Modalidades de Aprendizagem

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Maria Lúcia Gonçalves Fernandes

Modalidade de Aprendizagem X modalidade de ensino uma via de mão dupla

INTRODUÇÃO A Psicopedagogia como uma área que se preocupa em compreender o processo pelo qual se dá a aprendizagem, destaca a importância na identificação da modalidade de aprendizagem. Através desta pode-se caminhar para a elucidação das causas do não aprender ou do aprender com dificuldade por parte do sujeito. Ao estudar o ato de aprender e de ensinar, a Psicopedagogia leva em conta as realidades internas e externas à aprendizagem, tomadas em conjunto, estudando a construção do conhecimento em toda a sua complexidade. Para Bossa¹, deve-se procura “colocar em pé de igualdade os aspectos cognitivos, afetivos e sociais que lhe são implícitos, e sob esta ótica a construção da modalidade de aprendizagem e de ensino são vistas”. Para Fernandez², “a modalidade de aprendizagem é uma maneira pessoal do sujeito para aproximar-se do conhecimento e para conformar seu saber, constrói-se desde o nascimento, e através dela depara com a angústia inerente ao conhecer-desconhecer”. É um molde, um esquema de operar utilizado nas diferentes situações de aprendizagem, uma história construída desde o sujeito e seu grupo familiar com a real experiência de aprendizagem e como foi interpretada por ele e pelos seus pais. Para desenvolver a teoria a respeito da modalidade de aprendizagem Pain se fundamente na teoria de Piaget3 quando este apresenta os conceitos de assimilação e acomodação, para explicar o processo de aprendizagem. A acomodação é explicada como o movimento do processo de adaptação pelo qual o organismo altera os próprios esquemas, afim de que possa incorporar as características do


objeto a ser conhecido. A acomodação produz a mudança dos esquemas de ação diante de um novo estímulo que nunca foi experimentado. Enquanto que assimilação é o movimento realizado na transformação do objeto de conhecimento no sentido de possibilitar sua apropriação. O conhecimento se converte naquilo que se pode assimilar, e só se pode conhecer à medida que se têm os instrumentos (esquemas) para conhecer. Então a assimilação depende das possibilidades que se tem, é necessário investigar qual o conhecimento cuja falta lhe impede a assimilação. A forma com que a criança assimila e acomoda interfere diretamente na transformação e apropriação do conhecimento. Um processo inteligente acontece quando assimilação e acomodação se acham em equilíbrio, sem que um deles predomine excessivamente o outro. Quando há excesso ou falta de assimilação–acomodação, tem-se uma modalidade de aprendizagem patologizante, e para identificá-la é necessário observar a imagem que o aprendente tem de si mesmo, os vínculos que este tem com o conhecimento, com as figuras dos ensinantes, as histórias de aprendizagens e a modalidade de aprendizagem familiar. Assim, Fernandez4 descreve os diferentes tipos de modalidades de aprendizagem denominadas hipoacomodada hipoassimilada, hiperacomodada - hipoassimilada, hiperassimidalada - hipoacomodada. Cada modalidade de aprendizagem apresenta uma característica diferenciada, hipoacomodada-hipoassimilada, manifesta-se a partir do mecanismo de evitação do sujeito em contato com o objeto de conhecimento, surge entre a relação exibicionista do ensinante e a ofuscação do aprendente, resultando em uma inibição cognitiva. A modalidade de aprendizagem hiperacomodada-hipoassimilada resulta da relação ocultar-esconder do ensinante e a necessidade de espiar do aprendente, situação quem o sujeito aparece impedido de conhecer e sente-se culpado por ter conhecido, resultando em problemas de aprendizagem-sintoma.


Na modalidade de aprendizagem hiperassimilada-hipoacomodada as características aparecem em situações em que o objeto é conhecido de forma fragmentada, já que o sujeito autor não aceita a sua legalidade e impõe como real o seu imaginário, responde, em geral, à insistência da desmentida que é um modo de exibir e esconder por parte do ensinante, surgindo um aprendente que renega sua capacidade pensante, resultando no transtorno de aprendizagem que estrutura-se em oligotimia, que é um “não sei” que filtra o que” não posso saber”, proibindo-se de questionar e mostrar o que sabe. Conforme Fernandez4, “a modalidade de aprendizagem ao congelar-se e/ou enrijecerse, empobrece até mesmo obriga o sujeito a repetir em todo contato com o novo, uma mesma ação, impedindo-o de mudança”. Este é o alarme que denuncia um problema de aprendizagem. O que não se pode fazer por não ter capacidade de realizar, ou o que não se pode fazer porque não é permitido (proibição), é um dos fatores que interferem para esse congelamento _ enrijecimento da modalidade de aprendizagem. Aprende-se com o outro e segundo Pain5 “o desejo é o desejo do outro”, então não se pode descartar que o outro influencia para a construção da modalidade de aprendizagem. Fernandez4 relata que “cada um se relaciona com o outro como ensinante, consigo mesmo como aprendente e com o conhecimento como um terceiro de modo singular”. È importante considerar que a ação do outro pode-ser desencadeante do desejo de aprender, podendo ser positiva ou negativa, e é por meio das experiências que o sujeito apropria-se do conhecimento, através dos movimentos de acomodação e assimilação fortifica-se o ego e constrói-se uma personalidade segura e saudável. Assim nascem as relações com os objetos e pessoas. A modalidade de ação que o sujeito utiliza para conhecer um objeto será também empregada para relacionar-se com as pessoas. Nesse relacionamento há algo que se repete e algo se muda ao longo de toda vida nas


diferentes áreas, constituindo-se na modalidade de aprendizagem. A permanência de um modo anterior de relacionar-se (repetição) e o que precisa mudar nesse mesmo modo (flexibilidade) é que torna o sujeito um ser aprendente. Vê-se que a modalidade de aprendizagem está intrinsecamente relacionada à modalidade de ensino, que é a maneira como cada pessoa mostra o que conhece, considerando o outro como aprendente, numa construção própria a partir da modalidade de aprendizagem. Se o ensinante possui uma modalidade de aprendizagem com tendências patológicas, certamente repassará este modelo nas suas relações, perturbando assim o desenvolvimento daquele que aprende com ele. Para modificar essa modalidade de ensino é necessário ressignificar sua modalidade de aprendizagem. Assim sendo, não se pode ignorar que as relações influenciam a formação desta modalidade de aprendizagem, e que as crianças se desenvolvem sofrendo as influências marcantes da família e da escola que são os agentes socializadores. A relação com os pais, pode interferir de forma negativa nas aprendizagens dos filhos, por excesso ou escassez afetiva, gerando alterações na autonomia, criatividade, confiança e auto-estima, alicerçando no sujeito uma modalidade de aprendizagem desvinculada de desejo, que será transferido para os demais campos de sua vida. Rialland6 relata “que afetivamente e intelectualmente toda criança é comparada a sua família”, quando as comparações são positivas podem ser até assumidas, podendo deixar sua real personalidade e assumir assim essas projeções, para assemelhar-se e sentirem-se dignos de amor. Mas, nem sempre são positivas, existindo comparações negativas que podem ser dramáticas, e geralmente os pais não se dão conta disso. Sem dúvida que a criança gostaria de ser amada apenas por aquilo que ela é, ser apreciada pela sua personalidade, ser aceita em sua família sem expectativas projetivas futuras. Porém, todos os seres humanos aprendem com suas famílias crenças, valores,


expectativas e projeções, constituem em primeiro lugar não o eu, mas a família que se tem. É nestas relações que se constroem as modalidades de aprendizagem, espaço que a família favorece ou não para seu desenvolvimento saudável. Para Alencar7, “a escola também contribui de maneira significativa para a construção do sujeito”. Desde muito cedo a criança passa a permanecer grande parte de seu dia na escola, e ali lhe são oferecidos novos modelos para imitação e identificação, continuando a tarefa de construir um conceito do mundo e de si mesmo. O papel do professor é facilitar o crescimento e a formação de uma imagem positiva dessa criança, o tipo de relacionamento que mantém com o aluno contribui para que isto se realize. O conceito que esta tem de si mesmo influencia seu crescimento cognitivo. Da mesma forma é importante que o professor se sinta adequado e com certo grau de satisfação no seu papel de ensinante. Assim os níveis de autoconceito dos personagens envolvidos na trama do aprender estão relacionados diretamente com o processo de ensino-aprendizagem, sendo esta uma variável que possivelmente contribui para maior aproveitamento do que se ensina na escola. Vale ressaltar, que o sujeito não é um ser passivo no processo de aprendizagem, diante de seus ensinantes e do que lhe é exposto a conhecer, o sujeito com as sua características próprias tem formas particulares de organizar os elementos que lhe são oferecidos. Portanto, não é tudo e nem do mesmo modelo do ensinante, que o sujeito assimila o que lhe é apresentado. Nos espaços entre quem ensina e o objeto do conhecimento existe uma história e razões conscientes e inconscientes que vão interferir nos movimentos de assimilação e acomodação, isto faz gerar ou não possibilidades de transformação da informação em conhecimento, culminando ou não em aprendizagem significativa.


Modalidade de aprendizagem e de ensino compõe, portanto, uma via de mão dupla na medida em que para ensinar o sujeito utiliza-se dos mesmos recursos que tem para aprender. Se o sujeito constrói sua modalidade de aprendizagem especialmente nas suas primeiras relações, os modelos tendem a se perpetuar. A forma como a pessoa se vê como aprendente depende de como ela é vista pelos seus ensinantes, a permissão que é dada a esta para questionar e conhecer abre espaços para seu desenvolvimento. Isto vem ao encontro com a grande preocupação da Psicopedagogia que ao compreender o sujeito aprendente como um ser ativo, criativo, valoriza o seu lado positivo, fazendo deste conhecedor do seu próprio conhecer. Por isso, busca mobilizar neste o desejo em viver experiências de autoria de pensamento. Suscita junto à instituição escolar a importância de considerar e às vezes ressignificar modelos de ensinar e aprender. METODOLOGIA O estágio clínico psicopedagógico supervisionado, ocorreu em uma instituição filantrópica, que tem por finalidade amparar, abrigar e educar gratuitamente crianças do sexo feminino, desamparadas e vítimas de abandono, maus tratos, violência domestica e sexual, prestando assistência social, moral, religiosa, alimentar, cultural e médica. As crianças ficam no abrigo durante a semana, onde realizam suas tarefas escolares e freqüentam a escola, retornando para suas casas no final de semana. O espaço fornecido para o atendimento das crianças foi á biblioteca, que possuía uma grande estante com quatro prateleiras de livros, duas mesas e varias cadeiras e um espaço amplo para as atividades. O trabalho Psicopedagógico, foi indicado pela instituição para duas crianças que apresentavam dificuldade de aprendizagem escolar, as sessões tiveram 50 min. cada uma, realizadas duas vezes por semana, no período de 28/03/06 a 28 /06/06. O sujeito que ilustrará o artigo para a discussão do caso, è Jane (nome fictício) que tem 7 anos, cursando pela segunda vez a 1ª série (ciclo), estuda em uma escola municipal,


sendo a caçula de uma prole de quatro filhos. Vem com a queixa de dificuldade para a aquisição da leitura e escrita. Para a realização do trabalho vários materiais foram utilizados, dentre eles objetos escolares, jogos pedagógicos, brinquedos, livros, revistas, kit das provas operatórias. Os atendimentos iniciaram com o diagnóstico, que constou de vários procedimentos. As entrevistas foram realizadas com a família e professores da criança, e apresentou questões abertas, com intuito de levantar informações sobre a dinâmica relacional do sujeito no nível familiar e escolar. Conforme afirma Andrade8, “as informações obtidas possibilitam a reconstrução das histórias de aprendizagem da criança, indicando direções para a pesquisa e queixa”. Uma entrevista também foi realizada com a criança para conhecê-la informalmente através de seu próprio olhar, e verificar se possuía informações básicas de seu cotidiano e da dificuldade de aprendizagem que apresentava. Utilizou-se da Hora do Jogo que é uma proposta em que se abre um espaço para brincar, conforme Fernandez2, “esta não mostra apenas características cognitivas e afetivas do paciente, mas também, demonstra como ela se apropria do objeto de conhecimento desejado; possibilitando uma leitura sobre sua modalidade aprendizagem". Algumas provas projetivas psicopedagógicas foram utilizadas para analisar os vínculos afetivos do sujeito com a aprendizagem no nível individual e de seus grupos (família e escola), foram utilizadas as seguintes Provas Projetivas adaptadas por Visca 9 Par Educativo, que possibilitou investigar os vínculos que a criança tem com a aprendizagem; Família Educativa prova com o qual se investiga o vínculo de aprendizagem do grupo familiar e cada um dos integrantes do mesmo. Para verificar os vínculos da criança com os companheiros de classe, utilizou-se do desenho Eu e meus companheiros, e o desenho Os quatro Momentos do Dia que investiga os vínculos ao longo de uma jornada da vida.


As Provas operatórias com base na teoria de Piaget, indicadas por Weiss 10, foram utilizadas no diagnóstico para verificar o grau de aquisição de algumas noções chaves do desenvolvimento cognitivo, detectando o nível de pensamento alcançado pela criança através das provas de classificação, seriação e conservação específicas para cada idade. No caso em estudo foram aplicadas as provas de seriação, conservação de quantidade de matéria e classificação de mudança de critério ou dicotomia. Nas provas pedagógicas utilizou-se de ditado para verificação do nível de apropriação da linguagem, leitura com imagens e sem imagens e escrita espontânea. E como qualquer outro momento do diagnóstico a conduta do paciente foi vista como uma expressão global da criança, porém neste momento colocou-se em foco o nível pedagógico, com vistas a observar o funcionamento cognitivo e emocional ligadas ao significado dos conteúdos e ações. Para Weiss10, “nesse momento avalia-se não somente a escrita e leitura, mas as atividades pedagógicas específicas para a série cursada, verificam-se o que já aprendeu, como articula os diferentes conteúdos entre si e como faz uso desses conhecimentos nas situações escolares e sociais”, podendo assim avaliar o nível pedagógico. Varias atividades lúdicas nesse processo diagnóstico serviram para observar a criança em momentos de descontração, apatia ou empatia, como se relaciona com o ganhar e perder, com as frustrações, prazer, agressividade e passividade diante de um jogo ou uma brincadeira. Após o período em que foram aplicados os procedimentos diagnósticos, prosseguiramse os atendimentos com ênfase na intervenção clínica norteada pelas questões levantadas na avaliação. O suporte teórico para realizar o trabalho foi subsidiado principalmente pelos estudos de Pain5 e Fernandez7. Paralelamente ao trabalho prático foram realizados encontros semanais com a supervisora para discussão e orientação do trabalho de estágio como um todo. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DO CASO CLÍNICO


Jane apareceu para o seu primeiro contato, risonha e muito tímida, e apesar de estar em uma conversa informal mostra sua dificuldade de lidar com o objeto do conhecimento, à medida que desconhece fatos básicos de sua história. Não soube explicar o motivo da consulta, pois segundo ela, não fora informada pela instituição sobre esse atendimento, não soube fornecer alguns dados pessoais, como nome completo dos pais, data de seu aniversário, e idade dos irmãos. Falou também sobre suas dificuldades escolares, acha difícil ler, “palavras juntas é difícil, não entendo”, diz que gosta da escola. A queixa principal da responsável pela instituição é de que Jane tem dificuldades importantes ligadas à leitura e escrita. Durante os atendimentos e na sessão da Hora do Jogo ela demonstrou muita insegurança, precisando sempre sentir-se autorizada a realizar qualquer movimento, sugerindo pouca autonomia; sendo esta uma condição que se faz necessária para uma boa aprendizagem. Jane não mostrou curiosidade e iniciativa para conhecer todo o conteúdo da caixa lúdica, como se não pudesse possuir o objeto de conhecimento, apropriando-se apenas dos objetos de mais fácil acesso. Observou-se que tentava olhar na caixa o que havia mais abaixo, como se tivesse que espiar algo escondido. Essa atitude permitiu observar a dinâmica e aprendizagem, a forma como explora os objetos a conhecer, indicando pobreza de contato com a subjetividade, falta de iniciativa, submissão, déficit lúdico e criativo, desta forma a hipótese levantada é de que sua modalidade de aprendizagem tende a ser mais acomodada e menos assimilada, possibilitando a análise das significações do aprender para a criança. Mostrou insegurança, atitude que se repetiu em outras atividades. Observou-se no Par Educativo que a criança apresentou uma vinculação regular e não muito importante com a aprendizagem, com o ensinante demonstrou um vínculo confuso à medida que não fez uma distinção entre eles, colocando-os na mesma faixa etária. Ao desenhar a figura humana, mostrou dificuldade de estruturação de esquema corporal e não


aparece objeto de conhecimento, o que indica um vínculo fraturado com a aprendizagem, em especial com o objeto de conhecimento. O título não tem relação com o desenho nem com o relato, fez explicações simples, demonstrando pobreza no que diz respeito à criatividade e autonomia de pensamento. Nos desenhos da Família Educativa e Eu e os Meus Companheiros, não aparecem pessoas adultas significativas em seu processo de aprendizagem, ficando evidente uma não circulação de informação por parte dos adultos em relação às crianças. Ao apresentar o grupo familiar não se incluiu como alguém presente nas relações afetivas familiares, não deixando claro que estabelece vínculos afetivos com estes. Na relação com os amigos, apareceu um bom vínculo de integração, porém não com a aprendizagem escolar, seu relato é pobre sem detalhes, não mostrou o objeto de conhecimento, não desenhou a escola aparentou não se sentir pertencente a ela. Nos Quatro Momentos do Dia, seu desenho ficou fragmentado, não se incluiu em todas as cenas, como se estivesse relatando o dia de outra pessoa, aparentando estar ausente de sua própria realidade. Nas provas operatórias, Jane apresentou resultados correspondentes ao pensamento intuitivo global, não possuindo estruturas completas para a idade, ou seja, mostrou-se aquém ao esperado para sua faixa etária e série escolar. Nas provas pedagógicas, apareceram dificuldades de escrita e leitura, por não reconhece todas as consoantes, esta no início da fase pré–silábica, apresentando conhecimentos relacionados à lateralidade, posição e tamanho. Na matemática não tem o domínio do reconhecimento dos números, contagem, distribuição, correspondência e ordenação, contou até nove e relacionou a quantidade, do número dez em diante faz contagem mecânica, mas não identificou a escrita destes números, nem faz relações de quantidade.


Durante as atividades lúdicas não tomou iniciativas, repetiu o mesmo jogo durante algumas sessões, mesmo tendo possibilidade de experimentar outros. Jane sentia-se segura repetindo as mesmas atividades, desta forma não se expôs ao enfrentamento do desconhecido. Depois de algumas sessões, foi possível conhecer a mãe de Jane que se apresentou para uma conversa informal, e demonstrou inicialmente ansiedade e desconfiança, mas durante a conversa ficou mais à vontade. Porém, ao se perguntar sobre dados pessoais de seus filhos não soube dizer qual era a data de aniversário de nenhum deles; é separada do marido e possui quatro filhos, cada uma de um pai. Seus filhos de 11 e 14 anos não estudam, as duas menores estão no abrigo. Ela passou mais de um ano sem ver suas duas filhas, porque estavam com o pai. Não soube relatar com precisão sobre as primeiras aprendizagens da filha, apenas disse que se desenvolveu normalmente. Ocorreu durante a entrevista que quando questionada sobre Jane a mãe respondia sobre a outra filha. Aparenta ser uma mãe carinhosa, mas ausente. Comunicou estar solicitando a guarda das meninas, que estão com o pai, mas confessa não ter condições para sustentar as crianças, pois está desempregada. As duas meninas sabem que estão no abrigo por motivos financeiros e não apresentam nenhuma mágoa a respeito, mas demonstram preferir estar com a família. O contato com a mãe possibilitou esclarecer a atitude desvinculada de Jane em relação à aprendizagem. O modelo da mãe se repete na filha, pois demonstrou não participar da vida da Jane, achando suas dificuldades escolares extremamente normais para a idade, não acreditando ser mais que isso; não retendo informações básicas sobre esta e seus outros filhos. Parece não haver valorização do conhecimento na família, pois, ela e o marido têm um baixo grau de escolaridade, e seus filhos pré-adolescentes não freqüentam a escola. A informação e o conhecimento, não são importantes, portanto não circula no ambiente familiar.


A professora durante a entrevista relatou que Jane falta muito às aulas, não tem acompanhamento nas tarefas de casa e durante as aulas é muito dispersa. É uma menina muito tímida de difícil acesso, não expõe suas dificuldades, é alheia, não tem iniciativa, não demonstra criatividade, relaciona-se bem com os colegas, mas geralmente está na companhia dos amigos do abrigo isolando-se dos demais. Relatou também sentir-se impotente diante da situação, gostaria de dar mais atenção, ou fazer mais pela aluna, mas não é possível, pois teria que atendê-la individualmente, e não há condições para isso, não vendo solução para a questão se a aluna não tiver acompanhamento em casa e um amparo da família nas questões afetivas. Afirmou que Jane é muito carinhosa, mas sente que a aluna não tem um referencial familiar. CONSIDERAÇÕES FINAIS Desde o início do diagnóstico e nas sessões de intervenção que se realizaram percebeu-se que Jane apresenta dificuldades significativas no seu processo ensino – aprendizagem, as primeiras evidências surgem dentro da dinâmica familiar. Para Fernandez2 “o olhar que se pode ter através da família, entre o que se percebe e o que se mostra, indica uma influência em três níveis, o individual, o vincular e dinâmico”. No caso de Jane existe uma fratura em todos estes níveis. O nível individual que diz respeito à atitude da criança ante o exterior, Jane é insegura e sem estímulo, sem confiança em si mesma, interferindo no grau de curiosidade; no nível vincular, relacionado à vinculação do conhecimento e da informação entre os membros da família, que neste caso não há transmissão de informação e nem estímulo da autonomia de pensamento; o nível dinâmico, que diz respeito aos sistemas de papéis necessários para o funcionamento e manutenção da estrutura familiar e os modelos de interação possíveis, para Jane este modelo está deficiente. Conforme ressalta Chamat11, “para compreender o real significado do não aprender é necessário realizar a leitura do desempenho dos papeis, o que impede o acesso ao conhecer e


os reais ganhos da família, através dos papeis assumidos diante da dificuldade de aprendizagem do filho”. Sabe-se que a mãe, como primeira ensinante exerce uma influência fundamental no desenvolvimento do filho. A privação materna pela qual Jane passou pode ter contribuído para o atraso em seu desenvolvimento, salientando ainda que a qualidade de interação é mais importante do que a simples satisfação das necessidades, pois uma mãe presente sem interagir com a criança, psicologicamente é equivalente a sua ausência total. E atualmente mesmo tendo a presença materna, o modelo que esta passa para Jane não favorece seu desenvolvimento autônomo. O comportamento adulto é, em larga escala, produto das primeiras experiências infantis que determinam até mesmo o caráter e a personalidade do indivíduo, afetando o sujeito em seu desenvolvimento, oferecendo aos seus filhos vínculos afetivos deficitários, comprometendo a formação de sua identidade, dando-lhes condições de vida idênticas aquelas em que se criaram. O saber Psicopedagógico clínico vem exatamente do olhar e da escuta que interpretam a mensagem do sintoma na aprendizagem, articulando e organizando as informações, traduzindo-as as queixas manifestas e buscando as origens da queixa latente que serão denunciadas pela criança. Diante desses dados e durante os procedimentos pode-se ter uma visão global (afetivo, pedagógicos, sociais, orgânicos e cognitivos) da criança, detectando suas potencialidades e suas dificuldades, relacionando a sua modalidade de aprendizagem às primeiras aprendizagens que foram marcantes no seu processo e identificando se as dificuldades de aprendizagens são de ordem reativa, inibição cognitiva ou apenas sintoma. No caso de Jane, seus transtornos de aprendizagens são sintomas, que foi produzido para escapar da angústia, envolvendo em grande quantidade causas de origem emocional, pois, apresentando uma baixa estima, construiu um aprisionamento do potencial criativo. E a


falta de vinculação afetiva familiar impede que ela mobilize certo nível de pulsão para aprendizagem, e isso se repete involuntariamente em outras situações de aprendizagem. Diante desse quadro, foi possível também verificar que o abrigo onde se encontra e a escola que freqüenta pouco fazem para mudar e ajudar a reverter o problema de aprendizagem de Jane. Na instituição não há pessoas qualificadas para ajudar as crianças nas tarefas diárias, e muitas vezes reforçam os preconceitos e rótulos, demonstrando uma incapacidade de lidar com a situação e não promovem a confiança de suas potencialidades. A escola atribui a responsabilidade do fracasso a um problema familiar, não visualizando sua parcela de culpa no processo. Isso indica um problema de origem reativa, associado às dificuldades vinculares e de um modelo não adequado de aprendizagem trazido por Jane. Com o trabalho psicopedagógico, Jane começou a ressignificar sua modalidade de aprendizagem, aumentou seu grau de curiosidade, expressa sentimentos e atitudes com maior autonomia, permitindo-se desejar e descobrir-se como aprendente e ensinante, começando a dar significado aos seus conhecimentos. Há muito a ser feito, e os atendimentos psicopedagógicos não foram suficientes para suprir todas as necessidades, mas já podem ser percebidas algumas mudanças. Como exemplo pode-se observar nas figuras 1 e 2, alterações na qualidade de seu desenho ao representar a figura humana. Para Drouet12 “se não tiver a noção das partes e posição do corpo, não se pode perceber os objetos nem identificar sua posição no espaço”. Os avanços na qualidade do desenho sinalizam melhor capacidade de simbolização, de estruturação interna bem como do esquema corporal, que é uma aquisição importante para o desenvolvimento geral do sujeito. Fonte – Atendimento em Estágio Supervisionado Clínico.


Figura 1 - Par Educativo (05-04-06)

Figura 2 – Desenho Livre (28-06-06)

Realizou atividades lúdicas, onde foi preciso fazer escolhas e mostrar seu potencial, mostrou-se um sujeito criador e não imitador. Permitindo errar, refazer, sendo autora do pensamento, sem precisar espiar, sem sentir-se culpada. Não foi possível ainda identificar os segredos e os não-ditos que permeiam esta família e dificultam a circulação de informação, mas precisaria de uma reestruturação nesse ambiente, vistas a atingir os núcleos responsáveis pela patologia, tanto na criança como na família, quer seja no campo da prevenção como no tratamento ou reeducação dos modelos de aprendizagens.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS 1. Bossa N. A Psicopedagogia no Brasil. 2ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 2000. 2. Fernandez A. A Inteligência Aprisionada. 2ª reed. Porto Alegre: Artes Médicas; 1991. 3. Piaget J. A Formação do Símbolo na Criança: imitação, jogo e sonho, imagem e representação. Tradução Álvaro Cabral e Christiano Monteiro Oiticica. 3ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 1990. 4. Fernandez A. Os idiomas do aprendente. Porto Alegre: Artes médicas; 2001. 5. Pain S. Subjetividade e Objetividade: Relações entre desejo e conhecimento. São Paulo: CEVEC; 1996. 6. Rialland C. São Paulo: Loyola; 1997.


7. Alencar EMLS. A Criança na Família e na Sociedade. Petrópolis: Vozes; 1982. 8. Andrade MS. Psicopedagogia Clínica: manual de aplicação prática de dificuldade de aprendizagem, São Paulo: Pólus; 1998. 9. Visca J. Técnicas Projetivas Psicopedagógicas. 3ªed. Buenos Aires. 1997. 10. Weiss MLL. Psicopedagogia Clinica: uma visão diagnóstica dos problemas de aprendizagem escolar. 7ª ed. Rio de Janeiro: DP&A; 2000. 11. Chamat LSJ. Relações Vinculares e Aprendizagem: um enfoque psicopedagógico. São Paulo: Vetor; 1997. 12. Drouet RCR. Distúrbios da Aprendizagem. 4ª ed. São Paulo: Editora Ática; 2000.


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