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Aline Oliveira Larissa Valença Ludimila Honorato Maday Florencio Sasha Cruz Talita Alessandra

Mais forte que a dor Livro-reportagem apresentado em cumprimento parcial às exigências da disciplina Planejamento em Projetos (Plapro), do curso de Jornalismo, da Faculdade de Letras, Artes, Comunicação e Ciências da Educação, da Universidade São Judas, para obtenção do título de Bacharel em Jornalismo. Orientadora: Profª. Ms. Jaqueline Lemos

USJT - Universidade São Judas Tadeu LACCE - Faculdade de Letras, Artes, Comunicação e Ciências da Educação Curso de Jornalismo São Paulo, novembro/2014

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Faculdade de Letras, Artes, Comunicação e Ciências da Educação Diretor: Prof. Ms. Rosário Antônio D’Agostino Coordenador dos Cursos de Comunicação Social Prof. Ms. Anderson Fazoli

O livro-reportagem “Mais forte que a dor” é um projeto experimental de alunos do curso de Jornalismo (4ACSNJO), sob orientação da profª Ms. Jaqueline Lemos, na disciplina Plapro - Planejamento em Projetos.

Alunos RA Aline Oliveira 201113121 Larissa Valença 201108224 Ludimila Honorato 201100188 Maday Florencio 201101125 Sasha Cruz 201100518 Talita Alessandra 200902130 Revisão de Texto Aline Oliveira Ludimila Honorato

Projeto Gráfico da Capa Carolina Pereira

Diagramação Ludimila Honorato

Foto da Capa Tais Martins

Impresso por Embracop - Empresa Brasileira de Cópia

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Agradecimentos

Agradecemos à Profª Ms. Jaqueline Lemos por ser nossa guia na elaboração de um livro-reportagem tão íntimo e inquieto.

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A Deus, por tudo e tanto. À minha família, sobretudo à minha mãe e às minhas irmãs. A todas as mães que com seus relatos deram corpo a este livro, especialmente à Elce. Aos meus amigos, novos e antigos; em especial à Camila, Elienai, Rafael, Talita e Renan. À amiga e companheira de graduação, Ludimila. ALINE OLIVEIRA

Dedico à Maria Dias Miranda, que me permitiu dar voz à sua história pela primeira vez. À memória de Michele e à família Miranda, da qual vejo, todos os dias, um integrante que me distribui sorrisos e gentilezas. Dedico a meus pais, Malu Pinto e Anderson Valença França, meus mentores, que me ensinaram a enxergar poesia em dias comuns. LARISSA VALENÇA

A todas as mães, cujos filhos estão perto ou longe, pois elas são as únicas que sabem o que é esse amor. Especialmente à Angela, por ter compartilhado comigo sua história tão recente e despertado em mim grande admiração. Ao João (em memória), o gigante de Angela, pelo filho que foi, é e sempre será. LUDIMILA HONORATO

Dedico este livro-reportagem à dona Maria Peres, por compartilhar sua história de vida comigo, me recebendo em sua casa, mesmo sem me conhecer antes. Serei sempre grata por sua gentileza e acolhimento. À minha família, amigos e colegas que me ajudaram em algum momento na construção desta história. MADAY FLORENCIO

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Dedico este livro à minha mãe, aos meus irmãos e ao meu finado pai. Quando falamos da morte de um familiar tão próximo, nos damos conta da importância de entes queridos em nossas vidas. A morte nos separa em vida, mas nos mantém ligados por toda a eternidade. Amo todos vocês. SASHA CRUZ

À Solange Prudes de Moura Queiróz, mulher por quem eu tenho grande admiração e respeito. Ao Felipe, à Vivian e ao Rodrigo. Ao Sidney (em memória), menino cuja história me marca profundamente. A todas as vítimas da violência do Estado. Meus olhos sempre enxergarão essas vidas! TALITA ALESSANDRA

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Sumário Introdução 11 Como se fosse ontem

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O último beijo: uma breve despedida

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Através dos olhos 61 Em meio a lembranças e silêncios 93 Entre momentos 115 Lembra teus filhos

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Introdução

Este livro propõe relatar, pela voz das próprias personagens, os sentimentos, as emoções e a dor de mães que perderam seus filhos. Em uma sociedade que busca o otimismo e o prazer, e a morte torna-se um tabu — mesmo sendo a única certeza do ser humano — mergulhar nesse luto é uma ousadia e um desafio. Porém, acima de tudo, é um retrato dessas mães que, por ocasiões diferentes, têm algo em comum. A história dessas mulheres mostrará as consequências na vida e no ser quando um acontecimento inesperado conduz ao rompimento desse forte vínculo afetivo.

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ANGELA MARIA RIBEIRO

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Como se fosse ontem Por Ludimila Honorato

Faz pouco mais de um ano que meu filho se foi e eu ainda não entendo nem quero entender. Sei que ele está bem, não tenho dúvidas, mas meu desejo egoísta exige que ele esteja aqui comigo, com a gente. O Junior também sente muito a falta dele. O pai ainda se culpa um pouco. Foi uma fatalidade, eu não quis apontar culpados, afinal isso não ia trazer ele de volta. Às vezes, sinto a necessidade de colocar tudo pra fora, talvez até como uma tentativa de compreender o que sinto. Apenas o que sinto, porque o fato dele ter ido ainda é incompreensível. Estou certa de que não poupamos esforços, desde o seu nascimento, para cuidar bem dele. Demos todo o amor e carinho de nossas vidas. A saudade é grande demais. Eu sei que ele não quer que eu fique assim, então é por ele e pelo Junior que sigo em frente. E nem sei como sigo, só Deus... É uma saudade 15 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 15

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que não passa e que eu sei que nunca vai passar. Lembro como se fosse ontem. Estava uma tarde bem agradável no zoológico e a gente foi lá, vimos todos os bichos e paramos para comer. Estava muito cheio e quase não tinha mesas vazias para sentar. Mas que graça tem, né! A gente vai num lugar desses e tem que fazer piquenique no chão mesmo! Abri a toalha no chão, coloquei as coisas para comer, para beber e ficamos ali. — Cuidado com esse suco, Junior! O Clebson sempre foi presente na vida dos filhos, estava sempre por perto para cuidar, mas também sempre por perto para chamar a atenção. Como ele trabalha à noite, passava os dias em casa cuidando dos meninos. Quando tinha reunião, médico, comprar as coisas, era tudo ele. Um pai bem presente mesmo. Mas aí foi dito e feito. Eu estava tirando fotos com o celular quando o Junior derramou suco na toalha. E ele ficou com aquela carinha, sem saber o que fazer. Olhava pra mim, olhava pro irmão. Aí o João falou baixinho: — Disfarça — e fez gesto para ele tirar o chapéu da cabeça e colocar em cima da mancha que ficou na toalha. Ele prontamente fez isso e logo pediu mais suco. Clebson nem viu nada. E sempre foi assim: o Junior arranjava uma confusão, fazia uma coisa errada, e o João, por ser mais velho, livrava a pele dele. Era uma graça. Esses meninos são minha vida, viu! Foi um dia muito bom, estava calor, a gente aproveitou bastante. Foi nosso último passeio em família. E eu me lembro de tudo, como se fosse ontem. *** 16 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 16

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Como se fosse ontem

O relógio despertou às seis da manhã. Desliguei e fui acordando aos poucos. Com a visão embaçada, vi que Junior ainda dormia ao meu lado, na mesma cama. Achei estranho. Eu não acordei muito bem e fiquei na cama com os meninos, assistindo um programa de TV. Estavam falando sobre asma e alergias, problemas parecidos com o que o João tinha. Ele olhou pra mim e disse: — Nossa, mãe, parece que eles estão falando isso pra mim, né? — ele era sempre muito atento. — É, filho. Tá vendo, tá falando pra você mesmo, que você tem que ter uma vida normal. Realmente era algo que ele vivia, mas ele podia ter uma vida normal, brincar como toda criança, fazer tudo. É claro que a gente cuidava e tirava os focos de alergia de perto dele. A cada 15 dias ele estava lá no hospital, médico virava ele de cabeça pra baixo e dizia que estava tudo bem, não tinha nada. Com 11 anos de idade, ele parecia ter bem mais, tanto pelo tamanho quanto pelas ideias e conversas que tinha. Sempre sorridente, ele era bem dono de si e cuidava do Junior como se fosse pai. Às vezes, eu ficava brava com o Junior, e o João intervinha: — Pode deixar, mãe, eu falo com ele. Me poupava um bocado! Outro dia o Clebson foi levar o Junior na casa de uma amiga e o pé dele prendeu na roda da bicicleta. Cortou, mas só não foi pior porque mãe, né... Comprei um sapato maior que o pé do menino, então o raio passou pelo sapato todinho e só pegou um pouco forte no pezinho dele. Aí de noite, quando cheguei em casa, o Junior estava lá com o pé costurado, deitado, aí o João chegou pra mim e falou: — Olha, eu nunca passei uma situação como eu passei hoje! 17 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 17

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— Por quê? — Porque, mãe, eu não tinha notícias do Junior! Eu entrei em desespero, eu não conseguia sentar, eu não conseguia beber água, eu não conseguia comer. Enquanto eu não vi ele chegar dentro de casa, eu não fiquei sossegado. Olha como eu fiquei preocupado, hein! E a preocupação não era só com o Junior. — E eu fiquei preocupado com você também, hein! Ele cuidava, se preocupava, só dormia quando eu chegava em casa, mas não sem antes me dar um sermão: — Nossa, demorou, hein! Ainda bem que você chegou! Mas ele também era criança, era irmão, era cheio de ideias, e eles sempre foram muito unidos. Mesmo que cada um tivesse os próprios brinquedos, eles dividiam tudo, até o mesmo prato de comida. A gente sempre ficava aquele tempinho de manhã juntos na cama... Levantei e me arrumei. As crianças não iam para a escola, nem o Clebson ia trabalhar à noite. Quando era noite dele trabalhar, era a avó paterna que ficava com eles. É um pouco complicada minha relação com ela, mas a gente deixa isso pra lá. Eles também não gostavam de gente em casa, preferiam ficar sozinhos. Quando saí de casa era mais de 10 horas da manhã. Liguei no trabalho antes para avisar que eu ia chegar atrasada. Seu Donizete já devia estar doido porque eu ainda não tinha ligado pra ele, coisa que sempre faço quando chego na empresa. Liguei pro Clebson também pra saber se ele já estava chegando e aí fui. Uma longa viagem de Suzano até a Mooca. Sorte que não tinha obras nem chuva, porque dependendo do dia, o trem é um caos total. Como de costume, disse que os amava antes de sair. João me olhou, jogou um beijo e disse: “Te amo muito também, mamãe!”. 18 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 18

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Trabalhei normal, ainda de tarde liguei pras crianças e estava tudo bem. O dia foi a mesma coisa de sempre. Papéis e mais papéis, contas, recibos, notas, ligações, clientes que cobram, chefe que cobra, funcionários que reclamam, que tentam ajudar. E só tem homem naquele lugar! Mas eu não ligo, sei lidar bem com eles, é até engraçado. Depois do expediente, fui pra faculdade, pertinho da empresa. Eu estava no último ano de Administração, muito cansada, e meus cabelos em pé por conta do TCC. Discutimos tudo, horas a fio pensando em planos de negócio e marketing, sumário executivo etc. Mas deu a hora, enfim, de voltar pra casa. Quando eu saí da faculdade, mais de 11 da noite, o Clebson me ligou: — Olha, eu tô aqui no hospital com o João, e você vem pra cá porque eu tô precisando de você aqui. — Não. Você deixou o Junior sozinho em casa, não foi? — Foi. — Então eu vou pra casa ficar com ele e quando você terminar o que tiver que fazer com o João, você vem embora. — Tá bom — e desligou o telefone. Até aí tudo bem, nem estranhei o fato do João estar no hospital. Um mês antes eu tive que sair no meio do trabalho pra ver ele no hospital. Ele simplesmente estava dormindo há mais de seis horas e não acordava de jeito nenhum, nem com beliscões. Eu achei que era a mesma coisa, né. E foi inexplicável, porque os médicos tinham feito exames e estava tudo normal, ele só estava dormindo. Naquele dia, sim, eu achei que o João ia morrer. Fui com a certeza de que não ia encontrar ele vivo. Mas não era o fim. Ainda. Uns minutos depois a médica responsável pelo hospital me ligou: 19 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 19

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— Eu preciso que a senhora venha até aqui, porque o seu marido não está passando bem. Até aí tudo bem também, porque o Clebson tem uns problemas de saúde. — A gente vai disponibilizar um carro particular do pronto socorro para buscar a senhora. Nossa, aí foi demais! Muito estranho um hospital público fazer esse tipo de gentileza! Mas com o Clebson passando mal, eu tinha que ver o que estava acontecendo. Refiz meu caminho, mas nada muito drástico porque o hospital fica a uns 10 minutos da minha casa. Quando cheguei, um pouco preocupada, me barraram na entrada. — A senhora precisa de uma autorização para entrar. — Como assim? Que autorização? É meu filho que está lá dentro! Eu preciso entrar e saber o que está acontecendo! Depois que explicaram tudo e acabaram com as burocracias, eu entrei. Mas quando entrei, foi uma cena horrível. O Clebson tinha surtado, estava louco. Ele estava deitado numa maca, acho que estava amarrado e sedado. Ele tentava se soltar, mas não levantava. A mãe dele, a irmã e uma enfermeira estavam ao redor da maca. Nossa, como ele estava mal! Outra enfermeira se aproximou de mim, me ofereceu assento e calmante, mas eu disse que estava bem, quem estava passando mal era o Clebson. Eu só queria saber o que estava acontecendo, poxa! E então a enfermeira veio me fazer entender: — Seu filho… Ele partiu. Ele faleceu. E eu não entendi. Fiquei muda, imóvel. Cada palavra que a enfermeira disse saiu da boca dela em câmera lenta. Eu ouvi aquelas 20 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 20

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palavras e no mesmo instante elas se dissiparam no ar. “Filho” e “falecer” não me faziam sentido na mesma frase. Era estranho, porque eu não entendi mesmo o que ela tinha me falado. — O João morreu! — o Clebson gritou, na segunda tentativa de me fazer entender. E eu não entendi de novo. O mundo parou, eu não sentia mais minhas pernas, meu corpo ficou mole e aí eu tive que sentar. Engraçado que eu nada senti. Meus sentimentos e minhas emoções foram embora. E eu fiquei ali, parada, muda, sem reação e sem filho. Comecei a ouvir gritos e um choro desesperador. Eram minha sogra e minha cunhada, ficaram loucas! Enquanto eu tinha perdido minhas emoções, elas tinham perdido o controle delas. Lembrei de como o João estava naquela manhã: bem, saudável, tudo normal. E eu fiquei me perguntando como aquilo podia acontecer. Por quê? Eu nem sabia se aquilo estava acontecendo de verdade, simplesmente não podia acreditar. O João chegou morto ao hospital. No atestado de óbito consta morte por parada cardiorrespiratória, exatos 10 minutos antes de chegar ao hospital. 10 minutos, o tempo de casa para o hospital. Fui despertada por uma voz gentil: — A senhora quer ver seu filho? — perguntou alguma enfermeira. — Mas é claro que eu quero ver meu filho. — Mas a senhora tem condições de vê-lo agora? — Tenho. Não, eu não tinha. 21 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 21

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Entrar no quarto foi pior. Com o semblante tranquilo e sereno, meu filho parecia dormir da mesma maneira como estava um mês antes, em paz, a pele ainda quente. Na ocasião anterior, quando achei que ia perdê-lo, ninguém além de mim conseguiu acordá-lo. Mas naquele dia, nada nem ninguém podia trazer meu filho de volta. Não houve desfibrilador nem massagem cardiorrespiratória que desse jeito. Não havia voz que o chamasse de volta à vida. Acariciei seu rosto, beijei-o e me despedi. Ele não estava mais comigo, não adiantava mais dizer o quanto ele era importante pra mim e o quanto eu o amava, pois ele não podia me ouvir. Então foi ali, naquele quarto de hospital, que eu entendi que nada mais poderia ser feito ou dito. Na verdade, ainda tinha o que fazer: acertar todos os detalhes com o serviço funerário. Quem pensa em enterrar o próprio filho? Eu não acreditava que estava fazendo aquilo para o meu filho. Como eu não tinha condições, a equipe ficou responsável por preparar o corpo para o dia seguinte. Eu só precisava ir para casa e separar a roupa com que ele seria enterrado. Depois de tanto tempo, as vestimentas sociais dele já estavam pequenas para o meu gigante. Sempre o chamei assim, de gigante... O único conjunto melhorzinho foi a roupa que ele vestiu no dia que fomos ao zoológico. São muitas lembranças... Dormir foi a última coisa que fiz naquela noite, e quando o dia 27 de setembro de 2013 amanheceu, eu não quis ir para o velório. O João morreu no dia 26 de setembro de 2013, uma quinta-feira à noite, mas eu considero o dia 27. Esse, sim, é o dia que mais pega pra mim. Engraçado que quando eu soube que estava grávida dele, comecei a contar as semanas de gestação, depois os meses. Quando ele nasceu, foi a mesma coisa: primeiro os dias de vida, as 22 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 22

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semanas, os meses e depois os anos. Quando ele morreu, também comecei do zero. Faz tantos dias que o João morreu, eu contava. Três semanas, um mês, dois, cinco, dez, e fez um ano. Foi um nascimento ao contrário. Outro momento difícil foi contar tudo para o Junior: — Ju, lembra que ontem o papai levou o João pro hospital? — Uhum. — Então… Ele não aguentou e… O João morreu. — Como assim morreu? — Morreu, filho. Quando ele chegou no hospital, o coraçãozinho dele parou de bater. Agora ele não vai estar mais com a gente. Se o João herdou do pai o ar reservado, Junior é meu reflexo. Sem reação, ele ficou mudo, olhando pra mim com uma carinha diferente, e eu também não sabia mais o que dizer ou explicar. — Agora a gente vai lá ver ele. Com apenas 7 anos de idade, não sei como ele ia reagir à ausência repentina do irmão. Durante a madrugada, pedi que levassem ele pro hospital e, estranhamente, ele não tinha me feito uma pergunta sequer. Sempre que ele chegava e não via o João, perguntava onde ele estava. Dessa vez ele só ficou junto de mim. Até parece que ele já sabia de tudo. E lá fomos para o velório. Tinha tanta gente que convivia com o João, mas que eu não conhecia. E muitas outras que eu não via há anos! É estranho como é preciso acontecer algo assim para que elas apareçam. Pelo menos estavam ali, sinal de que se lembram da gente. Pior seria se soubessem e nem fizessem questão de aparecer. E toda aquela gente tinha apenas uma coisa em comum: fazer perguntas. O que aconteceu com o João? Quem estava com ele? Você sabia que ele tinha problema de coração? 23 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 23

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Alguém socorreu? Será que não poderia ter feito alguma coisa? Meu, por que eles não calavam a boca? Respostas eram inúteis naquele momento! A última coisa que eu queria era recontar a história a todas as pessoas que se aproximavam de mim com palavras, de certa forma, de conforto. Mas nem isso elas deveriam fazer. Quando se tenta dizer algo bom, acaba dizendo algo ruim. Fora a acusação da minha sogra contra mim pela morte do meu filho. Coisas, assim, absurdas. O Junior, por outro lado, tomou conta de tudo, como se fosse o anfitrião. Quando alguém chegava perto do caixão, ele ia lá e dizia: “É meu irmão. Ele era muito meu amigo. É... eu vou sentir saudade dele”. E voltava a se sentar ao meu lado, sem dizer palavra. O momento do enterro foi o pior de todos desde a ligação do Clebson. Ali é a constatação do inevitável e do inaceitável. É lidar com a negação que se afirmava constantemente diante dos meus olhos. É ali que você sabe que acabou. Não há o que fazer. Não há mais vida. Não há mais volta. Só havia o dia seguinte. *** Eu pedi pro Clebson se desfazer de tudo que era do João: roupas, brinquedos, fotos, tudo. Podia fazer o que quisesse, desde que levasse tudo. Acho que deixar é pior para lidar com a ausência. Querendo ou não, temos que lidar com a ausência. Então, quando eu cheguei em casa, estava mais vazia. O layout do quarto mudou, uma cama foi retirada. Não tinha mais bagunça espalhada pela casa. O Junior passou a dormir comigo, na mesma cama. Adaptação. 24 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 24

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Mas mesmo que a gente tire tudo, parece que sempre fica algo pra trás, de propósito. Um dia eu achei, no fundo de uma gaveta, uma caneta que ele ganhou num concurso da escola. E tudo que tinha assim na escola, ele ia e se destacava, era primeiro e segundo lugar, primeiro e segundo, sempre foi assim. E nesse concurso, que era sobre conscientização das leis de trânsito, eles tinham que fazer uma cartinha dando sugestões pra manter o trânsito fluindo adequadamente. Ele escreveu e mandou pra Radial, a empresa de ônibus lá de Suzano. Eu achei que era só uma redação, algo simples. O chefe dos motoristas da Radial foi na escola ler as redações e tudo bem, eram formalidades. Mas ele chegou em casa todo feliz, me contando sobre isso: — Mãe, você não sabe o que aconteceu! — O que? — Eu ganhei um presente do encarregado da Radial! — E o que você ganhou? — Uma caneta! E a caneta era bonita mesmo, toda prateada. — E ele disse, mãe, que vai colocar minhas dicas em prática, e que gostou da maneira como eu penso sobre o trânsito. — E o que você colocou? — Eu coloquei que quando a gente preza pelo respeito às pessoas na direção, a gente tá respeitando Deus acima de qualquer coisa. E ele achou legal, ele me deu isso aqui e falou que eu sou o cara! E eu fiquei com aquela cara, voltando no tempo. Porque a gente tirou todas as coisas dele, mas... Sempre aparece alguma coisa. E é assim, várias lembranças que me saltam no dia, que surgem, me alegram num momento 25 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 25

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e me entristecem imediatamente. Hoje, saudade tem nome, tem rosto, tem gosto amargo e doce, não tem braços, mas aperta como nunca! Todos os dias, e mais nos dias 27, revivo os sorrisos e momentos que sempre me acompanham, independente do que quer que sejam. Me lembro de tudo, como se fosse ontem. Ele faz muita falta, sinto saudades, e ela não vai passar. Dia desses, eu e o Junior fomos ao lugar que ele mais gostava e, por acaso, ficamos no mesmo cantinho da bagunça. Incrível como a presença dele estava ali… Isso foi depois de quatro meses de saudade, e eu ainda sentia e sinto a presença dele a cada minuto. E eu sei que isso não vai passar. E eu conto cada minuto. Uma mania besta, como aquela de sair contando os passos pra chegar mais rápido, mas agora tudo anda lentamente. Aceitar é impossível! *** O relógio despertou às seis da manhã. Desliguei e fui acordando aos poucos. Com a visão embaçada, vi que Junior ainda dormia ao meu lado, na mesma cama. Achei estranho. Até ontem ele dormia na própria cama. E me pergunto do João. Eu preciso de alguns segundos para me situar e lembrar que o João morreu. Mas não foi ontem, faz pouco mais de um ano. E preciso de mais alguns minutos para começar o meu dia. Pego o celular para ver as horas e na tela do aparelho tem uma foto do João no dia que fomos ao zoológico. A roupa do zoológico, a roupa do enterro. Duas lembranças em uma. Levanto e a cada passo que dou pela casa, a morte me perturba dizendo: “Você não tem mais filho, eu levei seu filho”. E eu digo não! O 26 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 26

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João não morreu. Ele ainda está aqui comigo, bem aqui. Começo a tirar da minha caixinha de memórias e espalhar pelo meu dia os sorrisos de criança, os momentos de alegria, as conquistas que ele teve na escola. Conflitos com ele, sinceramente, eu não tinha. Só que ele era muito ardiloso e, na conversa, convencia o Junior a dar o que ele queria. Muito espertinho. Mas a vida continua, e eu preciso trabalhar. Quando me despeço do Junior, falta um tchau para dar. Respiro fundo e vou. No caminho, sempre me faço as mesmas perguntas: como? Por quê? Como chegamos até aqui? E as respostas vêm, como sempre, pelas memórias. *** Aquele foi um ano e tanto, ano de Copa do Mundo, e o Brasil estava disputando o pentacampeonato. O país inteiro estava eufórico pela vitória por 5 a 2 contra a Costa Rica, a ansiedade e apreensão rondava cada brasileiro que aguardava o descobrir o adversário das oitavas de final. Inclusive eu estava apreensiva naquele 14 de junho de 2002, mas não era pela expectativa de enfrentar Japão, Bélgica ou Rússia. Naquele momento, minha adversidade era maior: um parto prematuro. Fui pro hospital, mais um exame de sangue, uma injeção e uma troca de soro. Tudo parecia fluir bem, mas o obstetra veio com uma jogada inesperada: tínhamos que fazer o parto imediatamente. Entrei em pânico. Na defensiva, eu desacreditei, afinal ainda eram só 24 semanas de gestação. Faltava uma semana pra completar sete meses. Eu estava ansiosa, preocupada e feliz. Meu coração acelerou e eu respirei fundo para conter o choro. 27 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 27

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Entrei no banheiro e não consegui me conter, desandei a chorar. Ele se agitou dentro de mim, parecia sentir toda a apreensão de fora, mas acariciei o “barrigão” e sorri. Em breve ele estaria acolhido em meus braços. Era meio-dia quando a maca entrou no quarto. Fui levada ao centro cirúrgico, tremendo e gelada. Era impossível ficar calma. Antes do parto, sozinho com ele, pedi que ele fosse forte e corajoso. Sem mais tempo a perder, começaram a cirurgia. Um corte e em 15 minutos pude ouvir ele chorar. Um choro forte, um choro voraz. Os médicos ficaram assustados. São raros os bebês com seis meses de gestação nascer chorando como ele chorou. Respirar, então, era quase impossível! Era um milagre, eu confiei, eu acreditei que ia dar tudo certo. A pediatra de olhos azuis me trouxe ele, tão pequeno, tão frágil. Pesou 1,520kg e os pés eram metade do meu dedo mínimo. Um ser pequeno, gritos de um gigante. Meu gigante! Mas nosso encontro foi breve porque imediatamente levaram ele para a UTI neonatal, onde ficou por mais de 30 dias para ganhar peso. Quando chegou nos 2,100kg, estava tudo bem, achei que ia poder leva-lo pra casa. Ledo engano. O João contraiu infecção hospitalar, passou por uma cirurgia pra colocar cateter e apresentou uma bactéria que absorvia o ferro do sangue. Resultado de tudo: um quilo e meio de novo. Foi um sufoco! Mas graças a Deus deu tudo certo, e ele não teve nada do que os prematuros costumam ter, como problemas no coração, rins, intestinos ou pulmões. A única coisa que ele tinha mesmo em decorrência do parto prematuro era uma alergia respiratória. Depois de perder peso, e assim que a infecção foi embora, disseram que eu podia levar ele pra casa. Eu, mãe 28 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 28

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de primeira viagem, tendo que levar um bebê prematuro pra casa! E então, sem mais justificativas, muito menos recusas de minha parte, saí do hospital carregando nos braços um ser que mal cabia na palma da minha mão, e dentro de mim a determinação de cuidar dele fosse como fosse. A gente ia passar por tudo juntos. Vieram mais lutas. Os dois primeiros meses em casa com o João foram puro isolamento. Frágil e vulnerável a qualquer coisa, eu tinha que ter tudo bem limpo e esterilizado. Não podia receber visitas. Foi só eu e ele, uma espécie de gestação externa. A médica me recomendou o método canguru. Todos os dias, eu tirava minha blusa, tirava toda a roupa do João e colocava ele entre os peitos. Eu fazia tudo dentro de casa desse jeito, com o ele grudado em mim. Foram 60 dias de canguru, 24 horas por dia, sete dias por semana. Meses e anos se passaram, e o João cresceu fazendo tudo o que as outras crianças faziam. Ele tinha uma estatura maior do que a idade dizia. Perto de mim, que sou baixinha, e do Junior, ele era mesmo um gigante. Quando pensamos que ele não resistiria, tudo venceu. E aí, do nada, ele morre. Mas ele sempre foi um bravo guerreiro na luta pela vida. Foi ele que me deu forças pra lutar e querer crescer. E isso continua até hoje, mesmo ele não estando fisicamente aqui. Ainda assim eu não entendo... A gente cuidava, levava no médico, não tinha nada. Tinha apenas os próximos dias. E eu me lembro de tudo como se fosse ontem. *** O relógio despertou às seis da manhã. Desliguei e fui acordando aos poucos. Com a visão embaçada, vi que 29 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 29

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Junior ainda dormia ao meu lado, na mesma cama. Achei estranho. Até ontem ele dormia na própria cama. E me pergunto do João. É sempre tão estranho acordar e, de repente, ter apenas um filho depois de anos se dedicando para dois. Eu preciso de alguns segundos para me situar e lembrar que o João morreu. Uma triste realidade que me desperta os sentidos toda manhã e depois preciso de mais alguns minutos para começar o meu dia. Me levanto e vem a morte me atormentar. Eu sou mais forte que isso, ou pelo menos tento ser. O João não gostaria que eu me abatesse. E ainda mais agora que o Clebson saiu de casa, preciso ser mais forte. O Junior não é fácil, está com 8 anos e perguntas de um adolescente. A cada dia me surpreendo mais com ele. Ele também é meu gigante. Saio de casa e, enquanto faço meu trajeto para o trabalho, relembro tudo outra vez. Lembro que depois de cinco anos de casada, e aos 25 de idade, descobri que não poderia ter filhos devido a problemas no útero. Com certeza, João é um milagre. Quando eu soube que estava grávida, apenas cinco meses depois do diagnóstico, fiquei assustada, surpresa e preocupada. Mas muito feliz. Desde então, a preocupação nunca me abandonou. E mesmo no trabalho, com tantas preocupações, não deixo de pensar no João. Poxa, e o Junior? Isso é uma coisa que eu também enfrento hoje em dia. Não sei como ele pensa, ele pouco fala comigo, ficou mais reservado. Tenho medo que ele se sinta mal por eu ficar mais triste pela morte do João do que feliz pela vida dele. Acho que ele pode pensar assim, não sei. Crianças, a gente nunca sabe o que se passa na cabecinha delas. Sempre surpreendentes. Como sempre, ligo em casa para saber como ele está. Sempre falta perguntar do João. Não tem como negar que 30 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 30

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Como se fosse ontem

essa fatalidade dividiu a minha vida. O rendimento no trabalho caiu, as distrações vêm de repente e com frequência. Meu expediente no trabalho acaba às 19h. Nessa hora começo a organizar tudo para sair, mas seu Donizete chega com mais perguntas, exigências e dúvidas. Aprendi que me calar resolve tudo. Vou e nos vemos no dia seguinte. Ainda hoje, de vez em quando, passo na bomboniere e compro um chocolate para levar pro Junior. Hoje já estou mais acostumada, mas logo depois que o João se foi, chegava em casa com dois doces. Passei duas semanas fazendo tudo em dobro. Quando me perguntam quantos filhos eu tenho, digo: “Dois. Quer dizer, um”. Dois ou um? E explico a confusão. E mudam de assunto, evitam falar. Mas não tem jeito, ele sempre vai estar comigo. E antes, quando eu chegava em casa, ele era o primeiro a me receber assim que eu abria a porta. Hoje quem me recebe é a Florzinha, uma cachorrinha muito companheira que alegra nossos dias. Em seguida vem Junior, mais tímido, meio se escondendo. Um beijo e um abraço. Uma conferida nas redes sociais e me preparo para dormir. Mais uma vez, coloco o celular para despertar e a última coisa que vejo antes de fechar os olhos é a foto do João na tela, a mesma foto há um ano, com aquela mesma roupa. Fecho os olhos e durmo. Sei que no dia seguinte, quando o relógio despertar, vou reviver, de novo, esse mesmo capítulo da minha vida, esse filme de uma única cena que não tem fim. *** Faz pouco mais de um ano que meu filho se foi e eu ainda não entendo nem quero entender. Perder um 31 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 31

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filho é a pior coisa que pode acontecer a uma mãe. Com ele foi também um pedaço de mim. Sei que ele sabia o quanto era amado, mas isso não justifica o vazio que vai ficar aqui. A lembrança dele sempre será minha proteção, o que me faz suportar a dor que sinto pela ausência dele. Depois que ele se foi, estou aprendendo o que é ter força e determinação. Sempre tive, agora ainda mais. Conheço outras pessoas que estão na mesma que eu. Uma vizinha minha perdeu a filha de 16 anos de uma forma estúpida também. Estava bem, ficou resfriada, deu febre, foi internada, foi definhando... Coisa de uma semana, a menina morreu. Antes eu entendia o lado dela, hoje entendo mais ainda. Mas aí ela ficou doente, adquiriu diabetes e chora toda hora. Mas é o seguinte: é complicado lidar com isso, mas a gente é mãe, a gente não pode deixar a peteca cair, não! Eu também fiquei mal, somatizei, estou me tratando. Tentando pelo menos. Compartilho com outras mães, em grupos nas redes sociais, a minha dor, a nossa dor. Tem umas que, meu Deus, perderam completamente o sentido da vida. Eu sei que não é fácil, não julgo, cada uma tem a sua situação. Mas é ruim, a gente precisa seguir em frente... Eu estou levando a vida. Penso que depois de um ano, a morte do João é como jogar uma moeda do alto de uma escada em direção ao fundo do poço. A moeda vai quicando, degrau por degrau, lentamente. À medida que o tempo passa, eu desço e as outras pessoas sobem. Quando ele morreu, foi o fundo do poço para elas. Para mim não. No começo eu tentava entender, hoje estou descendo. Mas quando chego na metade do caminho, eu tenho que decidir: olho pra baixo e só vejo escuridão, será que quero continuar descendo? Olho pro topo da 32 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 32

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Como se fosse ontem

escada e vejo o Junior e tudo que ainda tenho para fazer na vida. Sinto que hoje eu estou indo ao fundo do poço. Mas não quero nem posso, preciso voltar pra cima. Essa necessidade é mais forte que a dor.

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MARIA DIAS MIRANDA

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O último beijo: uma breve despedida

Por Larissa Valença

Naquela manhã eu fiquei deitada, e Michele veio até a porta de meu quarto. Eu estava acalentada pelas cobertas naquele 17 de julho de 2007, olhei para ela e a admirei. Minha filha tinha o costume de sair impecável de casa: cheirosa, elegante. Ela sempre lavava os cabelos pela manhã. Nesse dia eu quebrei o costume, fiquei deitada, até hoje não encontro o motivo de ter continuado na cama até mais tarde. Eu sempre levantava e a beijava antes que ela saísse para o trabalho. Quem imaginaria que aquele seria um beijo de despedida? Eu acredito em vida após a morte, então essa é uma breve despedida. Mesmo assim, jamais passou pela minha cabeça que um acidente levaria minha filha dessa vida. Foi na porta de meu quarto, quarto esse que durmo todos os dias e mais do que isso me levanto, me levanto disposta a mais um dia de trabalho, a mais um dia de 37 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 37

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sol que há de me iluminar. Hoje o que me lembro com suavidade é da voz de Michele se despedindo naquele 17 de julho, na porta desse quarto, compartimento tão meu: — Mãe, já estou indo. Naquela manhã, não quebrei totalmente os costumes, com toda a fé que me toma, até hoje, sempre desejo a alguém de saída para que vá com Deus, mas não é dá boca para fora, é o meu puro desejo. Então, foram exatamente essas palavras que disse à Michele: — Vai com Deus, minha filha. Eu acredito em vida após a morte, por isso todos os dias, nesse mesmo quarto antes de dormir, penso em Michele. Mas não com tristeza. Há tempos já me recompus e mandei a melancolia embora. Lembro da minha menina linda como era em vida, nada de perpetuar a imagem de Michele no caixão. As chamas do fogo quase a queimaram, se bem que não conseguiram. O corpo dela estava sem nenhuma deformidade. De 199 vítimas do acidente aéreo da TAM, ela foi a única que teve um enterro normal, dois dias após a morte. O corpo não estava carbonizado, estava intacto, condizente com a sua personalidade. Os outros corpos desapareceram e o de minha filha não, teve desfecho. A história de Michele teve um fim e isso me causou uma certa paz, pois sei que essa é a lei da vida: começo, meio e fim. Por mais que tenha sido de forma tão precoce. A dor me consumiu, sim. Mas, ao menos, não fiquei dias sem saber notícias dela. Foi menos agonizante do que com outras vítimas ao serem engolidas pelo fogo. Suas famílias ficaram dias buscando os corpos, se submergiram nas burocracias de quem perde entes queridos por esse tipo de acidente. Disso nós, da família Miranda, não ficamos imunes. Não podem imaginar o que 38 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 38

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é perder um filho carbonizado, é tão burocrático: IML (Instituto Médico Legal), delegacia... E aquela dor que rasga o peito. Eu não fui reconhecer o corpo de Michele naquela sala do IML. Queria guardar a imagem da minha filha viva: morena, alta, magra, com aquele sonho de ser modelo. Ela era tão parecida comigo fisicamente. A fé sempre me acompanhou nos dias de luta travados contra esse fato que modificou tudo e todos lá em casa: Roberto, o pai e meu companheiro, Vanessa, minha filha mais velha – irmã e amiga de Michele. E até a pequena Emily ou Mila, apelidada por Michele, a cadelinha, sofreu, ficou resguardada por anos como todos nós. A Emily fala, pena que só eu a entenda. Ah, Mila, nosso xodó, escolhida a dedo por Michele. Todas as noites, ao deitar em meu quarto com Roberto ao lado, penso em Michele, na vida que tivemos juntas, na vida que ela teria, na vida que ela deve ter. Com a sua imagem em minha mente a embalo em luzes. Desejo que uma claridade acalente sua alma, como aquelas cobertinhas que aqueceram meu corpo naquele 17 de julho pela manhã. Mentalizo depois na representação e no significado de Jesus Cristo; toda noite, penso: “Ela está em um lugar melhor”. Eu acredito em vida após a morte. Quase todas as noites, Michele vem me visitar nos sonhos. Sonho muito com ela criança. Deve ser coisa da minha cabeça, o que ficou no subconsciente. Outras vezes, ela aparece me mostrando os machucados, os quais ainda sangram. Tive um sonho, me pareceu curioso e intrigante. Ela me dizia que estava melhor e que estava voltando. Fiquei pensando tanto sobre isso. Encontrei uma suposta explicação: aceitei dar entrevistas e falar sobre ela, nunca tinha feito isso. Talvez ela volte através desse trabalho aí. Talvez. 39 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 39

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Eu acredito em vida após a morte. Sou espírita. Quem sabe não encontro Michele um dia. Tenho fé que receberei essa permissão. E nos encontraremos em um desses ‘sonhos’ um dia. Tenho fé. *** Todas as noites eu ligo para Vanessa, minha outra filha, para lhe desejar boa noite. Por mais que ela seja casada hoje, minhas noites são assim tão perto da minha família, independente da distância física. Converso com a Vanessa pelo telefone, e pelo pensamento tento transmitir luz à Michele. Para mim, essa luz chega a ela. Estou separada, mas ao mesmo tempo junto das minhas duas filhas. Tenho esse costume de falar a todo momento com a minha família, se não estamos perto. Uso o telefone mesmo. Com Michele era assim. Lembro-me que naquele 17 de julho nos falamos o dia todo pelo celular. Fui ao cinema com Vanessa, algo fora do comum, detesto ficar pregada na cadeira. Quando saí do cinema, escutei a voz dela: — Tudo bem filha? — Tudo bem, mãe. Esse diálogo pode parecer banal. Mas é tão confortante escutar a voz de alguém da família, a quem você quer bem, e saber, de fato, que tudo está dentro dos conformes, no eixo. Não imaginaria que a vida seria outra pouco tempo depois. Aquela voz me passou confiança de que tudo continuaria bem, até que ela chegasse em casa e a rotina continuasse por anos e anos. A gente tinha tanta afinidade... Ao chegar em casa, no início da noite, preparei o jantar e fiz algo especial para a Mi, que fazia naquele dia 40 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 40

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seu primeiro e último plantão. Quem poderia imaginar? Eu fiz um caldo verde, o preferido de Michele. Imaginei o quanto estaria cansada e aquela sopa cairia bem. Ela merecia tais agrados. Estava passando a novela das seis. E eu pensava: “Falta pouco para acabar o plantão de Michele”, que sairia próximo das oito horas. Naquele 17 de julho, Marcos, o namorado da minha menina, saiu mais cedo, às cinco, pois não se sentiu bem, e Michele marcou uma consulta para ele. Marcos não chegou a presenciar o acidente. Hoje ele continua sendo meu genro e parte importante da família. Casou-se com a minha outra filha, Vanessa. A dor os uniu. Vanessa sempre diz que Michele só se aproximava de gente de caráter. Eles, hoje me deram um presente, um neto: Ettore, que me traz alegrias, minha família me traz felicidade. Os passinhos, as novas palavras de Ettore. A dedicação de Vanessa como mãe, o olhar carinhoso de Marcos. Desde que Michele morreu, todas as vezes que ele entrava em casa a dor se dissipava pelo ambiente e era extirpada por segundos... Vanessa, depois da perda da irmã, passou a conviver muito com Marcos. Meses após contaram à família. Roberto não admitia. Para mim, já tinha passado a pior fatalidade que me poderia ocorrer. Resolvi abrir mão da minha dor a fim de ver a felicidade dos dois. Falei a Marcos: — Eu quero que você tenha certeza do que está fazendo. Estamos muito fragilizados, qualquer deslize da sua parte pode triplicar nossa dor. Foi então que ele se afastou de Vanessa, mas voltou três meses depois com uma proposta: ele não queria simplesmente ficar com ela, queria casar-se. Dessa forma, Roberto passou a entendê-lo, por mais difícil que parecesse. 41 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 41

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Ao arrumar as coisas de Michele para doação, encontro muitas fotos. Minha caçula namorou Marcos por aproximadamente um mês. E, curiosamente, não encontrei um registro dos dois juntos. A única coisa que sei é que Marcos gradativamente ocupou um lugar na família. *** Todos me diziam: “Você tem outra filha”, quando tudo aconteceu. Eu ficava indignada, não é assim. Não dá para suprir essa dor, vai continuar faltando um pedaço, o lugar de Mi não será substituído. Mas eu sigo em frente. E cada dia é novo para mim, apesar das noites se repetirem como um ritual. Digo novo porque hoje sou dona de um comércio. E meus dias são atribulados. Cada dia um desafio que enfrento com Roberto, pois aprendemos a lidar com esse trabalho: com queijos; vinhos, biscoitos e pessoas, demasiadas pessoas, funcionários e clientes. Entram e saem do laticínios, e eu trato todos com meu jeito calmo e sereno que consegui conservar. Vanessa vem me ajudar às vezes e traz Ettorre. Nós exibimos sorrisos com as suas descobertas e corridas pelo grande salão; além disso, tem o galpão para ele explorar. Nesse ano faço 60 anos, idade em que a maioria das pessoas pensa em se aposentar. Eu não, contrariei essa lógica, procurei ocupar minha cabeça. Ao longo desses anos, sempre trabalhei em casa e agora tenho ocupações fora do lar. Não deixo tempo para que a tristeza tome meu corpo e minha mente. Quando não estou no trabalho, estou em casa pesquisando sobre terapias holísticas e tudo que é voltado à energia. Acredito muito nas energias, 42 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 42

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como força que influenciam uma vida. Como acontece com a minha. Procuro não me abater, mas sim preencher minha vida. Procuro novos ventos, cores, sentidos. Também tem os afazeres do lar. Certa vez me perguntaram em um dia ensolarado: “Dona Maria, está de folga hoje?”. E eu contestei: — De folga do laticínios, em casa tenho muito trabalho. *** Hoje tirei os porta-retratos expostos com fotos de Michele pela casa. Para quê tamanha exposição? Os guardo dento de mim, conservo sua imagem comigo. Não gosto de ficar vendo fotos. Logo que aconteceu tudo, doei as coisas dela. Ela escrevia. Não quis ler. É muito doído. Guardei poucos objetos que tinham valor afetivo. Até pouco tempo atrás tinha o patins de Michele. Ah, aquele patins... Como minha filha caçula foi feliz com eles. Sabia andar muito bem em cima daquelas rodas profissionais. Naqueles dias é que víamos traços da personalidade dela. Mi tinha um patins de modelo mais simples, mas gostava era de desafio, quis o profissional em pouco tempo. Foi assim também com a bicicleta e qualquer outro brinquedo, como o videogame. Depois de descobrir todos os recursos, os via como ultrapassados e queria mais, sempre queria mais. E o carrinho de rolimã, que pedia aos meninos um tempinho para dar uma voltinha? Minha filha tinha sede por conhecer novas fontes de diversão, por desbravar lugares novos. Carinhosa e independente. Quando bebê, parecia não precisar de cuidados extremos. Queria comer sozinha, não queria tanto colo. Se ela subisse no telhado, acharia graça, já se fosse Vanessa, levaria uma bronquinha. Minha família não 43 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 43

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entende esse meu elo com Michele, ela era levada, logo precisava mais do meu amor. A gente se entendia só com o olhar, dispensávamos palavras vezes ou outra. Por isso, quando aconteceu aquele acidente no fatídico naquele 17 de julho, pensei que tinha feito tudo que ela queria. *** Nós duas estávamos diferentes antes do acidente. Tudo aconteceu na terça. No final de semana que antecedeu, ela não saiu de casa. Ficou conosco. Ela estava serena nos últimos três meses que antecederam sua morte. E eu estava com um incômodo no peito que não entendia, não era problema de saúde. Mas nada atenuava aquele prelúdio de dor que já me consumia. Intuição. Sempre fui muito intuitiva. Antes de cair a noite, ao falar no telefone com Mi, nunca imaginei que não a teria comigo nas próximas horas. Que aquele caldo verde preparado com toque de amor, que só mães sabem colocá-lo, não seria tomado. Que aquele boa noite não seria dito naquele 17 de julho e teria de ser substituído por aquele ritual mental de todas as noites. Que o beijo de todas as manhãs não seria mais dado. A noite chegou naquele 17 de julho de 2007 e trouxe uma escuridão inenarrável. Michele ia sair próximo das oito horas e já eram sete. A programação da Globo foi interrompida por aquela música que arrepia qualquer telespectador: tan, tan, tantan, tan, tan, tantan, tantan, tantaaaan. Apesar de curta, parece que tem duração infinita, tenho a impressão de que até o ar que corria pela sala se paralisou, tapou olhos e ouvidos. E, após o término da trilha, correu novamente sem querer esperar 44 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 44

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pelo desastre que seria anunciado. Eu fisguei os olhos na tevê. O ar deve ter desaparecido após a notícia. Eu perdi o ar, e também o chão, a estrutura física, a sanidade mental, a serenidade que lutei a vida inteira. Aquela voz acelerada de Willian Bonner gerou em mim bem mais do que a sensação de ter perdido a estribeira, sabia bem lá no fundo que tinha perdido a minha filha Michele. Apesar da informação inicial sobre o acidente não dizer nada sobre vítimas fatais, a minha intuição sempre dá um jeito de falar comigo e me contar algo além dos fatos. E a intuição, em se tratando de mães, parece que se acentua e toma corpo. Eu lutava contra essa intuição nos primeiros momentos. “Pelo horário de Brasília são 19h07. O hangar da TAM, no aeroporto de São Paulo, está pegando fogo. Você tem aí as imagens, as primeiras informações são de que este incêndio teria começado quando um avião da companhia estava dentro do hangar. O tráfego aéreo em Congonhas está interrompido para pousos e decolagens. Não há informações sobre vítimas, mas supõe-se que não haja vítimas, pois como eu falei o avião caiu no hangar da companhia”, atropelava as palavras Bonner. Na hora em que vi o avião pela tevê, e o prédio em que Michele trabalhava em chamas, meu coração se incendiou junto. E minha mente já me alertava, mesmo confusa, procurava juntar os cacos: aquele horário normalmente ela estaria em casa ao meu lado. Mas naquele 17 de julho não, foi diferente, era o primeiro plantão dela, não queria acreditar que seria o último. A pior evidência era olhar para o relógio e ter certeza de que minha filha ainda estava dentro daquele prédio. Michele ainda estava trabalhando em meio a chamas que surgiram. O que isso significaria? 45 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 45

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Quem não se lembra desse acidente aéreo que deixou 199 vítimas fatais? Entre elas, pessoas que estavam no voo e trabalhadores do prédio em que o avião da própria companhia caiu. Hoje, superintendentes da TAM estão sendo julgados por terem dado aval para que aquele pouso ocorresse. Tudo contribuiu para o desastre: as pistas ruins, um posto de gasolina próximo. Fico indignada quando culpam os pilotos, esses já não podem mais se defender. *** Quantas pessoas assistiam tevê naquele momento e se compadeceram ou disseram um “ai, que horror!”? Não sei se as outras famílias também souberam pela tevê. Para mim, aquela notícia me transmitiu o gosto mais amargo que já havia sentido. Mas quando tem que acontecer, não tem jeito. Veja só, ela estava trabalhando num horário fora do habitual. E a novela e todas as propagandas da emissora voltaram ao normal. Contudo, nada estava dentro da normalidade, tinham gritos desesperadores dentro de mim, presos. Fui rezar. A fé sempre está presente em minha vida. Pedi tanto, tanto pela minha filha! E ao mesmo tempo não parei de acompanhar as notícias que escorriam pela tevê. Arrumei uma malinha com produtos de higiene pessoal, roupas que ela gostava. Em poucos minutos eu estava pronta. Pronta para ir ao hospital, encontrar minha menina e levar os pertences dela. Meu nome é Maria, creio que esse é o momento exato de me apresentar e mostrar a força que esse nome carrega. Quantas Marias já não sofreram essa mesma dor que eu? Até mesmo Maria, mãe de Jesus, o perdeu e depois o ganhou na plenitude. 46 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 46

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Mas não sabíamos para onde ir. Roberto, com medo de que eu fizesse besteira, não me deixou sair de casa. E aquele alvoroço de notícias continuou, uma atropelando a outra. E nada de falarem de Michele. Quando o relógio completou 20h50, eu estava decidida a ir atrás de notícias mais concretas sobre minha filha. Chega de especulações. Ao longo do caminho, ao passar em frente ao Cemitério da Quarta Parada, senti algo que me dilacerava. Tentei me conter. Mas, ao chegar no hospital, a assistente social e a médica vieram falar com a minha família e aquela dor só me tomou por completo, do dedinho do pé até todos os fios de cabelo, meus órgãos orquestrados sentiam a mesma tristeza. Quando elas se aproximaram, sabia que boa coisa não era. A médica disse que tentaram de tudo, desfibrilador... Mas, Michele teve uma parada cardíaca e não resistiu. Ali, já não tinha mais o que eu fazer. *** Eu conversei com um colega de trabalho de Michele, um sobrevivente, dia desses. Ele pulou do prédio em chamas e se salvou. A imprensa reproduziu vídeos da minha menina saltando do prédio por inúmeras vezes e dizia que a queda foi para tentar se salvar. O colega de Michele me disse que não, que se lembra daqueles momentos estarrecedores. Os dois tiveram a ideia de saltar dali, sim; no ápice do desespero, aquela parecia uma saída. Afinal, eles não estavam tão distantes do chão: 2º ou 3º andar. Mas Michele não aguentou. Desfaleceu momentos antes de ousar pular, e seu corpo caiu prédio abaixo. Me recusei a ver as reportagens sobre o acidente e as que citavam Michele. Eu me lembro dela viva, linda. Essa 47 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 47

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imagem não vai morrer e nem ser enterrada. Me lembro que cinco meses precedentes ao acidente viajamos muito pelos verdes do Brasil. E como ela gostava da natureza! Aproveitamos belas paisagens e a companhia uma da outra. Mal sabíamos o que estaria por vir. Ainda bem que desfrutamos, pois não dá para descrever o quanto nos divertimos e estávamos tão próximas durante esses passeios, tão nossos. Em abril de 2007, tiramos vinte dias de férias. O destino foi Jericoacoara, praia paradisíaca no nordeste do Brasil, para ser mais exata no Ceará. Céu azul com nuvens bem delineadas, areia branquíssima, água cristalina que esbanjava tonalidades de azul, formando um degradê de cores. Que cenário convidativo! Michele tinha uma personalidade tão firme, estávamos em uma viagem em grupo e tudo estava dentro do planejado, até que... Chegamos no hotel. E esse não era confortável. Mais que de repente minha filha quis trocar de hospedagem. Ela gostava do que era bom. Ela tinha pressa de tudo, quando chegava em casa, com uma peça de roupa nova, por exemplo, já colocava no corpo. Ela era movida por desafios. Numa natureza exuberante como a de Jericoacoara, Mi não tinha frescuras. Para ter uma visão ampla, subia nas árvores e ficava admirada com tamanha exuberância. Minha filha tinha tanta pressa. Me recordo de um dia em que estávamos em casa. Eu na lavanderia, fumava um cigarro, que passou a ser uma das minhas válvulas de escape depois que a perdi. — Mãe, vou sair da TAM, lá não tenho projeção de crescer. — Se é o que acha melhor, concordo Mi. Foi o que disse em meio à nebulosidade das fumaças de cigarro. Tudo se esvai como essa fumaça. Tudo, exceto as memórias e o sentimento. 48 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 48

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Eu sempre a apoiava em qualquer decisão que tomava e procurava não me intrometer por completo. Não deu tempo para que Michele colocasse esse plano em prática. Ela tinha tanta pressa, mas não deu tempo, a juventude foi interrompida. Sonhos e perspectivas acabaram quando aquele avião se chocou com o prédio da TAM e tirou a vida dela e de mais 198 vítimas de cena. *** São tantas as memórias que tenho dela. Costumo dizer que se passássemos por um local que tivesse que dar um pulo para atravessar, ela me dava a mão e íamos juntas. Digo isso, mas não é porque ela não está aqui, só posso dizer coisas boas da minha filha. Tínhamos muita afinidade. Eu nunca falei um não para ela por mais sacrificante que pudesse ser. Eu fazia tudo que ela queria. Por isso, quando aconteceu, pensei da minha parte: fiz tudo que podia. Não é porque ela não está mais aqui. Eu acredito em vida após a morte e que ela não era daqui, tinha tantas qualidades, não sentia raiva de ninguém, o que é tão sublime e de nada humano. Para mim, ela não era daqui. Dizem que os bons morrem jovens. Talvez. Michele tinha um cheiro único. Gostava de passar o mesmo perfume, um odor doce e marcante. Até hoje guardo o frasco com o restinho e, às vezes, vou em busca dele. Contudo, não procuro ir atrás de lembranças da Michele. É muito dolorido ficar remoendo tudo a todo instante. Por isso, doei os objetos que tinham a cara dela, como o videogame e o patins. E também tirei os portaretratos de casa. Por anos, fiquei resguardada. Hoje, fujo do que tenta me aprisionar, mas uma ventania traz velhos 49 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 49

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ares de vez em quando, em momentos que menos espero e em que estou despreparada. Dia desses estava indo ao trabalho. Comprei um CD com músicas do rei Roberto Carlos. Não selecionei nenhuma. Deixei tocá-las numa ordem aleatória. Foi quando começou uma melodia conhecida, de letra impactante e que logo me remeteu a ninguém mais ninguém menos do que ela: Michele. “Nunca se esqueça, nenhum segundo, que eu tenho o amor maior do mundo, como é grande o meu amor por você”. Involuntariamente, contrariando o distanciamento estabelecido pela mente e a força que criei para que meus dias seguissem, naquele instante acabei com o meu combinado interior de que somente à noite abriria a porta do meu coração para Michele. Ela entrou e todos os meus sentidos tomaram vida própria. De repente, estava eu a chorar e a cantarolar alto para que minha filha me ouvisse. A imagem dela não saía da minha cabeça e eu não parei de dedicar aqueles versos a ela. Cheguei ao trabalho, tentei me recompor, o dia corria aparentemente como outro qualquer. Mas não. Por mais que estivesse atarefada em meio à caixa registradora, a dizeres protocolados como “qual é a forma de pagamento?”, “Obrigada, volte sempre”, parece que estava no automático, pois minha mente só pensava em Michele, o dia todo senti como se ela estivesse presente. *** Às vezes, sinto a presença dela. É como se uma brisa a trouxesse para perto. Mas tento evitar que isso ocorra. Abre uma parcela de mim, em frangalhos, muito dolorida 50 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 50

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e eu tenho que me recompor, pegar os fragmentos que restaram no chão. Mesmo assim, minha voz continua serena, transmito paz e tranquilidade para quem quer que seja. As pessoas não entendem. Tem momentos que nem eu mesma entendo. Falar da Michele nunca me trará dor. Lembrar dela, muito menos. É tão prazeroso recompor cada detalhe que fazia parte da minha filha. Mas não a ponto de deixar que eu fique a mercê dessas memórias para respirar a cada manhã, elas me trazem o conforto a cada noite de ter tido alguém assim comigo. Ela há de estar em um lugar melhor. Um buraco sempre ficará no meu peito. Cambaleando eu me reergo, a minha fé não me deixa cair. Eu acredito em vida após a morte. Embalo a imagem dela em luzes e assim adormeço todos os dias e ela já me encontra nos sonhos. Acredito no nosso amor, nas risadas que compartilhamos, nos olhares de cúmplices. Quantas vezes não acobertava os caprichos dela? Creio que essa afinidade atravessa qualquer barreira física e temporal. Mas o sentimento é assim, atravessa o caminho e se corporifica, de forma avassaladora e intensa, sem avisar previamente. Foi assim que, de modo explícito, demonstrei o que sentia no peito pela minha menina. Foi a última vez que pude lhe dizer aquelas palavras. Ela estava no quarto se arrumando, vaidosa como era, cuidava de cada minúcia: roupas, maquiagens, sapatos, tudo tinha que estar em harmonia. As unhas? Ah, essas ela mesma fazia. Ficava admirada com tamanha agilidade e eficiência de Michele. Numa fração de segundos estavam feitas. Como um quadro pintado por um artista com determinação, assim Michele dava cor às unhas. 51 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 51

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Mais forte que a dor

Parece que ainda sinto aquele cheiro doce. Agora quem a observava na porta do quarto, na espreita, sou eu. Me fascinava o fato dela ser tão parecida comigo. O sentimento me escorria pelas entranhas, não aguentei e disse: — Te amo, filha. Ela parou o que estava fazendo e respondeu mais que depressa: — Eu também, mãe. Eu te amo. Eu não tinha esse costume de falar isso o tempo todo. Até que o sentimento passou a se organizar e acoplar-se em palavras, e assim saiu pela minha boca, quase como se eu não me desse conta. Fico feliz que isso tenha acontecido em tempo. *** Guardo a imagem da minha filha em vida, era tão linda. Quando aconteceu tudo, as emissoras de tevê, ao se referir à tragédia, sempre colocavam a fotografia de Michele. Por mais que eu me recusasse a ver as reportagens, ora ou outra aquilo cruzava meu caminho e me incomodava, me obrigando a mudar de canal. Achava aquilo desrespeitoso. Aliás, após o acidente, os jornalistas não deixaram minha família em paz tão cedo. Tentavam vir à minha casa, e nós negávamos ceder entrevistas. No dia do enterro, não permiti a presença da imprensa, mas tentaram de todas as formas. Ficaram o tempo todo no velório. Há fotos do enterro, sendo que não autorizei nada disso. Justamente por isso, resolvi me manifestar uma única vez. Fui à empresa TAM e pedi que não deixassem que as emissoras utilizassem a foto de Michele. Não queria que aquela imagem da minha linda menina fosse 52 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 52

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O último beijo: uma breve despedida

associada tão somente ao acidente, isso era uma dor imensurável, restringir a vida dela a isso. Logo o meu pedido foi atendido e não mais passei por esse martírio. No entanto, os veículos ainda nos procuravam. Certa vez, na qual estávamos mais fortalecidos, resolvi ceder uma entrevista à Época, que alegava pretender fazer uma certa homenagem às vítimas. Tal foi a minha surpresa quando me deparei com uma distorção do que havíamos dito. Minha família não participa dos grupos de militância que surgiu pós-acidente. Devido à nossa visão “mais espiritualizada”, diziam que nós vivíamos fora da realidade enquanto havia pais que lutavam por justiça. Será que não entendem? Para mim é tão claro. Minha filha não desapareceu, teve enterro, desfecho. Houve famílias que ficaram um mês indo ao IML tentando buscar seus filhos em corpos completamente irreconhecíveis, deformados pelo fogo. Eu não passei por todo esse sofrimento. Talvez, se eu tivesse passado por isso, iria me integrar a associações e aos grupos. Mas não foi essa a história de Michele. É o meu jeito, não gosto de cavar as coisas, o que eu queria não está comigo, então acabou. Exatamente por isso é que sou contra o monumento que fizeram no local em homenagem às vítimas. Sim, fui uma vez até lá, vi o nome de Michele e nada mudou aqui dentro de mim. Não são as coisas de fora que suprem o que sinto aqui dentro. Para mim, é um desperdício de dinheiro público. Seria melhor aproveitado se fossem construídas moradias populares naquele local, por exemplo. Agora está tudo mal cuidado o espaço. E aí questiono: do que adianta esse investimento? *** 53 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 53

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Mais forte que a dor

Não tem como não olhar para Mila, nossa cadelinha, e não lembrar de Michele. Quando minha filha não estava mais conosco, Emily não entendia onde ela podia ter ido e como podia ter se afastado de casa por tantos dias. Então buscava resquícios de Michele no cheiro do cobertor. Persistiu por dois meses, ia à porta do quarto copiosamente e lá esperava e esperava por um afago de Mi, que nunca chegou. Podíamos tentar suprir a falta que Mila sentia, mas não era isso que ela queria, não era nenhum de nós. Acho que todos nós ficamos como Mila, ela era o reflexo do nosso comportamento e do nosso estado de espírito. Quando olho para Mila, outra boa história me ocorre. A origem da cadelinha e como eu, Michele e Vanessa arquitetamos um plano infalível. É natural Mila ser o xodó da família. Hoje, Roberto a traz, ora ou outra, aqui para o ambiente de trabalho. Às vezes a deixa na garupa da caminhonete e volta para o caixa ao meu lado. Mas sempre quando o laticínios esvazia ou fica mais calmo o movimento de fregueses, lá vai ele olhar por Mila, a solta no galpão e fica observando como corre e se comunica com ele. Como um pai, olha com afeto e cuidado para a cadela. Mas nem sempre foi assim. Roberto não queria um animalzinho de estimação. Me recordo quando Michele me veio com essa ideia. Ela já tinha pesquisado um veterinário de confiança para comprar a pet. E veio com um persuasivo “que tal mãe?”. Fomos até o veterinário, o Alessandro, e não deu outra. Emily, que ainda não tinha esse nome, chamou a atenção de Michele. A cachorra não podia ir para nossa casa. Primeiro porque fazia poucos meses que nosso cachorro tinha morrido repentinamente, poderia ter resquício de alguma 54 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 54

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O último beijo: uma breve despedida

doença no ambiente, precisávamos esperar uns meses. E, segundo, Roberto não aceitaria, não naquele momento. Com isso, eu e Michele combinamos que a cadelinha ficaria no veterinário por dois meses. Por mera coincidência, somando dois meses na folha do calendário, chegaria o Natal. Tempo de renovação. Que sugestivo. Quando voltamos para casa, contamos à Vanessa, nossa cúmplice. No Natal, era costume irmos à praia. Me lembro bem: nós dois chegamos dias antes da festa de natal e as meninas chegaram na data. Quando elas entraram com a Mila nas mãos, Roberto ficou incrédulo, mas não podia fazer mais nada. Afinal, já estava ali. Como rejeitar um olhar doce como o de Emily? A última foto que Michele tirou, ela estava com Mila nos braços. O olhar carinhoso dessa cadelinha significa muito para todos nós, é como se ela nos entendesse e fosse um pedacinho de Michele que ficou. A Mila fala, pena que só eu a entenda. Essas memórias me mostram o quanto éramos unidas; mesmo já adulta, aprontamos traquinices juntas. Sinto orgulho de ter dado espaço para minha filha trilhar o caminho que bem entendesse. Ela viajou sozinha aos 15 e aos 21, foi à Europa. Londres foi o lugar onde jurava de pés juntos que moraria sem sofrer nem um pouco. Nesse caso, ela não recebeu meu aval. Gostava de tê-la por perto, da convivência. Convivi 24 anos com ela e pude conhecer cada particularidade daquela personalidade. Se passaram sete anos, e eu guardo no pensamento Michele viva, intacta. O tempo passou e minha vida foi tomando outros rumos, outras coisas foram me dando alegria, como os sorrisos espontâneos do meu netinho. Minhas noites continuam iguais; como um ritual, me conecto com minhas duas filhas. 55 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 55

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Mais forte que a dor

Sinto que o que conquistei nos últimos anos tem o dedo de Michele. Aprendi a conviver com a falta dela. Cada um é aquilo que quer ser, eu sou a mãe de Michele e Vanessa, mulher de Roberto. Mas, sobretudo, Maria Miranda, que luta para sobreviver a cada dia com essa ausência. Fiquei, sim, submersa num mar de ilusões por um período, meu marido adoeceu, minha família estremeceu. Mas tive forças para nadar até a superfície e voltar a respirar de forma autônoma. Muita gente me pergunta como resisti com essa serenidade e calma que tenho e transmito aos outros hoje. A minha fé é meu escudo. Eu acredito em vida após a morte. Eu fiz um roseiral para Michele. A minha menina gostava da natureza, é outra maneira simbólica que me liga a ela. O mantenho tão bem cuidado, enfeito-o da maneira como ela gostaria, eu acho. À noite, deito a cabeça em meu travesseiro e embalo Michele numa luz infinita. Mais tarde ela me encontra nos meus sonhos. E a vida continua. Michele é capaz de despertar um raio de sol em um dia gris. Certa vez, disse que ela estava por trás de tudo de bom que acontecia em minha vida e lá surgiu uma luminosidade no céu puramente cinza.

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SOLANGE PRUDES DE MOURA QUEIRÓZ

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Através dos olhos Por Talita Alessandra

Três pessoas se preparam para assaltar uma lotérica em Pinheiros. Um homem adulto, seu enteado e o adolescente Sidney Moura Queiróz, que fica do lado de fora para observar se passa alguma viatura. A ação é rápida. Pegam o dinheiro e saem. O garoto menor consegue fugir. Sidney e o adulto vão até o ponto. Entram no ônibus. Quando o coletivo passa pela Avenida Raposo Tavares, a polícia já foi avisada e para o veículo. O rapaz maior entrega a arma ao Sidney e pede que ele assuma o BO. O adolescente concorda. Com a arma nas mãos, Sidney decide descer ao perceber a aflição dos passageiros. — Gente, essas pessoas não têm culpa de nada, eu vou me entregar. Joga a arma e desce. Um policial está deitado embaixo do ônibus com uma metralhadora apontada para ele. É preso. Após audiência, o jovem é mandado para a Unidade 61 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 61

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Mais forte que a dor

31 da Febem* no complexo de Franco da Rocha. Sidney tem 16 anos. Passa à maioridade preso na Febem. Parece que tudo vai bem, mas dona Dalgiza, a avó paterna, ao voltar de uma visita, conta para Solange Prudes de Moura Queiróz, mãe do Sidney, que ele estava com o pé enfaixado por se machucar jogando bola. Solange não acredita e vai até a Febem na outra semana, dia de visita. Encontra Sidney: — Vou saber dessa história direitinho. Por que seu pé tá enfaixado? Não foi bola não, né? — Não, foi funcionário que entrou e bateu, à noite. Nessa época, o Ministério Público foi às Unidades da Febem. Vários adolescentes denunciam as torturas sofridas. Sidney é um desses meninos. Em Franco da Rocha, o transferem da unidade 31 para a unidade 25. Lá, é bastante hostilizado por funcionários. Outras mães contam à Solange que, num dia, os meninos jogavam bola e houve uma tentativa de fuga. Os agentes espancam todo mundo, até quem não tenta fugir. As mães veem quando eles pegam Sidney, com uma corrente e um cadeado, e o agridem. Elas, do lado de fora, gritam e jogam pedras, na tentativa deles o soltarem. *** Rebelião. Franco da Rocha. Unidades 30 e 31 estão viradas. Franquinho ainda não. Mas um funcionário vai lá, tira um moleque de dentro da cela e começa a espancar. Os outros meninos estouram a porta e aderem ao motim. *Febem: Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor, atual Fundação CASA.

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Através dos olhos

A casa inteira vira. Tropa de Choque chega. Querem falar com alguém. Empurra-empurra entre os internos. Todos estão com medo de subir no telhado para negociar. Sidney e outro rapaz tomam coragem e sobem. São indicados como protagonistas da rebelião e tentam fazer acordo para não apanharem mais. Sidney é transferido, com outros meninos, para a unidade 30. O terror. Em 2003, é lá que surgem os homens de preto (choquinho), os funcionários que colocam touca ninja, entram na Fundação e espancam os jovens. Depois da rebelião, com a instituição destruída, a direção toma uma atitude inconstitucional e transfere os adolescentes para a Penitenciária de Avaré. Lá, muitos moleques passam mal. Um presidiário dá um toque para Sidney não comer a comida, porque tem caco de vidro moído. Ele não come. Dia de visita. Um parceiro de cela está mal. Sidney se exalta ao ver as condições do colega. — A gente tem que levar ele pro banheiro. O menino tá cagando sangue. Os companheiros, desesperados, pedem socorro. A avó de Sidney discute com um funcionário: — Vocês vão deixar o moleque morrer pra depois culpar os adolescentes e dizer que eles mataram o garoto? Acaba a visita. Primeiro arregaçam a molecada e só depois levam o menino à enfermaria. Após a reforma do complexo da Febem em Franco da Rocha, os meninos retornam. Mudam o esquema de visita. Os familiares ficam em uma sala, fecham tudo, deixam apenas uma janelinha. Quando Solange visita Sidney, estranha. Senta no banco de cimento, gelado. É inverno, está muito frio. Um funcionário fica parado na porta e outro vai ao pátio buscar o rapaz. Ela levanta e 63 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 63

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Mais forte que a dor

olha pelas frestinhas. Vê quando um funcionário abre a cela e chama Sidney. O garoto passa pelo corredor só de cueca. O levam para outra sala. O filho chega para vê-la, com calça de moletom e chinelo. Sidney conta à mãe que está sem colchão. Diz que os oito meninos da cela tentam dormir próximos, para não morrerem de frio. Solange, ao ouvir aquelas palavras, fica revoltada. Seu filho sem colchão, sem coberta, sem nada. Pelado, só de cueca no inverno. — Não, isso não vai ficar assim. Para piorar, teve o Dia do banho de sangue. Um garoto passa perto de um funcionário e não fala por favor. O choquinho entra na ala C, em que Sidney está. Todos apanham. Pegam um por um do xis, levam ao pátio e os espancam. Os meninos na ala B ouvem os gritos de socorro e batem nas grades, em solidariedade. Aí o choquinho vai até a unidade B e arrebenta os moleques. Furiosa, Solange vai ao Fórum do Brás. Chega às 9 da manhã. Esbraveja com os funcionários de lá, que pedem para ela aguardar a promotoria. — Que horas? — Só depois do meio-dia, uma hora. Fica lá sentada: — Daqui eu não saio, durmo aqui se precisar. Por volta do meio-dia um senhor fala: — Você é uma das mães de Franco da Rocha? — Sou. — Por que você não se reúne com as mães que estão lá embaixo, na porta do Fórum? Solange desce ao encontro das outras mulheres: — Vocês são as mães de Franco da Rocha? — Somos. 64 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 64

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Através dos olhos

— Da Unidade 30? — Sim. Nesse dia, Solange conhece a Amar, Associação de Mães e Amigos de Crianças e Adolescentes em Risco, grupo formado por familiares de internos que reivindicam os direitos dos jovens tutelados. Uma mulher apresenta a diretora da Amar: — Essa é a Conceição Paganele. — Muito prazer! Conceição entrega um papelzinho pequeno com o endereço da Amar, que Solange guarda na bolsa. Era final de abril ou início de maio, em 2003. Levam todas as mães a um auditório dentro do Fórum. Chegam a promotora da Infância e Juventude, Sueli Rivera, o promotor Dr. Tafner, outro promotor e Ariel de Castro Alves, advogado da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A imprensa está lá. As mães fazem as denúncias. Um menino presente, cujo nome também é Sidney, liberto há pouco tempo da Febem, tira a camisa e mostra as marcas de tortura em seu corpo: — Esse aqui foi meu presente de despedida da Febem. Deram uma surra e pediram pra gente nunca esquecer deles. Há muita comoção nesse momento. A mãe dele está lá. Outra mãe desmaia, muitas começam a chorar. Outro menino seria liberado, mas não foi. A mãe fala aos promotores: — Por que vocês não vão lá pra ver? Meu filho está com a cara estourada, quase não reconheci. Está com o rosto todo deformado, de tanto que apanhou. A Promotoria ouve as denúncias, mas não firma compromisso. As mães começam a ir embora, mas Solange fica: — E aí, ninguém vai fazer nada? Vai ficar por isso mesmo? 65 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 65

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Solange sobe o corredor do Fórum: — Eu tenho que falar com alguém, não posso sair daqui. Dr. Tafner, eu poderia falar com o senhor, por favor? Ele pede para esperar um minuto. Solange vai até a sala dele. Ela fica no Fórum das oito e meia da manhã às oito e meia da noite. Relata ao Dr. Tafner que na Febem não há atendimento médico, psicológico, nada. Só rebeliões. Ele pergunta se ela é irmã do Sidney, pela aparência jovem. Após essa conversa, é marcada uma avaliação do Fórum. No dia da visita, Solange dá a boa notícia ao filho: — Aguarda, Sidney, segura as pontas aí que vai ter a avaliação e falaram pra mim que, dependendo, você pode ser liberado de lá mesmo. Ele fica numa alegria! Dia 25 de junho tem a avaliação e Sidney chega todo machucado no Fórum. Estão presentes a mãe e a avó. Levam roupas, na esperança dele ir embora com elas. Sidney conversa com a psicóloga e a assistente social do Fórum. A avó também fala com as duas. Solange fala só com a assistente social. A família aguarda ansiosa a libertação porque decidem mudar de Estado. O padrasto de Sidney tinha arrumado um emprego em Santa Catarina para fazer segurança de um time de futebol. Ele já havia trabalhado como segurança do Palmeiras antes, motivo pelo qual Solange o chamava de traidor, por todos serem corinthianos! Sidney também poderia recomeçar a vida em Portugal, com a prima Adriana. Ela veio de lá e conseguiu autorização para vê-lo na Febem, numa quarta-feira. Estava animada com a ideia. Solange comenta os planos com a assistente técnica no Fórum. De repente, a psicóloga sai apressada para ir embora, começa a guardar as coisas e fala sobre o Sidney: 66 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 66

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— Eu não vou liberar seu filho porque ele é um psicopata social. Solange começa a rir, inconformada: — Essa mulher é doida! Frustradas por Sidney não ter sido liberado na avaliação, Solange e dona Dalgiza vão embora. No caminho conversam: — O que a senhora conversou com a psicóloga? — Eu falei pra ela que o Sidney vê vultos. — O Sidney vê vulto? Fantasma? Ele nunca falou isso pra mim. Quando ele fez isso? — Uma vez que ele tava com febre, quando era pequeno. — Você falou isso pra ela? Que era na infância? — Não, porque ela teve que sair. — Muito obrigada, a senhora acabou de ferrar o meu filho. Como a senhora foi falar uma coisa dessa? Não tem nada a ver. Continuam a caminhada até em casa. *** Teve um dia que o Sidney chorou tanto. Ele pede para os promotores o mandarem de volta para Franco da Rocha: — Em Franco da Rocha as pessoas são ruins e demonstram, então é mais fácil de lidar. No Tatuapé as pessoas são muito falsas. É difícil, bem pior de lidar. Numa quarta-feira, a assistente técnica da Febem chama Solange para conversar. Mas ela não abre a boca. Quem fala é a psicóloga Luciana, que faz perguntas sobre o Sidney. Solange pede para vê-lo. Luciana o chama e fala: — Seu filho está com a calça de moletom virada do avesso. Ele falou que agora vai andar com a calça assim. Vai criar uma nova moda aqui dentro. 67 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 67

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Sidney, dopado de remédios, não sabe direito onde está. — Sidney, você está com a calça do avesso porque está suja, né? — É mãe, minha calça tá imunda. Fiquei com vergonha de vir aqui na sua frente com a calça daquele jeito. Os adolescentes ficam dias sem trocar de roupa. Raquel, enfermeira da Cedeca* Sé, vai até a Febem e conversa com a enfermeira da unidade. Soube que medicam Sidney por conta própria, com cinco gotas diárias de Leoplildil. *** É na visita de sábado, 16 de agosto de 2003, a última vez que Solange conversa com Sidney. Nesse dia vão ela, a avó e a filha Vivian, que há tempos não visita o irmão por se constranger com a revista vexatória. No encontro, os dois irmãos se abraçam e choram. Foi tão bonito! A família fica unida por bastante tempo. A psicóloga Luciana chega perto e fala: — É, Sidney, logo, logo, você vai embora. Já falou pra sua mãe que o conclusivo está lá no Fórum, pro juiz assinar? — O Sidney só precisa voltar pra casa. Ele está feliz, fala sobre a festa que terá na Febem. Luciana mostra os cartazes que ele fez. Estão todos grudados na parede. Sidney sempre gostou de desenhar. Tinha talento com o lápis. Snoopy era seu personagem predileto. As cartas que mandava para a mãe quase sempre iam acompanhadas de belas ilustrações. *Cedeca: Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.

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Tudo parece favorável. Mãe e filho fazem pequenos planos e sonham. Os castelos ajudam a mente a sobrevoar o mundo lá fora: — Ei Sidney, o que você quer comer quando sair? — Mãe, eu quero um bifinho. Faz tempo que eu não sei o que é comer uma carne. A comida oferecida na Febem é ruim. Uma vez deram um marmitex para Solange experimentar, mas ela não conseguiu comer. O frango parecia doente, de tão horrível. Sidney amava mousse de maracujá, sua fruta favorita. Desde quando entrou na Febem, ele insistia para a mãe levar a sobremesa na visita: — Traz, mãe! — Sidney, não entra. Não tem como. — Conversa com alguém aí, um pouquinho só de mousse, pra mim. Todo mundo está contente. Uma hora ele para, ao ver alguns pássaros no laguinho: — Olha mãe! Olha os passarinhos! Antes de acabar a visita, Sidney implora para a mãe ajudar a transferir ele de volta para Franco da Rocha ou para Raposo Tavares. O jovem pressente que algo ruim pode acontecer, pois os espancamentos continuam, e os funcionários são cada vez mais violentos. Quantas vezes ela pediu a transferência e nada. — Calma, Sidney. Aguenta as pontas. Logo você está em casa. Termina a visita. Sidney vai para uma sala e passa pelas costumeiras revistas, cerca de 10 por dia. — Mãe, eu nunca vi lugar pra ter tanta revista como aqui. É revista pra tudo, até quando vai no banheiro. O rapaz já tem 18 anos e no próximo mês ganharia a liberdade. *** 69 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 69

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Domingo, segunda, terça, quarta. Quatro dias depois da visita, Solange recebe uma ligação, às oito e meia da noite, da psicóloga Luciana: — Dá para você vir aqui amanhã cedinho, o mais cedo possível? — O que aconteceu? — Vem aqui amanhã cedo. Na hora, Solange imagina tudo. Briga com adolescente? Alguém esfaqueou Sidney? Aconteceu alguma tragédia? Ela não consegue dormir à noite. Na manhã seguinte, bem cedinho, está na porta da Febem. O diretor da unidade Araucária, no Tatuapé, Roberto Tadeu Teriaga, pede para ela o acompanhar até a sala dele e fala, de forma seca: — Seu filho teve desentendimento com funcionários, acendeu um cigarro antes do horário e ficou muito nervoso. Foi levado pra cela e tacou fogo no quarto onde estava. Pegou fogo e ele se queimou. Solange fica em choque. Sai de lá boba: — Não acredito que o meu filho está queimado. Pedem para aguardar, pois vão levá-la ao Hospital Municipal do Tatuapé, onde ele permanece internado. Dois funcionários se aproximam dela: — Sinto muito pelo que aconteceu com o seu filho. — Tá bom, obrigada. Mas na hora ela não lembra. No dia 16, na última visita, aquele homem moreno, grandão, que estava com uma blusa xadrez, tinha sido mostrado por Sidney: — Tá vendo aquele funcionário lá, mãe? Ele me espancou na sexta-feira. Dá um jeito de me tirar daqui. O monitor estava encostado, olhando para a família, durante a visita. Na hora ela não lembrou. Depois, se recorda: 70 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 70

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— O filho da puta ainda veio apertar a minha mão?! O outro, branco e magrelo, logo apareceria novamente. No hospital, Solange espera. Antes de poder ver o filho, levam-na à diretoria do hospital. Eles não querem que ela converse com a imprensa sobre o fato. Juntos, diretorias da Febem e do Hospital Tatuapé pedem para ela não divulgar nada na mídia. Determinam as pessoas que podem ver o Sidney no hospital: a mãe, a avó e a irmã. Mas ele também tem outros dois irmãos, Rodrigo e Felipe, além do padrasto. Eles não são autorizados a visitá-lo no hospital. Depois das orientações, levam Solange ao andar de cima, no setor de queimados. Ela entra. Fazem curativos nele. Quando ela vê, não quer acreditar: — Minha Nossa Senhora, não é meu filho. Meu filho é branquinho, ele tá moreno. Chega perto e confirma que realmente é ele. Os enfermeiros puxam as gases e ele grita: — Aiii. Sidney está com 70% do corpo queimado. As queimaduras são horríveis. É quinta-feira, um dia após a tragédia, os ferimentos são recentes demais e os curativos doem imensuravelmente na pele queimada. Está em carne viva. Muitas bolhas de água. Uma parte de pele do braço caiu e, naquele pedaço do corpo, não existe mais pele. As unhas estão negras. Os pés parecem carvão. Mas a parte de baixo está branca, com alguma vermelhidão nos joelhos. — Como ele queimou os pés desse jeito? O viram de costas. Atrás do corpo não está queimado. Só a linha de frente. Solange questiona, em pensamento, 71 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 71

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a versão oficial, de que ele próprio tinha ateado fogo na cela: “Como a pessoa taca fogo assim? Eu taquei fogo... Se eu caí no colchão, não vai me pegar por inteiro? Como? Só a parte da frente? Quando ela virou para dar injeção, a parte de trás não tava queimada. Como pode?”. *** Conceição Paganele procura Solange em casa. Pergunta se ela aceita falar com um jornalista. Ela dá sua primeira entrevista para o jornal Diário de S. Paulo. A reportagem, intitulada Mães da Febem, foi publicada no domingo, dia 31 de agosto de 2003. A matéria, de página inteira da editoria São Paulo, trouxe entrevistas com Solange e com Ana Dias Rosa, mãe de Rogério, monitor morto durante uma rebelião. Ambas se posicionam contra a instituição. O diretor Teriaga monta o circo. Coloca várias pessoas junto com ele e manda chamar Solange. Diz que ela não podia ter dado essa entrevista. Fala que Rogério morreu e seu filho ainda não, que permanece internado no hospital. Fala um monte para a mãe de Sidney, que não aguenta mais ir até a Febem: — Toda vez que acontece alguma coisa ele me chama, cara chato! Nesse dia ela foi com a Vivian. Ambas olham um funcionário escondido do lado de fora, atrás da porta. Elas o reconhecem. É o magrelo que lhe deu a mão antes. Teriaga, enfurecido por causa da reportagem, esbraveja para Solange: — Eu nunca quis seu filho aqui dentro da minha unidade. Eu não pedi pra ele estar aqui! 72 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 72

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Bem que ele tentou transferir Sidney para unidade 2, destinada aos adolescentes considerados perigosos. O diretor da outra unidade respondeu que o menino não tinha perfil para ficar lá. Com cinismo peculiar, algo que Solange percebe como característico em Teriaga, ele aponta para uma pilha de papéis: — Olha só, tudo que a gente fez pelo seu filho, quantos relatórios. — Durante 1 ano e 2 meses ninguém fez nada pro meu filho, na Febem inteira. Em uma semana que ele está no hospital o senhor já fez tudo isso? Ele fica bravo. Teriaga era irônico com Solange e ela rebatia. “Eu não dava boi pra ele não”. A mãe se revolta quando o diretor fala que, caso Sidney saia, a Febem não terá mais nada para fazer por ele. Por causa da entrevista, ameaça: — Podemos mandar seu filho para o manicômio judiciário. Solange ainda ouve mais desaforos: — Eu sou como um pai pro seu filho. Sei mais da vida dele do que você que é mãe. Eu faço mais pelo seu filho do que você na vida toda. “Como um cara pode falar uma coisa dessas para uma mãe?”, Solange pensa, em um momento tão frágil como aquele. *** Sidney está internado há 17 dias. A inalação de fumaça prejudicou os pulmões, e ele usa aparelhos para ajudar a respirar. Terá que fazer raspagem na pele. A médica avisa: — Ele está sedado e precisa de mais sedação para tirar a pele morta. Talvez ele possa não voltar mais da anestesia. A raspagem é feita e Sidney sobrevive. Solange sempre confiou que ele fosse aguentar. 73 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 73

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— Eu tinha fé que ele ia sobreviver. Eu acreditava tanto. Na sexta-feira, dia 05 de setembro, Solange vai ao hospital e vê Sidney sem o aparelho de respiração. Corre atrás da médica: — Por que você tirou o aparelho de respiração? — Porque ele tem que aprender a respirar com o próprio pulmão. — Mas tem só 17 dias que ele se queimou. O coração dele está muito acelerado. Ele está com dificuldade para respirar. — Mas é assim mesmo! No começo da internação, ele ainda balbuciava algumas palavras. A avó tenta conseguir alguma informação sobre o incêndio: — Quem fez isso com você? Sidney tenta respirar, só consegue falar: — Vó. — Se foi você, Sidney, fica com o olho aberto. Se foram os funcionários, você fecha o olho. Sidney fecha os olhos e aperta. Ele ainda não está em coma induzido, sente tudo. Colocaram-no em coma induzido cinco dias depois. Antes disso, aguentou aquela dor horrível. Solange lembra quando o colocaram em coma induzido. Um dia, Vivian entrou no quarto, viu o olho do irmão todo branco e deu um grito, pensou que ele estava morto. Após essa situação, cobriram os olhos com uma venda. A acompanhante de um senhor que sofreu queimaduras durante o ofício de pintor, também internado, confidencia à Solange: — Eu vi quando seu filho chegou no hospital, ele entrou aqui andando, com os pés queimados. Ninguém 74 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 74

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levou cadeira de rodas. Ele foi do andar de baixo até em cima, no setor de queimados, andando. *** No sábado de manhã, dia 06 de setembro, dona Dalgiza liga na Febem para cobrar a entrega de algumas fotos que estavam com Sidney na unidade, as quais a família tinha levado durante as visitas. Quem atende ao telefone é a psicóloga Luciana: — Dona Gilza, liga pra Solange e vêm as duas pra Febem porque eu preciso conversar com vocês. — Já sei, o Sidney morreu, não foi? Ela bate o telefone e liga para Solange na hora: — Liga pra Febem. Solange telefona imediatamente: — O que aconteceu Luciana, meu filho morreu, né? — Vem aqui na Febem que a gente conversa. — Tá, já estou indo! Solange, seu marido Miguel, Vivian e Dalgiza saem juntos. Mas não passam na Febem, vão direto ao hospital. A mãe sai em procura do filho: — Eu quero saber onde está o Sidney Moura. Ninguém sabe. Ela, desesperada, tenta: — Pô, não tem nenhum médico aqui? Ele estava no setor de queimados. Me ligaram falando que ele tinha falecido. Mandam ela ao necrotério. Em seguida, alguém do hospital avisa aos funcionários da Febem, que rapidamente chegam. Solange e dona Dalgiza entram no necrotério. Encontram Sidney. Desespero. O corpo está todo enfaixado. A avó, inconsolável, arranca as faixas do corpo do neto. Uma crosta de pus horrível. Puxam a gaveta do 75 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 75

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freezer. Parece que Sidney chora. Há o desenho de uma lágrima em seu olho. *** Sidney morreu de insuficiência respiratória, choque séptico, pneumonia bilateral e queimaduras generalizadas, conforme consta em atestado de óbito. A primeira parada foi às cinco da manhã e depois deu outra às sete. A mãe não se conforma: — Ele deve ter aberto a boca antes de morrer, procurando ar, porque aquela filha da mãe tirou o aparelho de respirar. Não era pra ter tirado, era pra ter esperado mais um pouco. A médica retirou o aparelho na sexta-feira e no sábado ele morreu. A dor é dilacerante. Os cuidados maternos no hospital parecem insuficientes perto de uma morte agressiva, que ronda em todos os momentos. Solange foi extremamente cautelosa. Conversava com o filho internado, mas tinha até medo de chegar perto e passar alguma infecção. Pedia a Deus para que seu filho não pegasse sequer uma gripe. — Ele morreu e a vontade que eu tinha era de beijar e abraçar ele e eu não pude fazer isso. *** Levam Solange até sua casa em Embu das Artes. Quando chegam, uma das funcionárias da Febem que a acompanha toma um café com ela e a avó, e desabafa: — Solange, eu gostaria muito de falar a verdade para você, sobre o que aconteceu com seu filho, mas não posso, porque eu tenho dois filhos pra criar. 76 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 76

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Ao ouvir estas palavras, Solange pensa: “Não precisa falar mais nada”. O garoto morreu de manhã e Teriaga chega com o corpo, em Embu, às dez horas da noite. O diretor, antes, passa no batalhão da polícia militar local e pede escolta. Com ele estão mais alguns funcionários da Febem. Solange, ao saber disso, questiona: — Pra quê? Pra ver se o defunto vai levantar e sair correndo? Uma das situações que enfurecem Solange é se lembrar da impossibilidade de passar mais tempo com o filho durante a internação. O Estado assumiu controle de tudo. Os familiares, que saíam de Embu das Artes para visitá-lo no Hospital Tatuapé, só podiam ficar 15 minutos. Ela foi todos os dias. E todos os dias, dia e noite, funcionários faziam a guarda do local. *** Solange perguntava por que, em São Paulo, há igreja para vários santos, mas não tinha uma igreja para Jesus Cristo. Perto do Fórum do Brás tem uma igreja. Descia lá e rezava, a caminho do hospital. Ainda cedo, acendia uma vela para Nossa Senhora Aparecida, da qual é devota. Pedia para Ela ajudar o Sidney. Depois que o garoto morreu, ela volta lá e vê escrito na placa, em frente: Igreja de Jesus Cristo. — Meu Deus, eu estava pedindo pra mãe, por que não pedi pro filho também? Eu estava na casa Dele. Cara, que tristeza. Teriaga chama Solange na Febem. Ela vai com dona Dalgiza. Do lado de fora do complexo, conversa com outras mães que sabem do fato. 77 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 77

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Uma das mães disse que seu filho falou sobre o Sidney, que no dia do incêndio ele foi espancado por funcionários e levado à cela de castigo. Depois os meninos viram a fumaça, acharam o fim do mundo, e tentaram socorrer. A cena é remontada. Sidney grita: — Socorro, socorro! Os moleques berram: — Cadê as chaves? Teve funcionário que deu risada, a chave não aparece. Somente um monitor fala: — Vocês não têm consciência? Aí a chave apareceu. Os meninos começam a encher baldes com água para tentar apagar o fogo, mas os funcionários não deixam. Os extintores estão presos lá embaixo. Demora em ir pegálos. Abrem a cela e retiram Sidney. Ele passa em chamas pelo corredor. Um dos adolescentes, Clebinho, disse nunca ter esquecido os olhos do Sidney no momento em que abriu a ventana da cela: — O Sidney, com os olhos verdes arregalados, pegando fogo dentro da cela. *** Solange não aceita a versão oficial de um suposto suicídio. — Tantos planos o moleque tinha. Quem vai se matar faz planos? Disseram que Sidney coagiu um professor de informática para lhe fornecer uma arma e um isqueiro. 78 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 78

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Sidney se desentendeu com funcionários por causa de cigarros. Só podia fumar três cigarros por dia, um de manhã, um à tarde e um à noite. A família estranha o fato de o professor supostamente ter dado a ele o isqueiro, sendo que os adolescentes são revistados mais de 10 vezes por dia. Nesse dia não houve revista? O isqueiro nunca apareceu. O Corpo de Bombeiros fez a perícia e o instrumento não foi encontrado. O relatório nº CBM – 002/12/03, de 29 de janeiro de 2003, conclui que o complexo Tatuapé da Febem “não possui as condições mínimas de segurança contra incêndios, pois não tem Projeto Técnico aprovado pelo Corpo de Bombeiros da Polícia Militar do estado de São Paulo e não dispõe dos equipamentos mínimos de segurança contra incêndio”. Na primeira audiência do Fórum, após a morte de Sidney, Teriaga tenta uma explicação pouco convincente para a falta do isqueiro na cela de castigo, a qual não podia ter objeto algum: — Nunca foi achado o isqueiro. Vocês sabem que alguns garotos escondem algumas coisas no ânus. Argumento pior não poderia existir. Além de todo o drama envolvido no episódio, tentou-se imputar ao Sidney, morto, culpa pelo sumiço do isqueiro, de uma forma humilhante. Solange explode em indignação: — Calma aí! Ela não pôde falar para Teriaga, pois leva uma bronca da juíza pela exaltação, mas pensa: “Ele colocou fogo nos colchões e teve a preocupação de catar o isqueiro e enfiar dentro das partes íntimas? Quer dizer, no hospital ele passou por um monte de exame, todo queimado, e nunca acharam o isqueiro. Ele foi enterrado com o isqueiro?” 79 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 79

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Solange e Vivian sentiram a mesma coisa nos primeiros dias que Sidney estava internado. Cheiro de algum produto químico no corpo. Não sabem exatamente o que, mas era inflamável. Sidney foi levado à enfermaria e lhe deram calmante, antes do incêndio. Pelas queimaduras, se imagina que estava deitado quando foi queimado. Solange explica a versão que acredita: — Doparam ele, deitaram, jogaram o produto, tacaram fogo e alegaram que ele pegou os colchões, toda aquela papagaiada, tirando o deles da reta. Ainda tenho certeza que o Sidney ficou com bronca de algum funcionário que bateu nele na sexta-feira. *** No dia do enterro de Sidney, Solange discute com os funcionários da Febem porque o caixão chega lacrado. Ela briga e pede para colocar a tampa com o vidro para, pelo menos, ver o rosto do filho: — O rosto não tava tão queimado. Ele tinha umas pequenas queimaduras na testa. As orelhas estavam pretas. O pescoço queimou muito, dava para ver as veias. Também tinham marcas no tronco, nos braços e nos pés. Não deixam Solange ir ao cemitério na hora que Teriaga chega. Seguram-na dentro de casa, com receio dela o agredir. — Se o Teriaga aparecer no cemitério, eu vou matar ele. Vou enterrar ele junto com o meu filho. Ele vai ser o capacho dos pés do meu filho. Meu filho morreu, mas o Teriaga vai junto. Eu vou esganar aquele homem. Sidney seria enterrado às 10 horas da manhã no dia 7 de setembro, domingo. É enterrado às 4 horas da 80 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 80

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tarde, no dia 8, por causa de documentações pendentes que Teriaga não providencia. O pessoal do cemitério se prontifica a organizar os papéis. Solange lembra: — Foi enterrado quatro horas da tarde do outro dia. Ficou lá esperando, coitado. Solange cuida do espaço reservado ao filho: — Está lá. Comprei um túmulo pra ele, é o cantinho dele. La é ruim porque não pode ter flores, só jardim. Eu tinha plantado umas flores laranja, porque ele adorava a cor laranja. Nascia cada rosa laranja linda. Dava cada rosona linda! Ela conversava com o filho, em memória: — Nossa, essa aqui é sua mesmo, viu! Mas como não pode ter flores no cemitério, alguém as arrancou. *** Após a morte de Sidney, Solange entra na Justiça e move uma ação contra a Febem. Inicialmente, começa com a Cedeca* Sé, mas um incêndio na sede queima os documentos. O processo passa para os advogados da Conectas Direitos Humanos, no final de 2003. Em 2005, Solange ganha em primeira instância. Oferecem 30 mil reais para encerrar o processo. A advogada fala: — Solange, quer aceitar? — Não. Não quero! — Você quer continuar com o processo? — Vambora, a gente já tá aqui mesmo! Aí foi pra segunda instância e Solange ganha novamente. A Febem recorre. O processo vai ao Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília. Solange ganha. 81 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 81

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Foi o primeiro caso em que a Febem é considerada culpada. O Estado é responsável pelo jovem que se encontrava sob sua tutela. De todos os casos movidos contra a Febem, o de Sidney é o primeiro que chega ao estágio de condenação sem possibilidade de recurso. Solange intensifica, a partir da morte do filho, a militância contra a Febem. Junto à Amar, participa dos atos simbólicos realizados, às quartas, em frente ao prédio da Secretaria da Educação e se engaja na luta contra um modelo de medida sócio educativa, o qual considera falido. — Eu sempre dei minha cara a bater. *** Solange está com 47 anos e é mãe de três outros filhos, Vivian Plateiro Queiróz, de 31 anos, Rodrigo Moura Queiróz, de 25 anos, e Felipe Eduardo Prudes de Moura, de 22 anos. É avó de três netos, Flávio, filho de Vivian, que ela acompanha a criação desde pequeno, Mickaelly, filha do Rodrigo, e da filha de Sidney, que hoje deve ter 12 anos, mas a família não tem contato. Um dia a garota foi com o pai e a criança procurar Sidney, mas ao saber que ele estava recluso, vão embora. Solange não estava em casa, Vivian viu a sobrinha: — Mãe, ela é bonitinha. Branquinha, loirinha, olhos verdes iguais do Sidney. Solange lembra que, após o luto, foi uma rebeldia terrível. Os filhos não aceitavam a morte do irmão. — Eu nunca esqueci o primeiro natal sem o Sidney, em dezembro de 2003. O Sidney adorava. Eu fazia um monte de comida. Foi uma choradeira dentro daquela 82 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 82

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casa. Eu chorei, a Vivian chorou, o Rodrigo, o Felipe. Nossa, como a gente chorou no final de ano. Foi o pior natal. Nosso natal nunca mais foi o mesmo. O Sidney adorava festa, natal, ano novo, ele adorava. Então, depois que o Sidney morreu, acabou. Não tinha mais aquela graça. A gente não ligava mais, ninguém ligava mais em casa. Eu não faço mais. Acabou. Hoje Solange está em paz. Não consegue guardar raiva, mágoa ou rancor de ninguém. — Deus sabe o que faz. Se a justiça dos homens falhou, a de Deus com certeza não vai falhar. Eu confio muito em Deus! O marido de Solange, Miguel, morreu no dia 5 de setembro de 2011. Dona Dalgiza, já idosa, faleceu no ano passado. Os filhos estão bem. Solange pega no pé de todos, principalmente depois de perder o Sidney. Atualmente mora com o filho Rodrigo e três gatos. Quando ele for embora, ela diz que fica na companhia de Deus. Solange tem certeza de que, algum dia, o vazio deixado pela falta de Sidney será preenchido. — Ah, mas graças a Deus um dia eu vou morrer, vou ver o meu filho e vou ficar com ele. A gente vai ficar junto!

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Carta de Sidney à mãe

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Outra carta significativa que Sidney escreveu à mãe

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A carta com os desenhos do Snoopy, personagem que Sidney adorava, foi feita por Felipe, irmão dele. O desenho representa o próprio jovem durante uma semana na Febem. Os outros desenhos são de Sidney enviados à mãe.

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A seguir, primeira entrevista que Solange concedeu à mídia. Jornal Diário de S. Paulo, de 31 de agosto de 2003.

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ELCE DE MORAES OLIVEIRA

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Em meio a lembranças e silêncios Por Aline Oliveira

Eu lembro de tudo, assim, tudo... Tudo. Não tem especificamente uma lembrança de mágoa, de coisa assim, não. É a vida, menina. A vida da gente leva, a gente leva os tropeços. Esquecer nunca, todo dia cê lembra, mas ela tá melhor que a gente. Já fez a passagem que ela tinha de fazer, já fez o que tinha de fazer, ela passou o que tinha de passar, agora tá lá em cima ajudando a gente a superar a vida. A casa fica logo ali, próxima ao ponto de ônibus, atrás do parque e do posto de gasolina – ponto de referência é o que não falta. As paredes laranjas contrastam com o branco do piso do quintal, recentemente colocado, e com o verde das plantas espalhadas pelo corredor. Nesta casa moram os melhores avós do mundo, diz a pequena placa de madeira colocada junto à porta da sala. Em letras miúdas, lê-se abaixo Campos do Jordão. No horário em que a maior parte das pessoas preocupa-se com o café da manhã ou sequer levantou da 93 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 93

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cama, neste lar o almoço já começou a ser preparado. Elce de Moraes Oliveira já está acordada há um bom tempo quando chego à sua casa, em Santo André. Por força do hábito, levanta cedo todos os dias, sempre por volta das cinco da manhã e sem a invasão estridente do despertador. Mora na cidade desde 1975 e em quase todo esse tempo na mesma casa. Tem os cabelos curtos, tom de bronze com alguns fios acinzentados, que ora se revelam, ora se escondem de acordo com a luz do ambiente. Sorri com os olhos e no modo de falar, com forte sotaque de interior. Quando fala, aparecem os “erres” puxados ou retroflexos, como dizem os linguistas. O tom de voz alto por vezes demonstra irritação – mais ainda se estiver ao telefone. Porém, esse mau humor nem sempre é real, pois desaparece com a capacidade que dona Elce tem de provocar risos com seus comentários engraçados. Alterna essa alegria com breves silêncios. Quando fica emocionada, por trás dos óculos, é difícil perceber alguma tristeza. Ela logo dá um jeito de disfarçar quando vem à tona uma lembrança que possa arrancar lágrimas – se querem sair, penso que as segura. Levanta e pega alguma coisa no armário da cozinha, comenta algo com o marido, muda a cena. Teve três filhas. A primeira delas morreu com dois anos e meio, vítima de meningite. A filha do meio, Sissi, perdeu há 17 anos em um trágico acidente de carro. Atualmente, divide a casa com o marido, José Hugo, e a caçula, Sueli. A neta, Alice, aparece quase todos os dias, divide-se entre a casa dos avós, onde viveu por muitos anos, e a do pai, no interior de São Paulo. Elce, Sissi, Alice. A sonoridade dos nomes deixa no ar a ligação na vida das três mulheres. Mãe, filha e neta em um enredo de doçuras e resmungos, amor e cuidados, além das memórias. *** 94 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 94

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Tava assim, sabe, esses dias, não gosto desses dias cinzentos, essa garoinha? Tava daquele jeito o tempo. Os olhos, marejados pelas lembranças, ganham um brilho a mais quando dona Elce fala da notícia que chegou pelo telefone. Nem lembro quem é que foi que ligou na hora. Mas falou “ela tá bem, tá bem”. Tá bem nada. Quando eu cheguei, já soube que ela tinha morrido; a Soraia também tinha morrido. No hospital que ela nasceu, lá em Sorocaba, ela morreu. O Santa Lucinda. Sissi de Assis Oliveira tinha 36 anos quando sofreu o acidente. Morava em Itu, com o marido e os dois filhos. Fruto do primeiro casamento de dona Elce, Sissi estava também em seu segundo relacionamento. Na primeira união, teve o filho Alexandre, na época com 16 anos. Do segundo casamento, nasceu Alice, que ficou órfã aos cinco anos de idade. Morava numa chácara na cidade de Itu. Trabalhava em escritório, trabalhou na Ciminas (Cimento Nacional de Minas S/A), e casou-se com um colega de trabalho, Paulo – que ainda hoje vive na mesma chácara. Juntos, montaram uma loja de artesanato em que Sissi dava aulas de tapeçaria. A sócia no negócio era Soraia, que faleceu no mesmo acidente – aos 26 anos e no dia do aniversário da própria mãe. Esse mesmo dia, 09 de agosto de 1997, foi um sábado e véspera de Dia dos Pais. Era dia de festa na casa de uma amiga e Alexandre, adolescente, quis ir. Com a permissão da mãe, foi ao local que ficava a 15 quilômetros da residência onde morava. Saiu por volta das onze da noite e lá pelas quatro horas da manhã, Sissi pegou o carro e, junto com a sócia, saiu para buscá-lo. O Paulo ficou bravo com ela e disse que era pra dar dinheiro ao menino, pra pegar o primeiro ônibus cinco da manhã e de lá iam buscar ele. Aí a Sissi até falou: 95 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 95

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— Ah, imagina, porque ele não é seu filho que você quer que eu deixe o menino vir de ônibus. 16 anos é perigoso. Eu vou buscar meu filho. Se fosse seu filho, você também ia. Ela tinha uma Towner. Essas que, essas... Parece uma peruinha. Aí elas tavam indo e vinham vindo uns caras que estavam num rodeio, como que era o nome...Onde que era o rodeio, quando teve o acidente? Dona Elce e seu José Hugo buscam na memória o nome da cidade de onde vinham os rapazes no carro que causou o acidente da filha: — Tava vindo de Cajamar... De Mogi Mirim, Jagua... — Não tem uma festa de rodeio pro lado de vocês... — Jaguariúna, eles tavam vindo de Campinas, Jaguariúna. — Pegaram a rodovia Itu, Salto de Itu. Eles tavam vindo de Jaguariúna. Ai o cara tava com essa F1000. Ela tava numa Towner. E um caminhão na frente. Aí, o que acontece, ela passou o caminhão e entrou na mão dela na direita. Veio esse cara, com a D20, ele e um amigo dele e largando o pau, passou o caminhão, não viu ela, bateu os dois e caíram numa ribanceira, de mais ou menos uns 30 metros. Se era F1000 ou D20 a caminhonete que se chocou contra o automóvel de Sissi, não se sabe ao certo, mas o fato é que a partir de tal momento, a vida de muitas pessoas ganhava um novo capítulo, com a ausência de quem foi e não voltou. Dona Elce e o marido começam entre si um diálogo sobre o acidente: — Ela foi pro hospital, a amiga dela morreu na hora e o rapaz, no banco do carona da D20, morreu. Era um jogador de basquete. Isso foi em agosto, véspera de Dia dos Pais e o moço ia casar em dezembro. 96 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 96

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— Tinha 27 anos o rapaz. — E o filha da puta que provocou a coisa teve só um arranhãozinho. — Ele se machucou também. — Mas pouco. — Se machucou. — Na perna, cortou um pedacinho. Em meio à breve ‘discussão’, seu José Hugo, calmo que só ele, lembra que não seria imprudência da filha a causa do acidente. Eles caíram numa ribanceira também, entende. Ele dormiu no volante e estava de fogo. Ela dirigia até caminhão. Eu ensinei dirigir, ela vinha buscar 300, 400 sacos de cimento com o caminhão. Vinha da Ciminas aqui, carregava e aí levava lá no depósito deles. Era fodida. Na cozinha, todos rimos muito nesse momento. *** A notícia chegou cedo, por telefone. Não foi dito de imediato que Sissi havia falecido, informaram a família do acidente e que não se preocupassem, pois estava tudo bem. Tudo bem nada, mentira! Na hora que eu recebi a ligação, era cinco e pouco da manhã. Chamei a Sueli, ela ligou para o namorado dela e fomos embora. Seu José Hugo acrescenta: E a gente não ia lá. E falei eu não vou não, a obrigação dela é vir pra cá, isso à noite. É dia dos pais, não é dia das filhas. E mal sabia a gente que ela ia morrer naquela noite. Naquele horário. Diante do que se pode chamar de intuição de mãe, dona Elce não teve dúvidas de que a filha havia morrido. Para ela, ainda que dolorosa e triste, naquele momento essa era uma certeza absoluta. Eu disse ‘ela morreu, não 97 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 97

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precisam mentir pra mim, e eu peço, por favor, que não dê nada pra eu beber, que eu quero encarar isso normal’, e eu não tomei um comprimido. Assim como os carros que se chocaram, a notícia veio como um baque. Eu acho que a gente tem que sentir a realidade. Sofrer, eu sofri. Como consequência desse choque, Elce teria lapsos de memória por cerca de seis meses após a perda de Sissi. Quando saía de casa e pegava o carro, sentia-se perdida, confusa. Não raro, precisava parar, olhar à sua volta e esperar que tudo voltasse ao normal e pudesse dirigir novamente. Dava branco, dá um branco na cabeça, mas era coisa passageira. Porque vinha a lembrança, você pensava e sumia a ideia, nada demais. Mas foi coisa passageira, passou. Soraia, a amiga que estava no banco do carona, foi encontrada já sem vida fora do carro. Sissi não teve ferimentos graves de forma aparente. Mas o impacto da batida e a queda do automóvel ocasionou a erosão de órgãos. Mesmo levada para a cirurgia, quando chegou ao hospital Sissi veio a falecer. Sem a filha, e com uma neta sem a presença da mãe, dona Elce saiu de Santo André e foi para a chácara em Itu. Dividia-se entre cuidar da própria casa e ajudar o genro e fazer companhia à neta, numa rotina que se estenderia por três meses. Sem poder trazer Alice do interior para cá, pediu à irmã que fosse morar na chácara. *** Quando ela ficou grávida, ela teve muito problema, né. A Sissi não poderia engravidar, a Alice veio por milagre. Ainda eu fiquei brava com eles, mas graças a Deus ficou 98 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 98

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tudo bem. Não é que algum fator de saúde impedisse efetivamente que Sissi tivesse outro filho, mas houve complicações e já era sabido que uma nova gestação seria considerada gravidez de risco. À época, Alexandre – filho mais velho de Sissi, era adolescente. Continuou morando em Itu até terminar o segundo grau. No ano seguinte, 1998, veio para Santo André para ficar um tempo com os avós maternos. Porém, acabou indo morar com a avó paterna, que ficou viúva na época. Formou-se em Técnico Agrônomo na Fefisa – Faculdades Integradas de Santo André. Ele é calado, não é de falar. O Alexandre já era rapazinho, cê tinha medo né de Deus o livre virar pro mundo de droga, companheirismo, mas graças a Deus não fuma, não bebe, nunca teve más companhias. A única coisa que ele gosta é fazer samba, das escolas de samba. A mãe dele também gostava. Ele faz composição, essa semana mesmo ganhou. Eu não gosto, a mãe dele gostava e ele gosta também, ele é compositor. Todo ano ele vai participar de carnaval pra ajudar no samba. Por conta das disputas do carnaval e também dos compromissos de trabalho, Alexandre fala com a avó na maioria das vezes pelo telefone. Atualmente, é casado e pai de uma menina. Sempre que consegue, visita a casa de dona Elce aos finais de semana. Recentemente, Alexandre venceu a disputa pela escolha do samba–enredo de 2015 da Rosas de Ouro, pela coautoria do samba Depois da Tempestade, o Encanto. Alice continuou morando com o pai, mas por pouco tempo. A cicatriz na região do abdômen marca o motivo da mudança de lar. Antes ainda de completar seis anos de idade, sentiu fortes dores. O médico disse que não era nada, receitou um remédio qualquer e, 99 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 99

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caso a dor continuasse, pediu à família para retornar ao consultório. Em outro hospital, foi descoberta a apendicite e feita a internação da menina. Aí foi outro baque. Ligaram aqui pra mim e disseram ‘olha, a Alice tá internada em Itu e ela tá muito ruim. Ela não quer se operar sem a avó vir. Passei no banco, peguei dinheiro, fui embora. Cheguei lá, disseram ‘ela não entrou na sala de operação. O médico não conseguiu por ela lá sem a senhora’. Já pensou se essa menina morre? Faz pouco que a mãe morreu. Após a cirurgia, dona Elce ficou preocupada em deixar a neta e voltar para casa. Conversou com o Paulo e a trouxe para Santo André. Daí veio pra cá e não foi embora mais, ela veio aqui dia 29 de janeiro de 1998. Mesmo morando distante, Alice não perdeu o contato com o pai, que trabalhava em São Paulo e a visitava constantemente. Questiono se Alice, tão pequena, perguntava muito de Sissi. Quando a mãe tava no velório, eu por mim, não deixava ela ver. Mas disseram que era bom ela ver pra ter uma noção, né. Mas ela entrou uma vez, olhou, saiu e não voltou mais. Se (é algo que) toca, é por dentro dela, ela não fala pra mim. Novamente, um breve silêncio. Seu José Hugo passeia pela cozinha, cuida dos passarinhos no quintal, vai e volta. Transita por entre nossa conversa. Em meio a tantas histórias entremeadas, fiz poucas perguntas. Esse silêncio fica agora em mim. *** Quem vê Alice falante, tanto quando está sorridente ou, por vezes, quando explode em momentos de raiva, talvez não imagine os silêncios que guarda em si. Assim como a cicatriz da apendicite, o acidente da mãe deixou marcas na 100 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 100

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vida da filha. Para quem convive de maneira mais próxima, esses silêncios ficam mais nítidos em setembro. Além de ser o mês em que sua mãe completaria mais um ano de vida, setembro é também o mês de aniversário de Alice. — Nas próximas semanas tá muito corrido. E pra mim é um assunto muito difícil de falar... Ainda mais em setembro. É um assunto que não gosto de falar... Agora com 23 anos, estuda Arquitetura e Urbanismo. Há alguns meses, voltou a morar com o pai no interior. Por conta da personalidade forte – a dela própria, da tia e da avó, resolveu ‘sair de casa’. Além disso, não durou muito tempo a rotina de ficar em Itu na maior parte dos dias por questões cotidianas, pois a faculdade onde estuda está localizada em São Paulo, e na época em que fazia estágio, o escritório também ficava na capital paulista. Viajar diariamente de uma cidade a outra acabava pesando nos compromissos que Alice tinha e ainda tem. Sendo assim, em quase todos os finais de semana dorme na casa dos avós e, de uns tempos pra cá, até em dias de semana. Quando está na chácara, aproveita para ficar perto dos dois cachorros de estimação que ganhou de presente do pai e para desfrutar de passeios junto a ele. Às vezes ela sai com o pai dela, eles vão passear. Eu falei, tem que curtir mais o pai dela que ela só tem ele, quando ele for, ela não tem mais ninguém, né? Mãe já não tem, então vai curtir o pai dela, faz bem. Antigamente não dava pra ela ir sozinha. Ou a gente tinha que ir ou ele tinha que vir buscar. Agora ela sabe ir sozinha, pra ele é mais fácil. Se a avó tem um misto de seriedade nos silêncios e risos nas palavras, é doce e ao mesmo tempo firme, Alice não escapa dessas marcas na personalidade. É geniosa sem deixar de lado a meiguice de menina. Herdou a beleza da 101 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 101

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mãe e a firmeza do pai. Em meio a semelhanças e diferenças, o casal é que fala, um completando a memória do outro. — E a Alice é a cara da mãe dela. — Igual! — Mas a mãe dela era mais bonita que ela (risos). — Até o jeito d´ela andar, quando fica brava, é o jeito da minha filha de andar. Eu falava ‘Ô italianona!’ Essa aí quando está brava também, pode prestar atenção que ela bate o pé (risos). — Mas de gênio ela não chega nem na sombra da mãe. Interfiro: — A mãe dela era geniosa? — Não, era calma. — A mãe dela era bem calma, dela não tinha quem não gostasse, não tinha inimizade com ninguém. É que Deus chama as pessoas boas pra ele, né. Mas é muito boa pessoa (a Alice). Eu falo pra ela, a única coisa que eu quero – o Alexandre eu já vi formado, já tem a filhinha dele – o que eu quero de você é ver você formada, saber se virar na vida sem precisar dos outros. Porque é muito duro sem mãe, eu não porque vó não educa, vó estraga. *** Se para o casal Alice é geniosa, para a neta a avó é a braveza em pessoa, mas também a dona do colo mais gostoso do mundo. Com as oscilações entre cuidado e afeto, irritação e calmaria, é que as duas se conhecem. Mais que isso, é o modo de vida de quem se reconhece. Ó, eu sou assim explosiva, se eu tiver que explodir com você eu vou explodir, se eu quiser dizer alguma coisa eu vou dizer. Só que é uma coisa, eu não guardo mágoa no coração, 102 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 102

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entendeu. Pra mim, o que eu tiver de falar procê eu vou falar, só que cê não pensa que eu vou ficar aí, com raiva de você, com coisa, não. É os cinco minuto. Eu sou os cinco minuto, eu brigo, eu falo; se eu analisar depois que eu tô certa, tô certa. Se eu analisar que tô errada, vâmo corrigir o erro, né? Se tiver de pedir desculpa, a gente pede, não é? Mas não guardo mágoa no coração, tem pessoa que não entra no coração da gente de jeito nenhum. Mas passa. Eu gosto de brincar com os outros, falar besteira, bobagem, dar risada. Eu sou assim, porque eu não vou levar nada do mundo. Que adianta ficar chorando? A torta de frango saindo do forno de um lado; de outro a torta de calabresa, que foi comprada, para quem quiser escolher entre a feita por dona Elce e a que veio já pronta do mercado. A cebola picada em pedaços miúdos para temperar a salada. O tomate, em tiras grossas para o macarrão, aos poucos desaparece na panela. Deixa apenas um rastro de cor avermelhada na massa misturada aos brócolis e a uma farta porção de queijo. A panela, desde cedo no fogão, anuncia que a comida está quase pronta ao tomar a cozinha com o aroma de seus temperos. Até mesmo o suco, desses de pacote, tem um toque diferente, parece ganhar um sabor especial. Dona Elce levanta da cadeira e começa a preparar o arroz. Vai, pergunta menina, que eu que tô falando! Acho que o livro, eu que vou fazer isso aí e vou ganhar... Vai vender o livro? Digo que não. Levanto-me também. Reparo no quintal, na janela da cozinha, nos sete vasinhos de planta que a decoram logo acima da pia. São seis violetas: três de cada lado e um vaso menor parecido a um cacto no meio, apoiado em um pratinho de metal que foi uma lembrancinha de casamento que deram à Sissi. Parecem 103 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 103

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combinar com as sete borboletas na cortina branca. Sem o apego à caneta e bloco de anotações, falamos desse presente e do tempo presente: — Eu gosto de ir no bingo. — Mas eu reclamo que eu não quero que você vai (diz o marido). — É a distração da senhora, né? — pergunto meio em tom de afirmação. — Eu não viajo, eu não gosto de cinema, eu nunca na minha vida – fiz 71 anos e nunca fui. Na época da gente, o que tinha – no interior ou aqui em São Paulo mesmo – era circo, levar elas (as filhas) num parque de diversão. Não tinha esses negócios de você... Teatro, essas balada. Tinha os bailes, nos clubes. Eu não gostava de dançar, eu gostava de ir. Ele que gosta de dançar, mas eu nunca fiz conta dele dançar, das moças tirar ele pra dançar, nunca fiz conta. Só uma coisa que não pode passar é o respeito. Eu viajei pro Paraguai buscando muamba pra vender um monte de tempo. Nunca ele falou pra mim ‘não vai’[...]. O bingo que dona Elce frequenta é familiar, ou bingo das casas, como ela chama. É realizado em forma de revezamento entre as pessoas que participam, um dia na casa de um, outro na casa do outro. Só veiarada que vai, aí passa o tempo, né. Gostoso, distrai. Ficar o dia inteiro também, tá louco, ficar esfregando casa, Deus me livre (risos). Como prêmio, tem de tudo: itens de cama, mesa e banho, ou até mesmo alimentos. Já tem os dias certo que elas fazem, tem casa que dão os produtos de limpeza, sabão líquido, detergente, amaciante, tranqueiraiada. Eu ganho cesta básica, dou pros outros. *** 104 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 104

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O relógio diz que já passou da hora de acordar, mas Alice sequer saiu da cama. Dona Elce nunca se arrependeu de ter criado a neta, mesmo com as responsabilidades que essa decisão lhe trouxe. O orgulho de ela nunca ter apanhado. A festinha de aniversário que nunca faltou. — De primeiro, fazia festona, eu sempre fiz. Aquela época fazia os bolos, bolo gelado embrulhadinho um a um, os doces – de tudo quanto é quantidade, sempre fiz! Agora que não, mas sempre o bolo ela tem, sempre teve. Agora é que ela vai comemorar com os amigos em barzinho [...] Hoje é até melhor, cada um paga o seu lá no barzinho, não é? Comemoração agora, só mesmo de aniversário. Dia dos pais e das mães, já não são festejados. Mesmo quando Alice comemora junto aos amigos fora de casa, sempre tem o afago da avó com alguma lembrança ao completar mais um ano de vida. Esse ano foi corrido, que ela foi pra escola e tinha um monte de coisa pra fazer, daí eu só fiz o estrogonofe, que ela queria comer, eu fiz. Eu e a Sueli demos umas coisas, dei um dinheirinho pra ela [...] — E hoje, a Alice faz muita pergunta da mãe? — Não, não. Só se ela comenta com o pai dela, comigo não. Ela não fala não, lá um dia ela chora, lembra, chora, chora. Mas ela era muito pequena, ia fazer seis anos. Na verdade, (a gente) nem sabe o que Alice pensa. Tem hora que ri, tem hora que chora, fala, briga. (A gente) Já acostumou com o jeito dela. Sempre foi assim, eu falei pro pai dela, não muda, não adianta... Nesse instante, Alice chega. — Quê que vocês tão falando de mim? O negócio é sobre a minha vida ou da minha mãe? (risos) — Vai perguntando, Aline... Fala que eu respondo, menina! — Tem algum objeto dela aqui? 105 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 105

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— Cê fotografar a Alice, cê tá fotografando ela. Alice é a cara da mãe dela. Cara, olho, tudo. Tem foto dela, mas tá tudo em cima do guarda-roupa lá. Das últimas fotos dela eu não tenho, não sei se tem lá na chácara também. Tenho uma grande lá em cima, mas é antiga, coisa de trinta anos atrás. A foto grande que eu tinha dela (Sissi) tava na sala e ela (Alice) roubou. — Roubei nada, tá na sacola, a mãe é minha! — E a filha é minha! [...] *** O som de alguém que chega batendo palma no portão interrompe. O homem que vem arrumar o guardaroupa, tá vendo como não tenho sossego? [...] Os dias de dona Elce são bastante movimentados. Engana-se quem pensa que a senhora prestes a completar 72 anos fica o dia inteiro apenas na cozinha e nos cuidados da casa. Agita-se com o vizinho chamando ao portão, a visita que chega, o telefone que toca, as roupas que precisam ser recolhidas na máquina de lavar. Mas não apenas com essas tarefas. Diverte-se com o bingo, concentra-se na reportagem que passa na tela da TV e se distrai olhando a paisagem de fora, vista da janela da sala. Ali também, paisagens que ela mesma pintou. Ao lado da escada que leva aos quartos, um piano. Pertence à Sueli. Na estante, uma foto de Nossa Senhora de Fátima e uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. À frente, por toda a prateleira, anjos desses de cerâmica. A família é espírita. Sueli estuda a doutrina e frequenta o centro espírita duas vezes por semana. Dona Elce vai 106 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 106

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aos domingos, assistir às palestras e tomar passe, Sissi também estudava Allan Kardec. Ao redor dos anjos, porta-retratos com fotos da família. E no canto da parede, uma tela retrata duas casinhas assentadas em um chão de terra, rodeadas por uma cerca de madeira. Árvores contornam as singelas construções. O portão está aberto, para quem quiser chegar. Estudei na faculdade da terceira idade, tenho até diploma! Me distrai, né? Pintei um pra cada uma das minhas irmãs, são quatro. Não pintei pro meu irmão que mora nos Estados Unidos. E tem outro irmão. Somos em sete [...] Mas o primeiro que eu fiz tá feio, ficou ruim. Porque eu fico ansiosa, né? Começo já querendo saber do fim. Tem esse aí do lado de fora, esse (na parede da sala) e o grande no meu quarto. Os quadros são frutos do convite que dona Elce recebeu, junto a algumas amigas, para estudar no Colégio Pentágono, tradicional instituição de ensino de Santo André. Isso há cerca de dez anos, hoje ela já não tem tanta vontade, ou até mesmo tempo suficiente para praticar a pintura. A gente ia duas vezes por semana, terça e quinta, então a gente entrava das duas às cinco. Ai nós fomos e fizemos, foi a primeira turma que formou aí no Pentágono foi a nossa. Tinha bastante aula, tinha pintura, tinha de informática, tinha tudo, história, bastante coisa, tudo que se aprende a gente fazia. É gostoso, umas horinhas que passa rápido, é bom pra cabeça. — Mas a senhora sente falta? Ah, meu dia é muito ocupado, eu tenho casa pra limpar, as coisas da Alice tenho que fazer, da Sueli tenho que fazer, do meu marido. É telefone, ir em banco, fazer compra, passa o tempo, não tem tempo pra ficar... Eu não paro em casa. Amanhã vou sair, oito horas eu tenho um 107 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 107

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compromisso, depois volto, lá pras dez e meia onze horas, faço o almoço, uma hora eu vou lá pra São Bernardo ver meus documentos, eu não paro, ando bastante. Eu não fico aqui, até a hora do almoço assim, gosto de fazer tudo de manhã. Ontem levantei, passei roupa, esperei a menina que trabalha aqui chegar, que vem terça e sexta. E depois o Zé Hugo foi trabalhar, a Sueli foi pra Ribeirão, peguei um trólebus, nunca tinha andado de trólebus e peguei um trólebus e fui pra São Bernardo. É bom porque não tem trânsito, tem a linha dele, os carros não atrapalham. Daqui pra São Bernardo, não dá nem quinze minutos. Seu José Hugo faz carreto, trabalha com entregas com o uso do caminhão, de acordo com os pedidos que chegam diariamente de clientes rotineiros. Ele vai buscar pedra, areia, pó de pedra, ele tem a freguesia dele já, eles pedem e ele vai buscar. Tanto ele quanto dona Elce são aposentados, mas o benefício que recebem mal cobre os gastos com o plano de saúde do casal, já que as empresas cobram ainda mais caro de clientes na terceira idade. Pensou que ele ia aposentar e ficar na boa? Não vai trabalhar pra ver! [...] Dona Elce, por conta da renovação da carteira de motorista, tem ido frequentemente ao município vizinho. Por isso, as manhãs são sempre mais agitadas e cheias de correria. Ainda mais se Alice leva amigos em casa para fazer os trabalhos da faculdade. — Não tava sabendo que vinha ninguém pra cá. Vou fazer miojo! — Não, vó? Eu avisei! — Avisou? Avisou ontem de noite. Daqui a pouco eu vou sair, vocês que se virem (risos). O almoço deve ficar pronto antes de sair de casa, esse é o compromisso que ela firma consigo mesma. 108 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 108

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Quem prova as refeições preparadas por dona Elce sabe o quanto são saborosas e fazem falta. Desde os amigos de Alice, que aparecem para fazer os trabalhos de faculdade e ficam por horas a fio em sua casa, até mesmo os antigos clientes que encomendavam seus pratos. Hoje aposentada, Elce já fez de tudo um pouco. Durante seis anos viajou para o Paraguai em busca de produtos para revender em Santo André. Saía de casa na sexta-feira, chegava lá no sábado e durante todo o dia dedicava-se às compras. Fazia o caminho de volta no sábado à noite e chegava ao Brasil já no domingo. Quando não quebrava ônibus na estrada, chegava cedo, senão chegava quatro horas da tarde, passava de sexta a domingo. Viajei bastante, dei bastante refeição aqui pra Rodhia, pra turma da televisão, os artista vinha comer aqui em casa. Eu tinha pensão, depois eu parei lá, eles vieram pra cá e vinham atrás de mim, pra almoçar, chegavam em Santo André e já ligavam. Do Paraguai, trazia de tudo: televisão de 29 polegadas (novidade na época), micro-ondas, aparelhos de som, cortes de tecido para repassar a costureiras, camisas masculinas. E também brinquedos: bonecas, carrinhos de controle remoto [...] Coisa boa, não essas porcaria que vende por aí, era sorteado, tinha de tudo. Tudo honestamente, né? Depois ficou difícil de ir, mas graças a Deus nunca fui roubada, a gente era abençoado, porque nunca teve acidente com a gente, graças a Deus. Era bom, passava sono, eu de noite no ônibus não durmo, tenho medo. De dirigir não tenho, mas tenho medo de carro, avião dá menos medo de você viajar que de carro. Ônibus, automóvel ou a pé, não importa. Elce não é de hesitar, se tem de ir, ela vai. Seu espírito de independência fez com que encontrasse força para 109 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 109

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percorrer os caminhos de seus sonhos. Acho que fiz tudo que eu tinha vontade de fazer, não dependendo de ninguém, trabalhei bastante, e serviço não mata ninguém. Trabalhei muito, muito, muito. Rica não fiquei, mas tá bom, não dependi de ninguém pra dar as coisas pra mim, sempre ajudei meus pais, minhas irmãs. A única coisa que eu peço a Deus que eu quero conseguir é saúde, não quero ficar numa cama dependendo dos outros, mas não tem assim uma coisa que eu quero mais não [...]. *** Em meio a tantas atividades, sentimentos e recordações, dona Elce divide-se entre cumprir o papel de avó que mima a neta e ser também a figura que cobra organização e disciplina. Aqui tá a malinha dela, nem desmancha porque ela leva e trás, leva e trás, tá louco, parece cigana. E fica brava que eu arrumo as coisas dela aí e depois ela não acha. Hoje ela queria um óculos dela aí e não achava, ficou brava, que ia voltar a morar com o pai dela, eu falei ‘a bagunça desde que cê foi cê nem arrumou suas coisas. Lá você pode bagunçar que eu não tô vendo, aqui eu não deixo’, ah tá louco! É muito bagunceira. A outra aí, a Sueli, enjoada também, fica brigando porque gosta das coisas certas, né? Se por vezes reclama da bagunça que Alice deixa no quarto, sente falta quando ela não está em casa e preocupa-se que a neta tenha que acordar cedo demais para chegar à aula, pois precisa enfrentar uma hora e meia de viagem para chegar de Itu a São Paulo. É um vaivém de sentimentos, com direito a oscilações de humor que nada têm de anormais, pelo contrário, já fazem parte do cotidiano da família. 110 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 110

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São as idas e as vindas. Os 105 quilômetros que separam uma casa da outra podem ser suficientes para trazer preocupações e desentendimentos, porém fazem parte apenas da distância física de vidas que sempre estiveram muito e tão perto. Esquinas são feitas de planos que se cortam, mas ao mesmo tempo se encontram. Nos caminhos entre uma casa e outra, sobressaem os laços que ligam as histórias dessas três mulheres. A gente sente a presença dela lá na chácara, a Alice também sente a presença da mãe dela lá na chácara. Mas o resto, tudo volta ao normal, você perde pai, perde mãe, acha falta, perde filho, dói bastante, mas com tempo, vai passando. Lembranças presentes de um passado que trouxe ausência. O tempo passa e ensina, a cada inverno que vai, há uma primavera que fica. Tudo que tem na chácara é dela, tá lá. Aqui não tenho coisa dela, a não ser foto. Coisa assim, roupa, não. Agora os enfeites dela, as coisas dela é o que tem na chácara. É que já destruíram bastante, mas era bem arrumadinha as coisas dela, cheia de planta, muitas flores. Ela sempre gostou de flores. É o que restou, a saudade. Os filhos e a saudade, né. É o que restou.

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MARIA PERES

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Entre momentos Por Maday Florencio

Paciência. Continuar sentindo falta ou esquecer a falta que faz? O vazio está lá, sem respostas. A presença de outros o preenche, mas não responde à indagação. O caminho sensato é caminhar pensando no presente, planejando um futuro. A vontade de viver para ajudar os outros a motiva a continuar tocando a vida. Maria Peres viveu toda sua infância e juventude na pequena e pacata cidade Pocrane, interior de Minas Gerais, junto aos pais e irmãos. Desde muito nova trabalhava na lavoura das fazendas vizinhas. Arar, plantar, regar, esperar e crescer. E começar de novo. Como um ciclo. Nesse ambiente conheceu aquele com quem se casou mais tarde, Enésio da Silva Prata. Moravam na mesma cidade e no mesmo vilarejo. O tempo passou e se casaram. Quando vieram os filhos, o trabalho na roça era insuficiente. Enésio já reclamava de cansaço com o 115 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 115

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serviço braçal e a plantação daquele pequeno lugar não poderia conter as despesas da família. A irmã mais velha de Maria, Sebastiana, já tinha se mudado da pequena cidade para viver com sua família na capital de São Paulo, no início de 1970. Se instalou no bairro da Zona Norte e trouxe também seus pais para morarem perto. Convenceu a irmã que a vida na cidade era melhor, se trabalhava em melhores condições e tinha um salário fixo. Em 1974 Maria veio com seu marido e filhos para São Paulo e, a princípio, foram morar com os pais dela. Enésio já tinha sido contratado por uma indústria de papel para trabalhar e assim que conseguiu dinheiro, deu entrada em sua casa própria. Ela e o marido deixaram para trás a pequena e pacata cidade mineira e mergulharam na vida da cidade grande. Pocrane passaria a ser lugar de reencontros familiares esporádicos, que seria mais tarde muito visitado por seu único filho homem em sua fase adolescente, que adorava o lugar e a companhia de seus avós. Em São Paulo, Maria precisou arranjar um ofício para si. As crianças já tinham crescido e já iam para escola, ela poderia sair de casa para trabalhar. Só o salário do marido na fábrica de papel não seria suficiente para sustentar os sete membros da família. Passado um ano já em São Paulo, aos 40 anos de idade, conseguiu seu primeiro emprego registrado em uma indústria têxtil da marca de roupa infantil Giovana Baby. A situação foi ótima para o casal poder ter duas fontes de renda, mas ao mesmo tempo iam perdendo o crescimento dos filhos. Logo eles cresceriam e isso seria passageiro. Trabalhou na fábrica até ela fechar as portas. — Eu saí de lá e você acredita que eles não me pagaram toda hora extra que eu fiz? 116 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 116

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Entre momentos

Decidiu, então, trabalhar em casa com uma coisa menos cansativa, mas necessária: consertar roupas em sua máquina de costura. Gostava de fazer roupas para os filhos. Ela teve a ideia de costurar para fora, cuidando de roupas das pessoas do seu bairro. Isso ajudou a ter dinheiro por um tempo, mas com a idade, a repetição dos movimentos fez com que desenvolvesse dores na coluna e cansaço. Teve que interromper o serviço. *** Ela e o marido eram conhecidos pelos vizinhos por sempre andarem juntos pela rua, de mãos dadas, mesmo depois de mais velhos. Cumprimentavam e conversavam com todos que passavam. Às vezes, iam aos vizinhos para visitar e sempre ficavam para tomar um café da tarde. Eram vizinhos admiráveis. Enésio tinha problemas na vesícula desde a vida em Pocrane. Trocar de serviço, além do fator financeiro, seria um trabalho de menos esforço físico do que o feito na roça. Aos 70 anos, decidiu operar da vesícula, foi vítima fatal de uma complicação médica. Faleceu na sala de cirurgia. Maria fica sem palavras até hoje quando fala sobre isso: — Foi uma perda muito grande. E é saudade até hoje. Em uma das fotos na estante de sua casa há algumas molduras de momentos com a família. Na foto, está ao lado de sua bisneta, passeando pelo zoológico. Além dessas, há outras fotos mais guardadas em uma caixa de sapatos. Esse é o único lugar que tem guardadas imagens de acontecimentos mais antigos. Lá estão algumas das poucas fotos registradas de sua família. Ela pega em seu quarto a caixa, depois volta à sala, senta-se no sofá, abre a caixa e procura as fotos. E lá estava: 117 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 117

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— Esse aqui é meu menino, no casamento da minha filha Marta. Enoque era branco, cabelos claros e na foto abraça sua irmã Marta. Tinha as feições do pai. Não demonstrava muita intimidade com as lentes fotográficas. Sua personalidade era diferente de suas quatro irmãs Marlene, Alice, Miralda e Marta. Na verdade, todas tinham um certo temperamento: Marlene e Alice eram mais calmas, Miralda e Marta mais agitadas. Enoque foi o meio termo disso. Maria achava que todos os seus filhos logo se casariam e deixariam a casa dela. Mas não sabia se Enoque faria o mesmo. Até os anos 1990, ele e Marta eram os únicos que moravam na casa da mãe. O único menino de dona Maria era o rebeldão da família, definido por sua filha mais velha Marlene. Ele nunca deixou o lar. Enoque, na adolescência, ganhou uma moto de presente do pai. Quando subiu no veículo para andar pela primeira vez, o descuido foi tão grande que bateu-a no poste da rua. Marlene, a irmã mais velha, lembra-se das histórias do irmão: — Eu sempre dava um dinheiro para ele quando saía de moto. Ele não tinha carteira de motorista, mas adorava sair de moto. Apesar de ser um tanto inconsequente, foi um tio que saía para passear com os sobrinhos. Mas nem tudo eram flores. Marlene e dona Maria sabiam: o menino, nos seus 20 anos, era usuário de drogas e também participava da venda pela rua. — Mas ele nunca chegava em casa trazendo isso ou usando — conta Maria. *** 118 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 118

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Em Minas Gerais, pelas estradas de terra e mato onde havia os sítios e fazendas, Enoque nasceu e viveu até os seis anos, livre de preocupações da cidade. Aprendeu cedo a montar em cavalos na fazenda do avô e passava o tempo a cavalgar e desbravar os espaços que tinha. Mas a vida de fazendeiro também não era uma opção, teria que ir para a cidade grande morar com os pais. Aos sete anos de idade, e morando em um novo lugar, Maria o colocou na escola e o levou consigo para frequentar a igreja. Com 14 anos, já tinha amigos pela rua e primos próximos. Chegou a ir para escola, mas estudar nunca foi seu interesse. Ter amizades e ser aceito por outros meninos era mais compensador para ele. Acompanhar a mãe à igreja já estava perdendo o sentido. Quando o jovem estava na sétima série, Maria foi chamada na escola para conversar com a professora. Soube que Enoque, há muito tempo, já não frequentava as aulas e iriam que repeti-lo de série. — Eu descobri que ele matava a aula e ia para casa do primo, que morava lá em Parada de Taipas. E ficava lá o dia inteiro brincando na rua. Ele era teimoso, não adiantava falar com ele. O jovem era teimoso em obedecer aos pais, mas não entrava em grandes conflitos com eles. Maria diz que nunca precisou levantar a voz para repreendê-lo. Ele conhecia os limites que tinha em casa. Mas fora dela, ele seria o que quisesse. — Ele falava pra mim ‘mãe, se eu chegar a completar 25 anos, vou ser o crente dedicado que a senhora gostaria que eu fosse’. Preocupada com o jeito despreocupado do filho, Maria desejava que ele, o quanto antes, arranjasse um emprego. E aos 20 anos ele conseguiu trabalhar em uma 119 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 119

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firma, para a surpresa e contentamento de Maria. O filho teria alguma perspectiva de carreira, talvez. Mas as coisas não foram tão bem, e ao passo de dois anos, ele foi mandado embora por contenção de gastos. Nos anos 1980, já se vivia um período de desemprego. A necessidade o fez procurar por outras oportunidades. Havia um lugar de depósito de recicláveis perto de sua casa. Ele já conhecia o ferro-velho e o pessoal que andava por ali. Talvez tivesse uma chance de trabalho. E teve. Sempre precisavam de mais alguém para ajudar. O dinheiro não seria tão alto, mas era a opção que havia encontrado no momento enquanto não arranjava algo melhor. Trabalhando no novo ambiente, Enoque conheceu três novos colegas de trabalho, com os quais fez amizade, dentro e fora do serviço. Boy, Zé Chica e Jerry eram os apelidos de três rapazes que também moravam pelos arredores e conheciam o filho de Maria. Maria não estava segura quanto às amizades do filho. Eram pessoas de rua, que tinham contato com coisas perigosas e influenciariam as decisões de seu menino, pensava. Ele já apresentava um comportamento diferente, se desinteressando por assunto da família. Antes de largar a escola, costumava visitar o avô em Pocrane e chegou a cuidar dele até o momento em que faleceu. Ganhou de presente do avô um chicote e isso é a única coisa que Maria guarda do seu filho, em sua casa, além das fotos. Ele se tornou uma pessoa noturna, encontrava os “amigos” e retornava para casa no dia seguinte, sem dizer onde tinha ido ou o que fez. Não falava mais com ninguém. Maria estranhava o jeito dele, porém não sabia tudo o que o filho ou as filhas faziam quando ela e o marido estavam fora. A rotina dela e a do marido começavam muito cedo e acabava muito tarde, às vezes até nos finais de semana. 120 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 120

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Não havia tempo para refletir o que estava acontecendo e talvez não fosse nada demais. Afinal, ela sabia que jovens passam por fases e a dele ia passar também. *** O clima quente de 13 de dezembro havia chegado. A noite chegava devagar, sem chuva ou vento. Véspera do fim de semana chegava e a vontade de sair de casa e esticar a noite em algum lugar com os amigos aumentava. Em 1991 se marcava encontros combinados previamente e não tanto pelo telefone. Enoque esperou-os no bar mais tarde. Enquanto isso, se arrumava em casa. Eles iriam comemorar o aniversário de um amigo dirigindo um carro novo, uma Brasília 1973. O local de partida era no bar da esquina de sua casa, ponto onde eles se encontravam sempre naquele horário. Vestiu a camisa azul que havia ganhado de Miralda no aniversário de 24 anos completados em outubro. Contente, pediu à mãe que preparasse a janta para ele antes de sair. — Mas você sabe cozinhar filho. Por que não faz você mesmo? — Eu não quero, mãe. Eu quero aquela comida que só a senhora sabe fazer. Maria não entendeu por que o filho queria tanto que ela cozinhasse para ele. Decidiu fazer uma coisa mais rápida e suculenta, misturando miojo com frango frito. Enoque gostava de frango frito na comida. Ele comeu tudo e saiu de casa, levando só sete cruzeiros que Maria lhe deu, e foi até o bar, onde esperaria todos os amigos. — Naquele dia, antes dele sair, eu ainda falei para ele ‘meu filho, não fica até tarde na rua, não, porque a mãe vai trabalhar amanhã’. 121 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 121

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Maria o viu sair de casa e o observou ir para o bar, até o momento em que escureceu. Cansada, foi dormir para não se atrasar no outro dia. Sairia cedo no sábado pela manhã, assim como o marido, para ir trabalhar. Foi dormir preocupada mais uma vez, pela rebeldia do jovem. Esperava que ele ficasse bem. Dormiu a noite toda, até ser acordada pelo toque do telefone de sua casa. Levantou e foi atendê-lo. Era sua filha Miralda do outro lado da linha: — Oi, filha. Tudo bem? — Mãe, vem pro hospital do Cachoerinha agora. O Enoque morreu. *** Na delegacia, Maria ouviu a versão dos policiais sobre o que havia acontecido. Disseram que eles atiraram na polícia primeiro e, logo em seguida, a polícia reagiu contra eles. Ela não acreditou na versão deles, pois seu filho saiu sem arma nenhuma de casa. Seu marido tinha uma arma em casa, mas com medo do que seu filho pudesse fazer, mandou o marido vendê-la o quanto antes, para que o filho não pensasse em usá-la. — A polícia matou ele de ruindade. Ele não tinha antecedente criminal. Naquele dia não fui mais trabalhar, não fui mais nada. No carro onde Enoque estava havia outros jovens que, assim como ele e todos diziam, estavam envolvidos em atividades ilícitas. Mas naquele momento não encontraram nenhuma prova de algo escondido no carro, que ficou cheio de marcas de tiros. — Delegado, em casa meu filho era um menino muito bom. Nunca me desrespeitou, nem ao meu marido. Mas fora de casa eu já não posso dizer. 122 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 122

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— Ah, isso aí é papo de mãe. Ver o filho no hospital, sem a roupa de antes, deitado e nu. Arrasada, viu as marcas de tiro na cabeça e abaixo do olho. Foi um sentimento de tristeza profunda, assim como seu Enésio e o resto da família. Confiar no trabalho de policiais militares seria o que nunca mais faria. — É tristeza que eu sinto até hoje. Agora a gente só vive de recordação. Não havia mais o que fazer. Não soube e nem queria saber quem havia matado seu filho e de nada adiantaria, pois não o traria de volta. Naquela noite, Enoque estava em uma Brasília dirigida por um amigo que, na opinião de Maria, dirigia sem carteira de habilitação. Eles trafegavam pela Avenida Inajar de Souza, responsável por fazer a ligação entre a Zona Norte e Zona Oeste. Dois jovens que estavam no veículo conseguiram fugir, mas Enoque e o outro amigo foram mortos na hora. — Foi uma covardia o que fizeram com ele. Ele nunca roubou, e nós nunca deixávamos ele sair sem dinheiro. A coisa mais triste é mexer com autoridade. Não entrou na justiça com ação contra o policial causador do assassinato. Não havia como saber quem havia atirado, achar provas contra ele ou achar alguma testemunha que respondesse contra a autoridade. O jeito foi enfrentar a dor, ignorando qualquer envolvimento com o poder sujo de justiça. Encontraria forças em sua fé, na justiça divina e na companhia do esposo e filhos. Dois anos mais tarde, um vizinho dela foi à sua casa lhe contar que o policial que havia matado seu filho tinha morrido. A notícia reconfortou parte da família, mas ela não enxergava conforto em outra tragédia. — Aquilo não iria trazê-lo de volta. E eu não pensava em vingança. O meu marido que gostou de saber. 123 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 123

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Perder o filho abriu uma ferida que não sara. As palavras não explicam, a expressão do rosto muda, o olhar cai. *** Se vender drogas era ilegal, ficar sem perspectiva de vida era pior ainda. Ele não estava sozinho. Seus amigos, dos quais sua mãe nunca gostou, mas que não adiantava dizer não, já haviam experimentado esse novo estilo de vida e não havia acontecido nada. As pessoas achavam demais onde não tinha nada assim tão perigoso. Talvez por isso se descuidavam tanto. Ele se tornou parte da sociedade paralela que vive pelas ruas. Outras condutas, outros costumes. Percebeu como a atividade com coisas ilícitas trazia lucro e status. Na rua, era alguém importante, tinha tarefas e ajudava seus parceiros. Não estava sozinho nem era um estranho. Não havia muitas perguntas a fazer, apenas atitudes a tomar. No natal de 1990, Enoque decidiu ficar junto a família, em sua casa. Fez questão de chamar seus amigos para a ceia. Pediu à Maria que fizesse um jantar especial para a ocasião. A atitude do filho deixou Maria feliz, teve um motivo para cozinhar e unir a família na hora da ceia. Não eram de celebrar o natal do jeito católico, mas para o filho abriu uma exceção. Ele era conhecido no bairro por ajudar os vizinhos quando precisavam, seja indo ao mercado fazer compras ou participar de alguma reforma. — Ele não tinha medo de nada. Tinha boa relação com as irmãs e sobrinhos também. Foi um tio presente para eles. Gostava de sair e passear com os filhos de suas irmãs. Marlene se lembra de ajudá124 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 124

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lo com algum dinheiro quando precisava. Não gostava de vê-lo chegar em casa só no outro dia e passar o resto do tempo dormindo e tentou aconselhá-lo a largar aquela vida para trabalhar junto com ela em seu emprego. — Mas a rebeldia dele de viver fora de casa junto com aqueles amigos dele não ajudava. Enoque morreu no dia em que sua irmã Marta completava anos de vida. A tragédia a impediu de comemorar o aniversário por um tempo, só ajudou a lembrar da data ainda mais. Maria pensa às vezes como tudo pode acontecer. Onde será o lugar que tiraram a vida de seu filho, naquela vasta avenida? E o que encontra são mais dúvidas. Acaba deixando seus pensamentos irem para o sentimento inabalável: a fé. — Não cai uma folha da árvore que não seja da vontade de Deus. Acredita que seu filho está num lugar melhor, descansando. Teria que aprender a ser forte e continuar vivendo. Do filho, o que mais guardou foi a memória. Memórias de momentos alegres, tristes e duvidosos também. Ter a família e o marido ao lado nesse momento foi fundamental para seguir em frente. — Meu marido não foi mais o mesmo depois que o filho morreu. Sempre ia visitar o cemitério onde ele foi enterrado. Eu ia com ele antes, mas depois ele também morreu, tenho medo de ir sozinha. Dona Maria vive hoje seus 74 anos com sabedoria e serenidade. O que mais quer agora é ter saúde e continuar “servindo a Deus” e à família, sem perder a simpatia. Procura viver tranquilamente com a companhia das filhas, dos netos e bisnetos. Faz suas tarefas cotidianas sozinha mesmo e gosta. O que não gosta é ficar parada. 125 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 125

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A dor física e o cansaço para Maria não são maiores que a vontade de continuar “agradando” à família, aos vizinhos e a quem precisar. Sua filha Alice teve um enfarte e ficou sob os cuidados dela, em sua casa. Por mais que já tenha recebido recomendações médicas de repouso, Maria toma as decisões da casa e precisa se locomover pela cidade. Não tem ajuda de empregada e faz com prazer as tarefas de casa. Na sala, mostra uma foto ao lado da neta no colo da filha, curtindo um momento em família. Momentos. Está à espera de sua nova bisneta. São momentos assim que a mantém mais conectada com a vida. Da sala, escuto o barulho que vem da cozinha e que significa casa cheia. Aos finais de semana, recebe a visita dos netos e netas, e suas filhas com os maridos. A casa é grande. Quase todo domingo tem o almoço na casa da avó ou da mãe. Maria agora enche sua casa com muitos “filhos” e nenhum deles seguiu os passos da rebeldia do seu menino. Hoje, Maria vive tranquila em sua casa, com sua aposentadoria. Dona de uma postura calma e voz fina, tem baixa estatura e um olhar profundo. A locomoção para caminhar mais longe já é difícil. Ela poderia ser só mais uma pessoa. Mas não é. Sua história a deixa ser parte de uma realidade que é constante na vida daqueles mais humildes. É a prova que o ser humano consegue superar os mal-entendidos vividos e continuar seu caminho, com bom humor e gratidão a tudo que conquistou. Paciência. Arar, plantar, regar e esperar.

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FUMI YONAHA

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Lembra teus filhos Por Sasha Cruz

Memória. 1. Faculdade de reter ideias e/ou reutilizar sensações, impressões ou quaisquer informações adquiridas anteriormente. 2. Efeito de lembrar; a própria lembrança. Segundo a Grande Enciclopédia Laurosse Cultural, em neurologia e psicologia, a memória comporta três fases: fixação, estocagem e reconstituição da informação. O material conservado, ou seja, aquele que é lembrado, corresponde a uma intencionalidade do sujeito e o esquecimento, processo inseparável da memória, é o resultado da função de repelir e manter no inconsciente, por algum motivo, aquilo que não pôde ser satisfeito. Esta história é sobre memória. Fixação Do outro lado da cama não havia ninguém. O lugar está desocupado há mais de 20 anos e, provavelmente, 131 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 131

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permanecerá assim por algum tempo. Fumi levanta-se lentamente e senta-se, com os pés quase alcançando o chão. A cama de casal é grande, mas ela raramente utiliza um espaço maior do que o seu corpo necessita – a senhorinha até prefere ficar somente do seu lado, com o qual está acostumada. Ainda é cedo e sua cabeça cambaleia um pouco devido ao sono. Na lateral do leito, uma mesa comporta algumas peças de roupas e papéis – possivelmente cartas a pagar, boletos ou outras cobranças. Fumi alisa sua blusa azul com pequenos detalhes orientais e se veste com ela; é a sua preferida. Ritsuko já estava na cozinha preparando o café – Fumi nem precisou checar com os olhos, pois o aroma havia entrado em seu quarto assim que a água quente se misturou ao pó de café. — Ohayô — disse Fumi ao abrir a porta do quarto que dá para a cozinha, com sua voz firme e suave. — Ohayô, Okasan — desejou Ritsuko um bom dia a sua mãe. À mesa do café da manhã, que fica bem ao centro da cozinha, sentaram-se, e Fumi comeu seu pão com manteiga, acompanhado de uma xícara de chá. — Quero fazer coxa de frango no almoço hoje, Okasan. Pode ir buscar depois? — perguntou a filha. — Hai – respondeu afirmativamente. Fumi pegou uma blusa mais quente e saiu pelo portão. Na rua onde mora, no bairro da Casa Verde em São Paulo, antigamente passava um riacho, que hoje é coberto pelo asfalto e construções que mudaram toda sua paisagem natural. É um quarteirão de casas mistas, umas são bonitas, outras com fachadas não tão acolhedoras, com portões enferrujados e alguns tijolos por rebocar. Há muito comércio, pequenos bares, lojas de conveniência, pet shop etc. Com o andar vagaroso 132 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 132

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de uma mulher de 93 anos, Fumi chega ao açougue. O atendente a reconhece da região. — Bom dia, dona Yonaha. A senhora está bem? — indagou bem humorado, cumprimentando-a pelo sobrenome. Ela sorriu e afirmou com a cabeça. — Vai querer o que hoje? A idosa falou, mas ele não entendeu. O atendente desconhece o idioma japonês e sua variante, o dialeto de Okinawa, que é o qual Fumi e seus filhos falam. Embora more no Brasil há mais de meio século, a senhorinha não se comunica na língua oficial do país. Só em alguns casos. — É peito? Asa? Filé? — apontava o menino para todas as carnes do balcão um pouco desesperado. Fumi só negava com a cabeça. Algumas pessoas foram se ajuntando em torno do acontecimento. Até que a senhorinha teve uma ideia: colocou a mão em sua própria perna, indicando a coxa e principiando uns passos de dança. — É coxa! — alguém gritou. — Coxa? — perguntou o homem aflito. Fumi deu um sorriso e fez um gesto com a cabeça — foi o suficiente para entender que sim. As pessoas aplaudiram satisfeitas, o atendente entregou o pacote à dona Fumi e ela retornou para casa com o pedido da filha em mãos, contente. Próximo do horário do almoço, outros integrantes da família começaram a circular pela sala, como Jorge, genro e marido de Ritsuko, e Samantha, sua neta, filha do caçula de Fumi, Asanobu. Ritsuko comandava a cozinha: cortava os legumes e colocava o frango na panela de pressão com agilidade. Após ter ajeitado a toalha da mesa, Fumi puxa uma cadeira e senta para observar o trabalho da filha. Ritsuko ia com rapidez nos cortes, a ponta afiada da faca acelerava seu serviço na cozinha. Vez ou outra deixava cair a casca 133 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 133

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de algum alimento no chão e respingavam, em seu avental branco, os pingos de óleo que fervia na frigideira. Toby, o cachorro vira-lata da família, entrou quieto pela porta e logo foi metendo o focinho entre as pernas de Ritsuko. — Xô! Sai! — esbravejava a cozinheira com um pano para afastar Toby. Foi neste momento de descontração que Ritsuko pegou uma batata-doce da fruteira. Aparentemente inofensivo, o legume não significa nada além de um alimento para a filha, mas para Fumi foi sinônimo de obrigação e restrição durante sua adolescência. Ao ver Ritsuko laminar o tubérculo, flashes da sua infância perpassaram-lhe pela mente e logo ela não era mais a senhora que tem dificuldades para andar, mas uma jovem, ainda no frescor da mocidade, cujos sonhos e intenções estavam além da pequena vila onde morava com os pais, avós e irmãos na ilha do extremo sul japonesa, Okinawa. Ventava. Os tufões eram fortes. Os colonos brincavam que, embora em Okinawa dificilmente ocorresse um terremoto, os ventos aqui devastavam qualquer objeto que vissem pela frente, incluindo as casas de sapê dos mais pobres. Aliás, toda a vizinhança não gabava de muitos recursos. Talvez, em uma determinada residência no meio das outras não se passasse fome – apesar de isso não ser sinônimo de fartura. Naquela casa com telha – que já era um diferencial entre suas vizinhas – morava o pai e a mãe. Havia também o pai e a mãe do pai. Os filhos, que totalizavam cinco, nasceram quase que na sequência. Todos trabalhavam na lavoura, exceto a segunda filha do casal e a avó, que ficavam em casa cozinhando e tratando dos afazeres domésticos. — Você não cozinhou a batata-doce direito — amargou a senhora para a neta. 134 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 134

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— Sempre fiz desse jeito, Oba-sama — retrucou. — Mas está errado! — esbravejou. Fumi engoliu seco e tratou de refazer o jantar, sempre observada pela avó, que nunca tinha algo de bom para falar. Não se dava bem com a mãe de seu pai e o ódio ressentido por ela a faria, anos mais tarde, esquecer-se de sua fisionomia e nome – a memória tem esse poder. Pôr do Sol. A família Tchina volta para casa e sentam-se à mesa para comer. A avó Tchina chama o filho e patriarca, Choe, para uma conversa entre murmurinhos. A senhora, enquanto trocava segredos com o homem, lançava um olhar para Fumi, o que a incomodava bastante. Estariam falando dela? Ah, quem se importa! No outro dia, a família Tchina arrumava-se para ir à roça, menos Fumi que pegava seu avental e paciência para aturar mais uma vez sua avó. O pai, que estava de saída, parou e a olhou. — O que você está fazendo parada aí? Vamos! Hoje você vai com a gente! — disse. Agitação. Ela poderia sair do convívio daquela senhora de cuja presença não gostava. Sem titubear, largou o avental e foi com a família. A tarefa de Fumi na lavoura era basicamente simples: cavar um buraco na terra para retirar as batatas-doces do chão. A fazenda da família rendia muito do legume, além de ter um pasto para vacas, cavalos e galinhas. Como era uma atividade nova, Fumi não se importou de arregaçar as mangas e enfiar a mão na terra. Era até divertido. Após quase um dia inteiro cavando (e muitas batatas-doces retiradas), Fumi sentia-se satisfeita com seu trabalho. — O que você fez aqui? — aproximou-se o pai em tom nervoso. 135 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 135

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— As batatas-doces que o senhor pediu... — amedrontou-se. — Olha o tamanho desse buraco, Fumi-chan! Você cavou demais, parece até um lago! Eu não te ensinei desta forma! — enfureceu-se Choe. — Desculpa, Otôsan... — baixou a cabeça e o olhar. Voltou para casa triste. Será que teria sido melhor não ter saído de perto da avó? Por que ela errava sempre? A bem da verdade, Fumi não se sentia parte daquela família de forma alguma. Estava infeliz, pois se de um lado encontrava a rudeza do pai, de outro não recebia o carinho da avó. Os irmãos não tinham voz ativa, muito menos sua mãe, que sempre se submetia às ordens do marido. Compartilhava uma vida linear e sem graça com aquelas pessoas. Queria que os dias passassem logo para que outros viessem, vivendo numa luta constante contra o tempo. Mal esperava o dia em que sairia daquela casa. Mas como faria isso? Ela, mulher e sozinha, não duraria muito fora do convívio familiar. Estaria condenada a viver mais algum tempo com seus parentes. Enquanto isso, via o mundo a sua volta girar. Foi com uma sensação de nó no estômago que viu seus tios partirem para as Filipinas. Son Kim e Naye Tchina levaram consigo a filha, Haruko, para o destino de muitas famílias japonesas na época: o arquipélago com mais de 7.100 ilhas a Oeste do Oceano Pacífico, ao sul do Japão. Fumi também se recordou de um vizinho que fez a mesma viagem: ele se mudou para lá com o filho e deixou a mulher aqui. Como era mesmo o nome dele? Enfim, várias famílias emigraram. Algumas por melhores opções de vida, outras pelo que parecia ser medo. Mas que medo era esse? Pessoas comentavam, até com 136 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 136

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certa frequência, mas Fumi não sabia de muita coisa. Rondavam uns sussurros sobre anexação de territórios chineses ao Japão e que isto poderia acabar em guerra. O símbolo japonês, a bandeira do Sol Nascente, com seu característico Sol vermelho ao centro e raios da mesma cor em direção às bordas, multiplicava-se pelas casas e regiões. Mas ela não entendia, ou não dispensava tempo para refletir sobre o assunto. 1939. Fumi completa 18 anos. Casar-se era mais que uma obrigação, era um objetivo de vida. Almejava o matrimônio para sair de casa – o que não demorou muito para acontecer. Certo dia, viu aquele seu antigo vizinho, que havia se mudado para as Filipinas, perambulando pela colônia. O que estaria fazendo aqui? Diziam que ele foi visitar a mulher. Ela morava numa residência no cume de um morro, distante da vila e, com receio, rogou ao marido que arranjasse outra casa para ela habitar. O homem em questão chamava-se Chosei Yonaha e era conhecido pela alcunha de andarilho, pois gostava de fazer viagens e raramente parava em casa. A esposa, Tsuru, era caseira demais para embarcar nos destinos incertos do marido e, por sua vez, preferia tomar conta do lar enquanto seu homem percorria o mundo. Sem dúvida, um casal peculiar. Fumi retornou da roça naquele dia agoniada por ter que cuidar da plantação de batata-doce e deparou-se com seus pais conversando em tom amistoso com Chosei. — Konbanwa — desejou boa noite aos que estavam ao redor da mesa, acobertando sua surpresa ao ver aquele homem. Ela permaneceu muda durante todo o jantar, apenas escutando o que os adultos tinham a dizer. Seu pai e Chosei discursaram várias ideias, muitas das quais sobre as 137 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 137

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Filipinas e sobre o filho do andarilho, Chosuke, um varão alto, se comparado com outros de sua etnia, que precisava arrumar-se na vida. Fumi não sabia direito, ou melhor, até suspeitava do que viria pela frente. Seu coração palpitava e a respiração ofegava. Ela estaria certa da sua intuição? — Fumi-chan... Gostaria de se mudar para as Filipinas e casar-se com o filho do Chosei-senpai? — perguntou o pai à filha, ao fim do jantar. Ouvir aquelas palavras foi um alívio e uma emoção indizíveis. — Hai... Hai! — afirmou Fumi com a sua mais absoluta certeza. Ela não iria mais desenterrar batatas-doces da terra! Não demorou a partir no navio que a levaria para outro país. A bagagem era pouca e trazia consigo, em suma, a roupa do corpo. Estava muito ansiosa, pois queria largar de vez a plantação e os serviços domésticos que aprendia em casa. A família, em geral, não era vista por Fumi com muito apreço e a sensação foi de alívio ao libertar-se daquele lar. Além do mais, mesmo que nada desse certo, ela conhecia outras pessoas que moravam por lá, como os tios Son Kim e Naye, e poderia ficar com eles também. Não haveria erro. Casar é detalhe, pensava consigo, o que importa, na verdade, é sair de casa e constituir família. O homem com o qual se casaria chamava-se Chosuke e, vagamente, Fumi lembrava-se dele. Nunca haviam trocado olhares, mas sabia também que não era um mal moço. Estava satisfeitíssima com o acordo. Partiu na embarcação com o futuro sogro. Ao chegar às Filipinas, surpreendeu-se novamente: havia uma festa para ela! Na verdade, em comemoração ao casamento de Chosuke Yonaha com Fumi Tchina, que agora adotaria o sobrenome do marido e passaria a ser 138 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 138

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a senhora Yonaha. Não havia como não se sentir liberta de tudo aquilo que a incomodava. Casou-se com as roupas do corpo e assinou os documentos necessários para oficializar a união. Na cerimônia estavam outros imigrantes japoneses de Okinawa, modestos também em seu modo de vestir; assava-se um porco na fogueira e fazia-se nabo seco com algas, um prato tradicional e muito apreciado pelas pessoas que lá estavam. Fumi teve o momento mais feliz da sua vida. Chosuke era mais alto que a maioria dos homens da vila. Ele media em torno de 1,75m e seu olhar e temperamento enérgicos davam um toque especial ao conjunto. Aproximaram-se sem muito jeito e trocaram algumas palavras. Tudo fora decidido pelos pais dele e dela. Eles mesmos mal se conheciam ou sequer haviam conversado antes. Na verdade, eram duas crianças guiadas pelas ordens de seus superiores a quem obedeciam e faziam a vontade. Parecia que iriam se dar bem. Fumi, entretanto, notou um breve distanciamento do futuro marido, mas não se inculcou com isso. Foram morar juntos logo em seguida. O tempo assegurou a senhora Yonaha que trocar de casa não necessariamente significava mudar de hábitos. Em sua nova residência, numa colônia de imigrantes japoneses, morava com o marido e o sogro, mas mal dialogava com eles. A colônia era dispersa; por entre as árvores e os espaços abertos, avista-se uma ou outra casa, todas feitas de madeira. Os vizinhos não costumavam conversar entre si, dada a distância entre suas residências. Era um ambiente bucólico e simples. Fumi fazia cestos com as folhas das árvores e trocavaos por comida. Chosuke e o pai trabalhavam na lavoura 139 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 139

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de fazendeiros nativos. Passavam pouco tempo em casa e não ajudavam o tanto que poderiam nas atividades domésticas. O marido era conversador. Falava mais fora do lar do que dentro e esta característica o fazia arranjar amigos por toda a colônia. O sogro, Chosei, conseguia ser agradável no seu modo de dizer, mas sendo homem, seus assuntos não eram compatíveis com a condição submissa de mulher que Fumi sustentava. Assim levavam a vida, com pouco dinheiro e restrições alimentares. O mundo perfeito não estava nas Filipinas. Deitou-se na cama com o marido querendo ser amada, mas naquela noite ele não estava bem, assim como na anterior, e na anterior, e na anterior. O distanciamento entre o casal se perdurava, e Fumi sentia-se sozinha, pois não havia estabelecido bases em outros lugares. Ela ainda se sentia pertencida à casa dos pais, contudo voltar para lá não era uma opção. O que a mantinha de pé naquelas circunstâncias era muito pouco e, a qualquer momento, poderia ruir. Estava incerta quanto ao futuro. A solidão pesou em seu corpo e desejava ser necessária, querida e amada. Virou-se para um lado da cama e dormiu, pois do outro lado não havia ninguém. Estocagem Era o mundo em guerra. As notícias corriam e Fumi já sabia que o planeta entrava em uma batalha dura: seu país de origem estava ao lado do Eixo e os soldados japoneses eram honorificados pelo suicídio em batalha, atirando-se com seus aviões em alvos inimigos. Temia pela sua família no Japão, mas preocupava-se também com a situação que enfrentava no novo país. Discussões sobre dinheiro com o 140 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 140

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marido eram constantes e ela pouco podia fazer para mudar esta condição. Além disso, a solidão penetrava-lhe na alma nas tardes que passava fabricando seus cestos. Até que recebeu uma notícia esperada e pulsante: estava grávida. A felicidade que um filho traz para o casamento fortalece a relação e a torna madura, pronta para desafios maiores. E assim foi. Hatsue, sua primogênita, nasceu em 1941 e Chochim veio ao mundo em 1943. Hatsue significa “primeira filha”, era uma criança calada e observadora. Já Chochim cresceu forte, rechonchudo e não se intimidava perto de estranhos. Ambos, em suas personalidades opostas, completavam, em um processo de simbiose, o sentimento de vazio que a mãe carregara até ali. Fumi sabia que agora pertencia a alguém e estes eram seus filhos. O problema com o dinheiro passou a tomar o segundo lugar nas preocupações da nova mãe que, além de proteger as crias, duplicou sua produtividade com o artesanato para conseguir mais comida e alimentar todas as bocas da casa. Viveram bem até Setembro de 1945. Fumi sentou-se na entrada de sua casa a observar as pessoas andarem na rua. Chochim estava em seu colo tirando uma soneca. Nota, então, que há algo percorrendo os céus: são aviões. Eles passam rápido, mas percebe-se que carregam consigo uma bandeira com listras azuis e brancas e um quadrado vermelho com estrelas brancas. Por onde passam, minutos depois, é possível ver uma chuva de papéis caindo. Ao tocar o chão e pegá-los, era possível ler que, felizmente, a guerra havia acabado. Contudo, as Filipinas pertenciam agora ao território norteamericano, e todos os imigrantes japoneses deveriam ser deportados para o seu país de origem. A comoção foi intensa na colônia. Os moradores não sairiam sem 141 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 141

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resistência – havia também uma base do exército japonês ali, que assegurou fazer frente de batalha para expulsar os estadunidenses daquele território. Fumi preocupavase apenas com os filhos. — Para onde iremos, Okasan? — perguntou Hatsue ao ver a mãe arrumando alguns pertences e fechando a casa. Fumi olha para filha e passa a mão em seu rosto. — Para um lugar melhor. Começou um tiroteio. Os norte-americanos sitiaram a ilha e avançavam consideravelmente, matando os soldados do exército nipônico de maneira rápida e eficaz. Os colonos fugiam das suas casas carregando a roupa do corpo, poucas bagagens e os filhos nas costas. Iam rumo à floresta, onde buscavam se sentir protegidos pela mata densa de clima tropical. A noite era de terror. Fumi, o marido, o sogro e as crianças permaneceram juntos e com medo naquela noite. Haviam fugido de casa e não tinham a menor ideia do que poderia acontecer. A primeira vez que Fumi saiu de casa foi para mudar de vida e nunca mais voltar; agora ela fugia assustada pela violência externa. Chochim dormia em seus braços, e Chosuke e o pai improvisaram uma cama com as roupas que levaram e as folhas das árvores. O lugar que escolheram para passar a noite era reservado e outras famílias também se acomodaram por ali. Sob clima de tensão, todos adormeceram. Ao despertar por causa de um quebrar de galhos, Fumi só pôde observar um rifle apontado em sua cabeça. Os soldados haviam dominado os colonos com armas de guerra. — Get up! — ordenava. As crianças começaram a chorar. Fumi tentou acalmá-las, mas o militar queria mais rapidez. 142 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 142

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— Get in the line! Move forward! — mandavam os atiradores, com seus tons de voz grave. Todas as famílias pegas na emboscada foram supervisionadas pelos soldados até o litoral, onde esperariam ser deportadas. Caminharam sob escolta até o amanhecer; pelo caminho, corpos de agentes do exército japonês e civis podiam ser vistos. Na vila, a destruição foi total. Os norte-americanos construíram perto das margens da praia uma tenda, parecida com a de um circo, onde seriam abrigados os japoneses capturados. Fumi e sua família ali ficaram. O chão era de barro e não havia lugar para se deitar a não ser na superfície úmida. Quem tinha mais condições usou cobertores ou até mesmo colchões que conseguiram recuperar dos destroços. Alguns soldados japoneses foram também postos dentro da cerca e ajudavam na distribuição de alimentos. Passouse um mês nesta situação. As caras pálidas e sem vida dos colonos tornavam aquela tenda um lugar fúnebre, centro de doenças para as pessoas com saúde debilitada. Os mais velhos e as crianças sofriam em maior escala, as crianças principalmente. Chochim não passava bem – desde a noite da fuga para a floresta, ele tinha picos de febre, dores de cabeça e apresentava-se cabisbaixo. Mas o que seria? Falta de comida?, perguntava-se Fumi desorientada. A falta de respostas perdurou até as primeiras vítimas caírem mortas contaminadas pela Malária. O surto instalou-se por debaixo daquela tenda. Fumi andou por entre as colchas estendidas pelo espaço e notou que as pessoas estavam morrendo por causa da doença. Crianças tinham sua face amarelada, ardiam em febre e calafrios e não havia medicamentos. Até os homens mais vigorosos da 143 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 143

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colônia padeciam ante a enfermidade. Chosuke enrolou o filho em uma coberta – ele tremia de frio – e acalentou-o. Fumi passou a mão em sua cabeça, constatou a febre e notou a pele tornando-se amarela. Começa o medo. A morte é certa para qualquer ser vivo, só não é certa no caso em que uma mãe presencia a morte do filho. — Ajuda! Ajuda... — rogava Fumi para todos os imigrantes, inutilmente. Chegou a pedir assistência para o exército americano, mas eles nada puderam fazer ou não quiseram. Sem outro recurso, sentou-se de joelhos ao lado do filho e segurou sua mãozinha pelo tempo que pôde. A força com que ele pegou sua mão diminuía conforme as horas passavam. — Está doendo, Okasan... — suspirou o filho, com os olhos desorientados pela febre. Impotente, Fumi ensaiou algo a dizer ao seu filho, mas só encontrou palavras vazias que, se pronunciadas, não o acalentariam e nem melhorariam seu ânimo, então achou melhor permanecer em silêncio. Chochim deu um breve espasmo e faleceu. As lágrimas secas percorrem os rostos dos pais que, já sem forças, enterraram o filho na terra, em um túmulo improvisado. Era o mundo em guerra. Reconstituição Toby lambia seus dedos e a fez acordar. — Xô! — esperneou Fumi para o cachorro. Ela estava sentada no sofá da sala, assistindo TV. Ritsuko enxugava a louça e Samantha fazia trabalhos da faculdade em seu notebook. A senhorinha colocou as mãos nos joelhos e ergueu-se. Foi tomar um ar e ver o Sol na entrada de casa. Às vezes, é necessário um pouco de silêncio 144 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 144

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e vento no rosto para apagar algumas memórias que pesam na alma. Fumi repara no Sol. O brilho é o mesmo de 70 anos atrás, assim como o céu; são coisas que nunca mudam. Decorando a imensidão azul, também voavam alguns pássaros e a maneira como eles plainavam a fez se lembrar de outra ocasião. Poucas aves restaram no céu de Fukuoka no final de 1945. Fumi desembarcou do navio com outras imigrantes e sua filha, Hatsue. Chosuke e Chosei ficaram para trás, pois os soldados mandaram primeiro as mulheres e as crianças. De volta ao seu país, mas não em sua terra, Fumi foi obrigada a se acomodar em Fukuoka, cidade situada na costa norte da ilha Kyushu, mais ao sul das quatro ilhas principais que formam o Japão. Ela e outras deportadas ficaram hospedadas na escola Toko Gakkou, que abrigava as famílias em suas classes. A instituição era um prédio de madeira envernizada de apenas um andar. Ao redor da escola, agricultores cultivavam alimentos para sobrevivência e a monotonia e inquietação desenhavam os dias. Quando reunia forças, Fumi ajudava na cozinha, preparando marmita para os homens da região que iam trabalhar no campo. Lá, as pessoas amparavam como e o quanto podiam. Mas sua saúde não estava boa e ela sabia disso. A febre e os calafrios eram constantes. Depois da morte do filho, o medo pela doença tomou seus pensamentos e receava pela própria vida. Não aguentou muitos dias e logo ficou acamada, revirando no leito com baixa imunidade e a iminência de ter contraído o mesmo mal que matou seu menino. Como se não bastasse a falta de forças, estava longe do marido e do sogro que, quer queira quer não, pelo menos, estavam sempre do lado dela. Agora Fumi encontrava-se 145 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 145

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sozinha numa região de seu país onde jamais estivera. Sua fraqueza a impedia, inclusive, de dar assistência à própria filha, que reclamava constantemente de dores. — Okasan, por favor, me leve ao hospital... — suplicava Hatsue ao pé da cama da mãe. Fumi esticou o braço e passou a mão na cabeça da filha, afinal, não havia o que fazer. Sentia-se no fundo do poço e achava que este gesto de carinho no rosto da menina seria o último que faria em vida. Adormece. Perde-se nas horas. Acorda e não sabe o que se passou. A sala onde permaneceu estava quieta demais. Pensou ter escutado a filha no lado de fora do pátio. Foi até a janela, mas eram outras crianças correndo. Alguém entrou no quarto e constatou uma melhora na saúde de Fumi, visto que ela estava de pé. Essa pessoa só não se sentiu à vontade para contar o que tinha acontecido. Levam Fumi até uma sala distante das outras. Acendem as luzes do ambiente e aproximam-se de uma pequena cama. A deportada já deduz o que vai encontrar, mas deseja até o último segundo que esteja errada. Retiram o lençol. Hatsue está deitada. Morreu de inanição. Novamente o sentimento de impotência sugou o corpo e a mente de Fumi. Volta cambaleando para a cama. O seu mundo tinha perdido o sentido. Só acorda com Chosuke ao seu lado. Vê-lo não lhe trouxe emoções fortes. O reencontro foi apático e silencioso. Um abraço bastou. Posteriormente, Fumi soube que ele e Chosei haviam sido deportados para Nagasaki e depois de algum tempo procurando, descobriram o paradeiro dela. Parte da família estava reunida agora. — Ontem cremamos Hatsue e guardamos suas cinzas — foi tudo o que Chosuke pôde dizer. Fecha os olhos. 146 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 146

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Alguns meses depois, o governo japonês possibilita que cada família volte para o seu local de origem. Os Yonaha voltam à Okinawa e Fumi reencontra seus pais, avós e irmãos – soube que um deles, Choichi, foi morto em combate e os Tchina sentiam sua falta. Os anos correm e o casal é agraciado com mais cinco filhos: Sizue, Shigeo, Keiko, Kyoshi e Ritsuko. Os tempos de paz dão novamente a Chosuke a vontade de conhecer outros lugares do mundo. 1958. O governo brasileiro estava com as portas abertas para estrangeiros. Fumi interessou-se pelo país e preencheu o formulário requisitado para fazer a mudança. Meses depois, ela parte no navio Argentina Marô para as terras brasileiras, acompanhada de marido, filhos e sogros, além de Yoshiko, irmã de Chosuke, e Chotei, sobrinho de Chosei e cujos pais faleceram na guerra. Os pais de Fumi optam por permanecer na pequena ilha de Okinawa, bem como os seus irmãos. Ela parte e nunca mais voltaria a vêlos. Desembarcando no porto de Santos, a família Yonaha viaja para Avaré, no interior de São Paulo, onde ficam na fazenda de um parente. Habituados com o novo mundo, Fumi e Chosuke trazem ao mundo mais dois filhos: Kyoko e Asanobu. A felicidade voltava a palpitar no coração, pois crianças têm o poder de encher a casa de alegria. Em Avaré, a casa era grande e os pequenos podiam correr e brincar sem ter medo que algo de ruim lhes acontecesse. Aos poucos, o coração de Fumi cicatriza as feridas que a morte dos primeiros filhos lhe causou, assim como a memória lhe apaga o sentimento de impotência que dominou seu coração nos últimos anos. A vida ia bem em Avaré, mas como era de se esperar, a família Yonaha decide se mudar novamente (sempre perseguindo seu instinto nato para a mudança e o novo) após oito anos de residência fixa no interior. 147 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 147

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O destino escolhido dessa vez é São Paulo, uma metrópole que não para e aponta em direção ao progresso. Assim como outras famílias conterrâneas, eles escolhem o bairro da Casa Verde, na Zona Norte da cidade, para viver e a influência da cultura nipônica reflete ainda hoje as ruas da região, seja com suas fachadas de desenhos em estilo mangá, seja nos ideogramas e nomes das lojas. Em frente à rua onde moram passa um lago, o que dá charme ao local. A família inteira muda-se para a nova casa. Entre as mudanças e malas, muitas coisas se perdem e outras perdem a sua importância. Chotei, primo de Chosuke, organizava seus pertences quando encontra um calhamaço de fotos com pessoas que desconhece. Não só ele, como também todos os integrantes da família pareciam não ter ideia de quem estava representado naquelas imagens. Devem ter se extraviado em algum momento da viagem, pensou consigo, afinal não fazia sentido aqueles objetos estarem ali. Jogou-os fora, no riacho em frente à casa. As crianças brincavam por ali e a curiosa Kyoko viu as fotografias serem desprezadas. Destemida, foi atrás delas, percorreu o riacho com suas pernas pequenas e resgatou os objetos. O que faria com eles agora? Esquecimento Impossível supor o que passou na cabeça de Kyoko naquele momento, afinal uma criança de nove anos ainda tem um visão romântica e idealizada do mundo. Além disso, essas são as memórias de Fumi Yonaha, não de sua filha, portanto os sentimentos aqui expressam a dor da mãe ao enterrar um filho. Foi isso o que aconteceu 148 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 148

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naquele dia. As suposições foram de que Kyoko, com a posse de uma garrafa de álcool na mão, tenha espalhado o líquido pelas fotos para queimá-las. Contudo, com o que mais de improvável possa acontecer neste mundo, a substância inflamável respinga em seu corpo e a garota é abocanhada pelo fogo, que lhe queima a roupa e a pele. Muitos são os gritos e o desespero por toda a parte. Correm para levá-la ao Hospital do Mandaqui. A pequena reclama das dores e pede água, o que é negado pela equipe médica. A dor ressurge no coração de Fumi, mas não da forma de impotência, igual das outras vezes em que viu um filho padecer numa situação extrema; era uma dor inquiridora, que se questiona, que pergunta os porquês. A memória apagou as lembranças dos outros filhos, pois Fumi nada pôde fazer para impedir suas mortes, e isso é doloroso – ninguém aguentaria carregar tal fardo por tanto tempo. Mas e Kyoko? A vida agora era boa, não se passava fome nem se dormia com medo de que um rifle estivesse apontado para o seu rosto ao acordar; por que isto tinha que acontecer? O acidente era besta demais para a proporção do sofrimento. — Ela faleceu — disse o médico — Sentimos muito. Nada. Somente um ponto de interrogação e uma mancha negra na alma. Fumi faz indagações sem cabimentos. Se a filha iria mesmo morrer, porque o médico não lhe deixou dar água? A menina pedia, era só lhe dar e assim saciava a sua vontade. Por que ela precisou morrer? A filha teve assistência, recursos, artifícios que os outros não tiveram, e como isso foi acontecer? Muita culpa sentia. A culpa domina e dilacera, rasga o corpo daqueles que a carregam. Por fim, a memória volta a funcionar. 149 Mais forte que a dor - FINAL (atualizado).indd 149

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— A Obasan está bem? — pergunta Samantha para a tia Ritsuko, ao ver a avó andando de cabeça baixa em direção ao quarto. Às vezes isso acontece. Talvez só esteja com saudade de alguém e lembrou-se de algo. Lembrar é bom. Mantém vivos aqueles que um dia amamos. Mesmo que lembrar traga consigo os sentimentos de perda, ele retorna com a vida, que é o que merece ser revivido sempre. Aquilo que é sufocante e machuca deve ser ocultado pela memória. Contudo, se isto significar o esquecimento daquilo que foi importante, não seria preferível a lembrança do todo e consequentemente mediar consigo o sofrimento e a alegria? Assim se lembrará para sempre do que deu significado para a sua vida: os teus filhos.

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