DIÁRIO DO MINHO Suplemento Cultura 16-04-2014 Braga

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Cultura

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José ARCHINTO (1652-1712), cardeal e arcebispo de Milão, muito viajado por quase toda a Europa para conhecer os costumes e índoles destes povos; depois veio para Roma, onde Inocêncio XI (1676-1688) o fez vice-legado de Bolonha; seguidamente foi-lhe concedida a nunciatura de Florença, na Toscana (1686-89); com Alexandre VIII (1689-1691) obteve a de Veneza (1689-95) e com Inocêncio XII (1691-1700) a de Madrid [aqui em 1696, sucedendo a D. Frederico Caccia, arcebispo de Laodiceia (1693), e sucedendo-lhe em 1700 D. Francisco Aquaviva, arcebispo de Larissa], sendo sagrado arcebispo de Tessalónica. Tendo-se mostrado muito fiel à Santa Sé no desempenho das suas funções, Inocêncio XII nomeou-o arcebispo de Milão e cardeal-presbítero do título de Santa Prisca em, respetivamente, 18 de maio e 14 de dezembro de 1699, tendo sido adscrito à Congregação dos Bispos e Regulares, do Concílio, da Propaganda e outras. O zelo, a constância e a firmeza cativaram-lhe o amor e a estima de todos. Presente ao conclave de Clemente XI (1700-1721), convocado a 12 de outubro e composto de 64 cardeais, este despachou-o ao imperador Carlos VI na qualidade de legado a latere e convidou-o depois para assistir às bodas entre Filipe V de Espanha e a princesa de Sabóia, Maria Luísa Gabriela de Sabóia, em novembro de 1701. Por breve de 18 de agosto de 1701 Clemente XI ofereceu a esta a rosa de ouro, nomeando legado a latere o arcebispo de Milão. Faleceu aqui, estando sepultado na sua catedral. Esta célebre e antiga família italiana descende dos reis lombardos (Enciclopedia Cattolica, Città del Vaticano, I, 1948, coll. 1815-1816; Enciclopedia Universal Ilustrada, XXIII, pp. 606-609 e XXXIII, p. 48; Gaetano Moroni ROMANO, Di-

zionario di Erudizione storico-ecclesiastica da S. Pietro sino ai nostri giorni. Venezia: Dalla Tipografia Emiliana, 1840, vols. 2, p. 276; 45, pp. 51 e 80; 59, p. 139; 68, p. 141; e 92, p. 556; Ludovico PASTOR, Historia de los Papas. Barcelona: Editorial Gili, S A., vols. XXXII, 1952, p. 524 e XXXIII, 1958, pp. 5 e 22). 4 Note-se na sua biografia a referência, por duas vezes, a comungar outras tantas vezes em Roma. Isto exige saber-se que até Pio X não havia comunhão frequente e, muito menos, comunhão de crianças. 5 A tradição medieval fala da vinda da Virgem em carne mortal a Saragoça, junto do Ebro, para dar ao apóstolo Santiago o seu apoio maternal, simbolizado na coluna ou pilar trazido pelos anjos (fuste de coluna cilíndrica, sem molduras nem adorno algum, de jaspe, de 1,67 m. de altura e 25 cm. de diâmetro); a difusão deste culto chegou também ao Brasil, onde há dois municípios desse nome: um no Estado da Paraíba e outro no de Alagoas (A. ORTIZ GARCÍA, “PILAR (Virgen del)” in Stefano de FIORES y Salvatore MEO (dir.), Nuevo Diccionario de Mariología. Madrid: Ediciones Paulinas, 1988, pp. 1615-1623). 6 Vicente de LA FUENTE, Historia Eclesiástica de España, segunda edición corregida y aumentada. Madrid: Compañia de Impresores y Libreros del Reino, 1875, VI, p. 449: D. José Archinto, arcebispo de Tessalónica, núncio em 1696; D. Francisco Aquaviva, arcebispo de Larissa, núncio em 1700. 7 Em todo caso há sempre a possibilidade de ter sido despachado legado a latere para qualquer missão especial junto da corte de Madrid, no primeiro semestre de 1700, dada a delicada conjuntura, mas isto exigia um estudo especializado que não fiz nem conheço neste momento. Mas com outros intervenientes e não pelos referidos por Gaetano Moroni Romano. Ou dar-se o caso de se ter utilizado folha timbrada do tempo do anterior núncio, mas assinada pelo novo. 8

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Solenidades foram relançadas em 1950 por Monsenhor Joaquim Fernandes

Semana Santa de Famalicão oferece pão-de-ló e amêndoas ao Arcebispo Primaz É uma tradição com 60 anos: o Arcebispo de Braga vai à Semana Santa de Vila Nova de Famalicão e recebe como lembrança um pão-de-ló e amêndoas. Foi assim que Monsenhor Joaquim Fernandes gratificou D. Bento Martins Júnior quando, em meados da década de 1950, foi prestigiar o relançamento das solenidades, como conta o sacerdote famalicense no seu livro de memórias. A tradição manteve-se até hoje. Quem não gostou da ida do Arcebispo a Famalicão foi o presidente da Câmara de Braga Santos da Cunha...

POR

ARTUR SÁ DA COSTA E

LUÍS PAULO RODRIGUES AUTORES DO LIVRO “JOAQUIM FERNANDES – MEMÓRIAS DO SENHOR ARCIPRESTE”

Fr. António de Santa Maria JABOATAM, Novo Orbe

Serafico Brasilico, ou Chronica dos Frades Menores da Provincia do Brasil, Parte Segunda (inédita). Impressa por ordem do Instituto Histórico e Geografico Brasileiro. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense de Maximiliano Gomes Ribeiro, 1859, vol. I, pp. 285-289; Orlando CAPITÃO, “Frei João de Loreto Franciscano Brasileiro, de Mar” in Brisa de Mar, nº 324, Janeiro de 2012, p. 5. Agradeço ao Dr. Manuel António Sampaio Azevedo a cedência do texto de Fr. António de Santa Maria Jaboatam, sem o qual nunca seria tão completa esta biografia. Franquelim Neiva Soares, Memórias de S. Bartolomeu do Mar. Identificação geográfica da freguesia. Inquirições dos séculos XIII e XIV. Braga: Diário do

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Minho, 2001, pp. 11-20.

Diário do Minho

A Procissão “Ecce Homo”, na Quinta-Feira Santa, em Vila Nova de Famalicão, é das poucas cerimónias religiosas quaresmais realizadas fora da cidade de Braga que contam com a presença do Arcebispo Primaz ou um dos seus Bispos Auxiliares. A tradição já dura há cerca de 60 anos e deve-se a Monsenhor Joaquim Fernandes, atualmente

com 97 anos de idade – e de perfeita saúde –, que foi arcipreste de Vila Nova de Famalicão na segunda metade do século XX. A história é contada pelo próprio sacerdote famalicense no livro “Joaquim Fernandes – Memórias do Senhor Arcipreste”, lançado em setembro do ano passado, que agora está disponível em Braga, nomeadamente na Livraria “Diário do Minho”. Ao longo das 132 páginas, Mons. Joaquim Fernandes fala na primeira pessoa sobre cinco grandes temas: a vida da infância ao seminário; o arciprestado e a ação pastoral; a obra social no arciprestado; a velha e a nova igreja matriz de Vila Nova de Famalicão; e as relações entre o arciprestado e a sociedade civil. O livro resulta, sem dúvida, num singular e valioso testemunho sobre as últimas seis décadas da história de Vila Nova de Famalicão, inteligentemente amalgamadas entre a comunidade religiosa e a sociedade civil. A interação entre o poder civil e o religioso é, aliás, uma das preocupações centrais e uma das marcas mais relevantes do pensamento e da atividade de Monsenhor Joaquim Fernandes. Enquanto pároco e arcipreste, jamais se fechou na torre da igreja. Pelo contrário, interpretou de forma sábia a missão sacerdotal de levar o Evangelho à rua, pois a palavra de Deus não é coisa de se ter na sacristia, mas de se levar às pessoas. Ordenado em 1945, Joaquim Fernandes assumiu funções na paró-

quia de Santo Adrião (Vila Nova de Famalicão) em 6 de janeiro de 1946, como coadjutor, com plenos poderes paroquiais concedidos por Monsenhor Torres Carneiro, que estava doente. Em 1950, o padre Fernandes foi nomeado pároco; e em 1954 assumiu as funções de arcipreste, depois de ter sido vice-arcipreste. Duas décadas antes, as solenidades da Semana Santa tinham sido suspensas na vila e o jovem arcipreste Joaquim Fernandes tinha o relançamento das celebrações como um dos seus grandes objetivos pastorais e religiosos. “Para recomeçar teria de ser uma coisa em grande. Isto é, eu teria de ter em Famalicão a presença do senhor Arcebispo Primaz, D. António Bento Martins Júnior”, explica Monsenhor Joaquim Fernandes nas suas memórias, compiladas e editadas em livro por Artur Sá da Costa e Luís Paulo Rodrigues, autores deste texto. As “pressões” do presidente Santos da Cunha O Arcebispo Primaz “aceitou o convite, dizendo que Vila Nova de Famalicão era uma terra muito ativa e também integrava a diocese de Braga”, conta Monsenhor Joaquim Fernandes no livro de memórias. Assim, D. Bento Martins Júnior decidiu fazer-se representar na Procissão de Braga. Gerou-se, então, um “problema”: António Santos da Cunha, que era Presidente da Câmara Muni-


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cipal bracarense, e a Comissão da Semana Santa de Braga souberam que o Arcebispo Primaz iria à Semana Santa de Vila Nova de Famalicão e tentaram, por todos os meios, fazer com que isso não acontecesse, “pressionando Dom António a desistir”, como recorda Monsenhor Joaquim Fernandes. Mas o Arcebispo Primaz tinha assumido o compromisso e não iria voltar atrás. Ainda assim, Santos da Cunha chegou a ir a Vila Nova de Famalicão, de propósito, com representantes da Comissão da Semana Santa de Braga, para falar com o arcipreste Joaquim Fernandes, no sentido de o arciprestado famalicense desistir de convidar Dom António Bento Martins Júnior para presidir às cerimónias da Semana Santa: “Vim cá porque temos um problema para resolver. Então o senhor acha bem que o Bispo de Braga saia de Braga na Semana Santa para vir a Famalicão?”, perguntou Santos da Cunha, em tom grave. “Não há problema nenhum. Ele não sai da diocese. As ovelhas de Famalicão também são dele…”, respondeu-lhe o jovem padre Joaquim Fernandes! Nessa conversa, Joaquim Fernandes relata que engrandeceu Vila Nova de Famalicão, sem nunca fazer referências a Braga. “[Santos da Cunha] pensava que estava a falar com algum subordinado da Câmara de Braga e perguntou: ‘Mas o senhor o que pensa que é Famalicão?’ Então, virei-me para ele e disse: ‘Quer o senhor queira, quer não, Vila Nova de Famalicão, pela sua situação e pelas suas gentes, é o eixo entre o Porto e Braga.’ E a conversa acabou ali, com Santos da Cunha a soltar um palavrão entre os dentes”, conta Joaquim Fernandes nas suas memórias.

ce do pão-de-ló e das amêndoas pascais para oferecer ao Arcebispo Primaz. Para Monsenhor Joaquim Fernandes, “o que é fundamental é que, hoje, as cerimónias da Semana Santa de Vila Nova de Famalicão são um momento alto, já com tradição, sendo prestigiado sempre com a presença do Arce-

do trabalho realizado como pastor da Igreja famalicense e como protagonista privilegiado de acesso ao poder político municipal e a múltiplas instituições da sociedade civil, onde exerceu funções que ele soube desempenhar com inteligência e sagacidade, que ainda hoje, extraordinariamente,

dias, partilhados com o “Pego”, o seu fiel amigo labrador, as suas roseiras, que cuida e venera, e as árvores de fruto. Foi assim que nasceu o projeto “Joaquim Fernandes – Memórias do Senhor Arcipreste”. Escolhemos esse título porque, em Vila Nova de Famalicão, Monsenhor

bispo de Braga, D. Jorge Ortiga, o que é uma honra para a Igreja famalicense”. Esta é uma entre tantas histórias interessantes relatadas na primeira pessoa no livro de memórias do Monsenhor Joaquim Fernandes.

fazem parte da sua imagem pessoal. “Felizmente continuo a fazer uma vida ativa, absolutamente normal”, afirma, orgulhoso, dando graças a Deus por isso e revelando-se um homem realizado.

Pão-de-ló e amêndoas para o Arcebispo Primaz

A rica experiência pastoral de Monsenhor Joaquim Fernandes, como pároco e arcipreste de Vila Nova de Famalicão, ao longo de quase toda segunda metade do século XX – entre 1946 e 1998 –, faz dele um protagonista indispensável quando se trata de contar a história da Igreja no seu arciprestado, mas também de percorrer os caminhos do desenvolvimento da sua terra, como território e como comunidade humana. Monsenhor Joaquim Fernandes sempre disse que não iria escrever o seu livro de memórias. Aliás, ele preferia chamar-lhe “incidências cívico-pastorais na passagem pela paróquia e pelo arciprestado de Vila Nova de Famalicão”. No fundo, após 97 anos de uma vida bem preenchida e feliz, e que continua preenchida todos os dias, graças a uma saúde de ferro que importa assinalar, tem plena consciência

Joaquim Fernandes será sempre “o senhor arcipreste”, tantos foram os anos que esteve à frente da Igreja Católica famalicense. E foram anos muito intensos e diferentes – desde o apogeu e queda do Estado Novo de António Oliveira Salazar – com o famalicense Gonçalves Cerejeira a ocupar o cargo de Cardeal-Patriarca de Lisboa –, até à implantação da democracia e do poder local democrático, em 25 de abril de 1974, e sua consolidação nos anos seguintes. Monsenhor Joaquim Fernandes soube, como poucos, atravessar todo esse tempo, deixando a imagem de um pastor tolerante, líder de uma Igreja aberta à participação de todos. “A Igreja é de todos”, disse muitas vezes. Aliás, foi este o pensamento que sempre apresentou aos que tentaram desviá-lo do caminho de autonomia e de independência do poder religioso, que cultivou, sem prejuízo do dever de cooperação, que sempre procurou face ao poder civil.

A verdade é que o Arcebispo de Braga foi à Semana Santa de Vila Nova de Famalicão e gostou muito. “No fim da procissão, pelas 11 horas da noite, as autoridades e membros da Confraria [das Santas Chagas] foram acompanhá-lo até junto do seu carro onde era aguardado pelo grande homem e industrial António Vieira de Castro, para lhe colocar dentro do carro um tradicional pão-de-ló e amêndoas, gesto que calou fundo no coração do Arcebispo.” O curioso é que a tradição de Vila Nova de Famalicão oferecer um pão-de-ló e amêndoas ao Arcebispo de Braga continuou nos anos seguintes, mesmo depois da morte de António Vieira de Castro. Ainda hoje, o filho Carlos Vieira de Castro, proprietário da fábrica Vieira de Castro, nunca se esque-

“A Igreja é de todos” Um protagonista do século XX famalicense

Nos últimos anos, os autores deste texto vislumbraram grande interesse histórico e cultural num projeto editorial, em livro, que passasse ao papel as inúmeras memórias de Monsenhor Joaquim Fernandes. Pela sua importância histórica, pelo longo período que atravessam, pela multiplicidade e variedade de situações vividas, pelos relacionamentos sociais que manteve, que lhe proporcionaram um envolvimento e participação, aos quais acresce a riqueza de detalhes que a memória apurada do grande pastor famalicense permitia. Fomos ganhando interesse e entusiasmo no projeto. Depois foi preciso convencer Monsenhor Joaquim Fernandes a falar connosco – para que as memórias que interessam para a história da Igreja de Vila Nova de Famalicão e do próprio Município não ficassem circunscritas ao espaço tranquilo e verdejante da sua quinta, na Casa de Montalvão, freguesia de Mouquim, onde vive os seus

A “herança republicana” Quando assumiu funções eclesiásticas na paróquia de Vila Nova de Famalicão, em 6 de janeiro de 1946, alguns meses depois de ter sido ordenado, o jovem padre Joaquim Fernandes ainda conviveu

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com a herança republicana, encarnada de forma contraditória por Monsenhor Torres Carneiro, um exemplo vivo dos que sofreram as agruras do anticlericalismo radical republicano, em contraponto àqueles, como o padre Manuel da Costa Reis, capelão da Misericórdia de Famalicão, que saudaram os ideais republicanos logo no dia 8 de outubro de 1910, assinando o termo da sua proclamação nos Paços do Concelho. Porém, em 1946 os tempos já eram outros. A República dera lugar ao Estado Novo de Oliveira Salazar, que vivia a sua primeira grande crise, derivada do fim da II Guerra Mundial e da derrota do nazi-fascismo europeu, com o ditador português a tentar a sobrevivência do regime, prometendo eleições livres. Em Vila Nova de Famalicão, Álvaro Folhadela Marques tinha assumido a presidência da Câmara Municipal, em 1945, pelo que procurava a consolidação do seu poder, apoiado na liderança política de José de Oliveira, um prestigiado advogado local, que ascendera ao cargo de Governador Civil de Braga, no final da década de 1930, e que pôs termo ao domínio político do seu rival local, Francisco Alves, conservador do Registo Predial, que a ditadura militar, em 1926, nomeou para a comissão administrativa da Câmara Municipal, onde se manteve, sucessivamente, com a exceção de dois pequenos períodos, até ao final da década de 1940. Álvaro Marques tinha a seu lado um grupo de jovens políticos, entre os quais Abel Folhadela de Macedo e José Casimiro da Silva, e tentava concretizar um grande plano de melhoramentos materiais na urbe de Vila Nova de Famalicão, ao tempo reduzida a meia dúzia de ruas, cercadas de quintas, sem infraestruturas de água e saneamento, sem escolas, uma biblioteca municipal moribunda, a Casa de Camilo decadente, alvo de críticas e do escárnio público. É neste contexto social e político que Monsenhor Joaquim Fernandes inicia a sua carreira sacerdotal – coadjuvando Monsenhor Torres Carneiro, já no final da sua longa carreira e com sérias debilidades físicas –, encontrando uma paróquia sem residência própria e com a igreja matriz em mau estado de conservação e sem condições para o exercício pastoral, sobretudo para um jovem sacerdote, com a cabeça repleta de sonhos e projetos e com o espírito a fervilhar, carente de ver resolvidas as graves carências da igreja e dos seus paroquianos. Diplomático e conciliador É pela reabilitação da velha igreja matriz que o padre Joaquim


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Fernandes começa, socorrendo-se, como fará sempre, da generosidade e do apoio dos paroquianos, contando com a abertura de espírito e a capacidade de diálogo, servidos por uma fina e sagaz inteligência, que modelavam, e modelam, a sua personalidade. A tertúlia dos domingos, de que fala, e que animava a conversa dos amigos após a missa do meiodia na sacristia, ou no átrio da igreja, será um dos seus suportes para custear as despesas deste seu primeiro empreendimento de renovação e de requalificação da velha matriz. Na linha da frente dos apoios estava um grupo da elite empresarial e social local, de diferentes sensibilidades, apoiante do Estado Novo, que os dotes diplomáticos do jovem padre conciliavam. O apoio que reuniu e o círculo de amizades que cultivou alargavam-se a outros setores sociais, penetrando mesmo nas áreas da oposição democrática. O relacionamento e a amizade que manteve com António Pinheiro Braga – que seria presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal nomeado após a revolução de 25 de abril de 1974 –, atestam exemplarmente este seu comportamento aberto. Nas décadas de 1950 e 1960, Pinheiro Braga já era um destacado membro da oposição à ditadura, sem que isso impedisse que, entre ambos, se estabelecesse uma relação de trabalho e de entreajuda, designadamente na concretização do plano social de construção de habitações sociais para famílias pobres, que Monsenhor Joaquim Fernandes empreendeu com sucesso. A amizade ficou e, implantada a democracia, com Pinheiro Braga à frente da comissão administrativa da Câmara Municipal, a colaboração frutificou em múltiplos projetos, com destaque para a transferência da Capela de São Vicente, da Estrada Nacional n.º 14 para o Bairro de São Vicente, onde hoje se encontra. Visão humanista e solidária Nas décadas de 1940 e 1950 viviam-se tempos de grande carência e de enormes dificuldades a todos os níveis. Uma das chagas

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visíveis desses tempos era a pobreza, que atirava para as ruas da vila “bandos” de pedintes, que o presidente Álvaro Marques procurava acolher na Casa dos Pobres, que dinamizava. Monsenhor Joaquim Fernandes não ficou indiferente a esta realidade e deitou mão à sua solução. A obra social por ele promovida, vista a partir de hoje, adquire uma relevância inigualável, evidenciando a nobreza dos seus sentimentos e projetando a capacidade do pastor para interpretar e eliminar os sinais da miséria, ajudando a conquistar o direito à habitação de seres humanos marginalizados pela sociedade. Como ele recorda, a sua maior preocupação foi a construção de casas para famílias pobres, através das Conferências de S. Vicente de Paulo e do Património dos Pobres, que cria e dinamiza, socorrendo-se, como sempre, de ajudas solidárias, quer na doação de terrenos, quer para a elaboração de projetos e de donativos para a sua construção. Acontece que estas modestas habitações ainda hoje perduram no território do Município de Vila Nova Famalicão, albergando famílias e inscrevendo na memória coletiva a visão humanista e solidária do pastor e do cidadão. As obras na velha matriz e as primeiras habitações construídas para “pobres” – era esta a designação adotada para identificar as franjas mais carentes da população – ocorreram na década de 1950. Quis o acaso da história que o pároco Joaquim Fernandes iniciasse a sua carreira sacerdotal quase em simultâneo – apenas um ano depois – com a carreira política do presidente da Câmara Álvaro Marques, o autarca do regime do Estado Novo que mais tempo esteve no poder (12 anos consecutivos), tendo sido o único que conseguiu realizar um programa mínimo de melhoramentos materiais no concelho, a ponto de nos levar a esquecer o estado de submissão e de total dependência das autarquias ao poder central. É deveras interessante e curioso verificar que é justamente com Álvaro Marques que Monsenhor Joaquim Fernan-

Mons. Joaquim Fernandes saudado por D. Eurico Dias Nogueira (atualmente, Arcebispo Emérito de Braga) des vai evidenciar um dos traços da sua personalidade mais marcantes: a independência de espírito e de pensamento e a coragem na defesa das suas ideias e, consequentemente, da afirmação da autonomia e da separação do poder religioso face ao poder político. Nada de pessoal existia entre ambos, apenas eram senhores das suas ideias e defensores dos seus próprios caminhos. Na história local havia maus prenúncios. Dois padres tinham sido afastados recentemente da paróquia de Santo Adrião alegadamente porque desafiaram a autoridade do presidente da Câmara. Os conflitos giravam, aparentemente, em torno do cemitério municipal do Moço Morto, muito distante do centro da vila, e gerido com mão de ferro pelo autarca, dificultando a realização dos funerais. A forma imaginativa e audaz como Monsenhor Joaquim Fernandes enfrentou a questão derrotou Álvaro Marques. Já antes, este sacerdote lhe atirara um aviso contundente: “Prefiro ser padre no Alto Minho a ser um padre submisso em Famalicão.” Acabou tudo em bem. Fumaram o cachimbo da paz e cada um cuidou de realizar a sua missão. Os presidentes da Câmara vão mudar e suceder-se uns aos outros, no Estado Novo, como na Democracia, mas o seu comportamento não muda: sempre presente, nunca negando a colabo-

ração, sem deixar perder a sua independência. Como ele afirma com orgulho, passou “incólume no 25 de Abril”. Estas palavras são o reconhecimento do exercício do seu múnus espiritual em benefício de todos. Esta também é uma das marcas da sua personalidade e do seu magistério: a capacidade de relacionamento com todos, a defesa dos mais humildes, sem olhar a cores políticas ou à sua condição social. Nova igreja matriz: o projeto mais grandioso A extensão da Creche Mãe, no lugar de Mões, que concretiza, reflete o seu pensamento em defesa dos mais desfavorecidos e em favor da igualdade social. A perseverança molda também o perfil psicológico do padre Joaquim Fernandes, uma característica que lhe permite concretizar um plano de melhoramentos materiais e espirituais sem precedentes na história da Igreja famalicense. O projeto da nova matriz acompanha-o desde o início do seu magistério. Porém, só em finais da década de 1970 é que o município disponibilizou os terrenos necessários. A obra seria inaugurada em 1993. Para Monsenhor Joaquim Fernandes o lugar da matriz era, como foi, nos terrenos envolventes dos Paços do Concelho, em perfeita simetria, na parte poente, com aqueles, forman-

do duas grandes praças. Um sonho próprio de um visionário. Quando Álvaro Marques lhe pergunta, apontando o mapa, por que a queria ali, respondeu: “Como os que quiseram ali a Câmara e o Tribunal.” Não deixa de ser curioso constatar que a nova matriz marcou passo e enfrentou resistências em algumas presidências da ditadura, sendo José Carlos Marinho o primeiro presidente eleito, em 1976, quem desbloqueou o processo, expropriando os terrenos para a sua construção. É o projeto mais grandioso que concretiza, sendo também o que levou mais tempo a materializar-se. Muitos outros projetos foram concretizados, tais como o ressurgimento da Semana Santa, que destacamos na abertura deste texto. E antes de se retirar, restaurou a capela da Lapa, criando o Museu de Arte Sacra. Independência de pensamento Homem de cultura, aberto à inovação, Monsenhor Joaquim Fernandes viajou pelo mundo em busca de saber e de experiência. Sempre afirmou que nunca quis ser político, mas jamais abdicou de expor o seu pensamento e de se bater pelos seus ideais e princípios. A opinião que expressa no livro de memórias sobre D. An tónio Ferreira Gomes – o Bispo do Porto que desafiou o Salazar –, a simpatia que exprime por ele, a aproximação que com ele faz e a crítica que formula ao Cardeal D. Manuel Gonçalves Cerejeira, por ter abandonado o Bispo do Porto à sua sorte no exílio, demarcam o campo onde se posicionou, desnudando um pensamento humanista e crítico das posições assumidas pela Igreja portuguesa durante o Estado Novo. A sua independência de pensamento e ação manifestam-se em todos os momentos, mesmo com aqueles em que a colaboração foi mais próxima. No tempo do presidente Agostinho Fernandes, por exemplo, não deixou de expressar em carta o seu desapontamento e oposição ao destino dos terrenos envolventes da nova matriz. Como já o tinha feito com

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Arthur Cupertino de Miranda, discordando da construção do edifício da Fundação Cupertino de Miranda, no emblemático campo da feira, contestando de igual modo a decisão do presidente da Câmara padre Benjamim Salgado, pela doação daquele terreno público e pelo licenciamento da obra. E, como já referimos, bateu o pé ao poderoso Santos da Cunha, presidente da Câmara Municipal de Braga, que veio desafiá-lo a V. N. de Famalicão. Uma obra multifacetada Das suas memórias emergem os traços da sua personalidade, fazendo de Joaquim Fernandes uma figura moral, eclesiástica e cívica modelar. A independência de espírito, a firmeza de caráter, a coragem na defesa das suas ideias perante todos, a nobreza dos seus sentimentos em prol dos mais desfavorecidos, o combate às desigualdades, a sensibilidade pelas questões sociais – eis o recorte do retrato, imperecível, da figura pública que mais tempo esteve em funções no século XX famalicense. No exercício do seu múnus eclesiástico, foi um pastor com capacidade de liderança sobre um rebanho, por vezes, tresmalhado. Um líder que soube colocar-se acima dos conflitos entre as partes, que soube unir e federar, exercendo uma influência que saiu para fora das portas da Igreja e provocou mudanças na educação, na habitação dos famalicensess carenciados, na cultura e até na organização do espaço público. Em nossa opinião, só essa capacidade de liderança permitiu que mantivesse responsabilidades pastorais na Igreja famalicense por mais de 50 anos, realizando uma obra de traço vincadamente humanista com dimensão pastoral, educativa, social e cultural. Foi a abrangência e a intensidade dessa obra que motivou a edição do livro “Joaquim Fernandes – Memórias do Senhor Arcipreste” – um documento histórico incontornável para qualquer pessoa interessada compreender o século XX de Vila Nova de Famalicão.◗ V. N. de Famalicão, Abril de 2014


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