Lenda Urbana

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lendaurbana luíçcaixote 2ªedição


2 Apoiado nas muletas, espera sozinho no ponto de ônibus. Mais uma vez acordou cedo para procurar emprego, meteu os documentos dentro de uma sacola, depois a laçou à tiracolo para partir direto a uma agência. Essa é sua peleja diária desde quando saiu do interior e mudou-se para a capital. Lá se sentia esquecido e quase fez-se depressivo. Seu humor irreverente e a determinação foram as coisas que o salvaram. Chega o ônibus. Parece mal entrosado com essas extensões de braços. Com dificuldade se equilibra e tudo mais vira um martírio, desde caminhar até subir a escada. Ignora a dificuldade gerada pela perna que falta e consegue pegar o transporte lotado. Graças mais ao bom censo do que ao coração, um desconhecido cede o lugar que já era de


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direito seu. Esses pequenos contratempos não o ofendem. Sabe tirar vantagem dessas dificuldades. Aproveita o trajeto lento e observa atento. Gira melancolicamente o mecanismo responsável pelo raciocínio em sua mente. Vê no ônibus lotado um ambiente propício ao nivelamento social, pois todos ali se encontram no mesmo patamar de igualdade: apertados. Espia pessoas com sono, outras já dormindo, muitas com fones de ouvidos e poucas com livros — para ele, romances bestas. Para ele esse isolamento não é um comportamento hostil ou agressivo, vê como mais um fator de igualdade: indiferença. Em um fechamento de idéias profere algumas palavras: — É! Que pena... Que pena... Que pena... É uma pena que ninguém mais saiba de mim. Esse mundo nos isola de nós mesmos... Se essa foi uma tentativa de puxar


conversa, não surtiu efeito algum. Talvez duas ou três pessoas tenham dado ouvidos, porém logo se calaram, já as que balbuciaram qualquer palavra fizeram apenas como sinal de confirmação e não de interação. Resguarda-se no silêncio. Resigna-se em seu assento. Chegando aonde tem de chegar resguarda-se no silêncio e resigna-se em outro assento. Mais uma situação dessa vida urbana pulsante, aguarda sua vez catalogado por uma senha, o pedaço de papel que prova isso está entre seus dedos. Quase se conforma com a interatividade de observar fixamente um painel que pisca números e chama pessoas. Ele peca, não consegue centrar sua atenção somente naquela tela porque seus olhos esbarraram em um garotinho que corre, brinca, pula e grita por entre as cadeiras. Percebe que a mãe do menino não se

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importa muito com as molecagens; ela sim, está vidrada na senha que brilha no painel. Como aquele menino, ele adora traquinagens e algumazinhas malcriações. Um número pisca no painel. Um número pisca em seu papel. O casamento perfeito entre as centenas, dezenas e unidades lhe diz uma coisa boa: sua vez. Ele tem artimanhas para vencer as monotonias da vida. Vive atencioso a cada detalhe, por isso repara bem como os olhos do atendente correm pelo monitor que os separam enquanto os lábios redesenham algumas palavras. —... Cor? — Preto. O homem atrás do balcão se acanha por um instante. Hesita no falar, porém, por fim, solta a pergunta: — Alguma deficiência física?


— Sim. — Ele dá um sorriso de deboche para mostrar o quanto é desnecessária a pergunta, mas tudo isso faz parte do procedimento: ler todo o formulário. Encerrado o inquérito que o transformara em números, letras e dados para caber em uma ficha, ele se levanta, despede-se, apóia-se nas muletas e segue à porta. Por mais uma vez os olhos do atendente caminham pelo monitor, saltam por cima da tela e checam atônitos o resto do movimento daquele homem. Mostrou muito atropelo com as muletas até chegar à saída. Ninguém o ajudou... Ele pára, mete a mão dentro da sacola, saca de lá um pito que leva à boca e logo em seguida volta com a mão tirando um gorro encardido e desbotado. Bota o gorro na cabeça e recomeça sua ida. Mostra um espírito jocoso. Brincou de muletas o tempo todo e agora desvenda-se habilidoso ao

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ponto de quase caminhar equilibrando sem elas. É tão serelepe que se ali houvesse uma porta giratória, com certeza, ele rodopiaria nela. — Só pode ser brincadeira! — Os lábios do atendente balbuciam. As mãos assustadas trabalham sobre a mesa na lida de ordenar uma bagunça danada de papéis assobiados por um vento que adentrou.

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ilustração:luhandias revisão:thalitaevaristo projetográfico:estúdio2d vintedoze

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