Celso Ludwig sobre a exterioridade

Page 1

CELSO L U O W I G P A R A U M A FILOSOFIA JURÍDICA DA LIBERTAÇÃO: Paradigmas da Filosofia, Filosofia da Libertação e Direito Alternativo

uu u E D I T O R I A L


© Copyright 2006 by C e l s o Ludwig EDITORA Conceito Editorial

Editor: S a l e z i o C o s t a Conselho Editorial: Gilberto Bercovici José Antônio P e r e s G e d i e l Lenio Luiz Streck Martonio M o n f A l v e r n e Barreto L i m a Orides Mezzaroba V a l d e m a r P. da L u z Vicente Barreto C o o r d e n a ç ã o Editorial: R e n a t a Ângelo Editoração e Capa: Rodrigo Dias Pereira Revisão: Cidnei R a u l S o a r e s

Catalogação na Publicação: Bibliotecária Cristina G. de A m o r i m C R B - 1 4 / 8 9 8 L948p L u d w i g , Celso L u i z Para uma Filosofia Jurídica da Libertação: Paradigmas da Filosofia da Libertação e Direito A l t e r n a t i v o / C e l s o L u i z L u d w i g - Florianópolis: Conceito E d i t o r i a l , 2006. 240p. ISBN

85-7755-024-9

1. Direito-Filosofia - 2. Sociologia Jurídica - I. Título C D D - 340.1 Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, a violação dos direitos autorais é punível como crime, previsto no Código Penal e na Lei de direitos autorais (Lei N° 9.610, DE 19.02.1998).

C L C D i s t r i b u i d o r a de L i v r o s : Endereço: Rua F a r r o u p i l h a , n° 153, bairro C a m p i n a s C E P : 88117-100 São José - SC T e l e f o n e / Fax: (48) 3240 1300 conceitoeditorial@terra.com.br Impresso no Brasil / Printed in B r a z i l

Para Guilherme Ludwig, filho querido.


PARA UMA FILOSOFIA JURÍDICA DA LIBERTAÇÃO: Paradigmas da Filosofia, Filosofia da Libertação e Direito Alternativo

/.Vi

C A P Í T U L O III

A EXTERIORIDADE

1 Configuração No capítulo anterior, procedi à análise do pensamento filosófico, apontando como categoria central a Totalidade, lógica dominante nos diferentes paradigmas. Foi indicado o caminho da multiplicidade à unidade, caracterizado como uma "lógica da totalidade", fundada em "o M e s m o " , excluindo a possibilidade de uma fundamentação assentada na categoria da exterioridade. Na esteira da reflexão dusseliana, registramos a eticidade do fundamento na lógica em que figura como decisiva a categoria da totalidade, e já enunciamos como contra-imagem o sentido da eticidade a partir de um outro lugar, a exterioridade. Dussel, a quem continuo seguindo de perto neste capítulo, em seus escritos, detémse na análise das obras de M a r x , visando desocultar como categoria fundamental (fundamento originário) do pensamento marxiano a exterioridade e não a totalidade. O inten1

2

1

2

R e f i r o - m e , p r i n c i p a l m e n t e , às seguintes obras: D U S S E L (1988,1985,1990). D u s s e l p r o c u r a m o s t r a r q u e , a o contrário d o q u e a f i r m a m K a r e l K o s i k e G e o r g L u k á c s , a categoria da t o t a l i d a d e só é a categoria f u n d a m e n t a l do c a p i t a l "já d a d o " ; e que a p o s s i b i l i d a d e do devenir originário do c a p i t a l se dá d e s d e a categoria da e x t e r i o r i d a d e . ( D U S S E L , 1988, p. 57 e segs.)


P A R A U M A F I L O S O F I A JURÍDICA D A LIBERTAÇÃO: C E L S O LUDWIG

to dusseliano não se limita, no entanto, a apresentar esse novo enfoque. Mostra, primeiro, como ocorre o processo de subsunção da exterioridade (que é sempre também espacial) à totalidade, e segundo, revela o sentido da exterioridade para o pensar que se situa fora ("mais além") da lógica da totalidade.

2 A Totalidade e a Exterioridade em Marx O ponto de partida afirmativo, aqui, será a vida concreta das pessoas. Dussel (1998, p. 19) afirma que M a r x desarrolla, no solo en los Grundrisse, sino tambien hasta el final de /:/capital, una ontologia dei capitalismo desde una metafísica de la vida, la sensibilidad humana c o m o necesidad, de la persona dei trabajador c o m o exterioridad.

Nesse empreendimento - pensar Marx a partir da obra do próprio Marx -, esclarece inicialmente na obra La producción teórica de Marx: un comentário a los grundrisse (1998, p. 29-31) a preocupação metódica do filósofo na construção das necessárias mediações para compreensão e explicação da realidade. M a r x inicia a reflexão dos Grundrisse desde o nível mais abstrato sobre a questão da produção em geral. A análise procedida não tem, no entanto, caráter histórico (origem da produção na história), mas sentido essencial (determinações comuns a tudo que se denomina produção). Interessam, portanto, as determinações essenciais comuns a todo homem no ato em que produz. A essência para M a r x consiste nas determinações comuns a todas as coisas que são consideradas as mesmas. Anota Dussel (1998, p. 32) que

P a r a d i g m a s da Filosofia, F i l o s o l i a da Libertação e Direito Alternativo

Las determinaciones son para M a r x - como para H e g e l - Io que para Aristóteles era definido como la " f o r m a " (wor/e): momento constitutivo esencial de la cosa.

A preocupação metódica de Marx se evidencia, por exemplo, quando assinala que a produção em geral é uma abstração. Reconhece, assim, que a constituição essencial de algo pode ser abstraída para ser pensada. Na produção em geral, ainda como exemplo, encontram-se momentos essenciais de toda produção: u m sujeito que produz; u m objeto produzido; u m instrumento utilizado; e u m trabalho passado, acumulado. Esses momentos constituem as determinações essenciais da categoria: são determinações gerais de toda produção possível. O processo metódico exemplificado com "a produção em geral" indica a doutrina marxista da essência que, posteriormente, define o capital, isto é, a essência do capital. O desdobramento metódico da descrição essencial de produção em geral apresenta dois planos distintos de abstração: a produção em si, como um todo independente, e a produção que se co-determina em relação ao consumo, à distribuição e em relação à troca. A dinâmica revela a complexidade metódica presente em tal processo. Daí a preocupação metodológica de Marx. Não nos interessa, aqui, acompanhar passo a passo esse desdobramento. Interessa tão-somente caracterizar a lógica do movimento. Porém, na p r o d u ção em si, importa ressaltar a posição do sujeito em relação ao objeto, pois revela importante indício vinculado às categorias da totalidade e da exterioridade, objetos específicos de nossa análise. Pois, no círculo produtivo (sujeito-instrumento-objeto-sujeito), o sujeito é primariamente sujeito de necessidades. O "sujeito necessidade", no ato produtivo, tor-


158

CELSÜI U D W I Í

na-se "sujeito produtor", e funda a "matéria" em sua cssi 11 cia. Em relação ao tema, Dussel (1998, p. 36-37) ressalta qii0 El "sujeto" histórico es anterior; el sujeto es el aprioride l.i "matéria". Primero está el sujeto histórico como "trahajo", y después está la naturaleza como mataria - este es el concepto dei materialismo 'histórico' o productivo.'

O método marxiano procede dialeticamente. É um movi» I mento do pensar em geral, que se eleva do simples ao c o m plexo (simples: produção cm geral; complexo: a produção nas relações co-implicadas - consumo, distribuição e troca), Nessas relações mutuamente constitutivas, constrói-se um todo. As quatro determinações referidas constituem mim nova totalidade. O próprio M a r x reconhece que a totalidade concreta, como totalidacie do pensamento, é fruto do pen sar: é uma construção. Essa construção assume no movimci i to dialético, ao constituir uma nova totalidade ao nível con»! creto, u m a autonomia, em razão da articulação com as múltiplas determinações. E aquilo que parecia oposto (pnxlu ção e consumo, por exemplo), forma parte de u m a unidade que a compreende e a explica.

2.1 A essência do capital M a r x explica a essência do capital a partir da subsunçãi i das partes (dinheiro, mercadoria, circulação) ao todo (ca Ao nível mais concreto da produção (embora ainda em caráter abstrato) devem ser consideradas as outras determinações: o consumo, a dislri' buiçao e a troca. Estas determinações devem ser tratadas metodicamrnlr por meio de relações co-implicantes: produção-consumo, produção-dli tnbuiçao e produção-troca (DUSSEL, 1988, p. 38-47).

CAI |A UMA FILOSOFIA JURÍDICA DA LIBERTAÇÃO: Hnimlmiiias da Filosofia, Filosofia da Libertação e Direito Alternativo

159

pitai). Tendo em conta que o sentido é o lugar ocupado por um ente n u m a totalidade, os elementos da totalidade (enles) restam determinados desde o fundamento da totalidade em jogo. Exemplifica Dussel (1998, p. 120) dizendo que u,i totalidade da circulação o dinheiro (ente) funciona como iluiheiro, isto é, funciona "como d i n h e i r o " desde a circulação. Porém, em outra totalidade, tem nova função. Observa Dussel que pela subsunção o ente é incluído em nova lolalidade e será compreendido a partir deste novo f u n d a mento. A s s i m conclui Dussel (1998, p. 120): Es el acto ontológico por excelência en el que el ente es fundado en un nievo nivel dei ser. El ser o la totalidad de un m u n d o subsume a sus componentes. De esta manera el ente pasa (es el 'pasaje' que eleva) a un nuevo orden [el dinero como capita/, habla Marx).

O dinheiro "como dinheiro" na totalidade da circulação, agora em relação à nova totalidade como capital, é outra coisa: é dinheiro como capital. Isto vale igualmente para a mercadoria como m e r c a d o r i a , o prodLito como produto, que passam na nova ordem a formar parte do capital. Todas as determinações, enfim, subsumidas como determinações do capital. C a d a uma das determinações (o dinheiro, por exemplo, agora tendo o capital como totalidade, assume caráter novo, distinto de sua existência no interior de outra totalidade menos geral -menos abstrata). O capital " e m geral", assevera Dussel (1998, p. 123), é a essência do capital, e "Toda esencia, como totalidad concreta es la 'unidad de múltiples determinaciones'", na expressão do próprio M a r x . A partir deste fundamento (DUSSEL, 1998, p. 137) - eis a ontologia de M a r x , primeira ontologia do capital na história


o

CELSO LUDWiG

da Filosofia -, o filósofo explica o capital em geral, isto é, na sua essência. As determinações do capital (dinheiro, mercadoria e outras) são subsumidas pela essência do capital, e no seu interior funcionam como elementos constitutivos estruturais de seu ser. São suas determinações essenciais. E n u m segundo momento (momento do "retorno dialético"), retornam ao nível concreto dos fenômenos, como formas do próprio capital - o dinheiro, por exemplo, "retorna" como componente do capital. Portanto, o que se "vê", o que aparece fenomenicamente nunca é o capital como tal. Este se situa ao nível profundo, encoberto. Somente uma reflexão ontológica permite pensar o ser de sua essência: o conteúdo último do capital como valor (DUSSEL, 1998, p. 123). Tendo presente este fato, o próprio Marx, metodológica e epistematicamente, preocupa-se em definir esta determinação universal do capital, antes da passagem a alguma particularidade, como o d i n h e i r o ; eis que as determinações particulares f u n d a m referencialmente seu sentido (sua forma no mundo) a uma determinação universal fundante da essência do capital. Na sua universalidade, o valor é a essência do capital que não aparece no mundo fenomênico. Por isso,

PARA UMA FILOSOFIA JURÍDICA DA LIBERTAÇÃO: Paradigmas da Filosofia, Filosolia da Libertação e Direito Alternativo

//./

assim, o capital como valor puro, como momento f u n d a mental da essência. Crê Dussel (1998, p. 127-128) ser esse o núcleo central da ontologia marxista: o valor como essência última do capital, como sua determinação universal. A totalidade é o capital, figurando o valor como seu m o m e n to essencial.

2.2 Capital e trabalho: a exterioridade do trabalho M a r x classifica o trabalho em trabalho objetivado e trabalho não-objetivado. Aponta que o único trabalho diferente do objetivado é aquele que ainda está se objetivando, o trabalho não-objetivo. E o trabalho como subjetividade. Na totalidade do capital, o trabalho objetivado do trabalhador já é trabalho como capital. O trabalho objetivado é desde já capital. Dessa maneira, a mercadoria, o dinheiro, o próprio capital são trabalho objetivado. Além do trabalho objetivado como capital, existe o trabalho não-objetivado, que como tal, consiste na capacidade de trabalho. Concebido negativamente, o trabalho não-objetivado é não matéria-prima, não instrumento de trabalho, não produto, não meio de v i d a ,

E l v a l o r n o e s u n a forma o m a n e r a d e a p a r i c i ó n d e i c a p i -

enfim, observa M a r x , dissociado de toda sua objetividade: é

tal: es el capital m i s m o en su i n v i s i b i l i d a d p r o f u n d a , fun-

nada de capital. E não-valor.

d a m e n t a l , esencial. L a s " f o r m a s de aparición" dei capital m i s m o e n s u i n v i s i b i l i d a d p r o f u n d a p u c d e n ser e l d i n e r o , la mercancía, el producto, e t c , c o m o capital. P e r o el va-

Concebido positivamente, o trabalho não-objetivado, em sua existência subjetiva, é o "trabalho mesmo", não como

l o r n u n c a puede aparecer e n l a circulación c o m o tal...

objeto, porém, como atividade. D i z M a r x , citado por Dussel

( D U S S E L , 1998, p . 127)

(1998, p. 139) nos Grundrisse, que

No m u n d o fenomênico, s i m , o capital aparece como dinheiro, como mercadoria, como produto etc. Define-se,

E l trabajo n o c o m o objeto, sino c o m o actividad; n o c o m o ctnto-valor, s i n o c o m o l a f u e n t e viva d e i v a l o r . . . N o e s e n a b s o l u t o u n a contradieción a f i r m a r , pues, que el trabajo


262

CELSO LUDWIG

por un lado es la pobreza absoluta como objeto, y por otro es la posibilidad universal de la riqueza c o m o sujeto y como actividad; o más bien, que ambos términos de esta contradieción se condicionan mutuamente y derivan de la esencia dei trabajo, ya que este, como ente (Daseiu) absolutamente contradictorio con respecto al capital, es un presupuesto dei capital y, por otra parte, presupone a su vez al capital.

Concebido dessa forma, o trabalho não-objetivado é o exterior, o outro do capital. E como tal (não-capital) é a fonte viva do capital. O trabalho, assim, originariamente é exterior ao capital. Nesse momento dialético caracteriza-se o âmbito da exterioridade como fonte originária do capital como totalidade. Portanto, antes de ser um ente (trabalhador assalariado, no capitalismo) do capital, é vim sujeito v i v o , fonte do trabalho enquanto atividade. Antes, não é "o mesmo" subsumido na lógica do ser do capital: é um "fora de", um "além de", uma "exterioridade" (Àusserlickeit, na expressão de Marx), um outro (na expressão de Dussel). Este assinala que Si la riqueza es el capital, el que está fuera es la 'pobreza absoluta'. Nada de sentido, //adade realidad, improduetivo, inexistente, 'no-valor'. A esta posición de la persona la hemos llamado "el O t r o " . Pero téngase en cuenta que el trabajador, en tanto hombre, puede devenir siempre aún cuando sea un asalariado - "el O t r o " que la totalidad dei capital. ( D U S S E L , 1998, p. 140-141)

É bom observar que o trabalhador, enquanto homem, mesmo na condição de assalariado é " o u t r o " em relação à totalidade do capital. Essa alteridade, no entanto, só pode ser vislumbrada desde uma lógica fundada na exterioridade

PARA UMA FILOSOFIA JURÍDICA DA LIBERTAÇÃO: Paradigmas da Filosofia, Filosofa da Libertação e Direito Alternativo

e não na totalidade. Como observei no decorrer dos primeiros dois capítulos, a ontologia pensa a questão do ser, tendo-o como fundamento. M a r x , ao desenvolver uma ontologia do capital, destaca além de seu horizonte (do capital) o não-capital: o trabalhador como capacidade e subjetividade, fonte criadora do valor, essência do capital. Eis a questão da exterioridade. O trabalho como capital aparece n u m processo de subsunção, restando incorporado à essência do capital como uma de suas determinações. Nessa perspectiva da reflexão, o trabalho como atividade - "possibilidade universal de riqueza" (Marx), admitido que toda riqueza é produto do trabalho do homem -, é "pobreza absoluta", "desnudamento de toda objetividade", "existência puramente subjetiva do trabalho" (Marx): pobre, na expressão de M a r x e de Dussel (1998, p. 138-143). A categoria "trabalho v i v o , " construída por M a r x , revela que o trabalho não é valor, mas criador do valor, pelo que o trabalhador enquanto não subsumido pelo capital não é valor, não é dinheiro, não é capital. O que seria então em relação à totalidade do capital? Desde que subsumido, passa a ser uma determinação interna do capital (o sentido dos entes se dá no e partir de seu ser, o fundamento), e em conseqüência fundado na totalidade do capital. Porém, enquanto não subsumido, é o real exterior. É o que Dussel denomina de "o outro distinto do c a p i t a l " . O trabalhador, como corporalidade, como pessoa, enquanto "não-ser" do capital, é a exterioridade. A totalidade-capital só é possível desde e a partir da existência da "exterioridade" do trabalho v i v o , do qual provém o valor, essência do capital. Dussel (1988, p. 64) sustenta que o movimento dialético do discurso de Marx tem a direção que vai desde o trabalho vivo como não-capital


164 CELSO LUDWIG

(como nada, como não-ser, como o outro distinto do capital) e fonte criadora do valor, para o capital como totalidade: Si no existiera la "exterioridad", más allá dei capital, dei trabajo vivo, no existiria el capital: <;de donde provendría su valor? Es por ello que la diferencia entre "poner (settfenf desde el capital (desde el fundamento - Criuid - de la totalidad), no es lo mismo que dar existência al valor desde el no-capital, el no-ser dei capital, desde el no-valor, desde la nada. (...) Crear-desde-la-nadti es una categoria radical, la primera, la más originaria, y a partir de la cual M a r x desarrollará todo su discurso*

Em resumo, pode-se dizer que a exterioridade é entendida como fonte criadora do valor desde o não-capital, n u m processo que se dirige ao capital, que uma vez existente, tem na totalidade a categoria ontológica por excelência. Situada a questão do trabalho v i v o (não-objetivado) como exterioridade, Marx enfrentou a questão da "passagem" para o capital (trabalho não-objetivado para condição de trabalho objetivado). A compreensão desse movimento implica em novas categorias: a capacidade de trabalho e força de trabalho. A b o r d a o tema mostrando que a capacidade de trabalho, ao contrário do trabalho objetivado, manifesta-se como pobreza absoluta (não-capital). Segundo tal conceitu5

•o* ™ v , «

n

t

o

t

e x ( l l i c a d o

e m

d

u

s

s

e

l

m s

p

i c

i 5 8 ;

^ ^

PARA UMA FILOSOFIA JURÍDICA DA LIBERTAÇÃO: Paradigmas da Filosofia, Filosofia da Libertação e Direito Alternativo

165

ação, é o pobre como pessoa o portador desta capacidade, isolada da objetividade, bem como da própria forma social da riqueza, que é uma forma determinada de trabalho objetivado. Portanto, a capacidade de trabalho é vista como a exterioridade do trabalho vivo, que enfrenta o capital como dinheiro (este é uma das determinações do capital). De maneira estrita, pode-se dizer que a capacidade de trabalho como força produtiva cria o valor, essência do capital. Em concreto, o trabalhador vende certo tempo de sua capacidade como força de trabalho e o capitalista compra a atividade que confere valor ou a força criadora do valor. No momento da compra e venda (o contrato), produz-se o ato ontológico da subsunção. O trabalho vivo (fonte de valor) torna-se dialeticamente trabalho como capital. Portanto, o trabalhador, da condição de um nada exterior - a alteridade não-objetivada -, passa à condição de uma subjetividade dominada. E nesse movimento que se situa a firmação de M a r x de que o trabalho é um pressuposto do capital, por um lado, e, por outro pressupõe o capital. O trabalho assalariado do trabalhador pressupõe o capital. Nessa nova condição, o trabalhador, que antes era subjetividade viva - sentido fundado em seu ser (como pessoa, como corporalidade) -, passa a ser um novo ente fundado no ser do capital. Cumpre lembrar que na ontologia o ente é "visto" desde o ser que o " i l u m i n a " . Enfim, o trabalho é subsumido ontologicamente: incorporado ao capital. O próprio Marx, num primeiro momento, aristotelicamente, conceitua esta "passagem" como objetivação da subjetividade do trabalhador, isto é, objetivação de sua vida. Trata-se de uma constatação fática em relação ao processo de constituição do capital. O processo de produção determinado pelo capital caracteriza-se, porém, como um processo de p r o d u -


166

CELSO LUDWIG

ção historicamente determinado, ou seja, como produção capitalista. A s s i m , o processo do trabalho subsumido pelo capital, nesta forma histórica específica (capitalismo), implica em admitir que o trabalhador deixa de possuir seu trabalho, seus instrumentos, bem como o produto do trabalho. C o m o conseqüência dessa subsunção, via contrato, o preço pago ao trabalhador não é o valor do trabalho, mas apenas o valor da capacidade de trabalho objetivado, pois o trabalhador em sua corporeidade, para poder trabalhar, necessita comer, vestirse, dormir, educar-se etc, para poder trabalhar. É por isso que sua capacidade de trabalho, nesse ponto de vista, tem valor e pode ser comprada. Não se pode, no entanto, concluir, de maneira apressada, que o trabalho v i v o (não-objetivado) tem valor, porquanto se encontra na exterioridade da totalidade do capital. Aponta Dussel (1988, p. 67) que por isso El "trabajo v i v o " nunca tendrá valor; por ello no podría determinarse su no-valor; no tendría prccio ni podrá recibir salário... porque es la "fuente creadora de valor".

Depois do contrato, e não antes, aquele que tem o dinheiro (trabalho já objetivado), uma das determinações do capital, paga (no futuro: após a efetivação do trabalho) por usar a mencionada capacidade. Consuma-se a venda da capacidade de trabalho. Juridicamente, a capacidade de trabalho muda de ente: passa a ser do proprietário do dinheiro (como capital). É o momento da negação da exterioridade do trabalho vivo, e sua afirmação como uma das determinações do capital. A totalização do trabalho consiste na alienação do trabalho, isto é, negação do trabalho vivo como trabalho vivo, e sua constituição como trabalho assalariado. Dussel (1988, p. 69) bem sintetiza a questão ao comentar os Manuscritos de Marx:

PARA UMA FILOSOFIA JURÍDICA DA LIBERTAÇÃO: Paradigmas da Filosofia, Filosofia da Libertação e Direito Alternativo

167

La perversidad ética dei capital se consuma en este momento, aun antes de la efectivización de esta compra, alienación. Un hombre otro, libre, consciente, autônomo, es transformado en una cosa, un instrumento, una mediación dei capital. Desde este momento, la categoria de totalidad comienza a cumplir su función hermenêutica, pero no antes, y nunca será la categoria originaria ni radical de Marx.

Apresentei até o momento, esquematicamente, o sentido da categoria "capacidade de trabalho" e seu processo de subsunção pelo capital, que se consuma n u m ato de alienação. A q u i , e só a partir daqui, a capacidade de trabalho torna-se força de trabalho. Eis o trabalho cotidiano, matéria que imprime forma, que consome a energia do trabalhador, que efetiva produtos. E o trabalho que põe valor; porém, não só, pois é também o trabalho que põe mais-valor. Em sua construção teórico-metódica, M a r x passa (porque necessário) para nova categoria. A s s i m como elaborara distinção no p l a no profundo entre trabalho em si mesmo (trabalho vivo) e capacidade de trabalho, até chegar à "força de trabalho", ao nível da circulação distingue entre jornada total de trabalho e tempo necessário. E a conhecida questão da mais-valia. Cabe, ainda, em que pese esquematicamente, apontar, como resumo, que no pensamento de Marx, as categorias, como "força p r o d u t i v a " , "processo produtivo", " m o d o de p r o d u ção", "trabalho assalariado", " d i n h e i r o " , "distribuição" e 6

6

A b a n d o n o , a q u i , m e t o d o l o g i c a m e n t e o s passos s e q ü e n c i a i s d e M a r x com e n t a d o s p o r D u s s e l , e m análise d e t i d a e p r o f u n d a sobre a q u e s t ã o d a m a i s - v a l i a . C o m isto, n ã o p r e t e n d o negar a importância d o t e m a , n e m d a análise f e i l a . A o contrário, ela fica s u p o s t a . C a m i n h a r e i m e t o d i c a m e n t e , t e n d o c m v i s t a o objetivo d o presente t r a b a l h o , n o s e n t i d o d a caracteriz a ç ã o d a s f o r m a s de exterioridade na F i l o s o f i a da Libertação, c o n s i d e r a d a a relevância d o p e n s a m e n t o d e M a r x p a r a tal f i m .


168

CELSO LUDWIG

outras, constituem determinações reais do capital e se apresentam como categorias intratotalizadas, porque estão fundadas no capital (seus sentidos se estabelecem na e pela ontologia do capital). As categorias como "trabalho v i v o " ou "capacidade de trabalho", no entanto, indicam a permanente presença da exterioridade em relação ao e no interior do capital. O que nos interessa sobremaneira em M a r x , neste passo, é o

PARA UMA FILOSOFIA JURÍDICA DA LIBERTAÇÃO: Paradigmas da Filosofia, Filosolia da Libertação e Direito Alternativo

169

É este o ponto de partida que se encontra " f o r a " , além, na exterioridade do capital. Portanto, o trabalho v i v o , o trabalhador concreto enquanto classe, enfim, como exterioridade, é a fonte criadora de todo valor. E é nesse sentido que o materialismo de M a r x é histórico, antropológico, e não cosmológico - eis que a relação originária não é homem-natureza. A condição de todo trabalho objetivado é o h o m e m . Registra Dussel (1988, p. 296) que

... descubrimiento de la exterioridad dei trabajo v i v o

Esta relación dei capital, de la totalidad dei trabajo v i v o ,

como fuente creadora dei valor, y, por ello, en la denun-

c o m o putiper, es la relación ética p o r e x c e l ê n c i a : la

cia de la pretensión fetichista dei capital, sólo trabajo

subsunción de dicha exterioridad es la perversidad insta-

objetivado o pasado, que afirma crear valor desde sí

lada en la esencia dei capital como "relación social" de

mismo. ( D U S S E L , 1988, p. 243)

explotación (muy diferente a la www/burguesa vigente, y que cumple con "buena consciência" Ias exigências dei

O discurso de Marx, na condição de ciência, preocupado em construir as categorias necessárias ao sistema explicativo da economia política, o capitalismo em especial, possibilitou um julgamento ético do capitalismo, pois sua crítica, histórica e socialmente, efetuou-se, de um lado, desde o proletariado (classe explorada e subsumida pelo capital), e de outro, teórica e epistematicamente, desde o trabalho vivo.

capital mismo).

7

M a r x expressa o sentido ético perverso da totalização do m u n d o capitalista. E x e m p l o claro disso é a essência nãoética da mais-valia, caso nítido de injustiça.

Em resumo, pode-se configurar a exterioridade em M a r x (DUSSEL, 1988, p. 366-372), como segue: a) O homem como sujeito do trabalho, enquanto não assalariado ou subsumido pelo capital, não-existe para o ca-

7

O conceito de ciência para Marx tem, segundo Dussel, os seguintes significados: a. crítica fundamental da economia política, em particular da economia política capitalista; b. desenvolvimento do conceito de trabalho vivo em geral, e em especial do trabalho vivo objetivado; c. elaboração de categorias minimamente necessárias para permitir um sistema explicativo da economia política; d. desvelamento ético de toda economia política possível e da perversidade específica do capitalismo; e. a consciência do proletariado como função prático-política revolucionária. Marx critica como "pseudociência" a dos clássicos (Smith, Ricardo e outros) sempre que saltam categorias ou momentos necessários para a análise, caindo em contradições por falta de abstrações adequadas. (DUSSEL, 1988, p. 286-290).

pital; simplesmente é nada; é a exterioridade porque não trabalha atualmente para o capital, para o ser do sistema. Porém é real: sua realidade situa-se para além d o ser d a totalidade; b) Antes da subsunção, o trabalhador é o outro do capital. E o não-capital como exterioridade positiva: trabalho v i v o ; c) O trabalhador - o outro do capital - é urhspobre (pauper preferia Marx), por estar despojado de tudo, porém é a fonte


270

CELSO LUDWIG

criadora de todo valor do capital: é a exterioridade como fonte criadora do valor. A s s i m é caracterizada em Marx a categoria da exterioridade. U m a vez que a totalidade (capital) subsume a exterioridade (trabalho vivo/trabalhador), Marx preocupa-se em revelar todas as determinações próprias do capital, isto é, da totalidade. Em decorrência, a totalidade aparece como a categoria hegemônica de seu discurso. N e m por isso, no entanto, é ela o fundamento ou ponto de partida. A exterioridade constitui o ponto de apoio da crítica marxiana à totalidade capitalista.

3 A exterioridade e a Filosofia da Libertação (a analética) No decorrer do capítulo II, e mais particularmente na parte final, a categoria da exterioridade se revelou como de i m portância fundamental na articulação crítica acerca da lógica da totalidade e da eticidade de seu fundamento. Da mesma forma, no esboço da analética (contra-imagem da dialética ontológica) a categoria referida foi utilizada já como novo horizonte e novo ponto de partida. Por vezes implicitamente. Quando explícita, usada abstratamente, a partir da obra de Dussel Para uma ética da libertação latino-americana. A releitura reflexiva que Dussel fez da obra de Marx revelou a importância da exterioridade como categoria; porém, agora, com mais conteúdo, com "carne" e "osso", com mais matéria: trabalho vivo do trabalhador. C o m a relevante contribuição teórica marxiana, Dussel redefine, n u m plano de maior concretude, o significado e limites dessa categoria, n u m sentido metafísico

PARA UMA FILOSOFIA JURÍDICA DA LIBERTAÇÃO: Paradigmas da Filosofia, Filosolia da Libertação e Direito Alternativo

277

(para além do horizonte ontológico do sistema: capitalismo como totalidade). Este "além de" pode ser de diversas formas (DUSSEL, 1998, p. 336-370), como segue: a) Exterioridade como anteri idade histórica or

A exterioridade do capital na condição de anterioridade histórica ao mesmo. O outro da sociedade capitalista situa-se n u m a anterioridade histórica, nas formas pré-capitalistas. Exterioridade prévia à constituição da totalidade capitalista. b) Exterioridade essencial abstrata A exterioridade metafísica é a que se estabelece entre o capital já dado e o trabalho vivo, no e pelo qual o trabalhador é o outro absoluto que se apresenta ao capital a partir de sua exterioridade. Trata-se da classe trabalhadora como outra em relação à classe capitalista; periferia como outra em relação ao mundo de Centro. Nesse sentido, Dussel compreende a exterioridade com alteridade, sempre distinta da 0

totalidade estabelecida, dorniriadora, existente a partir de si e por si. Trata-se da exterioridade enquanto enfrentamento do capital. c) Exterioridade post feskm: pauper A exterioridade se apresenta também por processo de exclusão do capital. O trabalhador subsumido (alienado) é potencial ou atualmente sempre de novo o outro do capital - desde que a lógica do capital não mais dele necessite. O outro na condição de fruto da exploração do próprio capital. A caracterização acima identifica o capital como totalidade, uma categoria de categorias, em geral. Historicamente,


CELSO LUDWIG

ao nível concreto, o capitalismo burguês é a totalidade. Nessa ótica o capital é o ser (fundamento) e o trabalho aparece como ente (fundado), como determinação do capital. Por isso, quando o trabalhador vende sua capacidade de trabalho deixa de ser o outro do capital (a exterioridade) e submerge nele, funda-se nele como uma de suas mediações: é o momento da alienação (o mesmo que não-ser). Nisso consiste o mal originário, perversidade ética intrínseca por excelência, da realidade capitalista. A reflexão de M a r x revelou a essência (perversa) da moral burguesa, fundando uma ética da libertação do assalariado. Nessa perspectiva é a conclusão de Dussel (1998, p. 355): M a r x es así, filosóficamente hablando, el ético más significativo en la crítica a la esencia perversa dei capital.

C o m o efeito dessa lógica perversa, o caráter social dos indivíduos realiza-se no intercâmbio das coisas - a função do indivíduo reduz-se à produção e compra de mercadorias. Fora dessa esfera retorna à solidão improdutiva. Além disso, o caráter social não é um momento positivo da humanidade; ao contrário, é anti-humano, dado que é essencialmente marcado pela exploração do trabalho. A socialidade sob o pressuposto do valor (essência do capital) define-se pela coisificação, isto porque o trabalho não é subsumido a partir do controle do trabalhador. A superação dessa lógica é anunciada por M a r x como sendo a grande utopia. Utopia que consiste no "mais além" em relação ao horizonte ontológico do capital: o oprimido, alienado porque subsumido no capital, tem a sua utopia, seu projeto de libertação, situado no futuro. É deste lugar que M a r x realizou sua crítica à totalidade do capital, com base numa exterioridade.

PARA UMA FILOSOFIA JURÍDICA DA LIBERTAÇÃO: Paradigmas da Filosofia, Filosofia da Libertação e Direito Alternativo

173

A totalização de uma totalidade como lógica da d o m i nação (em nosso caso, o capital como totalidade) é denunciada a partir da alteridade (utopia futura), desde a exterioridade (o pobre, concebido como trabalho v i v o , despojado da " r i q u e z a " , que se define e adquire sentido, no interior da lógica do capital - ente visto fundado no ser). E esta exterioridade configura o novo lugar do sentido determinante, do sentido fundante. Os entes (por exemplo, o trabalhador) têm seu sentido " i l u m i n a d o " pelo fundamento que se encontra fora da totalidade e não a partir dela. O sentido (ético, político, social, de justiça) não pode fundarse no capital como ser que diz do sentido do ente. A s s i m , o não-capital, o não-ser, o não-sentido, o nada não são. Porém, tal concepção resulta de um preciso fundamento: o capital como totalidade. A partir de uma fundamentação nova (categoria da exterioridade) o não-ser, o não-sentido, o nada são o real: " o ser é, o não-ser é real." A afirmação da exterioridade, nunca aniquilada completamente (porque, no caso do trabalho, é sempre virtualmente pelo menos, trabalho v i v o , e, portanto, exterior à totalização do capital), é o ponto de apoio para o rompimento da lógica da totalização em todos os níveis (na histórica, na política, na erótica, na pedagógica, no jurídico etc), e seu sentido originário fundante é um sentido de justiça. Arremata Dussel (DUSSEL, 1987, p. 238) dizendo que Pela categoria da 'totalidade' o oprimido como o p r i m i do no capital é só classe explorada; mas no caso de constituirmos também a categoria da 'exterioridade', o oprimido como pessoa, como h o m e m ^ r ^ p como assalariado), como trabalho vivo não-objetivado, pode ser pobre (singularmente), e povo (comunitariamente). A 'classe' é


274

CELSO LUDWIG

a condição social do oprimido como subsumido no capital (na totalidade); o ' p o v o ' é a condição comunitária do oprimido como exterioridade.

Nessa ótica, a exterioridade constitui-se como categoria fonte, reserva de fundamento último (ponto de partida e de chegada) da justiça. Além ("fora") do horizonte da lógica da ontologia dialética de totalização, na qual a totalidade é fundante e constitutiva do sentido da justiça, situa-se a lógica analética. N e l a , a categoria da exterioridade é reserva crítica, que possibilita romper o sentido do que é justo na lógica da totalidade, mas que pode revelar-se injusto a partir de uma compreensão com base na exterioridade. Ou então, a partir desse "novo lugar" pode revelar um " o u t r o " justo, ou uma " o u t r a " justiça: o não-ser como ser da justiça. A exterioridade é uma categoria de categorias, um conceito de conceitos. Pode dar-se ao nível abstrato ou geral: categoria de categorias, por excelência. E nesse caso, na condição de abstração em geral, constitui-se filosoficamente na exterioridade em relação à totalidade (lógica da exterioridade/lógica da totalidade). Pode dar-se também ao nível concreto. Neste caso, periferia real (América Latina), histórica e geopoliticamente em relação aos países centrais (Europa, Estado Unidos, Japão); ou trabalho v i v o em relação ao capital (do capitalismo mundial); ou trabalho v i v o em relação ao capital (do capitalismo periférico, subdesenvolvido); ou ainda, classe econômica e socialmente dominada (com reserva de exterioridade - trabalho vivo) em relação à classe detentora do poder; sexo dominado (com reserva de desejo, como fonte v i v a exterior à dominação) na totalização erótica machista; educando reduzido à ignorância (como reserva do

PARA UMA FILOSOFIA JURÍDICA DA LIBERTAÇÃO: Paradigmas da Filosolia, Filosofia da Libertação e Direito Alternativo

275

ainda-não, do " n o v o " de sentido) na totalização pedagógica; excluído, alternativo (como reserva de justiça desde a exterioridade) na lógica de totalização do Direito dominante. A exterioridade assim posta, além do horizonte da totalidade, requer em cada nível um projeto de libertação e não meramente de emancipação, pois a emancipação consiste n u m caminho dialético progressivo na busca de um "novo lugar", situado no interior da totalidade vigente. Admitindo-se que uma determinada totalidade vigente é estruturalmente injusta, a emancipação não rompe com a injustiça. A emancipação, ainda que necessária, como projeto revela-se insuficiente, porque consiste n u m movimento interno à lógica da totalidade, fundado em "o mesmo" - opera-se um eterno retorno do mesmo. A alternatividade (o alternativo ao "mesmo") só se dá a partir de novo fundamento: com novas bases históricas que surgem desde a exterioridade, como projeto libertador situado "além" da totalidade totalizada v i gente, ainda que seja caracterizada como "comunidade de comunicação", porém não se limitando ao cotejo entre a comunidade " r e a l " posta e a " i d e a l " pressuposta (conceitos caros a Habermas e Apel), mas na comunidade de comunicação "histórica" possível (segundo concepção de Dussel). N a comunidade de comunicação ideal o Outro é sempre pressuposto (o paradigma é o da comunicação intersubjetiva), mas na real é excluído porque é silenciado. O outro como exterioridade é o que está "fora" e não tem acesso à efetiva argumentação. É afetado, porém não é participante. Esse é o nível abstrato ou geral. Concretamente, o Terceiro M u n d o é o silenciado na argumentação discursiva em relação ao Primeiro M u n d o ; nas estruturas do capitalismo periférico, é o


176

CELSO LUDWIG

pobre econômica e socialmente o explorado e silenciado, bem como silenciado é o dominado em cada um dos níveis no interior do sistema (político, erótico, pedagógico, jurídico...). A exterioridade como categoria geral é também, portanto, uma categoria com múltiplas determinações. Assevera Dussel (1992, p. 96) que: En la 'Exterioridad - considerada por Levinas, por M a r x y por la Filosofia r/e la Uberación - está el 'pobre', como indivíduo, como marginal urbano, como etnias indígenas, como pueblos o naciones periféricas destinadas a la muerte.

O "pobre", em razão das mediações categoriais de M a r x , apresenta-se como um sujeito concreto (trabalhador atual ou virtual), categoria central do pensar que parte da exterioridade. Este "pobre" não tem lugar na comunidade de argumentação argumentativa, porque taticamente excluído e silenciado. Em conseqüência, não busca acordo (consenso). Busca algo anterior: a condição de possibilidade de todo argumentar; o direito de ser pessoa para poder argumentar numa comunidade de comunicação histórica possível. Portanto, é essa a condição prévia: poder ser parte histórica e taticamente da comunidade. Isto nem sempre (ou então p o u cas vezes) é possível em nome dos direitos em vigor (positivismo da dogmática jurídica vigente e sua práxis "espontânea" predominante) na comunidade de comunicação e de v i d a real (tendo que se valer, em contrapartida, de um " p o sitivismo de combate" ou do "uso alternativo do direito"). A exigência concreta de participação é em "nombre de una 'comunidad histórico-posible - ya que en la 'comunidad real, por definición, el 'pobre' no tiene

PARA UMA FILOSOFIA JURÍDICA DA LIBERTAÇÃO: Paradigmas da Filosofia, Filosolia da Libertação e Direito Alternativo

277

o no puede ejercer ' d e r e c h o s ' : p o r e l l o es p o b r e . ( D U S S E L , 1992, p. 98)

A participação na comunidade argumentativa só é possível, portanto, posteriormente ao ato de reconhecimento da exigência de ser parte. A exterioridade como categoria hermenêutica fundante legitima e confere justiça à tal exigência. A exigência impõe-se desde fora do horizonte da totalidade (inclusive jurídica) vigente. Trata-se de uma exigência de justiça, fundada na exterioridade. A justiça concretiza-se histórica e faticamente, nessa ótica, não como uma concessão paternalista da ordem moral ou jurídica vigente, ou como ato de comiseração, altruísmo ou benevolência do sistema dominante, ou então de um ato de indignação caridosa dos críticos do status quo, mas, ao contrário, como exigência ético-filosófica que tem na exterioridade, no nada de sentido, no não-ser, que é o real concreto por excelência, sua fonte originária. Além do horizonte da "mesmidade" (redução da d i ferença ao Mesmo do sistema) está a alteridade (o direito não redutível) fundante da justiça (que para ser "reconhecid a " , efetivada, necessita da "alternatividade jurídica", do "direito alternativo propriamente dito"). 8

s

A alternatividade jurídica, nas formas do "uso alternativo do direito", "positivismo de combate" e "direito alternativo, sentido estrito", será objeto de considerações no próximo capítulo.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.