, Danilo Azevedo, Fernando Ferreira, Renata Cerqueira. _Impresso em: Editora Gráfica Daliana _Tiragem: 4000 exemplares.

Faculdade de Comunicação da UFBA Rua Barão de Geremoabo, s/n, Ondina, Salvador, Bahia - Brasil. Tel: (71) 3263-6174, 3263-6177 Fax: (71) 3263-6197 e-mail: lupa.revista@gmail.com http://www.facom.ufba.br/


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Histórias do Oriente Como chineses e japoneses vivem na terra do Senhor do Bonfim | Ilustração Tiago Oliveira

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_ Uma caminhada pela cidade revela uma surpresa: Salvador, a cidade dos afrodescendentes, tem cada vez mais traços orientais. São japoneses e chineses que elegeram a cidade como a sua terra de sonhos. Ou melhor: “aventura de tentar uma vida melhor”, como definiu Wang Choon Sin, chinês, 60 anos , há 46 morando em Salvador. Como outros imigrantes, Wang (que lidera o Centro de Cultura Chinesa, no Jardim de Alah) decidiu vir para cá fugindo das adversidades de seu país, com a promessa de riquezas em terras brasileiras. A realidade, porém, mostrou-se mais difícil. “Já tive vários negócios e não deu certo. Então, a gente tem que mudar para dar certo”, conta, revelando a persistência e a paciência comuns às culturas orientais. _ Como muitos imigrantes, chineses e japoneses se organizam em comunidades nacionais que preservam sua cultura original. Nestes últimos, o sentido de pertencimento é tão forte que, ainda morando no Brasil, chamam de gaijins (estrangeiros, em japonês) os nativos brasileiros. A separação entre “nós” e “eles” se reflete até mesmo entre os descendentes: enquanto os filhos dos japoneses que nasceram no Brasil são chamados de nisseis (segunda geração), os filhos de japoneses e brasileiros são considerados mestiços. Com um sorriso no rosto e a expressão serena, os entrevistados para esta matéria deram trabalho para falar – sem deixarem de ser educados, claro.

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Texto Larissa Paim e Laís Furtado


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Chineses e japoneses se organizam em comunidades nacionais que preservam sua cultura original.

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_ Arlinda Hirakawa é uma brasileira com história japonesa. Seus pais vieram do Japão em 1930 e se instalaram em Belém, no Pará. Após algumas dificuldades e muitas saudades, tentaram voltar ao Japão, mas os conflitos diplomáticos entre Brasil e Japão durante a Segunda Guerra Mundial fizeram o navio desviar para Recife. Assim, com outras quatro famílias, eles foram os primeiros japoneses a se instalarem na cidade. Viúva prematuramente, a mãe de Arlinda trabalhava em lavouras, mas mal podia sustentar a família. “Não posso dizer se o problema era do governo, ou se era da estrutura familiar, mas minha mãe viveu, acho, abaixo da linha da pobreza”, reflete. “Minha mãe não aprendeu português, morreu sem falar o idioma. Ela não gostava de falar português, não gostava de brasileiro, não gostava do Brasil, não gostava da comida brasileira. A única coisa que ela gostava daqui era o clima”. O sonho de ganhar dinheiro não se realizou. “Ela perdeu o pouco das condições que tinha e até a dignidade”, lamenta. Arlinda acredita que pensa mais como oriental que como brasileira. “Todas as dificuldades que se acumularam em mim se transformaram em força”. Formada em economia, hoje ela administra seu próprio negócio. _ O relato do estudante Rafael Liou revela que a família dele saiu de Taiwan durante a Revolução Cultural, quando sua mãe tinha três anos de idade, pois seus bisavós eram militares. “Meus avós acharam mais seguro ir para outro continente, pois as famílias dos militares eram bastante visadas pelos revolucionários”, conta. Com pouco dinheiro ao chegar aqui em 1969, a família tratou de encontrar uma atividade que garantisse a sobrevivência. “No começo, foi difícil, mas logo as coisas foram se ajeitando até meu avô alugar uma lanchonete no Centro”, diz Rafael. Em muitos casos, um parente já estabelecido em Salvador serviu de estímulo para a vinda de outros. É o caso de Liu Liu Rou Chich, que chegou ao Brasil em outubro de 1975, seguindo os passos de seu irmão, que já vivia aqui dez anos antes. “Meu marido era diplomata e naquela época a diplomacia não era rentável. Meu irmão trabalhava como comerciante, conseguiu ganhar dinheiro e nos convenceu a ficar”, conta. Os planos de seguir para o Canadá foram esquecidos – assim como a diplomacia, pois então o Brasil não mantinha relações diplomáticas com Taiwan. O segundo filho do casal, Eduardo Liu, nasceu depois que a família já estava instalada na Bahia, onde passaram a se dedicar ao comércio. Superação _ Dificuldades tais como aprender a língua portuguesa são as mais lembradas pelos imigrantes. “A nossa maior dificuldade foi falar português, que é totalmente diferente do chinês. A minha filha chegou aqui com seis anos e foi para a escola só falando chinês e francês. Chorava bastante, mas, como era criança, aprendeu o idioma fácil. No meu caso e do meu marido, aprendemos no dia-a-dia trabalhando e até hoje falamos devagar e com sotaque”, diz Liu. “Adotamos este país como nosso e podemos dizer que não há um lugar tão bom para se morar como aqui”, resume, mostrando que adaptar-se é a lei do imigrante. _ Uma esperança de vida melhor, uma adaptação complicada e a sobrevivência em um país de cultura completamente diferente é a história de todos. A experiência oriental, no Brasil, é uma lição de força, luta e vitória. Muitos começaram a vida sem nada e, com muito esforço, conseguiram dar uma boa formação para seus filhos.


Atualmente, cerca de 200 mil chineses e descendentes vivem no Brasil. Made in Japan _ A história da imigração japonesa começou em 1908 com a chegada de 781 pessoas vindas de Kobe ao Porto de Santos, como relata o site do IBGE, Brasil 500 anos de povoamento. Muitos nisseis estabelecidos em Salvador saíram de São Paulo para melhorar de vida, uma vez que somente os primogênitos herdavam os bens dos pais. _ Ao longo do século XX, o governo brasileiro estabeleceu convênios com o governo do Japão para que os japoneses firmassem colônias em todo o Brasil com a promessa de ajuda financeira. Na Bahia, três colônias receberam os imigrantes: a primeira foi criada em Una em 1953, a segunda em Ituberá em 1954 e por último a Colônia JK, que recebeu 117 famílias, em Mata de São João, criada em 1962. _ A adaptação foi difícil. Com um clima e um solo diferentes do que os que os japoneses estavam acostumados, muitos agricultores acabaram sendo forçados a tentar a sorte na cidade grande.

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O Dr. Odecil Costa Oliveira, médico cardiologista, é Cônsul Honorário Geral do Japão em Salvador desde junho de 2006. É sócio-fundador e representante na Bahia da Associação Nordestina de Exbolsistas e Estagiários do Japão. Durante três gestões foi presidente da Associação Cultural Brasil-Japão do Estado da Bahia (fundada por ex-bolsistas do Japão). O senhor nasceu em Almadina (interior da Bahia) e não é descendente de japoneses. Como se aproximou deste povo e chegou ao cargo de cônsul? Sempre achei a cultura japonesa muito rica e profunda. Comecei a aprender a língua aqui em Salvador, no Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA. De 1974 a 1976, morei no Japão, onde fiz uma pós-graduação através de bolsa na Universidade de Hiroshima. Depois que retornei, sempre mantive bons contatos com os descendentes daqui e também com a embaixada em Brasília. Após o afastamento do cônsul Emilton Rosa, fui surpreendido quando o cônsul geral Susumu Shibata (hoje embaixador em Angola) me comunicou que eu tinha sido indicado pelo governo do Japão para ocupar o cargo. O Consulado Geral Honorário do Japão em Salvador já tem dez anos, embora a cidade não possua uma comunidade japonesa tão forte como a de São Paulo. O que levou à criação deste consulado aqui e qual o seu papel em Salvador? A Bahia é um estado muito importante em termos de produção industrial e agrícola. Há muita troca entre Bahia e Japão. O Japão investe muito na Bahia através de doações a entidades não-governamentais. A partir daí, surgiu a necessidade de que se criasse um escritório que intermediasse o contato entre os baianos e o Consulado Geral de Carreira, em Recife. O nosso consulado orienta os descendentes e não-descendentes, divulga a cultura japonesa e as bolsas de estudos que o Japão oferece anualmente.

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_ De acordo com a Câmara Brasil-China, a primeira tentativa de imigração chinesa no Brasil aconteceu em meados de 1812. Cerca de dois mil chineses chegaram ao Rio de Janeiro para se dedicar ao plantio de chá. Eles vieram na condição de semiescravos – fato que só descobriram ao chegar ao Brasil. Como voltar para a China não era viável (tanto economicamente como politicamente, já que a China imperial não aceitava de volta os que abandonaram sua terra natal), eles se adaptaram aos costumes locais. Atualmente, cerca de 200 mil chineses e descendentes vivem no Brasil – sendo que um número superior a 130 mil mora em São Paulo. Já no século XX, a partir dos anos 50, chegaram muitos imigrantes que fugiam da miséria e de perseguições.

Um baiano, cônsul do Japão

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Cólera do Dragão


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Roger’n Roll all night Durante o dia, pneus. Na noite… a Borracharia Entrevista a Sara Manera e Graciela Natansohn Texto Sara Manera e Vinícius Carvalho Foto Nina Neves

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Roger Coelho, pai de um rapaz de 17 anos e de uma menina de 11, poderia ser mais um “tio” que passa suas noites de sexta assistindo Tv com a família, mas ao invés disso ele é um dos responsáveis pelo sucesso da Borracharia. Com o codinome Roger’n Roll, ele faz balançar pessoas de todas as idades (dos “tios” e “tias” aos jovens universitários) com uma mistura musical que passa pelo soul, rock, jazz, black music e muita música brasileira. Roger, numa entrevista animada na boate, que funciona no bairro boêmio do Rio Vermelho toda sexta-feira e divide espaço com uma borracharia de verdade, fala sobre os desafios de trabalhar no circuito cultural alternativo de Salvador, da importância dos seus anos bem vividos para o seu trabalho e dos desejos do público.

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Durante o dia é mais uma borracharia de bairro, comandada pelo bem-humorado Garapa. Várias pilhas de pneus ficam displicentemente na entrada, mas a medida que você vai entrando descobre uma porta que abre para o mundo mágico dos embalos de sexta-feira a noite. O espaço é apertado, meio escuro, cheio de bibelôs excêntricos. Santinhos, cordas, quadros, vinis, bolas de vidro e troncos dão o astral de uma das boates mais descontraídas e alto astral da noite soteropolitana. “O Dj e artista plástico Ruy Santana está sempre pintando e repintando e o cartunista Cau Gomes também. Mas quem dá a cara da Borracharia é o Alberto, o dono daqui, que é mergulhador e fica ornamentando com novidades” conta o comandante das pick ups. “Ele sempre traz coisas do mar, todos os santinhos que você vê aqui ele achou no fundo do mar do Rio Vermelho ou deram a ele”. É neste cenário, que há quatro anos, fugindo do circuito convencional, se reúne um público fiel ao panorama alternativo da capital baiana. Na Borracharia cada canto é uma surpresa, mas nada deixa o mulherio mais alegre do que o poderoso Santo Antônio. Apertados no lugar constantemente lotado, os freqüentadores mal podem observar atentamente a decoração singular, enquanto dançam ao som do Dj Roger’n Roll.


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Conta um pouco da história da Borracharia. A Borracharia começou com a festa “Jingle Bells, já acabou o papel”, no Natal de 2003. Depois da ceia, todas as pessoas deserdadas da família vieram para cá. Depois disso começaram a acontecer festas semanais aqui, com o Dj Ruy Santana. Quando ele saiu para organizar outros eventos, fiquei no lugar dele e desde então estou aqui, a mais ou menos três anos. Hoje o trabalho funciona como uma terapia para mim, não me vejo sem isso. Você faz parte de um grupo de DJs que tocam rock, soul, black music, samba rock... Isso te dá algum diferencial? Geralmente os Dj’s se especializam em um tipo de música, já eu sou mais aberto. A maior diferença comparando com outros profissionais no mercado é que eu tenho 43 anos de idade, é a diferença de ter ouvido muito mais coisas. Não adianta o Dj escolher aquela música e botar pra tocar, se o cara não sente a música como um processo de desenvolvimento do divertimento da noite ela não funciona. Então

eu levo uma certa vantagem na frente de muito Dj por conta disso. O tipo de música tem a ver com o público que vem aqui? Tem muita gente de 30 aqui e daí foi criando esta identidade com as pessoas que freqüentam a Borracharia. É um público de “tios” e “tias”, por assim dizer!! [gargalhadas] E eu não estou ofendendo ninguém! Viva os “tios” e as “tias”! São pessoas muito interessantes. Outro dia veio aqui uma menina que veio ver uma amiga e trouxe a mãe. Quem disse que a mãe quis ir embora? [risos]. Todo Dj tem que lidar com uma demanda do público, como você lida com ela? É meio punk, é agressivo, é divertido, tem gente que não me suporta e nem eu suporto estas pessoas. Às vezes eu sou insuportável com as pessoas que não têm um pingo de educação. Alguém chega aqui e pede uma música, “E aí, você pode tocar uma música?”. A primeira coisa que eu faço é dizer: “E aí, velho, tudo bem? Meu nome é Roger”. Eu sou chato com

esta história, as pessoas devem chegar em qualquer Dj mais educadamente. Ali (mostra o lugar onde comanda o som das festas) eu trabalho com duzentos vinis e cem CDs à minha disposição, então tem algumas coisas que eu sempre uso porque sei que funciona em pista, mas tem muita coisa que depende da inspiração da noite. Acontece uma magia ali dentro que não acontece em outros lugares, aqui bate minha liberdade de escolha e as coisas fluem. Se eu não gosto da música eu nem tenho. Eu acho que Dj trabalha muito com a inspiração, se não funcionasse assim, poderia gravar um CD e deixar tocando que tudo ia funcionar. Muitas casas noturnas, bares e restaurantes não se sustentam por muito tempo na cidade. Qual o segredo da permanência da Borracharia? A Borracharia tem muito da Salvador de antigamente, onde tinha varias festinhas nos quintais das casas. Aqui tem um segredo que ninguém percebe, antigamente isso aqui era quase um terreiro, as pessoas vinham fazer um batuque. O lugar


Por que só funciona às sextas-feiras? Em Salvador, quinta-feira era uma noite quente, hoje se você sai quinta não tem nada, acabou. O sábado é muito popular, acho que as pessoas preferem ficar em casa, vêm da praia cansadas, além disso, a concorrência é bem maior. A gente tentou colocar uma banda de jazz nas quartas, mas não deu certo, não teve público e a freqüência era baixa. Sexta-feira tem a magia de ser sexta-feira em Salvador. É a noite forte da cidade, é mais cheia, não tem jeito. A cena cultural está mais democrática? Acho que sim, a gente teve uma geração que foi massificada pela axé music. Hoje em dia bandas como Dr. Cascadura, Os Mizeravão, Retrofoguetes, Formidável Família Musical, Ronei Jorge e os Ladrões de Bicicleta, têm um público muito grande, coisa que não existia. Isso é maravilhoso, esta é a geração que o axé já não atinge tanto, o axé virou uma

“O lugar é abençoado porque tem um imenso pé de fruta-pão e debaixo da árvore acontecem coisas lá do além. ”

coisa sazonal mesmo, não é o ano inteiro. Graças a Deus. O problema é que os meios de comunicação não dão espaço. Antigamente as rádios investiam em festivais de rock. Hoje em dia não investem mais neste setor. Se for analisar, não há uma formação de público para consumir este tipo de música, como em Recife, por exemplo. O que falta em Salvador para a cena rock se concretizar é ter um festival bacana, organizado e repetir ano a ano. Esta cena ainda esta sendo gerida, precisa arrebentar a casca do ovo.

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Na sua opinião, por que os lugares onde a cena alternativa acontece estão fechando? Acho que as pessoas que trabalham com música, empresários e produtores, não investem. O público de rock é um pouquinho ingrato com as atrações locais, não prestigia e não gosta de pagar ingresso. Dez reais é o preço que qualquer um poderia pagar, mas Salvador é uma cidade complicada porque todo mundo ganha menos do que em outros lugares. Numa festa são 150 pessoas pagantes e mais nada. Quando dá 300 é uma banda de fora ou aconteceu alguma coisa extra. No entanto, o público alternativo cresce, se renova sempre. Eu não sei onde vai parar este público depois de uma certa idade, acho que morre todo mundo [risos]. A gente não tem uma explicação. O público

médio da Borracharia é de 200 pessoas. A quantidade de gente é praticamente a mesma, mas aqui o custo é mais baixo. O show musical de uma banda requer vários recursos, aparelhagem, produção.

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é abençoado porque tem um imenso pé de fruta-pão e debaixo da árvore acontecem coisas lá do alem. Aqui tem essa magia. Tem outro motivo para o sucesso da Borracharia, que é aquele Santo Antônio, ali atrás. As mulheres fazem uma oração e saem daqui acompanhadas na mesma noite; não quer dizer que vão casar, mas saem acompanhadas [risos].

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PROVA DOS NOVE

Ser ou não ser...

eis a PRESSÃO Histórias de universitários que ousam mudar de curso

Texto Juliana Lopes e Renata Cerqueira

| Foto Nina Neves

_ Carla, desde pequena, quis ser médica. Mas, no terceiro ano, descobriu que gostava mesmo era de música. Hoje, ela é engenheira química. Já Rafael, por influência da família, entrou na faculdade de direito. Dois anos depois, insatisfeito, enfrentou opiniões contrárias e resolveu prestar vestibular para biologia. Embora Carla e Rafael sejam personagens fictícios, basta percorrer os corredores de diversas faculdades do país para perceber a insegurança de boa parte dos alunos diante da carreira profissional. _ Lorena Alencar, estudante de biologia de uma faculdade privada de Salvador, diz conhecer bem a incerteza quanto ao curso escolhido. “Eu até gosto dos assuntos que os professores passam, mas não sei se é o que eu quero. Além disso, como eu já tenho 24 anos. acho arriscado mudar de opção agora”. Já para Luís Santos, aluno de psicologia da mesma instituição, a idade não é o principal problema: “o que mais me deixa inseguro é pensar que, se eu abandonar o curso hoje, ‘jogarei fora’ os dois anos que estudei até aqui”. _ Ainda nas faculdades particulares, muitos alunos também citam o dinheiro investido como um dos motivos que interferem na decisão de trocar ou não de curso, considerando que um semestre pode custar entre dois e sete mil reais.

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Competitividade x Mobilidade _ Segundo Márcia Pontes, da Pró-Reitoria de Ensino de Graduação da Universidade Federal da Bahia, “diferente do que acontece nas faculdades particulares, na UFBA o fator de maior peso na decisão da mudança de curso é o medo da concorrência”. A UFBA oferece seleções para a ocupação de suas vagas residuais, oportunidade para uma mudança de curso. No entanto, alguns estudantes ainda preferem fazer outro vestibular, porque a oferta destas vagas é insuficiente. Esse é o caso de Lisiane Araújo, que abandonou sua vaga na Faculdade de Arquitetura

mudei de curso. Afinal, quem é que vai trabalhar na profissão que eu escolhi, não sou eu mesma?”. Buscando alternativas

da UFBA e hoje faz produção cultural na FACOM. Saltando obstáculos _ A pressão familiar ainda é uma das explicações mais recorrentes para a angústia de muitos estudantes. Para Anuska Lima, aluna do terceiro ano do Ensino Médio, conseguir estudar aquilo de que gosta não vai ser fácil. “Eu queria fazer o curso de moda, mas meus pais não deixam; argumentam que não dá dinheiro”, lamenta a estudante, que fará o vestibular para odontologia. Já Márcia Araújo é advogada porque, faltando apenas um ano para se formar numa escola de música, resolveu enfrentar a oposição da família e fazer o que realmente gostava: direito. _ Outra estudante que tomou coragem e enfrentou a insegurança é Danielle Gomes, que não se arrepende de ter trocado biologia por cinema. Gomes não pretende fazer parte dos 54% dos profissionais que hoje atuam em áreas diferentes da sua formação. “Eu não estava nem aí com o que os outros estavam pensando quando

_ Para Eni Bastos, superintendente de Avaliação da Secretaria Estadual de Educação da Bahia, o problema é a decisão precoce do aluno. “Desde muito cedo, o jovem se vê obrigado a fazer uma opção profissional que poderá acompanhá-lo pela vida inteira”, explica. Uma preocupação apontada pelos alunos do Ensino Médio é que a excessiva preocupação das escolas com o vestibular não inclui atividades curriculares que os orientem na hora de decidir qual curso seguir. No entanto, para Márcia Pontes, o problema não está somente nos colégios: “As escolas têm limites de atuação. Por mais que montem feiras de orientação profissional e apresentem o mercado de trabalho, cabe também ao estudante ter mais iniciativa e buscar outras informações sobre os cursos”. _ Juliana Argôlo, estudante de biologia da UFBA, é um exemplo de estudante que não se contentou com a orientação profissional fornecida pela escola. Ainda no cursinho ela não só procurou conhecer os profissionais que atuam na área, como também visitou faculdades e conversou com coordenadores de graduação. “Tudo isso foi muito válido, porque eu mudei a minha forma de pensar acerca do curso. Antes eu imaginava que biologia só formava professores e hoje eu compreendo que a área de atuação é muito mais ampla do que isso”, explica Argôlo. _ Nem tempo nem dinheiro perdido, na hora da mudança de curso, a principal motivação é a satisfação profissional. Deixando o medo e a insegurança de lado, esses alunos muitas vezes enfrentam a família e decidem trocar de curso. As dificuldades são muitas, mas, ainda assim, eles garantem que não se arrependem.


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A, B, C, D, E, F, GAY (dentro do armário da escola)

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Texto Carlos Eduardo Oliveira | Foto Nina Neves e Carlos Eduardo Oliveira Pesquisa Carolina Garcia e Nina Neves

| Ilustração Malu Aragão


A maior parte das escolas silencia diante do assunto. _ Segundo a coordenadora pedagógica de uma escola particular, Karina Figueiredo, “para falar sobre homossexualidade, a gente precisa chamar os pais primeiro, prepará-los antes de trabalhar o assunto com os alunos”. _ Quando professores e pais resolvem encarar o assunto, projetos como o desenvolvido no Colégio Estadual Duque de Caxias, localizado na Liberdade, podem fazer a diferença. _ Otávio Reis Filho, coordenador do Grupo Gay da Bahia (GGB), conta que foi convidado pela professora Lícia Maria dos Santos para fazer uma parceria com o colégio na promoção de workshops de capacitação de professores para o trabalho sobre temáticas relativas à sexualidade na escola. “Depois fizemos um outro

workshop para pais e alunos. Isso foi muito válido. Uma professora veio falar com a gente que não sabia como agir em certas situações em sala de aula com um aluno homossexual, por exemplo”, conta o coordenador do GGB. _ Santos é professora de matemática e faz parte de uma equipe de sete educadores de diversas disciplinas que desenvolve um trabalho integrado sobre sexualidade humana junto aos alunos do Duque de Caxias. Os professores procuram relacionar as questões da sexualidade às suas aulas e se revezam na sala de apoio, destinada para orientações reservadas aos alunos, exibições de vídeos e outras atividades. _ Exemplos como este também ainda são raros em Salvador. A maior parte das escolas silencia diante do assunto. O resultado é que muitos professores e alunos – homossexuais ou não – ainda não têm conhecimento e orientação suficientes sobre o tema. E pior: continuam praticantes – e vítimas – de homofobia, dentro e fora das escolas. Pais, mestres, alunos e discriminação _ O termo “homofobia” foi criado pelo psicólogo George Weinberg, em 1971, para designar a aversão à homossexualidade. São consideradas atitudes homofóbicas aquelas que vão desde brincadeiras com apelidos pejorativos até atos de violência física contra homossexuais. _ Quanto aos casos de discriminação entre os alunos, Karina Figueiredo diz que “quando a gente constata que existe um caso desses numa turma, a gente começa a trabalhar o assunto. O professor

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não gostariam de ter alunos homossexuais. Por outro lado, o percentual de professores que afirmaram ter conhecimento suficiente sobre homossexualidade foi de, apenas, 37,1%. _ Além da falta de informação da maioria dos professores, um outro fator que contribui para o tabu em torno da homossexualidade nas escolas é a resistência das famílias ao assunto. Segundo dados da pesquisa, 39,7% dos pais não gostariam que seus filhos tivessem homossexuais como colegas e apenas 27,7% afirmaram ter conhecimento suficiente sobre o tema.

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_ “Eu tive um grande professor de história na oitava série que me apoiava bastante. Um dia ele perguntou na sala quem havia ido para a Parada Gay. Só eu levantei a mão. Começou um burburinho, os colegas comentando... E aí ele começou a conversar, tentar abrir a cabeça das pessoas”, conta Rafael Barretto, 18 anos, pré-vestibulando. _ Atitudes como a do professor de Rafael não são muito comuns na maioria das escolas de Salvador, que ainda deixam o tema homossexualidade fora da sala de aula. Quando o assunto é trazido à tona, a reação da maior parte dos alunos, como a dos colegas de Rafael, é de gozação e constrangimento. “Quando sabem que dependem de uma nota, eles apresentam um mínimo de maturidade. Mas, depois do trabalho, os comentários preconceituosos e brincadeiras voltam com toda força”, revela Carlos Brandão, professor de ciências e biologia, que tenta ir além das aulas de anatomia e promove trabalhos relacionados à homossexualidade, mas reconhece que nem sempre é levado a sério devido ao forte preconceito enraizado na sociedade. _ Tanto no colégio particular em que Rafael estudou quanto na maioria das escolas públicas e privadas de Salvador, não existem ainda disciplinas ou projetos pedagógicos de educação sexual voltados para, dentre outras temáticas, a questão da homossexualidade. _ A pesquisa “Juventudes e Sexualidade”, realizada pelo MEC em parceria com a UNESCO em 14 capitais, publicada em livro em 2004, revelou que apenas 2,7% dos professores de Salvador entrevistados

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Apesar das iniciativas contra a homofobia, os padrões heterossexuais persistem nas cabeças de professores e alunos. intervém, chamamos os alunos envolvidos pra conversar. Posteriormente, pode-se chamar a família”. _ Muitos professores admitem que, na maioria das escolas, o problema é ignorado. Nem quando eclodem a agressividade e os problemas nos passeios escolares, nos banheiros ou na sala de aula, se reserva um tempo pra conversar. Seja para a prevenção, seja para a resolução. _ Rose Reyes, diretora da escola Casa Via Magia, que tem turmas do matercal à quarta série, acredita que o assunto deve ser trabalhado de forma natural, a medida que as crianças o percebem inserido em seu universo, além de quando aparece nas exposições didáticas. “A conversa que se tem diariamente em sala de aula ajuda

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que os alunos exponham temas sobre os quais querem falar”, explica Reyes. _ Casos de discriminação de alunos por parte de professores também são muito freqüentes. O estudante Rafael Barretto não teve apenas professores como o de história que o apoiava. “A escola já me discriminou, tanto professores, quanto coordenadores. Havia um professor que me incomodava, ele me discriminava bastante”, lembra. E completa: “A escola queria ser correta e tratar bem a situação, mas havia ainda um grande tabu por trás, então eu não me sentia apoiado de verdade. O apoio, quando vinha, acabava sendo muito confuso”. _ Para Otávio Reis, do GGB, “quando você assume sua homossexualidade na es-

cola é muito melhor, porque ninguém fica mais de tititi”. Contudo, para a imensa maioria dos alunos e professores homossexuais, a escola ainda não é o lugar mais seguro e apropriado para assumir uma identidade que fuja ao padrão heterossexual imposto pela sociedade. Apesar das iniciativas contra a homofobia, os padrões heterossexuais persistem nas cabeças de professores e alunos. Não basta ser politicamente correto e não discriminar. O que falta é entender e internalizar que é normal ter uma orientação diferente da heterosexual. O que deve se aprender dentro e fora da escola é que a homossexualidade não é um desvio da sexualidade “normal” e, sim, mais uma dimensão da sexualidade humana.

Capacitação O projeto “Gênero e Diversidade na Escola”, fruto de parceria entre o MEC e a Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Salvador (SMEC), capacitou professores através de um curso telepresencial, com debates sobre gênero, sexualidade e orientação sexual. O projeto foi realizado em junho de 2006, no Instituto Anísio Teixeira (IAT), e disponibilizou 200 vagas para educadores do Ensino Fundamental.

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Sistema público de radiodifusão: mais que um conceito, uma necessidade Sivaldo Pereira da Silva* Ilustração Aleco

pelo estado”: não seria nem um paradoxo, seria uma contradição pois uma coisa elimina a outra. Uma TV gerenciada pelo estado chama-se “TV estatal”. Segundo, porque a BBC de Londres (uma das mais antigas TVs públicas em operação) não é administrada pelo governo. Se fosse, não seria pública. O uso do termo “público” pelo ministro Hélio Costa não é por falta de conhecimento (até porque, a própria Constituição brasileira estipula claramente os 3 sistemas e ele sabe disso). Por trás do seu discurso há, na verdade, dois objetivos específicos: primeiro, um intuito retórico de se apropriar indevidamente do conceito de TV pública para justificar um projeto de governo e ganhar apoio, confundindo a opinião pública. Segundo, um intuito político: desestabilizar o Fórum de TVs Públicas que já vinha discutindo o tema de forma mais aberta e democrática, incluindo diversos atores da sociedade civil, acerca da necessidade de se pensar na real implantação deste sistema no país, algo previsto em lei mas que nunca foi de fato concretizado. _ O debate está apenas começando e parece ter chegado a hora de exigirmos, de fato, um Sistema Público de Radiodifusão, algo que já existe há décadas em diversos outros países (como Inglaterra, Alemanha, França, Japão, EUA, dentre outros). Mas, isso não se dará sem pressão política, pois há muitos interesses de que as coisas continuem como estão, isto é, TVs e rádios estatais sucateados e quase inoperantes de um lado; e TVs e rádios privados formando um poderoso oligopólio, do outro. Não existe democracia sólida sem um sistema de comunicação democrático. Uma carência histórica que precisa ser urgentemente remediada. Sivaldo Pereira da Silva é jornalista, mestre em Comunicação e atualmente desenvolve pesquisa de doutorado sobre novas tecnologias da comunicação e participação democrática. Também é membro do Intervozes, uma entidade civil sem fins lucrativos que luta pelo direito à comunicação.

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seria bem diferente de usar uma TV para fazer propaganda de governo). Estes dois modelos são os que de fato existem e predominam hoje no Brasil. _ O terceiro modelo, que não existe enquanto “sistema de radiodifusão” no país, é o sistema público: trata-se de uma forma de organização midiática que não está subordinada nem ao governo (como é o caso do sistema estatal) e nem à iniciativa privada (como é o caso do sistema comercial). Isto é, sua gestão prima por autonomia política e financeira, sendo uma terceira via para tornar a comunicação social mais democrática. Este modelo é adotado em diversos países e tem se mostrado, talvez, como uma das formas mais consistentes de manutenção do direito à comunicação, pois se cria, em torno de TVs e rádios públicos, todo um conjunto de princípios e valores éticos em relação à qualidade e difusão da informação, onde os seus agentes possuem autonomia para exercer uma comunicação que de fato esteja focada no interesse público. Em relação ao financiamento, na maioria dos casos, este vem do próprio cidadão, através de taxas específicas ou recursos governamentais fixos, repassados automaticamente para a empresa pública de radiodifusão, cuja prestação de contas está estritamente voltada para a sociedade civil. Isto é, o meio de comunicação não está subordinado à qualquer ingerência política nem de governos, nem de grandes empresas multinacionais (já que não depende, em sua formatação mais consistente, de verbas publicitárias da iniciativa privada nem do bom-humor de governantes). _ Logo, quando um ministro das comunicações diz que está sendo criada uma “TV pública gerenciada pelo estado, nos moldes da BBC de Londres” , como declarou Hélio Costa, há aqui um contrasenso sem precedentes. Primeiramente, porque não existe “TV pública gerenciada

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_ O debate sobre comunicação social no Brasil parece ganhar um novo fôlego neste ano de 2007. Temas importantes têm despontado na agenda nacional e parecem estar ganhando espaço no debate, como é o caso da discussão sobre sistema público de radiodifusão no país. A formação do Fórum Nacional de TVs Públicas e sua agenda de debates sobre o tema – uma iniciativa do Ministério da Cultura – talvez seja a contribuição mais contundente e democrática neste sentido. Porém, uma série de confusões conceituais sobre a diferença entre sistema público, privado e estatal de radiodifusão – suscitadas por declarações do atual ministro das Comunicações, Hélio Costa - ocupou a pauta nacional nos últimos meses. Neste sentido, convém fazer alguns esclarecimentos. _ Quando falamos em “radiodifusão”, estamos falando em transmissão de sons e imagens através de ondas eletromagnéticas. Neste caso, inclui-se aqui rádio e TV. Comecemos então pelo sistema privado de radiodifusão que pode ser resumido na seguinte asserção: empresas privadas recebem uma concessão pública para operar o serviço de comunicação através de investimento próprio, prevendo a prática de lucro, porém, em contrapartida devem seguir uma série de preceitos, como por exemplo, prestar serviços de interesse público; informar o cidadão de forma idônea e objetiva; estimular e difundir a produção cultural; fomentar a produção local de conteúdo, etc (preceitos que são solenemente ignorados pelas grandes emissoras do país). No segundo modelo, o sistema estatal, o estado (seja governo federal ou estadual) tem o direito de operar canais de TV ou rádio com o intuito de manter o cidadão a par dos negócios públicos, dando transparência às ações governamentais e servindo como mais uma opção de informação para que a cidadania seja exercida de fato (o que


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Foto e Texto Thiago Martins


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Ensaio vencedor do 2º. Concurso Fotográfico Lupa/Labfoto.

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onjolo é a tradução que a oralidade dá a Monjolos, uma cidadela no interior de Minas Gerais. A espontaneidade das cenas constrói uma memória cotidiana que nos permite pensar em um tipo de enraizamento espacial e afetivo, que contrasta com as dinâmicas de migrações e não-permanência. Há um tempo sensível que atravessa essas imagens e que as conserva. No entanto, recontextualizando o verso de Manoel de Barros, “As palavras se sujam de nós na viagem”. As imagens pedem pela circularidade do olhar, a qual o olhar retiniano apenas não nos dá a ver. Nem as palavras.

“Onde está nossa primeira casa? Só em sonhos podemos retornar ao chão onde demos nossos primeiros passos”

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(Ecléa Bosi)


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Algumas duram até a quarta edição. Outras, nem isso.

Falta fôlego para as revistas baianas. Texto Davi Carneiro | Foto Davi Carneiro Pesquisa Antônio Salles e Davi Carneiro

| Ilustração Alice Vargas

Faltam grandes anunciantes

_ Antes de qualquer coisa, preciso admitir: sou um apaixonado por revistas! Sou daqueles que colecionam, que leva para todos os cantos, fica com pena de jogar fora, lê e relê, não importa se sentado, deitado, na cama, no banheiro, sempre ansioso a espera da próxima edição. Afinal, elas são gostosas de ver e ler, fáceis de carregar e colecionar e, além disso, são ricas fontes de informação e entretenimento. Hoje, sou um estudante de Jornalismo e muito dessa escolha se deve a essa paixão. Se não fossem pelas revistas, talvez, não estivesse aqui escrevendo este texto. _ Como admirador, sempre fiquei intrigado com a pouca produção de revistas em nossa cidade. Por que será que estados também do Nordeste - como Ceará e Pernambuco, por exemplo - têm revistas já consolidadas enquanto aqui não há uma que se salve? (vamos rezar pela Lupa!) Por que as poucas publicações que surgem, acabam fechando depois de quatro ou cinco números? Afinal, por que a revista regional, formato que faz sucesso na maioria dos estados brasileiros, não vinga em Salvador? São essas e outras perguntas que tentaremos responder na matéria.

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De algumas, só restam lembranças _ A Bahia apresenta a maior economia do nordeste. Isso leva a crer que este seria um cenário propicio para o surgimento de um mercado competitivo de revistas, certo? Errado! Infelizmente, esse não é o quadro que vemos. Basta uma rápida pesquisa nas principais bancas da cidade para constatar a escassez de títulos regionais. O pior: essa é uma questão histórica.

Desde a revista Única na década de 50, passando pelas publicações Liderança (década de 70), Exclusiva (década de 80) e a Néon (década de 90), as revistas não conseguem se firmar como um negócio rentável e acabam fechando. Isso se deve a uma combinação de muitos fatores negativos. Pouco anúncio e produção cara _ A principal dificuldade para se fazer uma revista jornalística e comercial em Salvador é a captação de anúncios publicitários. Para o professor e jornalista Sérgio Mattos, idealizador da revista Néon, este é um fator determinante para que a maioria das experiências não dê certo. “Não sei se isso se deve a um preconceito, mas o setor privado não anuncia em revistas locais. Eles preferem anunciar na Veja que não coloca uma linha sobre a Bahia, do que anunciar em uma revista de cabo a rabo baiana, com assuntos baianos e feitas para baianos”. Sérgio Mattos afirma que “para se manter no mercado atual, só revistas amadoras, sem o compromisso jornalístico ou revistas segmentadas, não abertas e vinculadas a alguma instituição”. A Néon foi um dos exemplos mais emblemático desta dificuldade. A revista abordava temas relacionados à cultura e ao entretenimento na Bahia. Manteve-se até o numero 40, porém, pela dificuldade de conseguir anúncios fechou as portas. _ Outra questão é o alto custo de produção e impressão deste veículo em nosso estado, onde só a média de impressão de uma revista com as mesmas características e tiragem da LUPA, por exemplo, varia entre 10 a 15 mil reais. Em São Paulo, por exemplo, pode-se imprimir por 6 mil reais.

_ Fui procurar Vander Prata, jornalista responsável pela Viver Bahia, impresso que se sustentou até os anos 80. Com a Bahiatursa como anunciante já confirmado, a revista está de volta com um projeto diferente, bilíngüe – português e inglês - de distribuição gratuita e com uma tiragem 50.000 exemplares. Aborda assuntos ligados ao turismo e à cultura do estado e pretende ser distribuída em todo o país e no exterior, o que permitirá capturar receita publicitária de fora da Bahia.

Viver Bahia, N. 30, março de 1976.

_ A grande dificuldade está na falta de grandes anunciantes na nossa cidade, diz Vander Prata, o que acaba gerando uma dependência do governo ou de um grupo empresarial que dê uma retaguarda financeira. Para o jornalista, “esta não é uma questão que atinge só as revistas. Em Salvador, historicamente, os únicos veículos que sobrevivem são os bem vistos pelo governo”, diz. “Salvador não tem uma indústria de produtos de consumo, por isso, os grandes anunciantes locais são shoppings e lojas de varejo, que preferem anunciar em TV e rádio. Eles acham que traz um retorno mais rápido para este tipo de anunciante”, opina. _ Outra questão a ser levada em conta é que os centros de decisões das grandes marcas estão fora do estado. “A maioria dos centros executivos, administrativos e


Péricles Diniz

Vander Prata

Foto: Divulgação

Sérgio Mattos

Será que o baiano não gosta de ler?

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de comunicação da Petrobrás, da Ford e do Pólo Petroquímico, para citar alguns – diz Prata - ficam em São Paulo ou no Rio de Janeiro, o que dificulta a captação de recursos”.

_ Atrás de uma resposta, fui tentar entender os nossos hábitos de leitura. Vivemos em uma cidade cheia de problemas estruturais que geram, segundo dados do IBGE, cerca de 300 mil analfabetos na região metropolitana. Mas será que o analfabetismo e a pobreza são as únicas respostas para o número reduzido de leitores em Salvador? Uma tese levantada pelo jornalista Péricles Diniz leva em conta a cultura e a educação dos baianos em relação aos impressos. “O baiano do interior, historicamente, é um povo muito ligado ao rádio; lá este veículo sempre teve uma hegemonia muito grande. Já o baiano da capital é especialmente apaixonado pela televisão. O apreço por esses veículos, talvez, tenha os afastado dos meios impressos”. Péricles foi um dos jornalistas que estiveram a frente da revista Exclusiva, lançada em 1988 e que hoje está voltada apenas para o carnaval. A revista tinha como proposta ser uma publicação jornalística e cultural “exclusivamente baiana” e contava com grandes nomes do jornalismo da época.

Revista Exclusiva, 1988: capa em homenagem ao Esporte Clube Bahia

Revista Neón: 40 edições.

Revista Única, Ano 38, N. 2.

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Lupa: primeira revista da Faculdade de Comunicação da UFBA.

_ Diante do quadro apresentado, fiquei desanimado. Até pensei: será que escolhi a profissão certa? Entretanto, como sou otimista por natureza, penso a questão pelo enfoque do desafio e do empreendedorismo. Exemplos muito próximos mostram que esta é, sim, uma experiência jornalística que pode dar certo. Sergipe é um exemplo claro disso. Nosso vizinho possui três revistas, a Perfil, a Sergipe Mais e a Sergipe Aventura, que estão consolidadas há alguns anos. _ O mercado de revistas em Salvador tem muito a dar. Cabe, principalmente, às novas gerações essa tarefa desafiadora. Em uma profissão na qual o mercado de trabalho se encontra bastante reduzido, o desenvolvimento das revistas se mostraria, sem dúvidas, como uma excelente opção para o futuro. Para isso, é necessário que os empresários e jornalistas comecem enxergar esse mercado como uma real alternativa, que só precisa ser melhor estudada, explorada e desenvolvida. Na cultura chinesa, os ideogramas das palavras crise e oportunidade se equivalem e se completam. Basta enxergarmos as oportunidades. Por enquanto, eu faço a Lupa.

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O futuro...


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O I T Á P DOs

s E R G MILA

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e seguem s a t r o p im o c u Po u olham o a lt u c a m r o n a certas. s a r e m â c s a a r pa ornalismo j e l e t o d io t á p No dia um a d a c a , r a l u p o p e. milagre acontec

“Gosto muito do programa. Votaria em Zé Eduardo se ele se candidatasse, ele ajuda as pessoas.” Juscelina Guimarães, 54 anos.


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_ De repente, as delegacias da cidade se transformam em palcos, de onde repórteres-justiceiros questionam os acusados. A diversidade de vilões é surpreendente. O indivíduo que planta ervas proibidas em casa apenas por “curiosidade”. O jovem contratado para assassinar um traficante por R$ 300. Ou o professor de Geografia que mantém o hábito de ministrar “aulas particulares” em sua residência a seus alunos menores de idade. _ No estúdio, o apresentador representa um outro papel: o de mediador entre as barbaridades do “mundo-cão” e a sociedade. Sob protestos, vinhetas e trilhas sonoras sombrias (revelando uma inspiração radiofônica), ele trava um diálogo com entidades públicas e privadas em favor dos “interesses do povo”.

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Texto Luana Assiz e Diego Mascarenhas Foto Diego Mascarenhas


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O repórter Zé Bim, gravando o Programa Se Liga Bocão, ao vivo do Relógio de São Pedro.

_ Há sete meses, o telespectador baiano assiste à disputa mais acirrada dos programas populares locais. De um lado, o veterano, de mãos calejadas de tantos tabefes na mesa: Raimundo Varela. O apresentador está à frente do Balanço Geral, exibido na TV Itapoan. Recémchegado a esta vertente do jornalismo está Zé Eduardo, que ao lado do repórter Zé Bim, conduz o Se Liga Bocão, da concorrente TV Aratu. Ambos trazem a linguagem do rádio para a TV, numa fórmula que caiu no gosto popular. _ Para uns, é a identificação com os temas, com os entrevistados, com a assistência social prestada. Para outros, tratase apenas de divertimento por causa dos bordões ou com as entrevistas do repórter (meio justiceiro, meio palhaço). Para Pablo Reis, diretor do Se Liga Bocão, não há problemas éticos nessa fórmula, posto que “a função do jornalismo não é transformar a sociedade, e sim, mostrar como ela é. Anti-ético é mentir, é induzir alguém a falar alguma coisa”. Ele afirma que “a sociedade é perversa, gosta de dar risada dos outros e se sente bem em ver o vilão ser punido”. Para ele, o termômetro para identificar qualquer atitude anti-ética é a audiência. _ Nesses programas, o jornalismo funciona como um recurso extrajudicial. No auditório do Varela, entidades de classe ou indivíduos com seus casos particulares buscam apoio, levam faixas, protestam. Para Jô Moreira, pauteira do Balanço Geral, Varela é o “advogado do povo baia-

Gravações na Estação da Lapa, em Salvador, abril de 2007.

no”. Ela afirma que o apresentador da TV Itapoan continuará tendo bons índices de audiência devido à credibilidade conquistada durante seus 30 anos de carreira. _ A direção do Se Liga Bocão se inspira em fórmulas experimentadas em outros programas, como o Sem Meias Palavras, exibido em Pernambuco. É daí que nasce a provocação do repórter aos presos nas delegacias, a abordagem bem humorada do crime, pura exploração para o entretenimento - uma das funções do jornalismo, segundo o diretor do programa. Questionado sobre o caráter apelativo do programa, Zé Eduardo afirma: “Depende da forma como encaramos o termo ´apelativo´. Nunca precisei apelar para ter audiência no programa. O que acontece é que o programa é povo e o povo é apelativo”. _ “Varela não precisa ser apelativo ou sensacionalista, porque ele tem muita credibilidade entre os baianos”, defende a pauteira do Balanço Geral, que admite o comportamento polêmico do apresentador. “Ele é polêmico, mas defende os interesses das pessoas que precisam. Ele incomoda as autoridades, mas dá espaço para réplica”, conclui. Opinião Popular _ A audiência desses programas costuma ser alta, mas há quem questione as suas “boas intenções”. Para muitos, os apresentadores se aproveitam da popularidade para conquistar cargos políticos.

_ Por outro lado, os fãs de Zé Bim se multiplicam. “Sei que é jornalismo, mas pra mim é pura diversão, humor.”, afirma Fernando Cunha, 21 anos, dono de uma das comunidades dedicadas ao repórter no Orkut. Outro segmento do público prefere freqüentar os pátios das emissoras para fazer apelos e agradecimentos. Pedem emprego, carrinho de bebê, isopor para vender picolé, tratamento de saúde. Vale tudo no espaço do povo. Em geral, a ajuda vem do próprio público. Nos casos mais comoventes, o apresentador costuma intervir.

“Um pouco sensacionalista, um pouco realidade. Acho que está atendendo às necessidades do povo, apesar de haver outras formas de se fazer jornalismo popular”. Márcio Silva, 37 anos.


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“O que eles discutem é pertinente, mas não da maneira como eles colocam os temas: partem para a baixaria. Não votaria neles de maneira alguma”. Luise Xavier, 21 anos.

Heraldo Borges, 20 anos.

“São programas que trabalham com o dia-a-dia da população. Acho que esta é a forma mais viável de tratar desses temas, já que não temos outros meios”.

José Arnaldo, 55 anos.

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_ Muitos comunicadores se aproveitaram da visibilidade midiática para tentar a carreira política. Em Salvador, o exapresentador do Balanço Geral, Fernando José, foi eleito prefeito de Salvador em 1988 pelo PMDB, mas sua administração não convenceu. O homem que “matava a cobra e mostrava o pau”, como ele mesmo dizia, perdeu na política e não conseguiu retornar aos programas populares. _ A promiscuidade entre comunicação e política existe ainda hoje. Raimundo Varela, pela segunda vez consecutiva cogita a possibilidade de disputar as eleições municipais de Salvador. Em 2002 desistiu da disputa eleitoral, mesmo apresentando bons índices em pesquisas de opinião. _ Zé Eduardo, concorrente na tela, torce para que Varela abandone o programa, mas afirma: “Se ele pedisse meu conselho, diria que não deixasse o jornalismo”. Sem pudor, diz que “na TV, só é possível fazer 2% do que é preciso fazer na política”. _ Em seus comentários diários na televisão e no rádio, Varela opina, principalmente, sobre as questões sociais e políticas de Salvador, paparicando e criticando autoridades ao seu bem entender. É uma ferramenta que nenhum outro político tem. Nem mesmo o atual prefeito da cidade. _ Recentemente , Varela passou a contar com a atuação do repórter performático Adelson Carvalho, seguidor do “estilo Zé Bim”. Diantes dos problemas da cidade,

ele se revolta com as autoridades, tira o seu cinto e ameaça bater nos culpados. Depois da atuação, ele diz: “Varela, eu vi!”. Após o crescimento do programa Se Liga Bocão, o programa Balanço Geral foi reforçado com os comentários políticos de Samuel Celestino, colunista do jornal A TARDE. O posicionamento de Celestino é muito respeitado em função do seu status de colunista. Com a presença do comentarista, o político-comunicador pretende atrair a classe média, ampliando sua audiência e conseqüentemente potencializando seu eleitorado. Resta saber se ele vai ter coragem de abandonar a sua condição de “crítico” e passar a ser o de alvo das críticas. Segundo Varela, a decisão está “nas mãos de Deus”. _ No caminho contrário ao do apresentador da Tv Itapoan, o ex-prefeito Antônio Imbassahy fez um curso de radialismo e vem recebendo propostas de algumas emissoras de rádio baianas para assumir um programa popular. O político pretende disputar as eleições municipais de 2008. _ A permanência do modelo de jornalismo popular na televisão brasileira pode ser explicada pela falta de canais de diálogo entre a sociedade e as esferas de poder. Enquanto a democratização dos meios de comunicação não acontece, as perspectivas de um novo telejornalismo popular ficam à mercê das pesquisas de audiência. Enquanto a casa do jornalismo popular não cair, figuras como Zé Eduardo e Varela continuarão intermediando a indignação do povo, que insiste em gritar nas telas da TV: “Queremos solução”.

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Política x Populismo

“Acho que eles usam muito o sofrimento do povo para se promover. Não gosto muito desse tipo de programa”.


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Divulgação

E se você encontrar GIA no meio do centro da cidade? Nós encontramos...

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Texto Carolina Garcia e Luigi Piccolo

_ O ano é 2003, os EUA acabam de invadir o Iraque. Ao sair do trabalho, um senhor de cabelos quase grisalhos resolve parar na Praia do Porto, para tomar uma água de coco e assistir ao pôr-do-sol. De repente, uma revoada de balões vermelhos lhe toma a atenção, um cai ao seu lado e lhe pergunta, numa pequena etiqueta: “E se fosse uma bomba?”. Choque maior tomou a senhora que encontrou por acaso um jovem estudante universitário dormindo sobre uma cama confortável, enrolado em seu lençol, no meio de uma praça. Aos policiais ela afirmou, com toda certeza, “isso aí é briga com os pais, rebeldia”. “Isso” era mais uma proposta de Interferência Ambiental, que, muito longe de ser uma ação de grupos terroristas ou de rebeldes sem causa, sabe muito bem onde


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ações são bancadas por nós mesmos, até porque nós não seguimos um calendário, quando pinta a vontade de fazer algo, a gente se ajeita e divide os custos. Rola uma grana quando convidam a gente pra fazer um trabalho, oferecem um valor e a gente faz os trabalhos em cima desse valor que nos é dado”, afirma Ribeiro. Mas logo ele deixa claro que isso faz parte da alma do coletivo e não da alma do negócio: “a base do nosso trabalho é a precariedade. Até pelos recursos de que dispomos e pela nossa intenção mesmo de trabalhar com materiais baratos, tudo nas ações é feito com muita simplicidade e precariedade”. _ Os artistas também incentivam os espectadores a fazerem eles mesmos suas próprias interferências. Coisas simples, como carimbar uma mensagem positiva em sacos de pipoca ou, em vez de jogar no chão os panfletos publicitários distribuidos pela cidade, fazer origami com eles. Tudo é válido para arrancar um sorriso, uma careta, um grito de espanto. Para chamar a atenção de quem não tem tempo para mendigos dormindo em praça pública, guerras no Oriente Médio e uma pausa para a arte.

O GIA conta com uma rede grande de parceiros em todo o Brasil, como os coletivos Poros (BH), Laranjas (região Sul), Entreatos (Vitória), Esqueleto Coletivo (São Paulo), além dos também soteropolitanos Turbilhão Urbano e COLAtivo.

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Parcerias

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atua e o que quer atingir: a paisagem urbana e o automatismo cotidiano em que vivem os seus moradores. _ Em Salvador, a maior referência dessa forma de manifestação artística é o GIA, Grupo de Interferência Ambiental, que usa e abusa das mais diversas maneiras de intervir no dia-a-dia das pessoas que transitam pelas zonas de maior circulação da cidade. Para capturar a atenção do trabalhador apressado, o grupo apodera-se dos objetos e símbolos típicos da paisagem urbana e da publicidade, para então subvertê-los à sua maneira. Colam plaquetas de banheiro por toda a cidade durante o carnaval, criam uma grande fila na porta do Elevador Lacerda, vendem absolutamente nada em panfletos em branco. _ Extravagância, maluquice, coisa de artista? Bem, ao menos você parou, respirou e chegou a alguma conclusão: é isso que uma interferência ambiental bemsucedida pretende de seu espectador. _ “O grupo surgiu em 2002, com vontade de ir pra rua, de experimentar o não-convencional. Na formação inicial éramos eu, Everton Marco, Mark Dayves e Cristiano Piton. Depois entraram e saíram outras pessoas, até chegarmos à formação atual,

com Pedro Marighella e Ludmila Britto”, explica o designer Thiago Ribeiro. _ Transformando lugares como a conturbada Avenida Sete numa moldura e utilizando o elemento surpresa a seu favor, o GIA vai abrindo caminho para que a arte contemporânea deixe pouco a pouco as galerias e museus e vá dialogar com as pessoas nas ruas, praças e muros. “Apesar de existir, sim, o questionamento institucional, não somos contra os museus (o coletivo recentemente apresentou seu portfólio no Solar do Ferrão, em exposição que comemorava o aniversário de Salvador). Só que achamos importante desmitificar essa idéia de que ‘arte, só na galeria’. Arte pode e deve estar na rua, onde as pessoas circulam e vivem”, opina Ludmila Britto. _ Distante do apregoado vanguardismo que acomete alguns artistas contemporâneos, o GIA quer mesmo é ganhar as ruas. “Não queremos rótulos de nada, e tudo que rotulam atualmente como ‘algo de artista’, a gente procura fugir. Mas não podemos renegar nossa base, a nossa formação acadêmica. Porém nossa proposta de comunicação com as ruas é muito forte em nós e por isso é que queremos propor a fusão dessas duas vertentes”, explica Ribeiro. _ Apesar da falta de apego a nomes e épocas, os artistas do GIA esclarecem que têm influências importantes, mas que não as vêem como fronteiras em seus trabalhos. Elas iriam desde o Movimento Neoconcreto a nomes como Hélio Oiticica, Artur Barrio, Paulo Bruscky e todos os que fizeram experimentações nos anos 50, 60 e 70. _ Com poucos recursos, independentes e sem patrocínio, o GIA não poderia ser mais soteropolitano. “Muitas das nossas


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Texto Tarsila Guimarães | Foto Sergio Brito

_ A história da tatuagem se mistura com a própria evolução do homem. Foi no Egito antigo que a tatuagem, feita com perfurações que introduzem pigmentos na pele, foi praticada pela primeira vez. Os nativos da Polinésia, Filipinas, Indonésia e Nova Zelândia (maori), tatuavam-se em rituais complexos, sempre ligados à religião. Os maori se destacaram pela criatividade do Moko, tatuagem tradicional feita no rosto. _ Em 1691, o pirata e explorador William Dampier, em uma de suas viagens aos mares do Sul, levou para Londres um nativo com o corpo todo tatuado. Giolo, o Príncipe Pintado como ficou conhecido, virou sensação da sociedade londrina fazendo exibições em praças, mercados e circos.

Até a chegada do Príncipe Pintado, a arte da tatuagem era ignorada pelos habitantes da Europa. _ O capitão inglês James Cook é considerado o pai da palavra “tattoo”. Ele escreveu em seu diário a palavra “tattow”, também conhecida como “tatau”, que era a reprodução do som feito durante a execução da tatuagem, onde se utilizavam ossos finos como agulhas e uma espécie de martelinho para introduzir a tinta na pele. Ele conheceu a técnica de pigmentação da pele em sua viagem pelo Taiti e Nova Zelândia. No século XVIII a tatuagem havia se tornado bastante popular entre os marinheiros, particularmente entre aqueles que navegavam pelos mares do sul. No século XIX não havia tatuador

profissional, embora muitos amadores estivessem a bordo dos navios e presente nos grandes portos. _ A tatuagem elétrica chegou ao Brasil em junho de 1959, através do dinamarquês Knud Harld Likke Gregersen, que ficou conhecido como “Lucky Tattoo”. Knud dizia que suas tatuagens davam sorte, e em menos de seis meses, ele já era notícia de TV: foi ele quem tatuou um dragão no “Menino do Rio”, da famosa canção de Caetano Veloso. _ Hoje em dia existem inúmeras informações sobre os estúdios e os cuidados que se deve ter com a tatuagem. Além disso, só na Internet, milhares de desenhos estão disponíveis para quem quer se aventurar no mundo mágico da tatuagem.


_ Como a tradução do inglês já diz, body muds são procedimentos de modificação corporal. Entre algumas das formas de modificação estão:

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Body mud

Implantes 3D _ São implantes subcutâneos geralmente feitos de silicone, geralmente são usadas esferas e formas pontiagudas. Branding _ O branding é uma queimadura na pele. Essa modificação é feita com o aquecimento de chapas de aço que tem o formato do desenho a ser tatuado. A pele fica marcada com a cicatrização da queimadura provocada. É necessário um tratamento especial no local onde foi queimado para evitar infecções. Suspensão corporal _ A suspensão corporal (suspension) é o ato de ser suspenso ao ar com ganchos enfiados na pele. Deve ser feita apenas por profissionais. _ Para a maioria dos praticantes, a suspensão corporal geralmente é feita para meditação. Eles acreditam que através dela pode-se chegar a um nível mais elevado de consciência espiritual. _ São usados ganchos de carne (usados em frigoríficos e açougues) e de pesca, para pendurar tubarões, por exemplo. Os ganchos são inseridos com ajuda de agulhas para perfuração. Alguns tipos de suspensão: caixa, coma , joelho, suicide, crucifix e superman. Tongue splitting _ Também conhecido como bifurcação da língua, é um tipo de modificação corporal na qual a ponta da língua é cortada em duas partes. O tongue split era muito usado no império bizantino como uma forma de punição.

Fotos tiradas durante a 1ª Convenção de Tatuagem da Bahia, em 2006. Em 23, 24 e 25 de novembro de 2007 acontece a segunda edição do evento.

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Scarification _ É uma modificação permanente do corpo e consiste em fazer desenhos na pele através de cicatrizes. O scarification ou escarnificação geralmente é feito com bisturis bem afiados que cortam a pele dando forma aos desenhos. Essa prática era usada em rituais de tribos australianas aborígines para marcar a mudança de status social ou ainda a puberdade dos integrantes das tribos.

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No orkut existem mais de 600 comunidades para quem tem e gosta de tatuagens.


CUBO MÁGICO

A linguagem é um vírus. W. Burroughs Ilustração Andréa May

Cara amargo Vinícius Carvalho

No dia em que ela ficou fácil

O que é uma revista, afinal?

_ Como uma dama com o sorriso indecifrável e o vestido vermelho esvoaçante, a música sempre conheceu o seu charme. Impetuosa, sabia que não era complicado conquistar a atenção de alguém: bastava que estivéssemos ali, mesmo que só por estar, para que ela trouxesse melodias e aromas, uma lembrança a cada nota. Quase sempre pegos de surpresa, o nosso mundo parava por instantes. Mas hoje, no meio da facilidade de encontrarmos aquela canção que um dia se fez de difícil, algo dessa magia parece ter ficado pelo caminho. Não que na vida as coisas se percam, mas como disse alguém: tudo se transforma...

_ É um veiculo de comunicação, um objeto, um produto, uma marca, um negócio. Todas as definições acima estão corretas. Prefiro, porém, ficar com o editor espanhol Juan Canos, que define “revista” simples e unicamente como “uma história de amor com o leitor”. Escrever uma matéria sobre revistas foi, então, muito mais do que uma obrigação de estudante. Foi um grandessíssimo prazer.

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Renata Cerqueira

Davi Carneiro

_ Seis Linhas, Disseram-me, Não me assusto, claro, A angústia é para os que lêem, Prático, telegramático, dizem, Como a vida, as palavras e os textos precisam ser crus, não inconsumíveis, Eu de fato nunca escrevi, só organizei palavras, E isso pouco me importa, A eles sim, Sentem pena e até riem pois não podem morrer, mas há muito ficaram cegos, Eu definho, mas continuo a enxergar, Coitados.


CUBO MÁGICO

É como vômito Eric Luis Carvalho

_ Tem vontade própria. Não escrevo pra que me leiam. Ou para me “narcisar”. Escrevo para saciar a vontade. Escrevo para que o vômito não se perca. Para que faça marcas. E abra cicatrizes. Escrevo apenas porque escrevo. São as excrecências tomando forma. Reciclam-se. E já se pode voltar a ingeri-las.

Desgosto de filho Carlos Eduardo Oliveira

Poço

Nilton Lopes _ Em um desses dias ouvi Maria Bethânia cantar que amores e paixões são águas doces e salgadas. Em meus pensamentos, fico me perguntando se é verdade que existem pessoas nesse mundo que precisam conviver para sempre com o semi-árido intenso de seus corações. Com medo de me olhar no espelho pergunto: alguém aí se habilita a criar algum poço artesiano de sensações?

Memórias quase póstumas Laís Furtado

_ Quando minha professora louca do primeiro semestre de jornalismo me disse que jornalistas morrem aos 50 de ataque cardíaco, eu não acreditei. Ninguém me convenceria que uma simples reportagem sobre uns orientais iria me matar. Ledo engano. Nunca pensei que aos 22, eu já estaria com meu primeiro marca-passo! Conclusão: não quero mais ser jornalista. Vou largar tudo pela jardinagem.

_ Meus pés às vezes se confundem com o chão escuro, mas eu não sei o quanto tem de mim nesses móveis e enfeites, acho mesmo que não tem nada, apesar de ter deles em mim. Sou só mais um conteúdo desse museu, desse antiquário. Como tudo aqui, estou inanimada e inativa, esperando que o sol chegue e combata o mofo que quer se apropriar da casa. Os raios e o calor vão sublimar os pensamentos mais úmidos e talvez garantir a secura de outros tantos.

Obrigada, seja quem for Larissa Paim

_ Ao bom samaritano que fez a bondade de colocar com cuidado o cartão do estacionamento e um bilhete no meu pára-brisa, o meu mais sincero obrigada. O bilhete simplesmente dizia: “Tava no chão”. Assim, sem um nome a quem eu pudesse agradecer mentalmente. Enfim, obrigada por me ajudar, sem nem me conhecer. Por não passar reto pelo cartão e seguir com a vida, afinal, nem era problema seu... Prometo tentar fazer o mesmo por um distraído adiante.

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Nina Neves

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Tacos e tamancos

_ Eu não quero ser William Bonner. Minha mãe, ao ler isto, certamente sentiria uma fisgada no peito. Mas não quero! Nada contra: até nutro uma simpatia por ele, que parece realmente querer dizer tudo o que lê no teleprompter. É que não posso: um ar de Clark Kent me falta; os fios brancos ordenados no topete, tenhoos espalhados e precoces. Não, serei só jornalista, à espera de que alguém me descubra. Menos minha mãe, que diz que só morre depois que me assistir dando “boa noite” no Jornal Nacional.


CUBO MÁGICO

O QUARTO

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Ilustração Vânia Medeiros

O RELÓGIO Nilton Lopes

O ARMÁRIO Carlos Eduardo Oliveira

A CAMA Breno Fernandes

_ Na parede do meu quarto tem um tempo que não pára. Uma máquina que vive a girar, estática, num ritmo alucinantemente frenético. Na medida em que ela trabalha todas as outras coisas ao redor vão ganhando mais acúmulo de experiência. Por ela tudo envelhece. Essa máquina, presa na parede do meu quarto, quase sempre é imperceptível. _ Talvez pela minha recusa aos números. Se ao menos a contagem do tempo fosse em palavras... O fato é que quase nunca me dou conta de que seu trabalho revela a mutação constante dentro de mim, as transformações sensíveis que acontecem em tudo à minha volta. Lança mão do profundo mistério do que há por vir embalado pelo som sorrateiro, sutil e repetitivo... _ Tic! Tac! Outros momentos! Tic! Tac! Outros aromas. Tic! Tac! Outra paisagem na janela. Tic! Tac! Outro eu. E, quando olho para o porta-retrato, Tic! Tac!, lembro docemente que o relógio – aquela maquininha do tempo presa em minha parede – simboliza a incessante e natural mobilidade das coisas, da qual ninguém ainda consegue fugir. _ Talvez pensaria sobre as incertezas que esse tal movimento da máquina queira me dizer, ou sobre a possibilidade de o tempo correr sem arestas por entre ponteiros dinâmicos. Até mesmo acharia que a máquina amedronta as pobres figuras fixadas em algum lugar da vida, algum momento de felicidade, algum paraíso. Mas, agora, percebi que o tempo está parado, sem poder continuar a passar. Então, me levanto, troco a pilha do relógio, e aí volto a pensar que na parede do meu quarto tem um tempo que não pára.

_ Qüiiiiiiiiiiii. Rangido de porta entreabrindo. As dobradiças murmuram. Uma fresta, ameaça de sombra a derramar-se no chão. Lá dentro é escuro como o interior de uma noz. Hermeticamente escuro. Só vejo um facho vertical de breu, uma fenda na grande noz quadrada e sem arestas a revelar o negrume. _ Há um espelho na porta, mas não me vejo no ângulo de retrovisor. Não há puxadores do lado de dentro, mas algo pediu passagem, quer vir à tona. Espero. Nada se apresenta. Olho fixamente. Nada reluz coisa alguma. Nada quer sair da grande caixa de madeira grossa e envernizada. Terá hesitado? Baratas inebriadas pela naftalina? Penso: serão os cabides, em revolução, se acotovelando? A perna de uma calça jeans ensaiando um pontapé? O mofo, organizado, vazando? Os Menudos ressuscitando do velho pôster colado por dentro? Um amante que não tive gerando-se? Asfixiando-se? Espero, apreensivo. Nada deixa a ânfora selada, feita pra ocultar. _ Pés plantados, eu sou o móvel. Nem um estalo de gaveta. Silêncio. Se eu fechasse a porta e uma mão de dentro me impedisse? E se ela me arrastasse para dentro daquele sarcófago? Não corro o risco. Vontade de passar a chave, de longe, com o auxílio da vassoura. Depois lançar a Caixa de Pandora ao Dique. Cogito, nada surge. Nem uma aranha de pernas capilares. Nada. Sou um criado-mudo. Perplexo. Trancado de medo. Eu: feito pra ocultar. _ O fenômeno acontece. Em mim. De súbito, alguma coisa me destrava a boca por dentro. Rangido de maxilares entreabrindo. Digo: ei, seja lá o que for, saia já desse armário! Nada responde. Claro. Rio. De mim. Meus pés ganham rodinhas; agora, sim, sou móvel, mobilizado. Saia já desse armário, criatura enrustida! Vamos, venha à luz! Não é apertado aí dentro? Rio. Amadureço a idéia de um closet. Prateleiras abertas, feitas pra deixar à vista. Portas de correr. Muito branco. Toco o puxador, vou abrir a porta. A porta fecha-se.

_ É como estar num caixão – aliás, o local que eu aconselharia aos leitores de “Diário de Um Mago” prestes a fazer o Exercício do Enterrado Vivo. São apenas 4,6m² de área total – 25cm de altura. Do nariz até o limite superior, só há 9cm de espaço (7cm se estiver com as mãos sob a cabeça). Você fica tão perto das tábuas, que consegue ver com detalhes seu relevo, parecido com impressões digitais, inclusive em sua unicidade. É também como estar numa prisão: As oito tábuas verticais, dispostas simetricamente, remetem, num piscar, a grades. Isto se você não for um estudioso do léxico, pois estrado (do lat. stratu) – como chamamos o conjunto – parece derivar de estrada (do lat. strata), e grades e estrada são signos antagônicos. Mas suponhamos que você seja alguém normal e voltemos às tábuas. _ Não ouse tocá-las. Elas soltam estilhas que ferem as pontas dos dedos – digital contra digital: pacto de sangue? É como se não quisessem ser violadas, logo agora, passados mais de 30 anos que estão ali, sustentando o sono e os sonhos de gerações. _ O lugar cheira a abandono, parece de chulé. Teias de aranha aqui e acolá – há algo lá – em algum ponto sob ou sobre essa fina camada de poeira, há algo de proibido, algo que deveria ser esquecido. Não é bom voltar ao lugar onde antes, aos 4, 7, 12 – quando você podia até ficar de lado –, habitavam os seus monstros. Agora, não existem lados, não dá pra deixar de lado: é encarar o vazio, as grades nas suas fuças e sofrer antecipadamente a claustrofobia de uma estrada rumo a seu caixão.


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CUBO MÁGICO


CUBO MÁGICO

O ESPELHO Marcos Palacios _ Fixou ansiosamente o olhar na imagem e julgou ver uma sombra passar furtivamente, bem lá no fundo. O resto da noite deixou-se ficar em frente ao espelho, mas acabou por adormecer quando já raiava a manhã e nada mais pôde ver. _ Nas noites que se sucederam, os movimentos no espelho voltaram a se repetir. A princípio, como da primeira vez, como uma sombra furtiva. Aos poucos, porém, a imagem foi se tornando mais e mais nítida, adquirindo contornos, formas delineadas. _ Afinal, uma noite, sua imagem mostrouse por completo. Lá estava ela, bem no fundo do espelho, como que temerosa de chegar mais perto, escondendo-se por trás das cortinas e móveis ali refletidos. _ Nem em seus sonhos mais doces, ele vira uma mulher tão encantadora, de formas tão perfeitas. Movia-se com uma graça infinita, uma leveza que enchia de encantamento o deslumbrado rapaz. Do lado de lá do espelho, ela acenava para ele, chamava-o, atraia-o. _ Mas como tirá-la de lá? Como libertá-la? Como tocar, como possuir aquele corpo que o enlouquecia, que se havia tornado a razão de seu viver? - Meu amor a libertará! Estou certo disso! Meu amor será mais forte de que todas as magias, todos os encantamentos! _ E ele continuava a cortejá-la, noite após noite, noite após noite. _ Até que, finalmente, numa madrugada fria, sem qualquer aviso, toda lampeira e pimpona, ela saiu de dentro do espelho.

A JANELA Luigi Piccolo _ Exigiu, antes de mais nada, casar de papel passado no cartório e mostrou logo ser frívola, mandona, mesquinha, ciumenta, cheia de exigências, mentirosa, fuxiqueira e implicante. _ Como se tudo isso não bastasse, ela era suja, suarenta e péssima na cama. _ Ele agüentou o quanto pôde. Até que um dia, perdeu de vez a paciência, entrou no espelho e nunca mais saiu de lá.

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Rabuga

Caroline Feitosa estuda Psicologia na UFBA e não sabe se é a criadora ou a criatura. Mais tiras: http://www.fotolog.net/rabuga

Ali -------------------- todo lugar-lugar algum Aqui ... _ Eis que de súbito, na densa massa escura da madrugada, reconheceu-se o mundo em dois planos paralelos que, obedecendo às regras matinais, caminharam do tímido azul-espacial à cor-invisível que define todas as coisas. _ (No horizonte, a mais perfeita das retas desenhadas à mão-livre, misturaram-se mar e nuvens e tudo aquilo que os olhos não podiam – e ainda não podem – alcançar. Era ali que o celeste do céu evaporava-se nas profundezas do vácuo e onde morava também todo e qualquer tipo de besta devoradora de marinheiros). _ Que prodigioso festival (!), pensariam os do camarote. No céu dançava um astro solitário, escondido, vez sim, vez não, sob vinte véus brancos; enquanto treinava cada flexão e pirueta de seus raios dourados. Logo abaixo, o mar e todas as pedras que bóiam sobre ele davam vida a uma série de bailarinos coadjuvantes; criaturas coloridas, fadadas ao insucesso e à falta de talento, mas de uma graciosidade nunca antes vista por essas bandas. _ E num piscar de olhos, ia célere o tempo deleitado. Ao fechar das cortinas, dissolver-se-ia novamente a cor definidora num misterioso caldo negro repicado de brilhantes, e nada mais seria - apenas os malandros sobreviveriam a um mundo de pálpebras fechadas.


Ilustração Daniel Bueno

Mestre pela FAU-USP, atua como designer gráfico e ilustrador. Em 2006, o livro “Um Garoto chamado Rorbeto” (de Gabriel O Pensador), com ilustrações suas, levou o Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro Infantil. Participou do anuário da Society of Illustrators de Nova York em 2004 e 2005. Recebeu o prêmio HQ Mix em 2004, como Revelação do Ano e, em 2007, como Melhor Ilustrador de Livro Infantil.

ILUSTRADO


A Universidade Federal da Bahia ap贸ia a Lupa www.ufba.br


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