[TFG I / FAUUFJF] Monografia - Arquitetura Líquida Inclusiva

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Universidade Federal de Juiz de Fora Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

Lucas Trindade de Araújo

ARQUITETURA LÍQUIDA INCLUSIVA: entrelaçamento de princípios e métodos aplicáveis ao projeto de um equipamento sociocultural para o bairro Adolpho Vireque

Juiz de Fora Novembro/ 2020


Universidade Federal de Juiz de Fora Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

Lucas Trindade de Araújo

ARQUITETURA LÍQUIDA INCLUSIVA: entrelaçamento de princípios e métodos aplicáveis ao projeto de um equipamento sociocultural para o bairro Adolpho Vireque

Monografia apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para conclusão da disciplina Trabalho de Conclusão de Curso I. Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Ribeiro Silveira

Juiz de Fora Novembro/ 2020 II


Lucas Trindade de Araújo

ARQUITETURA LÍQUIDA INCLUSIVA: entrelaçamento de princípios e métodos aplicáveis ao projeto de um equipamento sociocultural para o bairro Adolpho Vireque

Monografia apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para conclusão da disciplina Trabalho de Conclusão de Curso I.

Data da Aprovação: Juiz de Fora 23/11/2020 EXAMINADOR ________________ ______________________________________ Prof. Orientador: Dr. Carlos Eduardo Ribeiro Silveira

Juiz de Fora Novembro/ 2020 III


Dedico este trabalho primeiramente à Deus que sempre está comigo em todos os momentos e também à minha família, em especial meus pais Ana Lúcia e Angelo que sempre me apoiaram e nunca mediram esforços para que eu pudesse chegar até aqui.

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Agradecimentos

Em primeiro lugar agradeço à Deus, por se fazer presente ao meu lado em todos os momentos, iluminando e dando discernimento para vencer todos os obstáculos da vida. Agradeço à minha família. Minha mãe Ana Lúcia que sempre me apoiou e incentivou a seguir meus sonhos. Meu pai Angelo, que é minha inspiração de trabalho e força, e que sempre batalhou incansavelmente para que eu e meus irmãos tivéssemos um futuro melhor. Ao meu orientador, Cadu, por toda sua dedicação e empenho para que este trabalho acontecesse, por todas as orientações e conversas que ampliaram meu horizonte e me deram conforto e segurança para persistir. Agradeço às amigas Mariana Costa e Lauany de Souza, que estiveram ao meu lado durante quase toda graduação e continuam até hoje, trocando conhecimento, somando aprendizado e fazendo com que toda a caminhada fosse mais leve e prazerosa. Por fim, seria impossível citar o nome de todos aqueles que de alguma forma contribuíram com este trabalho, mas deixo um agradecimento especial à todos amigos, colegas, professoras, professores e familiares que deixaram sua marca e foram importantes durante minha graduação.

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“Ninguém é igual a ninguém. Todo ser humano é um estranho ímpar.” Carlos Drummond de Andrade VI


Resumo

O tema deste trabalho está relacionado aos aspectos de diversidade e metamorfoses constantes pelas quais a nossa sociedade passa, bem como aos diversos problemas gerados por um processo uniformizador que tenta moldar os indivíduos dentro de padrões socioculturais, que acabam por gerar exclusão, marginalização e invisibilidade de grupos sociais e culturais minoritários ou historicamente desamparados. O objetivo deste trabalho é demonstrar como a arquitetura pode e deve estar em sintonia com o contexto líquido da contemporaneidade e como isso perpassa pelos princípios de inclusão social e cultural e, a partir disso, propor um equipamento sociocultural, em concordância com esses ideais, para a região do bairro Adolpho Vireque em Juiz de Fora (MG). O suporte teórico principal foi baseado nos conceitos de cultura abordados por Marilena Chauí, nos principios de liquidez defendidos por Zygmunt Bauman e arquitetura líquida, por Ignasi de Solà-Morales. Para elucidar as características primordiais de uma arquitetura líquida, realizou-se um estudo de caso sobre o Centro Comunitário Cam Thanh, no Vietnã. Por fim, concluiuse que o contexto sociocultural do bairro Adolpho Vireque, suas carências e demandas, vão de encontro às proposições de um equipamento sociocultural acessível, inclusivo, fluído, apropriável e adaptável, que são características de uma arquitetura líquida, coesa com a realidade que vivemos. Um espaço que valoriza e dá visibilidade à toda forma de diversidade e promove o diálogo e a interação harmônica entre os diferentes.

Palavras-chave: Inclusão; Cultura; Arquitetura líquida; Adaptabilidade; Apropriação humana.

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Lista de Ilustrações

Figura 1 – Proporção da pobreza por cor ou raça….………...………………………...17 Figura 2 – Infográfico sobre as áreas afetadas pela desigualdade social………..….18 Figura 3 – Fachada do centro comunitário……….…………………………………......46 Figura 4 – Turistas percorrendo um rio com barcos a remo em Cam Thanh…….....47 Figura 5 – Crianças brincam no espaço interno no centro comunitário….…….....….48 Figura 6 – Espaço interno..………………………………………....………………….....48 Figura 7 – Planta baixa…..….………………………………………………………….....49 Figura 8 – Vista interna….……………………………………………………..………….50 Figura 9 – Vista superior do centro comunitário e entorno imediato………….……...51 Figura 10 – Imagem de satélite da cidade de Juiz de Fora (MG)……..…….………..54 Figura 11 – Imagem de satélite da cidade de Juiz de Fora com a delimitação do bairro Adolpho Vireque….………………………………………………………….…..….55 Figura 12 – Imagem de satélite aproximada com destaque para o bairro Adolpho Vireque…………………………………………………………………………………........56 Figura 13 – Imagem de satélite da região do bairro Adolpho Vireque com a delimitação do terreno…….……………………………………….............………...................……...58

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Sumário

Introdução.................................................................................................................10

1. Inclusão.................................................................................................................13 1.1 A exclusão............................................................................................................15 1.2. Arquitetura inclusiva.............................................................................................19

2. Cultura...................................................................................................................27 2.1. O conceito de cultura............................................................................................28 2.2. Pluralismo cultural................................................................................................30 2.3. Inclusão cultural...................................................................................................31 2.4. Cultura líquida......................................................................................................33

3. Arquitetura líquida................................................................................................37 3.1. Arquitetura adaptável...........................................................................................38 3.2. O caráter inclusivo da arquitetura líquida.............................................................41 3.3. Temporalidade e apropriação espacial no contexto líquido..................................42 3.4. Princípios básicos para a concretização de uma arquitetura líquida.....................45 3.5. Estudo de caso: Centro Comunitário Cam Thanh................................................46

Considerações finais................................................................................................52 Considerações acerca do contexto da região e do terreno proposto para a inserção do equipamento sociocultural e seus possíveis impactos................................................54

Referências Bibliográficas.......................................................................................59

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Introdução

Diante de um contexto sociocultural de crescente pluralidade e metamorfoses, que enfrenta diversos problemas relacionados à exclusão e marginalização de minorias e grupos sociais historicamente desamparados e desprivilegiados, torna-se necessária a atuação interdisciplinar em prol da reparação de irregularidades que perpetuam um sistema excludente, que hierarquiza a sociedade dentro de padrões, e coloca à margem todos aqueles que não se encaixam ou se adequam a esse sistema. Portanto, é fundamental a análise da realidade social e cultural na contemporaneidade para que seja possível estabelecer, por meio da arquitetura, mecanismos coerentes com as demandas sociais e que contribuam para o bem-estar das pessoas. A pesquisa, os conceitos estudados e os temas abordados neste trabalho tem a intenção de fundamentar teoricamente e apresentar instrumentos e métodos que colaborem para a concepção de um equipamento sociocultural para o bairro Adolpho Vireque em Juiz de Fora, Minas Gerais. O objetivo é que esse equipamento de uso público e coletivo seja concebido em total coerência com o contexto social e cultural diversificado e fluído da região em que será inserido, assim como, de forma coesa com os aspectos heterogêneos e em constante transformação da sociedade como um todo. A proposta de criação de um equipamento sociocultural dentro dessas condicionantes se faz necessária para que se possa estabelecer um espaço comunitário de encontro, compartilhamento, apropriação e manifestações culturais múltiplas. Além disso, é fundamental garantir que esse espaço seja aberto e acessível para todos, de forma que a experiência e as possibilidades oferecidas pelo local sejam dinâmicas, equitativas e verdadeiramente democráticas. O propósito deste trabalho é demonstrar as possibilidade e a importância da aplicação dos conceitos de liquidez na arquitetura mediante aos princípios apresentados pelo filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman e as proposições de aplicação no campo arquitetônico pelo arquiteto e filósofo catalão Ignasi de Solà-Morales, além de


agregar novos aspectos relevantes, como o Desenho Universal, para a produção de uma arquitetura líquida, aberta e inclusiva para todos. A arquitetura deve caminhar sempre de forma paralela às demandas da sociedade, como instrumento de suporte e promoção de justiça social e respeito à dignidade da pessoa humana. O papel social da arquitetura é fundamental para a promoção de uma sociedade mais justa e inclusiva, através da eliminação de diversas barreiras físicas e atitudinais nos espaços construídos. Especialmente num cenário de ampla diversidade e transformações sociais complexas e constantes, é de extrema importância a adaptabilidade arquitetônica, em concordância com as demandas das mais diversas esferas sociais e culturais. Nesse contexto, destaca-se também a valorização e visibilidade das identidades individuais, do pluralismo cultural e da inclusão social em diversas escalas; portanto, a arquitetura tem um papel fundamental na concepção de espaços líquidos, ou seja, espaços sintonizados com as demandas sociais flexíveis e mutáveis. Na proposta de um equipamento cultural – espaço arquitetônico destinando ao uso público e coletivo – colocar em prática os conceitos de liquidez e inclusão sociocultural, significa contribuir para que se estabeleça a universalização e a democratização do uso, apropriação e experimentação dos espaços de forma equitativa, garantindo visibilidade e representatividade para as minorias e os marginalizados através de um espaço que agrega e está aberto para todas as identidades e expressões culturais. Para o desenvolvimento deste trabalho tornar-se-á necessário o estudo de conceitos e princípios relacionados à inclusão, cultura e arquitetura líquida. A partir da compreensão desses conceitos e suas respectivas repercussões no campo da arquitetura, será fundamental costurar uma relação de complementaridade entre eles, de forma com que caminhem de forma paralela e coerente. Dessa forma, a articulação cuidadosa dos conceitos e das problemáticas acerca da inclusão, da cultura e da arquitetura líquida, será primordial para entender os desafios e as estratégias essenciais para alcançar uma resposta coesa e integral às demandas que o tema apresenta.

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Os conceitos de inclusão e as elucidações abordados neste trabalho serão apoiados na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) e também nos princípios do Desenho Universal, além de dados do IBGE sobre a problemática da exclusão social no Brasil. A respeito da cultura, o entendimento e as discussões propostas serão subsidiadas pelas abordagens de Marilena Chauí em “Convite à Filosofia” (2000) e Zygmunt Bauman em “A Cultura no Mundo Líquido Moderno” (2013). Chauí nos apresenta sobre as transformações no conceito de cultura e Bauman desperta reflexões sobre o papel da cultura numa sociedade líquida. Sobre os conceitos e princípios de arquitetura líquida também será fundamental compreender as elucidações acerca do tema na abordagem de Bauman em “Modernidade Líquida” (2001) e as perspectivas expostas por Ignasi de Solà-Morales em relação ao conceito de liquidez na arquitetura, traçando um paralelo entre as características da sociedade e o papel que a arquitetura deve desempenhar para responder de forma integral e condizente com as aspectos identificados. Por fim, serão feitas reflexões e análises à respeito da região e do terreno escolhido para a concepção da proposta, pautadas de forma coesa aos princípios e conceitos abordados neste trabalho. Essa abordagem será importante para fundamentar a importância de um projeto dessa natureza diante do contexto sociocultural, das carências e demandas do bairro Adolpho Vireque e suas adjacências.

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1. Inclusão

Quando falamos em inclusão no campo da arquitetura e urbanismo, possivelmente, a primeira imagem que vem à cabeça é a do projeto de acessibilidade, o Desenho Universal. No entanto, essa palavra abre um leque de questões relativas ao acesso, uso e vivência dos espaços, principalmente para aqueles de caráter público. A inclusão social, deve abarcar as questões relativas às particularidades sociais dos indivíduos. Sendo assim, deve-se falar sobre a inclusão observando as diversas barreiras que distanciam a sociedade de um padrão de equidade social. Diversas são as barreiras, sejam elas físicas, econômicas, culturais, de gênero, de raça/etnia, entre outras. O Brasil é historicamente um país de grandes desigualdades sociais, uma nação repleta de barreiras das mais diversas classes e que precisam urgentemente de atenção e soluções. A exclusão social é um dos maiores desafios para aqueles que acreditam em uma sociedade mais justa e igualitária. Portanto, a arquitetura também deve cumprir o seu papel social e conceber projetos destinados à inclusão social em seus mais diversos níveis. Por muito tempo, e até este momento – talvez menos do que antes, mais ainda – a arquitetura tem negligenciado a questão da inclusão social. Muitos projetos, inclusive de caráter público, não atendem necessariamente a uma qualidade desejável de inclusão. Na contemporaneidade, muito se discute sobre inclusão no aspecto físico, a acessibilidade, a inclusão de pessoas com deficiência e a qualidade dos projetos para que essas pessoas possam acessar, utilizar e se deslocar nos ambientes de forma segura, eficiente e autônoma. O desenho universal é um grande avanço e uma grande conquista por parte das pessoas com deficiência na luta por espaços mais equitativos. O conceito de pessoa com deficiência passou por algumas alterações ao longo do tempo, buscando abarcar todos aqueles que são excluídos, segregados e privados da livre participação social plena, devido às suas particularidades individuais. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto Brasileiro da Pessoa com Deficiência), Lei 13.146 de 6 de julho de 2015, é instrumento de suporte legal, que estabelece diretrizes e parâmetros que asseguram a inclusão e o respeito à dignidade 13


individual e os direitos humanos de toda pessoa com deficiência. De acordo com a Lei: Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. (BRASIL, 2015, p. 1)

A Lei 13.146 também trata sobre o conceito de acessibilidade, de forma que a Lei possa ser exercida de forma integral, declarando acessibilidade como: [...] possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida; (BRASIL, 2015, p. 2)

O Desenho Universal, no âmbito da Arquitetura e do Urbanismo, é um instrumento essencial para a promoção da inclusão plena e digna das pessoas com deficiência, uma vez que garante o respeito à dignidade da pessoa humana e promove a equidade na utilização dos espaços. Ainda de acordo com a Lei 13.146, o Desenho Universal trata-se da “[...] concepção de produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou de projeto específico, incluindo os recursos de tecnologia assistiva;”. (BRASIL, 2015, p. 2). A inclusão das pessoas com deficiência, ainda que tardia, tem tido significativos avanços, principalmente através da aplicação dos conceitos do desenho universal. Ainda assim, há muito mais a ser feito, os novos espaços acessíveis têm facilitado o deslocamento, o acesso e o uso. No entanto, na maioria dos casos, ainda não são capazes de entregar aos usuários um espaço com a mesma qualidade de experimentação, principalmente quando falamos sobre locais voltados ao lazer e à cultura. Dessa forma, os projetos de acessibilidade devem explorar ao máximo as possibilidades do espaço físico, para oferecer uma qualidade desejável de experimentação e vivência. Além da acessibilidade, a inclusão enfrenta diversas outras barreiras ainda muito pouco discutidas e muito menos enfrentadas efetivamente através da arquitetura. A inclusão das pessoas com deficiência se trata apenas da ponta de um iceberg gigantesco de entraves que impossibilitam uma arquitetura concebida realmente para todos. A exclusão social observada a partir de uma ótica expandida, abrange todas as 14


outras classes de exclusão, sejam elas a econômica, a cultural, a de gênero, a de raça/etnia, apenas para citar etc. Por essa razão, a arquitetura deve buscar soluções projetuais para cada uma das classes de exclusão, buscando superar cada uma das barreiras impostas, para que possa oferecer espaços verdadeiramente inclusivos e não apenas espaços acessíveis ao nível físico através de projetos de acessibilidade. A pergunta que fica é: como a arquitetura pode colaborar para a concepção de espaços inclusivos? A princípio, a tarefa é detectar os entraves, ou seja, quais as causas da exclusão e as barreiras existentes em cada uma das categorias.

1.1 A exclusão O Brasil é um dos países com maior grau de desigualdade social do mundo e isso se deve a diversos fatores históricos, principalmente, relacionados desde ao período da descoberta e colonização do país pelos portugueses e o genocídio dos povos indígenas até o tempo da escravidão e pós-escravidão. Desde então, fatores sociopolíticos têm promovido a manutenção da desigualdade social no país, através da exclusão social, marginalização e falta de ação política efetiva para a garantia da igualdade de oportunidade para todos da sociedade de uma forma justa e equitativa. As políticas públicas destinadas à inclusão social não têm sido suficientes para superar diversas barreiras históricas que impulsionam a desigualdade e a exclusão social e, por isso, as injustiças sociais se mantêm, dando origem à diversas outras problemáticas. A exclusão social está diretamente ligada ao desrespeito a um dos princípios fundamentais da Constituição Brasileira de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana. Esse preceito se refere ao respeito à vida humana, a tolerância às diferenças, a valorização da singularidade do indivíduo e a efetivação do direito a uma vida livre, digna e segura. Em uma sociedade, como a nossa, na qual esse princípio está presente na carta magna, mas, não é efetivado através de políticas públicas e ações políticas que garantam o cumprimento integral da lei, o seu valor e relevância se tornam ineficazes e a face da exclusão se torna cada vez mais rígida e opressiva. No Brasil, o processo de exclusão social vem se perpetuando, como dito anteriormente, em especial após o início da colonização com o genocídio indígena e 15


se agravou ainda mãos durante o processo de escravidão, que são exemplos óbvios e dolorosos da total invalidação do princípio da dignidade da pessoa humana. Com a chegada dos portugueses e o início da colonização do território que hoje se constitui o Brasil, os povos indígenas nativos foram totalmente desrespeitados, oprimidos e enganados, sendo vítimas de violência física, psicológica e moral. Tiveram suas vidas ceifadas, seus costumes destruídos, sua cultura desvalorizada e colocada em posição de subordinação. Foram inúmeras vezes obrigados física e psicologicamente a se adequarem às normas, dogmas religiosos e culturais impostos pelos portugueses e com isso, tiveram a sua dignidade totalmente dilacerada. Aqueles que não se adequaram e resistiram à opressão, perderam suas vidas e os que sobreviveram, tiveram que se contentar com a desvalorização, marginalização e exclusão. A gênese da nação brasileira está completamente associada com o surgimento da exclusão. Essa é uma afirmação forte, todavia, necessária para entender como o ser humano na busca pelo poder e o controle de seus semelhantes, é o principal vilão no surgimento e crescimento da exclusão. Posteriormente, o Brasil vivenciou outro triste momento na sua história, que elevaria a exclusão a um patamar ainda mais alto e difícil de superar. A escravidão é um dos momentos mais cruéis da história brasileira e deixou marcas socioculturais que se perpetuam no decorrer do tempo e agravou drasticamente e deixou ainda mais complexo o problema da exclusão. Novamente, a dignidade da pessoa humana foi totalmente violada. Após o “fim” da escravidão, com a aprovação da Lei Áurea em 13 de maio de 1888, absolutamente nada melhorou na vida daqueles que haviam sido escravizados durante quatro séculos. Os negros estavam em face da lei, libertos do trabalho escravo, mas, nenhuma ação política foi tomada para, principalmente, reparar todo sofrimento, maus-tratos, tortura, morte, ou seja, todo tratamento desumano em que os negros suportaram durante tantas décadas. Os negros estavam “libertos”, mas não tinha direitos, não tinham onde morar, não tinham onde trabalhar, a não ser onde sempre trabalharam e, dessa forma, muitos tiveram que se submeter novamente a um trabalho escravo “legal”, em troca de um lugar para morar e de alimento. Em quanto isso, muitos outros se viram desempregados, ainda mais marginalizados e excluídos do convívio social e sem nenhum direito. Esses são apenas dois momentos do processo de construção da sociedade brasileira que deixam evidente como a questão da exclusão é histórica e está inegavelmente 16


conectada com a busca pelo poder. A perseguição incansável pelo domínio dos povos, pela supremacia, é desumana, não respeita a dignidade individual de cada ser, não respeita sua cultura e destrói tudo aquilo que é genuíno e verdadeiramente humano. De acordo com os dados de 2019 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), as desigualdades étnico-raciais são as mais persistentes no cenário brasileiro e demonstram como práticas do passado, como a Escravidão e a marginalização e desamparo político, que veio posteriormente ao fim do período escravocrata, sustentam as desigualdades de oportunidades, direitos e de respeito à dignidade da pessoa humana. 1 (p.1). FIGURA 1 – PROPORÇÃO DA POBREZA POR COR OU RAÇA

Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-denoticias/noticias/25882-extrema-pobreza-atinge-13-5-milhoes-de-pessoas-e-chega-ao-maior-nivel-em7-anos>. Acesso em: 18 set. 2020.

Como podemos observar nos gráficos abaixo (FIGURA 2), a desigualdade afeta diversas áreas da vida da população, desde a educação, distribuição de renda e condições de moradia e o mercado de trabalho até a representação política e os índices de violência. Em 2018, a taxa de pobreza entre as pessoas pretas ou pardas era de 32,9%, enquanto da população branca era de 15,4%. Encontravam-se abaixo da linha da pobreza (renda per capita inferior a U$S 1,90 por dia), 8,8% da população

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Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf>. Acesso em: 18 set. 2020.

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preta ou parda e 3,6% da população branca. Esses dados representam em números, cerca de 52,5 milhões de brasileiros vivendo em situação de pobreza e outros 13,5 milhões em condições de extrema pobreza. FIGURA 2 - INFOGRÁFICO SOBRE AS ÁREAS AFETADAS PELA DESIGUALDADE SOCIAL

Disponível em: IBGE, idem.

Essa parcela significativa da sociedade brasileira é marginalizada, excluída e impossibilitada de desfrutar de condições de vida digna. É negado à essas pessoas o direito da igualdade de oportunidade, do respeito à dignidade da pessoa humana e à garantia da justiça social. Portanto, é preciso caminhar em direção a supressão de todos os fatores que colaboram com a manutenção das desigualdades sociais e o caminho é a inclusão, através da justiça social, da igualdade de oportunidades e do respeito à dignidade da pessoa humana. Muitos consideram e defendem a globalização como um processo mundial à favor da inclusão, mas, ao contrário do que se imagina, a globalização não diz respeito à troca democrática entre culturas, saberes e técnicas, uma vez que, como declara Carmem Lúcia Antunes Rocha (2001) em seu artigo intitulado “O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social”, a globalização nada mais é que uma luta por poder, na qual, países específicos buscam o seu domínio sobre os países considerados inferiores e, por isso, em posição de submissão. Globalização não é igual para todos os povos. Há os que determinam a globalização e os que a sofrem. Ou, dito de outra forma, há os que globalizam e os que são globalizados. Os direitos, as riquezas e as benesses de uns e de outros são diferentes, claro. Porque a globalização é processo políticoeconômico de luta por poder. (ANTUNES ROCHA, 2001, p. 59)

Entendendo a globalização como um processo que busca o poder de uns sobre outros, compreendemos também que esse movimento ocasiona a supervalorização 18


de determinadas culturas, saberes e técnicas de determinados povos ou países e, por consequência, a desvalorização, marginalização e, portanto, também a exclusão de diversas identidades culturais, saberes e técnicas. A partir desse ponto, somos capazes de constatar a complexidade que envolve o problema da exclusão e quão importante é, em vista disso, a participação interdisciplinar de diversos atores sociais das mais diferentes áreas e escalas, para a construção de sociedade que não seja condescendente com a exclusão. A Arquitetura normalmente está atrelada às condições do contexto social, político e econômico em que se encontra inserida e, por consequência disso, é inegável que historicamente os projetos de arquitetura, destinados à uma demanda sociopolítica segregadora e excludente, contribuíram negativamente na construção de barreiras que dificultam a equidade social. No contexto atual, o papel social dos profissionais da Arquitetura, tem ganhado cada vez mais destaque e

relevância nas discussões acerca da

inclusão

e

consequentemente, maior deve ser a preocupação e o cuidado no momento do projeto, que deve estar alicerçado sobre os princípios da inclusão e na correção de práticas projetuais inadequadas e criadoras de barreiras.

1.2. Arquitetura inclusiva Um dos princípios fundamentais da Arquitetura na contemporaneidade tem sido o compromisso com o seu dever social, ou seja, a importância e a capacidade que os profissionais de Arquitetura e Urbanismo têm na construção de uma sociedade mais justa e que busca a superação de diversas problemáticas relacionados à dinâmica social. A Arquitetura deve caminhar na direção de uma sociedade que busca pela equidade, através de projetos que sejam concebidos a partir do princípio da preservação da dignidade da pessoa humana, princípio este que é resguardado pela Constituição Federal Brasileira. O princípio do Desenho Universal está diretamente ligado ao conceito de Arquitetura Inclusiva, visto que tem como objetivo a superação das barreiras projetuais que culminam na exclusão social das pessoas com deficiência. 19


Normalmente, os projetos de arquitetura adaptados para o uso de pessoas com deficiência criam ambientes segregadores, uma vez que, cria-se a distinção entre espaço acessível e não-acessível, como por exemplo no caso de banheiros adaptados, que são de forma equivocada, destinados apenas às pessoas com deficiência e, no entanto, deveriam ter o seu acesso livre para todos. Em contrapartida, a proposta do Desenho Universal é a quebra da segregação espacial através de parâmetros normativos que deverão orientar os projetos em sua totalidade, ou seja, a concepção de uma arquitetura totalmente acessível. A preocupação principal do Desenho Universal trata-se da concepção de projetos de arquitetura e urbanismo que sejam totalmente acessíveis para quaisquer pessoas, independentemente de suas características pessoais. Seguindo métodos e normas técnicas de acessibilidade, o Desenho Universal, busca a humanização dos espaços.2 (CARLETTO; CAMBIAGHI, 2008). O Desenho Universal é embasado por sete princípios fundamentais, que irão garantir o êxito na construção de espaços humanizados e acessíveis em sua totalidade. Esses princípios foram estabelecidos na década de 90 por um grupo de arquitetos reunidos pelo americano Ron Mace, um arquiteto que usava cadeira de rodas e um respirador artificial, que em 1987 criou a terminologia Universal Design, ao propor a concepção de espaços acessíveis para todos.3 (CARLETTO; CAMBIAGHI, 2008). De acordo com Carletto; Cambiaghi (2008), os sete princípios do Desenho Universal são: 1. Igualitário (uso equiparável), ou seja, concepção de espaços, objetos e produtos que possibilitem o uso equitativo por todos, independentemente de suas capacidades individuais; 2. Adaptável (uso flexível), a partir da criação de espaços e objetos ajustáveis que estimulem e facilitem o uso por todos; 3. Óbvio (uso simples e intuitivo), como o próprio nome diz, que sejam de fácil compreensão, “[...] independente de sua experiência, conhecimento, habilidades de linguagem, ou nível de concentração.” (idem, p. 14); 4. Conhecido (informação de fácil percepção), que seja facilmente transmitido e compreendido por todos; 5. Seguro (tolerante ao erro), garantindo a integridade física e psicológica de qualquer indivíduo; 6. Sem esforço (baixo esforço físico), através do uso eficiente e com o mínimo esforço físico; 7.

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Disponível em:<https://www.maragabrilli.com.br/wp-content/uploads/2016/01/universal_web-1.pdf>. Acesso em: 18 set. 2020. 3 ibidem, idem.

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Abrangente (dimensão e espaço para aproximação e uso), “Que estabelece dimensões e espaços apropriados para o acesso, o alcance, a manipulação e o uso, independentemente do tamanho do corpo (obesos, anões etc.), da postura ou mobilidade do usuário (pessoas em cadeira de rodas, com carrinhos de bebê, bengalas etc)” (idem, p. 16). Através do Desenho Universal, a Arquitetura cumpre uma de suas funções sociais mais importantes, que é a inclusão e a democratização dos espaços. Especialmente no caso de projetos destinados ao uso público e coletivo, a aplicação do princípio do Desenho Universal é de grande relevância, visto que trata-se de um avanço rumo à efetivação de uma arquitetura mais humana, que respeita e valoriza as singularidades e promove a interação, a troca e o diálogo democrático entre os diferentes e com isso, coopera com a efetivação da justiça social e a reparação de erros e injustiças que durante tanto tempo foram praticadas por aqueles que deveriam por atribuição, prezar pelo bem-estar social e o respeito à dignidade humana. Seguindo os parâmetros do Desenho Universal, o primeiro passo deve ser o reconhecimento de que a problemática que envolve o tema da acessibilidade não tem a sua origem nas pessoas com deficiência, mas que, por outro lado, está associada à carência de locais providos de soluções projetuais que eliminem as barreiras que impedem a inclusão integral de todos aqueles que precisem ou desejem fazer utilizar os espaços. São diversas as barreiras que impedem e dificultam o acesso democrático e humanizado para as pessoas com deficiência a locais que elas necessitam e tem interesse de conhecer e utilizar. Conforme a Lei 13.146, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, as barreiras são classificadas como: urbanísticas, arquitetônicas, dos transportes, das comunicações e informação, atitudinais e tecnológicas. As barreiras urbanísticas são aquelas encontradas nas vias e espaços de uso público ou coletivo e que impedem ou dificultam principalmente o deslocamento dos usuários, como por exemplo, calçadas desniveladas e/ou com degraus; ausência ou aplicação incorreta de piso tátil; calçadas com passagem obstruída por objetos como lixeiras, postes de iluminação pública, mesas e cadeiras de estabelecimentos comerciais; pontos de ônibus; semáforos, entre outros. 21


De ordem arquitetônica, as barreiras estão presentes nos edifícios de uso público ou privado e que impossibilitam ou prejudicam a utilização livre, autônoma e segura desses locais. Podemos citar como exemplo a ausência de banheiros adaptados; portas estreitas; inexistência de rampas de acesso ou a existência de rampas fora dos padrões de acessibilidade; ausência de barras de apoio e corrimãos; e assim por diante. No que se refere a essas barreiras, um grande avanço tem sido a aplicação da NBR 9050, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), que traz normas e parâmetros para a execução de projetos acessíveis. Nos transportes, as barreiras são aquelas existentes nos sistemas e meios de transporte, das quais podemos citar, a ausência de rampas, elevadores ou plataformas elevatórias para auxiliar no embarque e desembarque; falta de assentos adequados para pessoas com deficiência e, em casos que seja necessário, seu acompanhante; entre outras. As barreiras nas comunicações e informação são, de acordo com a Lei 13.146, aquelas relacionadas a “[...] qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens e de informações por intermédio de sistemas de comunicação e de tecnologia da informação;” (BRASIL, 2015, p. 2) Podemos citar como exemplo, a ausência de legenda e Libras em vídeos; imagens sem texto alternativo; programas de TV sem audiodescrição, legenda e janela de libras; informações importantes sem a disponibilidade em Libras ou Braile; e assim por diante. No caso das barreiras atitudinais, a sua identificação é mais complexa, já que são impostas pelos próprios indivíduos, muitas vezes de forma disfarçada, através do preconceito e de atitudes excludentes, marginalizadoras e que geram desconforto e constrangimento às pessoas com deficiência. Trata-se da ausência de empatia, intolerância às diferenças e a postura discriminatória, muitas vezes observada na estrutura social. Por fim, as barreiras tecnológicas são aquelas, como o próprio nome diz, situadas no campo das tecnologias, tendo como exemplo, sites na internet que não são acessíveis às pessoas com deficiência, por não fornecerem alternativas que permitam ou facilitem a visualização, compreensão e utilização do seu conteúdo. 22


Além das barreiras relacionadas às pessoas com deficiência, diversas outras barreiras socioculturais influenciam na problemática da exclusão social e devem ser levadas em consideração no momento do projeto, em especial, aqueles voltados ao uso público e coletivo. Assim como no caso das barreiras relacionadas à acessibilidade para as pessoas com deficiência, podemos expandir o prisma de análise e perceber que, tais barreiras também podem compreender questões socioculturais que geram a exclusão de diversas pessoas do convívio social, sua utilização e participação de forma plena, com dignidade, respeito, liberdade e segurança. Podemos correlacionar as barreiras socioculturais, acima de tudo, com as barreiras atitudinais, sendo estas historicamente enraizadas e legitimadas por meio de um sistema social onde prevalece a valorização de determinadas classes sociais e culturais em detrimento da marginalização e exclusão de diversas outras, consideradas inferiores e, por consequência disso, desprovidas de relevância. O conceito original do Desenho Universal, destinado principalmente à superação de barreiras arquitetônicas que impediam e dificultavam a acessibilidade plena por parte das pessoas com deficiência, não se restringe apenas a essa parcela da sociedade e pode ser ampliado, buscando derrubar todas as barreiras que impedem a universalização dos espaços. Através dos princípios do Desenho Universal, é possível entender as barreiras e traçar diretrizes de projeto que solucionem as deficiências espaciais que são a causa da exclusão na arquitetura. Uma arquitetura excludente é uma arquitetura deficiente e, diferentemente da deficiência do indivíduo, que trata-se de uma característica natural e que deve ser respeitada e amparada, a deficiência espacial é algo artificial, determinada por projetos que nascem sob uma lógica social que exclui, que marginaliza e desampara todos aqueles que não se encaixam dentro de padrões e estereótipos físicos, sociais, culturais, de gênero, dentre outros. A Arquitetura muitas vezes negligencia o seu papel social e apenas cumpre com uma agenda que vai totalmente contra os preceitos da inclusão. É muito importante compreender que, ainda mais quando falamos sobre projetos de espaços de uso público e coletivo, sejam estes privados ou públicos, esses espaços estão inseridos em um mundo que é compartilhado, utilizado, vivenciado e, principalmente, construído por todos. Portanto, a partir do momento que através da Arquitetura, espaços e 23


ambientes que deveriam ser possibilitar o acesso por todos, restringe e delimita o público que terá acesso a determinado local, estamos criando muros sociais invisíveis, que estão separando as pessoas, marginalizando as minorias e destruindo a possibilidade do encontro, do contato e compartilhamento democrático entre os diferentes. Os projetos de arquitetura que verdadeiramente se preocupam com a consolidação da inclusão, devem colocar em prática a observância e execução criteriosa dos 7 princípios do Desenho Universal, assegurando a equidade, flexibilidade, facilidade, segurança e abrangência no deslocamento, uso, experimentação, compreensão e apropriação dos espaços. Ao contrário, a arquitetura não pode restringir ou dificultar o acesso e utilização por qualquer pessoa, independente de suas particularidades. Mais à frente, especificamente no capítulo 3, será discutido o tema da Arquitetura Líquida a partir de conceitos de liquidez apresentados pelo sociólogo e filósofo polonês, Zygmunt Bauman, e sua adaptação e aplicação na arquitetura pelo arquiteto, historiador e filósofo catalão, Ignasi de Solà-Morales. Será possível entender a conexão entre o conceito de inclusão em Arquitetura e como isso tem sido uma demanda pujante que cresce na contemporaneidade, em uma sociedade que busca a valorização da singularidade do ser e, não mais, uma intenção padronizadora, que tinha como pretensão estabelecer a homogeneidade. Na Arquitetura, as soluções para o problema da exclusão, estão, na identificação das barreiras que são erguidas, inúmeras vezes até mesmo involuntariamente, pelo simples fato de que um erro repetidamente cometido e validado se torna uma regra, e deixa, consequentemente, de ser reconhecido como erro. Contudo, é preciso ter um olhar criteriosamente mais humanizado, obstruindo a bolha social, cultural, racial, de gênero, entre outras, e buscar conhecer e entender as realidades alheias, para que dessa forma possa-se construir pontes para a inclusão democrática, ao contrário de muros que segregam. A liberdade é um dos direitos humanos mais poderosos e constantemente reafirmado. A liberdade de ir e vir, a liberdade de ser e se expressar, entre tantas outras. Esse direito, pelo menos na teoria, deve ser para todos. No entanto, sabemos que, lamentavelmente, muitos são destituídos desse direito por não fazerem parte de uma parcela social privilegiada, protegida e resguardada pela lei. 24


A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), apresentada pela ONU (Organização das Nações Unidas) em 10 de dezembro de 1948, declara a liberdade e o respeito à dignidade da pessoa humana como direitos fundamentais que devem envolver todas as pessoas. Artigo I Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. Artigo II 1 - Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. 4 (p. 4-5)

A observância e o cumprimento dos preceitos apresentados pela DUDH, é um movimento no sentido da inclusão, pois valoriza a identidade particular do indivíduo e estabelece a liberdade do ser como algo primordial e a garantia dos seus direitos como fundamento para a promoção da igualdade. Toda pessoa é livre, merece respeito e tem direito à uma vida digna e em igualdade de direitos e oportunidades, independentemente de sua cor, raça, etnia, religião, cultura, gênero, orientação sexual, posicionamento político, entre outros. No próximo capítulo será abordado o tema da Cultura e o papel da Arquitetura na quebra de barreiras que impedem a inclusão cultural. Da mesma forma que acontece com a exclusão social, as desigualdades culturais também fazem parte da nossa realidade e são sustentadas pela valorização de determinadas identidades culturais em detrimento da desvalorização, marginalização e exclusão de outras. Os projetos de arquitetura de caráter público e coletivo voltados à área cultural, devem contribuir também com a inclusão por meio de projetos que estimulem o diálogo democrático e o respeito às diversas identidades culturais, principalmente em tempos de profundas e intensas metamorfoses socioculturais. Os projetos de arquitetura devem estar alinhados com os princípios da inclusão através da valorização da liberdade, do respeito à dignidade da pessoa humana e do

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Disponível em:<https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf>. Acesso em: 16 set. 2020.

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reconhecimento da multiplicidade identitária da sociedade e como isso impacta nos projetos, em especial aqueles destinados ao uso público e coletivo.

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2. Cultura

Diversas são as vertentes que estudam e definem o termo ‘cultura’ a partir de óticas diferentes; entretanto, uma das definições mais difundidas sobre cultura, a trata como um instrumento de mediação das relações humanas, ou seja, tem um papel significativo na forma com que as sociedades se moldam e se transformam ao longo do tempo. Acerca disso, podemos levantar o seguinte questionamento: a cultura molda a sociedade ou a sociedade é quem molda a cultura? De acordo com Zygmunt Bauman em seu livro “A cultura no mundo líquido moderno” (2013), originalmente, o conceito de cultura apresentava-se como um agente transformador da realidade, que tinha a função primordial de moldar o corpo social e corrigir as suas falhas e limitações, para que com isso se formasse uma nova sociedade culturalmente evoluída no futuro. No decorrer da história, após cumprir o seu papel missionário, a cultura entrou no estado “homeostático”, no qual, a sua principal missão era manter a ordem das coisas, a harmonia social dentro dos padrões estabelecidos em seu primeiro momento. Por fim, na contemporaneidade, a cultura encontra-se, assim como a sociedade, no seu estado líquido, não sendo, portanto, capaz de manter a ordem, a harmonia e a manutenção dos padrões anteriormente estabelecidos, uma vez que vivenciamos dia após dia a quebra sucessiva dos padrões estabelecidos outrora. Em suma, a “cultura” foi transformada de estimulante em tranquilizante; de arsenal de uma revolução moderna em repositório para a conservação de produtos. “Cultura” tornou-se o nome de funções atribuídas a estabilizadores, homeostatos ou giroscópios. (BAUMAN, 2013, p. 15)

A cultura transforma e é transformada, simultaneamente, à metamorfose da sociedade, ou seja, ela está completamente conectada ao corpo social; depende dele para atuar sobre ele próprio e, a partir do momento que reconfigura o ser social, este também reconfigura a sua finalidade. Na ocasião que uma nova sociedade surge, transmutada pela cultura, com novos padrões e novas ambições a serem alcançadas, faz-se necessário uma nova cultura que corresponda aos objetivos dessa nova sociedade. Com isso, pode-se concluir que há uma troca contínua e recíproca entre o 27


corpo social e a cultura, e assim podemos compreender que a cultura é social e a sociedade é cultural. Pode-se dizer que, em tempos líquido-modernos, a cultura (e, de modo mais particular, embora não exclusivo, sua esfera artística) é modelada para se ajustar à liberdade individual de escolha e à responsabilidade, igualmente individual, por essa escolha; e que sua função é garantir que a escolha seja e continue a ser uma necessidade e um dever inevitável da vida, enquanto a responsabilidade pela escolha e suas consequências permaneçam onde foram colocadas pela condição humana líquido-moderna – sobre os ombros do indivíduo, agora nomeado para a posição de gerente principal da “política de vida”, e seu único chefe executivo. (BAUMAN, 2013, p. 17)

Como apontado por Bauman (idem), vivemos tempos de valorização da individualidade e, com isso, surge a necessidade da cultura de corresponder a uma demanda crescente e fluida de manifestações culturais múltiplas. Não pertence mais à cultura a missão de ordenar a sociedade e indicar os caminhos, mas, pelo contrário, a sua função agora é se moldar constantemente à sociedade e seguir o fluxo líquido determinado pelo caráter efêmero da contemporaneidade.

2.1. O conceito de cultura Bem como citado no início deste capítulo, o conceito de cultura é definido de diversas maneiras diferentes ou até mesmo antagônicas; entretanto, não é o propósito e nem cabe nesse momento algum debate sobre qual conceito é mais adequado ou não, sendo necessário simplesmente a indicação de qual vertente melhor se adequa à abordagem que será desenvolvida no âmbito deste trabalho. A ideia é que seja costurado um raciocínio através do vínculo entre arquitetura e cultura e, portanto, é indispensável que o conceito empregado seja aquele mais próximo do campo de atuação da arquitetura, ou seja, que esteja direcionado para a relação dos seres humanos entre si, com o espaço e no espaço através do tempo. Sendo assim, é necessário fazer a conexão entre cultura e história, entendendo a relação que uma tem sobre a outra dentro sociedade e o papel que a arquitetura desempenha nesse meio. Em “Convite à Filosofia” (2000), Marilena Chauí trata sobre as diversas perspectivas em que o termo “cultura” é abordado e analisa como as definições foram se transformando no decorrer do tempo e conclui fazendo a amarração entre cultura e história:

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[...] Cultura passou a significar, em primeiro lugar, as obras humanas que se exprimem numa civilização, mas, em segundo lugar, passou a significar a relação que os humanos, socialmente organizados, estabelecem com o tempo e com o espaço, com os outros humanos e com a Natureza, relações que se transformam e variam. Agora, Cultura torna-se sinônimo de História. A Natureza é o reino da repetição; a Cultura, o da transformação racional; portanto, é a relação dos humanos com o tempo e no tempo. 5 (CHAUI, 2000, p. 373)

Segundo Chauí (idem), em uma definição mais abreviada, cultura trata-se da esfera onde ocorrem, ao longo do tempo, transformações sociais conduzidas de forma lógica. Essa definição é o resultado de como a sociedade passou a enxergar a cultura a partir de diversas alterações sociais, política e econômicas, que ocorreram na estrutura social no decorrer da história. Seguindo essa linha de pensamento, compreendendo a cultura como algo construído através do vínculo entre o indivíduo, o espaço e o tempo, torna-se mais simples entender como a arquitetura está totalmente atrelada à cultura, uma vez que, a arquitetura se trata da concepção de espaços construídos, feitos por e para indivíduos, seguindo estilos, normas, padrões e demandas do período em que está inserida. Isso faz com que os projetos de arquitetura sejam reflexos da cultura de uma sociedade, tornando-se assim, objetos que dotados de história. Os objetos arquitetônicos refletem a cultura da sociedade, o modo de vida dos indivíduos, suas demandas e os padrões da época; no entanto, é importante ressaltar que a arquitetura foi e, por muitas vezes, ainda é algo elitizado. A sua produção no transcorrer da história é algo que deve ser analisada cuidadosamente para que não ocorra o equívoco de considerar a história contada através do espaço arquitetônico como o reflexo genuíno do contexto histórico em que foi construído, visto que, em geral, apenas aquelas culturas elitizadas e privilegiadas eram reproduzidas por meio da arquitetura. A pluralidade cultural sempre existiu, apesar de que durante muito tempo ela foi negada e colocada à margem das discussões sociais, em prol de um projeto de poder que buscava a homogeneidade como ferramenta de controle social e por isso reprimiam e marginalizam todas as identidades e expressões culturais existentes que resistiam ao domínio de uma cultura universal. No próximo tópico, será tratado sobre

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Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/533894/mod_resource/content/1/ENP_155/Referencias/Con vitea-Filosofia.pdf>. Acesso em: 29 set. 2020.

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a questão do pluralismo cultural, assunto que tem ganhado cada vez mais espaço na sociedade e que é um fator primordial para que se possa colocar em prática o princípio da inclusão cultural.

2.2. Pluralismo cultural Todas

as

expressões

culturais

devem

ser

valorizadas

e

respeitadas

independentemente de sua origem. Principalmente no contexto da globalização, como já foi discutido anteriormente, no qual existe uma dinâmica de valorização daqueles que conduzem o processo, em contrapartida do desprestígio e inferiorização daqueles que estão sendo conduzidos, é de extrema importância a prática de ações que busquem contornar os obstáculos e derrubar as muralhas que separam às minorias mandantes e seu sistema “colonizador” do restante heterogêneo do mundo. É preciso compreender, culturalmente falando, que habitamos um mundo de diversidades que está num movimento ininterrupto de metamorfoses e, que essas transformações criam novas dinâmicas sociais constantemente, dando origem à novas formas de identidade e expressão cultural, que são resultado do vínculo entre a sociedade e as circunstâncias políticas, econômicas e históricas em que estão incluídas, como afirma Chauí em “Convite à Filosofia” (2000). [...] os seres humanos variam em consequência das condições sociais, econômicas, políticas, históricas em que vivem. Veríamos que somos seres cuja ação determina o modo de ser, agir e pensar e que a ideia de um gênero humano natural e de espécies humanas naturais não possui fundamento na realidade.6 (CHAUI, 2000, p. 369)

O Brasil é um dos países mais heterogêneos do mundo, em termos étnico-raciais, devido à grande miscigenação que ocorreu no nosso território devido ao período escravocrata e a imigração de povos de diversas regiões do globo. Em consequência disso, houve inevitavelmente um hibridismo cultural, a partir da fusão de identidades e expressões de matrizes culturais distintas, originando novos modelos de cultura. Esse processo tem se intensificado cada vez mais, principalmente como resultado do dinamismo da era da informação, com a facilidade e rapidez no diálogo e na troca de

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ibidem, idem.

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conhecimentos. Obviamente, devido à grande e persistente desigualdade social do país, essa dinamicidade não contempla de forma equitativa a todos. Esse hibridismo cultural acentua progressivamente o pluralismo cultural não somente no Brasil, como no mundo inteiro. A globalização colabora com a integração cultural entre os países, no entanto, é necessário compreender que esse processo também tem o seu lado negativo, considerando que faz parte de um sistema que busca o poder e a supremacia de determinadas nações sobre outras. Por consequência disso, ocorre, em diversos momentos, métodos de introdução manipulada de culturas específicas, com a finalidade de que estas se sobreponham e dominem a sociedade. A diversidade cultural é inegavelmente enriquecedora e deve ser valorizada, todas as identidades e expressões culturais precisam ter sua importância reconhecida, para que desse modo possa existir um diálogo democrático e a troca e integração voluntária entre as culturas, sem a imposição e supervalorização de umas e a marginalização de outras. Esse processo de inclusão cultural deve caminhar em paralelo à inclusão social, com a quebra das barreiras que impedem o acesso universal aos equipamentos culturais e a democratização desses espaços, que devem ser considerados dispositivos impulsionadores da inclusão.

2.3. Inclusão cultural A partir do momento em que a pluralidade cultural é reconhecida e legitimada, é fundamental a prática de ações inclusivas que darão suporte para a o respeito e valorização equitativa das diversas culturas presentes na sociedade. É imprescindível que cada agrupamento social que se identifique e pertença a determinada cultura sinta-se seguro, respeitado e valorizado, para que, desse modo, as diversas culturas possam interagir e dialogar democraticamente entre si, enriquecendo a experiência social e cultural. Se determinadas culturas são marginalizadas e desvalorizadas, os indivíduos pertencentes a elas não se sentirão seguros, respeitados e valorizados e, consequentemente, cria-se um bloqueio que impede e dificulta a existência de uma relação harmoniosa entre as diferentes culturas. Isso acontece frequentemente, por exemplo, com a imposição político-midiática de culturas globalizadas sobre sociedades heterogêneas sem se preocupar com as particularidades dos indivíduos 31


que compõem aqueles meios sociais, sem enxergar que, na maioria das vezes, as culturas locais precisam e cobiçam o seu reconhecimento. Infelizmente, Constantemente, essas culturas são sufocadas, escondidas e suprimidas, dando lugar a uma cultura globalizada, fruto de uma “colonização moderna”, que faz parte da busca de potências mundiais por cada vez mais poder e controle no planeta. Tal como citado no capítulo anterior, o processo de globalização deixa de ser justo a partir do momento em que se cria uma estrutura hierárquica de poder onde existem aqueles que globalizam e aqueles que são globalizados. Portanto, a globalização tal como é, é uma barreira para inclusão cultural, assim como também é para outras problemáticas sociais, políticas e econômicas; uma vez que cria uma estrutura de supervalorização das culturas dos países globalizadores e a consequente desvalorização das identidades e expressões culturais daqueles que são globalizados. A inclusão cultural, assim como a social, parte do princípio inicial do reconhecimento das barreiras e a imediata ação para que esses obstáculos sejam superados. A marginalização, desvalorização e imposição cultural são as principais barreiras que impedem o florescimento de culturas muitas vezes nem tão novas, mas desconhecidas, e que, além de impedir que essas identidades e expressões sejam conhecidas e reconhecidas, também dificulta e impossibilita que haja o diálogo intercultural. Através de projetos de arquitetura alinhados com os princípios de respeito e valorização da pluralidade cultural, é possível desmantelar esse quadro de exclusão e marginalização de culturas inconvenientemente colocadas em posição de inferioridade e, consequentemente, segregadas e omitidas do conhecimento social. É imprescindível dar visibilidade, representatividade, voz e espaço para que todos os indivíduos possam se inter relacionar democraticamente através de suas identidades e expressões culturais de forma natural, livre e espontânea, e isso só é possível com a derrubada de barreiras de preconceito e hierarquia cultural. Todas as culturas devem ser valorizadas e representadas de forma equitativa, para que nenhum indivíduo se sinta ameaçado ou coagido em função de sua identidade cultural, ocasionando ainda mais a segregação e a construção de muros invisíveis que impedem a inclusão cultural.

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Os projetos equipamentos culturais voltados ao uso público e coletivo devem ter atenção primordial às identidades culturais dos habitantes da região em que o projeto será inserido e seus potenciais usuários. Para entender qual é a demanda cultural básica daquela comunidade é necessário que não se estabeleça uma condição de exclusividade e bloqueio à culturas diferentes, pelo contrário, é de extrema importância que esses espaços sejam concebidos de modo que deem abertura e favoreçam o encontro natural e legítimo da diversidade. Um projeto de caráter cultural e inclusivo deve se atentar às questões de acessibilidade, por meio da aplicação de princípios do Desenho Universal, que além de derrubar as barreiras físicas de acesso, deslocamento e uso desses espaços, da mesma forma, é um instrumento capaz de superar barreiras atitudinais, que incluem o preconceito, a indiferença e a segregação de minorias ou pessoas que não se encaixam nos parâmetros pré-estabelecidos.

2.4. Cultura líquida A cultura pode se apresentar como o reflexo da sociedade, sendo de forma síncrona um instrumento transformador e transformável. Uma vez que a sociedade é transfigurada, surgem novas identidades, expressões, conceitos e interesses que geram novas demandas sociais, que são agrupadas, dando origem a uma nova manifestação de cultura. Vivenciamos o tempo do transitório, do efêmero, onde o propósito principal não é mais a manutenção dos padrões vigentes, por mais que estes ainda existam e sejam defendidos por muitos. Na contemporaneidade, é gradativamente mais perceptível o caráter efêmero das coisas, resultado de diversos fatores de ordens sociais, políticas, econômicas, entre outras; trata-se de um contexto que está em constante transformação e é necessário compreender essa realidade para que se possa atuar de forma coerente com as reivindicações sociais dessa nova era. O conceito de cultura líquida, que será abordado neste tópico, está alinhado com os preceitos apontados por Zygmunt Bauman a respeito da "modernidade líquida" e o impacto que isso tem sobre a cultura. Antes de se aprofundar sobre a liquidez no meio cultural, é preciso entender, a princípio, o conceito de "modernidade líquida", que, 33


segundo Bauman (2001), refere-se exatamente à natureza fluida e mutável que os desdobramentos da modernidade trouxeram para a contemporaneidade. De acordo com Bauman (idem), o movimento de “derretimento dos sólidos” que ocorreu na modernidade, não tinha como intenção criar uma nova era líquida. Na verdade, o desejo era de romper com as tradições sólidas e em decadência, para assim criar uma nova era de solidez; desta feita, uma solidez que deveria perdurar ao longo do tempo sem se tornar ultrapassada. Tratava-se de sair de uma caixa considerada obsoleta e encontrar uma nova caixa apropriada e se adequar às regras estabelecidas por ela. Os tempos modernos encontraram os sólidos pré-modernos em estado avançado de desintegração; e um dos motivos mais fortes por trás da urgência em derretê-los era o desejo de, por uma vez, descobrir ou inventar sólidos de solidez duradoura, solidez em que se pudesse confiar e que tornaria o mundo previsível e, portanto, administrável. (BAUMAN, 2001, p. 10)

No entanto, a busca por uma solidez que fosse duradoura foi derrotada pelo apogeu de uma liquidez verdadeiramente flexível, mutável e atemporal, que rompeu com os padrões do passado e fugiu dos padrões no presente. Se durante o período da modernidade sólida, as coisas eram feitas para durar e a intenção era criar padrões e modelos que fossem perpetuados, isso reflete e também é reflexo da cultura da época, essencialmente aquela cultura privilegiada e imposta por aqueles que detinham certo controle sobre a sociedade. Consequentemente, essa cultura tinha como principal missão uniformizar e manter os indivíduos dentro de um padrão cultural considerado superior e irrefutável. Todavia, é impossível, dentro de uma estrutura social de identidades e expressões culturais tão complexas e diversas, impor um modelo equalizador de cultura, pois, a própria ação de imposição gera conflitos e rejeição, contribuindo de forma negativa com a criação de barreiras que separam e prejudicam o diálogo democrático entre os diferentes. Partindo dos conceitos elucidados por Bauman (2013), enxergar a fluidez e mutabilidade no campo da cultura é importante também para a discussão sobre a inclusão cultural, visto que é necessário compreender que, para ser coeso e estar em harmonia com as reivindicações culturais que o contexto em que vivemos nos exige, torna-se crucial legitimar que todas as culturas, expressões e identidades culturais fazem parte de forma equitativa de um todo heterogêneo, que está incessantemente em contato, fundição e mistura, num estado líquido, permitindo que a todo momento a realidade seja transformada. 34


Ainda segundo Bauman (idem), a fluidez cultural está relacionada com o fato de que os indivíduos têm tido cada vez mais liberdade na construção de sua própria identidade, e essa construção identitária não é algo necessariamente durável, podendo ser temporária e mutável de acordo com o querer genuinamente individual do ser humano. Pode-se dizer que, em tempos líquido-modernos, a cultura (e, de modo mais particular, embora não exclusivo, sua esfera artística) é modelada para se ajustar à liberdade individual de escolha e à responsabilidade, igualmente individual, por essa escolha; e que sua função é garantir que a escolha seja e continue a ser uma necessidade e um dever inevitável da vida, enquanto a responsabilidade pela escolha e suas consequências permaneçam onde foram colocadas pela condição humana líquido-moderna – sobre os ombros do indivíduo, agora nomeado para a posição de gerente principal da “política de vida”, e seu único chefe executivo. (ibidem, p. 17)

A força da individualidade e o esforço na luta pelo respeito ao caráter singular do ser humano é uma das características primordiais do contexto da modernidade líquida, impactando diretamente na forma como a cultura é entendida e o que se espera dela. A cultura já foi um molde social, um instrumento mantenedor de padrões e agora se encontra na sua fase líquida em que não se mostra mais em uma posição de instrumento gerenciador, e sim, de objeto gerenciável que tem a função de se adequar constantemente aos interesses das mais heterogêneas, híbridas e efêmeras pretensões sociais. A nossa é uma sociedade de consumidores, em que a cultura, em comum com o resto do mundo por eles vivenciado, se manifesta como arsenal de artigos destinados ao consumo, todos competindo pela atenção, insustentavelmente passageira e distraída, dos potenciais clientes, todos tentando prender essa atenção por um período maior que a duração de uma piscadela. (ibidem, p. 18)

Após entender a complexidade do contexto líquido e o consequente impacto que isso tem na vida e na forma com as pessoas vivem e convivem entre si, seus anseios e expectativas transitórios, é impossível negar o efeito disso na arquitetura, especialmente nos equipamentos culturais ou quaisquer outros de caráter público e coletivo. Esses lugares de fluxo, contato e encontro enérgico e constante de pessoas das mais variadas esferas sociais e culturais, pode estabelecer relações interpessoais harmoniosas ou conflituosas de acordo com os aspectos favorecidos pela dinâmica espacial. É desejável e, portanto, deve haver um esforço interdisciplinar para que estes espaços promovam uma relação harmoniosa e equitativa, através do diálogo democrático, da 35


representatividade e valorização de todas as culturas. Dessa forma, poderá haver a troca genuína e uma miscigenação cultural legítima, que acontece de forma natural, sem a interferência de poderes ocultos que controlam e administram a maneira como as coisas devem acontecer. Para que as culturas díspares sintam-se livres e seguras para irem ao encontro umas das outras, é necessário a concepção de espaços que proporcionem e assegurem esse encontro. Esses lugares de entrelaçamento cultural precisam ser concebidos a partir do princípio da liquidez, possibilitando a fluidez, a flexibilidade e a temporalidade dos acontecimentos e refletindo isso no espaço construído, que não deve ser rígido e estável, mas, ao contrário disso, flexível e moldável. Esses aspectos espaciais no contexto da liquidez serão discutidos mais profundamente no próximo capítulo, no qual será abordado sobre o papel da arquitetura nesse cenário fluido e inconstante.

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3. Arquitetura líquida

Partindo dos conceitos apresentados por Zygmunt Bauman acerca da modernidade líquida (2001), pode-se traçar um paralelo com o campo da arquitetura e como ela se insere no contexto da liquidez dos tempos atuais. Estamos vivendo na era da informação, cada vez mais ágil e ilimitada, e isso tem grande impacto social, uma vez que influencia na forma como as pessoas se relacionam e como a sociedade se organiza. A pós-modernidade é líquida, para Bauman, porque vem diluindo os sólidos − as grandes instituições como a família e a religião, as antigas relações sociais e de trabalho, as ordens econômicas e as grandes utopias − e dotando a sociedade atual de grande mobilidade, fluindo através das fronteiras geográficas de forma incontida. Em seu dinamismo, a sociedade atual vive um processo de contínua e acelerada transformação. Diferentemente da sociedade moderna anterior, a que ele chama de modernidade sólida, e que também estava sempre a desmontar a realidade herdada, a sociedade contemporânea não o faz com uma perspectiva de longa duração, com a intenção de torná-la melhor e novamente sólida. Hoje, tudo está sendo permanentemente desmontado, mas sem perspectiva de permanência. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades autoevidentes. Tudo é temporário. Assim como o líquido, a sociedade atual se caracteriza pela incapacidade de manter a forma. Aos poucos, o peso moderno deu lugar à liquidez, e a durabilidade deu lugar à efemeridade.7 (CRUZ JR; GRILLO, 2010, p. 178)

Entendendo a complexidade da realidade líquida em que estamos inseridos, o papel da arquitetura é responder, de forma coerente, o contexto social e conceber ‘espaços líquidos’, ou seja, espaços que consigam atender à adaptabilidade, temporalidade e velocidade

das

transformações

que

são

impostas

pela

sociedade

na

contemporaneidade. A arquitetura deve ser passível de adaptações, as quais podem ser facilitadas através de projetos flexíveis, que permitam uma fácil e adequada remodelação, reapropriação e reinterpretação dos espaços através do tempo e das consequentes transformações das identidades e necessidades do indivíduo. Bem como exposto no capítulo anterior, durante o período sólido da modernidade, como apontado por Bauman em “Modernidade Líquida” (2001), a ideologia girava em 7

Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/Arquiteturaeurbanismo/article/download/7992/6963>. Acesso em: 20 out. 2020.

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torno da consolidação de padrões sólidos e aprimorados o suficiente para serem perpetuados. Consequentemente, esses preceitos eram assimilados e manifestados através da produção arquitetônica, por meio de projetos que buscavam a concepção de um modelo arquitetônico padronizado, contudo, essa era da solidez na arquitetura deve ser deixada no passado para que os novos espaços sejam verdadeiramente democráticos e universalizados. A realidade em que estamos inseridos nos leva a refletir se ainda convém uma arquitetura que reproduza espaços rígidos, inflexíveis e que não sejam facilmente ressignificados ao longo de sua vida. Uma arquitetura líquida deve ser necessariamente uma arquitetura inclusiva. No contexto da modernidade sólida, o papel da arquitetura era criar um padrão que deveria ser replicado e no qual o indivíduo deveria se adaptar aos espaços. No contexto atual, da liquidez, não é mais o indivíduo que deve se adequar para se inserir no espaço, por outro lado, é o espaço que deve ser líquido para que possa englobar todos os indivíduos em suas mais variáveis individualidades. Estamos vivendo tempos de constante e crescente quebra de paradigmas do passado e, constantemente, que dão espaço a novas e infinitas singularidades. Para responder de forma coerente a essa nova realidade, a arquitetura deve se desprender dos moldes do passado e buscar novas formas de se projetar espaços que não mais são concebidos dentro do conceito da modernidade sólida , de espaços que moldam o indivíduo, mas sim de espaços que são flexíveis para apropriação e transformação pelo usuário. A Arquitetura Moderna respondia, de forma coerente, o pensamento uniformizador de sua época e, desta mesma forma, a arquitetura contemporânea deve atender às demandas do tempo em que está inserida, sendo, portanto, uma arquitetura líquida, ou seja, uma arquitetura que respeita e valoriza a singularidade em detrimento da padronização, que busca o respeito à diversidade e o diálogo saudável entre os diferentes. A arquitetura deve ser líquida para ser universal, democrática e equitativa.

3.1. Arquitetura adaptável Quando se fala em arquitetura líquida, a adaptabilidade é um dos fatores mais importantes, uma vez que, é através dela que os projetos devem garantir a fluidez e a ressignificação dos espaços, que devem ser flexíveis o suficiente para que seu uso e 38


apropriação caminhe paralelamente com as demandas sociais e, crescentemente, particulares e temporárias, dos indivíduos que poderão utilizar o espaço. Pensando no contexto da liquidez, no qual a temporalidade é um dos maiores e principais símbolos, a concepção de espaços adaptáveis é de importância primordial, e essa flexibilidade deve estar conectada diretamente com o corpo social, visto que, é a sociedade quem irá determinar tais adaptações. A sociedade está em constante metamorfose, de forma gradativamente mais acelerada e complexa e, por isso, é necessário perceber que uma demanda arquitetônica da atualidade, que atende às necessidades e interesses sociais atuais, poderá e provavelmente não será a demanda de tempos futuros e, sabendo da velocidade das mudanças e do apogeu da temporalidade, esse futuro pode nem estar tão distante. O arquiteto e filósofo catalão Ignasi de Solà-Morales foi um dos principais defensores e propagadores do conceito de arquitetura líquida e firmou o tempo como fator primordial, que é o agente no processo de liquidez na dimensão arquitetônica. Para Solà-Morales, o princípio de arquitetura líquida não está vinculado estritamente à desmaterialização formal, até porque a materialidade é algo inerente ao espaço construído que configura o objeto arquitetônico. Ele considera que a arquitetura deve ordenar movimento e duração, e não mais dar forma e conformação ao espaço; deve trabalhar a mudança ao invés da estabilidade, assimilando assim a fluidez que existe na realidade, libertando-se da condição de permanência.8 (CRUZ JR; GRILLO, 2010, p.182)

De acordo com Solà-Morales (1977), criar uma arquitetura líquida significa conceber espaços que promovam a fluidez do fluxo e uma nova forma de se experienciar os espaços que não seja puramente estética e estática. Em tempos de efemeridade e fluidez é importante que a arquitetura se liberte do caráter de estabilidade e modulação espacial e converta sua prática para o desenvolvimento de espaços flexíveis e que se configuram e reconfiguram de acordo com a dinâmica social através do tempo. Uma arquitetura líquida, fluida, não é voltada para a representação ou o espetáculo. Uma arquitetura que abarque fluxos humanos em conexões de tráfego, aeroportos, terminais, estações de trens não pode se preocupar com aparência ou imagem. Tornar-se fluxo significa manipular a contingência dos eventos, estabelecendo estratégias para a distribuição de indivíduos, bens ou informação. Produzir formas para a experiência do fluido e torná-las disponíveis para análise, experimentação e projetos urbanos, ainda hoje são mais um desejo do que uma realidade alcançável. Dar forma à experiência 8

ibidem, idem.

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sinestésica do fluxo no movimento da metrópole, distanciando-se do planejamento programático puramente visual e das regulações preestabelecidas, de modo a experimentar outros acontecimentos, outras performances, é um dos desafios fundamentais da arquitetura que visa o futuro.9 (SOLÀ-MORALES, apud CRUZ JR; GRILLO, 2010, p. 183)

A sociedade em que vivemos está em constante e crescente transformação, em razão de diversas circunstâncias históricas, sociais, políticas, econômicas e culturais, por exemplo. Na arquitetura, essas transformações são manifestadas através de demandas e necessidades que alteram os programas arquitetônicos e as relações do indivíduo com o espaço. Por meio de uma arquitetura adaptável, os indivíduos têm a soberania necessária em tempos líquidos para definir a utilidade espacial de acordo com a demanda social e cultural do lugar em que o equipamento está inserido. A arquitetura pode garantir a flexibilidade através de formas, layouts, materiais, entre outros recursos, que permitam um fluxo simples, acessível e contínuo. Sara Vale Guedes (2016), caracteriza as transformações na arquitetura em três conceitos distintos correspondentes à necessidade do espaço e o modo como a arquitetura pode responder diante das diversas situações. As definições de Guedes são direcionadas à projetos residenciais, no entanto, são importantes contribuições para o entendimento da forma como a arquitetura é capaz de se adaptar às demandas sociais variáveis em diversas escalas. Ela classifica os conceitos entre: 1. Arquitetura evolutiva: que permite a expansão e a inclusão de novos usos, e é subdividida em duas definições de espaço: 1. Evolutiva (2a) – pequena habitação para uma pequena ocupação, preparada para ser melhorada, expandida ou completada com o tempo. Uma casa aberta e em processo de adaptação ao usuário. 2. Modular (2b) – espaço preparado para agregar, eliminar ou substituir módulos, ampliando ou diminuindo a área útil da habitação. A agregação pode estar desenhada no projecto inicial ou surgir das necessidades dos utilizadores.10 (GUEDES, 2016, p. 19)

2. Arquitetura flexível: [...] é o tipo de arquitectura cujos elementos se transformam, permitindo usos diferentes do mesmo espaço. Estas transformações podem ser feitas através 9

ibidem, idem. Disponível em: <https://hdl.handle.net/10216/86843>. Acesso em: 23 out. 2020.

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de elementos móveis, tais como painéis deslizantes, portas de correr, elementos giratórios ou do próprio mobiliário, que através de operações simples, ajudam a definir espaços distintos.11 (ibidem, p. 21)

3. Arquitetura adaptável: que permite a mudança de usos do espaço por meio de um layout simples e flexível. Essa categoria é dividida em dois tipos: 1. Aberta (4a) – volume espacial amplo e simples que permite a apropriação dos espaços de forma pessoal. 2. Desierarquizada (4b) – divisões com as mesmas caraterísticas espaciais, sem hierarquias e normalmente com áreas iguais, permitindo que o utilizador escolha a funcionalidade de cada espaço, com a possibilidade de o mudar a qualquer momento.12 (ibidem, p. 23)

3.2. O caráter inclusivo da arquitetura líquida O debate acerca da concepção de uma arquitetura líquida vai de encontro com o tema da inclusão, tanto social como cultural. Como mencionado no início deste capítulo, na medida que, se idealiza uma arquitetura líquida a partir dos preceitos de Bauman (2001) e Solà-Morales (1977), isso representa, inevitavelmente, a aplicação de diversos princípios de inclusão. Uma vez que o conceito de arquitetura líquida leva em consideração o papel do indivíduo dentro de sua singularidade, reforçando e alicerçando o seu direito de ser diferente, de fugir aos padrões e ser livre, uma diversidade de barreiras precisa ser quebrada para dar lugar à inclusão sociocultural. É por esse motivo que a proposição de uma arquitetura dentro dos princípios da liquidez não deve estar orientada apenas ou especialmente para o aspecto formal e, consequentemente, estético. Deve-se considerar a dimensão social, do uso e apropriação dos espaços, da relação que o lugar vai estabelecer com as pessoas, e estas entre si, através do tempo. Uma arquitetura líquida deve existir para enaltecer direitos fundamentais dos seres humanos, como a liberdade, seja ela, de ir e vir, de se expressar e de ser como se é; assegurar o respeito à dignidade da pessoa humana e a sua inerente pluralidade, promovendo uma condição democrática e equitativa de interações e diálogos entre as pessoas. É no espaço construído que configura a arquitetura, em especial nas áreas urbanas e em projetos de caráter público ou coletivo, que as relações interpessoais 11 12

ibidem, idem. Ibidem, idem.

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mais estreitas acontecem, é nesses lugares que existe, potencialmente, a possibilidade do encontro, do diálogo, da troca autêntica e livre, de ideias, ideais, saberes e culturas. Justamente pelo fato de a arquitetura ser um mecanismo pelo qual as relações humanas acontecem, a responsabilidade social se faz necessária e indispensável. Através de uma arquitetura concebida e erguida desconsiderando fatores do contexto social e cultural do local em que está inserida, direta ou indiretamente, essa arquitetura pode contribuir com a formação de barreiras materiais e imateriais que agravam a situação da exclusão. Dessa maneira, é indispensável ao profissional de arquitetura, focalizar sua atenção para os aspectos sociais e culturais, para que assim possa projetar espaços socialmente conscientes e inclusivos. A arquitetura líquida, ou seja, adaptável e transitória, se apresenta com um mecanismo inclusivo justamente por ser capaz de romper com a estabilidade uniformizada, que segmenta pessoas e culturas dentro de uma hierarquia social que privilegia alguns e marginaliza outros. Por meio dos princípios de adaptabilidade e transitoriedade, deve-se garantir também a participação de todos, conectando intimamente os ideais de inclusão e liquidez, que precisam colaborar paralelamente para a estruturação de uma sociedade mais equitativa.

3.3. Temporalidade e apropriação espacial no contexto líquido O tempo é um dos atores fundamentais no princípio de arquitetura líquida abordado por Solà-Morales (1977) e também nos conceitos de liquidez de Zygmunt Bauman (2001). No entanto, outra peça chave nessa conjuntura é o indivíduo. Principalmente quando falamos sobre identidade, que vem se tornando progressivamente mais individual e transitória, o papel do indivíduo no contexto da liquidez é complexo e ilimitado, visto que, é através dele e de sua singularidade que se consolida e amplia cada vez mais uma dinâmica social efêmera e temporária. O indivíduo tem se apoderado paulatinamente do controle de sua vida, de suas escolhas, do poder de sua individualidade e da liberdade para ser o que deseja quando e onde quiser. Tal liberdade, garante à pessoa uma diversidade infinita de possibilidades, que não são, necessariamente, definitivas ou desassociadas, 42


reforçando o caráter heterogêneo e transitório das identidades pessoais e culturais da sociedade. Diante disso, a arquitetura deve se apresentar como um instrumento de validação e valorização da heterogeneidade social, por meio de projetos que não orientem para uma uniformidade e harmonia sociocultural, mas que, por outro lado, seja espaço fluido e adaptável de encontro e movimento das mais distintas identidades e formas de expressão. Tendo em vista a força da individualidade e a fluidez identitária presentes na contemporaneidade, torna-se essencial que a arquitetura reproduza este cenário através de projetos que possibilitem uma apropriação humana flexível, que se ajusta aos seus usuários, não apenas no agora como ao longo do tempo, ao contrário de ser uma arquitetura que regula e determina tais apropriações. Os espaços arquitetônicos líquidos não podem ser inflexíveis e estáticos, pois, uma arquitetura rígida torna-se meio de uniformização e, portanto, é incoerente e incompatível com o processo de quebra de padrões do contexto líquido. Usualmente, o objeto arquitetônico é concebido para o aqui e o agora, é encaixotado dentro de parâmetros pré-determinados e estabelecidos para que se satisfaça as necessidades do momento e para um público específico. Não se leva em conta as transformações socioculturais que podem e, provavelmente irão acontecer na sociedade e o impacto que isso tem na utilidade e nas relações do indivíduo com o espaço. Sobretudo em um contexto no qual a temporalidade e a rapidez das transformações é cada vez mais acentuada, é contra a lógica, continuar a produzir uma arquitetura para o agora, como se este fosse ou devesse se perpetuar. Por isso, a arquitetura precisa se desligar de parâmetros uniformizadores e rígidos e prezar pela adaptabilidade, deixar de ser molde e torna-se moldável. Um projeto de arquitetura que possibilita a apropriação espacial, favorece e estimula a relação dos indivíduos com o lugar, cria conexões e promove a utilização do espaço com dinamismo e adaptabilidade. Essa interação do usuário com o espaço construído é significativa no campo da inclusão e de uma arquitetura líquida, pois, motiva a aproximação, o contato e a interação entre os usuários, além de reproduzir através do espaço as características dos indivíduos que o utilizam, sua heterogeneidade identitária, assim como as metamorfoses sociais que acontecem ao longo do tempo e que transparecem na forma como as pessoas interagem com o espaço.

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A apropriação humana do espaço é algo que deve ser livre, equitativo e democrático, ou seja, o projeto deve seguir diretrizes inclusivas, assegurando que todos possam utilizar e se apropriar do espaço de forma autônoma, segura e espontânea. Esses locais de apropriação devem proporcionar a inclusão sociocultural, dando espaço e visibilidade para as minorias e os marginalizados, favorecendo a quebra de barreiras atitudinais como o preconceito, que segrega e impossibilita o intercâmbio entre as mais diversas esferas sociais e culturais. Promover o ato de apropriação espacial é um dos métodos de maior relevância no contexto de uma arquitetura líquida, visto que, será através da interação do indivíduo com o espaço construído que este irá se adaptar às condicionantes sociais de seus usuários e garantir a flexibilidade e a mutabilidade, que são primordialidades de tempos de fluidez e temporalidade. No campo da psicologia, sobretudo dentro da Psicologia Ambiental13, diversos autores discorrem sobre o ato de apropriação espacial, as causas e consequências desta prática e o impacto que isso tem na relação entre os indivíduos e destes com o espaço. Para Enric Pol (1996) os indivíduos se apropriam devido à necessidade de proteger sua identidade e individualidade das intervenções externas. (ALENCAR; FREIRE, 2007). Segundo Pol (1996), a apropriação vem da necessidade de o indivíduo se diferenciar do outro, demarcando, de uma forma mais sofisticada que os outros animais, seu território, e criando, desse modo, referentes estáveis que o ajudam a orientar-se e a preservar sua identidade diante de si e dos outros. Ele exemplifica isso com o fato de as pessoas sempre tornarem seu lar diferente do encontrado.14 (p. 308)

Essa atitude do indivíduo de se apropriar para proteger sua identidade e singularidade, está relacionada, como tratamos no primeiro capítulo, com fatores sociais e culturais como por exemplo, a histórica desigualdade social e a consequente exclusão e marginalização de minorias e grupos sociais e culturais desvalorizados. A globalização também é um dos agravantes, pois se trata, de forma maquiada, da imposição de identidades culturais. Em função disso, cria-se um distanciamento e

13

Segundo Canter & Craik “é a área da psicologia que faz a junção e analisa a transação e interrelacionamento da experiência e ações humanas com aspectos pertinentes do ambiente social e físico”(MELO, 1991, p. 90). Disponível em:<http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psicousp/v2n12/a08v2n12.pdf>. Acesso em: 06 nov. 2020. 14 Disponível em: <https://periodicos.unifor.br/rmes/article/view/1587>. Acesso em: 22 out. 2020.

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aversão a tudo que é diverso, como uma forma de proteger e garantir a sobrevivência de grupos sociais e culturais. No entanto, é necessário quebrar esse paradigma, e contribuir com a aproximação e o diálogo democrático entre os diferentes, garantindo o respeito e a valorização de todos, oferecendo, através de espaços públicos e coletivos de apropriação, visibilidade e representatividade para todas as identidades e expressões culturais existentes e que podem vir a existir. O ato de se apropriar do espaço construído, além de criar uma relação afetiva do indivíduo com o lugar, possibilita, da mesma forma, o estreitamento da relação interpessoal, favorecendo o diálogo e a troca, por meio da inclusão de pessoas de distintas identidades e esferas sociais. Através da apropriação espacial o indivíduo pode expressar a sua realidade sociocultural e transmitir seus traços identitários e, consequentemente, o espaço torna-se o fio condutor que vai propiciar a comunicação entre a diversidade social e cultural manifestada pelos usuários e, além disso, vai ser o processo pelo qual o espaço irá se moldar no tempo, através da metamorfose sociocultural que o próprio espaço irá potencializar. Assim sendo, a apropriação se apresenta como um progresso no campo da inclusão e da produção de uma arquitetura líquida. A maneira como cada pessoa irá se relacionar e apropriar do espaço varia de acordo com as condicionantes sociais, econômicas, étnicas, culturais, dentre outras. Portanto, é necessário a concepção de uma arquitetura flexível e livre de barreiras físicas, que são prejudiciais e impossibilitam a inclusão plena. Desse modo, a arquitetura, para além de romper barreiras físicas e permitir a acessibilidade para todos, estará contribuindo de forma significativa com a eliminação de barreiras atitudinais, que, assim como as físicas impedem a consolidação de uma inclusão universal.

3.4. Princípios básicos para a concretização de uma arquitetura líquida De acordo com os conceitos de liquidez apresentados neste capítulo, uma arquitetura líquida deve contemplar diversos aspectos de construtivos, de uso, apropriação e de

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inclusão, que garantam a fluidez, a flexibilidade e a adaptabilidade do espaço construído. O objeto arquitetônico precisa respeitar e se moldar à paisagem de forma harmônica, adaptando a estética e o programa com as especificidades do lugar, além de estabelecer um diálogo concreto entre o exterior e o interior do equipamento, favorecendo a troca e o fluxo dinâmico e livre, de informações e pessoas. Os espaços internos devem ser desobstruídos, com divisórias flexíveis, permitindo que os ambientes sejam usados de forma livre, eficiente e coerentemente com as necessidades dos usuários, como efeito, priorizando e estimulando a apropriação humana individual e coletiva do espaço. E, acima de tudo, os princípios fundamentais do Desenho Universal devem ser aplicados para assegurar que o espaço seja acessível para todos, incentivando e encorajando a participação plural e o diálogo democrático entre a diversidade social e cultural.

3.5. Estudo de caso: Centro Comunitário Cam Thanh FIGURA 3 – FACHADA DO CENTRO COMUNITÁRIO

Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/949278/centro-comunitario-cam-thanh-1-plus-1-2architects>. Acesso em: 24 out. 2020.

O projeto do Centro Comunitário foi desenvolvido em 2015 pelo escritório “1+1>2 Architects” para a área rural de Cam Thanh, localizada no sudoeste de Hoi An, no Vietnã.

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Hoi An é uma cidade de grande potencial e tradição turística, devido à preservação de seu centro histórico e à vasta diversidade cultural que é refletida através dos variados estilos arquitetônicos que compõem sua paisagem urbana. Cam Thanh também é conhecida por sua diversidade ambiental composta de florestas de mangue, rios entrecruzados, florestas de coqueiros, trilhas de terra utilizada por ciclistas, além de pequenas vilas com casas de família, pousadas rústicas e hotéis boutique de luxo. Apesar de tudo, Cam Thanh permanece sendo uma área pobre e desvalorizada, com diversas carências que precisam ser sanadas. Esse cenário é resultado da falta de conexão com o centro histórico, o que dificulta o acesso de turistas nacionais e estrangeiros. Além do mais, a região sofre com os problemas climáticos como ondas de calor, tufões e o aumento do nível do mar. FIGURA 4 – TURISTAS PERCORRENDO UM RIO COM BARCOS A REMO EM CAM THANH

Disponível em: <https://vietnamtravel.com/15-vietnam-villages-you-should-visit/>. Acesso em: 24 out. 2020.

Com uma área de 550 m², o programa arquitetônico do centro comunitário pretende suprir as necessidades e particularidades sociais, culturais, ambientais e climáticas do lugar. O objetivo primordial do espaço é promover e fortalecer a conexão de Cam Thanh com os mais diversos grupos sociais, científicos e econômicos empenhados em conhecer e incorporar a região na rota turística de Hoi An, fazendo com que o centro comunitário se torne um lugar de participação e colaboração coletiva e um centro experimental de agricultura orgânica.

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A definição do programa de necessidades e a condição de centro comunitário só foi possível por meio de uma análise cuidadosa da realidade atual do lugar, assim como, as potencialidades futuras que podem se agregar e complementar o contexto sociocultural de Cam Thanh. Nenhum aspecto do projeto foi imposto ou inserido de forma negligente e, tudo foi pensando de forma coerente com as demandas e carências encontradas na região. FIGURA 5 – CRIANÇAS BRINCAM NO ESPAÇO INTERNO NO CENTRO COMUNITÁRIO

Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/949278/centro-comunitario-cam-thanh-1-plus-1-2architects>. Acesso em: 24 out. 2020. FIGURA 6 – ESPAÇO INTERNO

Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/949278/centro-comunitario-cam-thanh-1-plus-1-2architects>. Acesso em: 24 out. 2020.

O projeto é composto por três edificações dispostas de modo que criam um fluxo contínuo entre os ambientes e, internamente, foram implantadas divisórias flexíveis, que garantem a liberdade e o dinamismo espacial, de forma que os ambientes se adaptam de acordo com as demandas e funções temporárias. O programa prevê usos 48


diversos como reuniões, exposições, eventos, biblioteca, cursos de formação e refeitório. Na imagem a seguir (FIGURA 7), percebe-se que a planta é bastante livre e que os usos são indicados, porém, não existe nenhuma delimitação ou restrição física que impossibilite o rearranjo espacial para que este se adeque à possíveis necessidades variadas que podem surgir ao longo do tempo. Isso garante a participação do indivíduo na definição dos usos, que se trata de um elemento importante para uma arquitetura que se insere num contexto líquido. É importante destacar também a presença da natureza no projeto e como o espaço construído se coloca como uma continuidade, um caminho, que não interrompe a leitura da paisagem e o fluxo dinâmico e livre dos usuários entre a área construída e o espaço ao ar livre. O projeto se insere de forma leve e é abraçado pela natureza do entorno, dissolvendo-se em um conjunto híbrido e harmônico. FIGURA 7 – PLANTA BAIXA

Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/949278/centro-comunitario-cam-thanh-1-plus-1-2architects>. Acesso em: 24 out. 2020.

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O programa também inclui quadras abertas que contribuem com a ventilação por convecção, fazendo referência às casas antigas de Hoi An, que faziam uso desse mecanismo de ventilação natural. O espaço ainda conta com um parque infantil, horta de vegetais orgânicos e campo desportivos. Todas essas caracterísitcas do programa estimulam o uso e apropriação do espaço pela comunidade local, colaborando para a concretização de um espaço inclusivo e que agrega todos a partir de uma diversidade de usos que vai de encontro com as demandas sociais do lugar. FIGURA 8 - VISTA INTERNA

Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/949278/centro-comunitario-cam-thanh-1-plus-1-2architects>. Acesso em: 24 out. 2020.

Na imagem acima (FIGURA 8) fica clara a transparência e a relação direta do espaço interno com o espaço externo, livre e fluida, facilitando o fluxo e a leveza do ambiente, que são aspectos importantes para a concretização de uma arquitetura líquida. A seguir na (FIGURA 9) vemos uma imagem superior do centro comunitário e a relação que ele estabelece com seu entorno imediato. A arquitetura, sua escala, estética, materiais e técnicas construtivas adotadas estão em total diálogo com a paisagem do local e por isso cria uma conexão necessária com o ambiente em que está inserido. Um dos aspectos mais importante para uma arquitetura líquida é relação do objeto arquitetônico com as características do lugar e a fluidez que a arquitetura gera ao proporcionar a fusão e o entrelaçamento entre a paisagem exterior e o espaço 50


construído. Esses aspectos são evidentes no projeto a partir da presença da natureza, que invade a arquitetura, somada à estética arquitetônica que dialoga mutuamente com entorno. FIGURA 9 - VISTA SUPERIOR DO CENTRO COMUNITÁRIO E ENTORNO IMEDIATO

Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/949278/centro-comunitario-cam-thanh-1-plus-1-2architects>. Acesso em: 24 out. 2020.

Voltando aos conceitos de Guedes (2016), pode-se concluir que a arquitetura do centro comunitário permite a adaptabilidade do espaço. Dentro das classificações da autora, o equipamento se apresenta como uma arquitetura flexível e adaptável, visto que, através da planta livre, desierarquizada, do espaço simples e amplo, além dos elementos divisórios móveis, permite a transformação do layout de forma simples, proporcionando que usos diferentes sejam introduzidos no mesmo espaço de acordo com a demanda. Em suma, o projeto do Centro Comunitário de Cam Thanh dispõe de diversos recursos fundamentais para a concepção de uma arquitetura líquida, sendo assim, um exemplar que ajuda na percepção e na análise de alguns dos mecanismos que devem ser utilizados para a implementação do conceito de liquidez na arquitetura, de acordo com os princípios abordados neste capítulo.

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Considerações finais

Diante dos diversos temas abordados neste trabalho, podemos perceber o potencial e o impacto que a arquitetura pode e deve desempenhar nas esferas sociais e culturais. Através da arquitetura é possível adaptar os espaços de acordo com as características dos indivíduos que irão utilizá-los e se tratando de equipamentos socioculturais de uso público e coletivo, essa adaptação torna-se essencial para a universalização e a equidade na utilização desses espaços. Por muito tempo a arquitetura foi e, por muitas vezes, ainda é o reflexo de uma esfera social dominante, ou seja, por meio da arquitetura são reproduzidos padrões, estilos e demandas estabelecidas por uma minoria que dita as regras do jogo. No entanto, como abordado neste trabalho, percebe-se que a sociedade contemporânea, cada vez mais líquida, fluída e heterogênea, gradualmente tem diluído os sólidos, quebrado paradigmas e desprezado qualquer padronização imposta por aqueles que tentam organizar a sociedade através de uma homogeneização que facilita o seu controle. A sociedade nunca foi homogênea, as diversidades são naturais e resultado de diversos fatores sociais, culturais, econômicos, históricos, de vivência e experiências individuais, entre outros. Contudo, por muito tempo, até mesmo a cultura se apresentou como um instrumento “padronizador” de uma sociedade que tinha como ideal a solidez e a durabilidade, seja de normas, condutas, preceitos, estilos, e assim por diante. Entretanto, buscar a solidez e a durabilidade em uma sociedade completamente diversa e em constante transformação não é apropriado, ao contrário, trata-se de um grande equívoco. A arquitetura precisa ser um reflexo integral e equânime da sociedade ao invés de representar somente os interesses das classes dominantes. Em tempos de liquidez, respeitar a singularidade, dar voz e espaço às minorias e aos marginalizados, e contribuir para a inclusão de todos de forma equitativa e respeitosa é uma das funções mais admiráveis que a arquitetura pode e tem de exercer.

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A inclusão social e cultural é de extrema importância para a construção de uma sociedade mais justa, democrática e que estabelece o diálogo entre os diferentes como instrumento enriquecedor e que promove o respeito e a dignidade entre todos, independentemente de suas divergências e singularidades. Essa inclusão só é possível mediante a uma arquitetura líquida, ou seja, fluida, flexível, dinâmica, adaptável, simples, transparente, acessível, desierarquizada e apropriável. A concepção de espaços líquidos é essencial para a inclusão, visto que, os aspectos e condições que esses lugares criam, estimulam a participação de todos na construção versátil e coletiva do espaço e, consequentemente, contribui para a criação de um vínculo sentimental e identitário dos usuários, além de colaborar com a interação natural e respeitosa entre os diferentes através do diálogo e da troca de informações e saberes, estimulando assim, uma metamorfose sociocultural genuína, sem imposições e hierarquização. Como consequência da profunda diversidade social, pluralidade cultural e das metamorfoses ininterruptas que sempre fizeram parte da sociedade e que tem se acentuado

constantemente

com

a

quebra

de

diversos

paradigmas

na

contemporaneidade, torna-se ilusório pensar que a arquitetura é capaz de fazer uma leitura integral da sociedade, levando em conta cada indivíduo e suas respectivas singularidades e, a partir disso, conceber espaços que reflitam suas expectativas e demandas individuais. Por outro lado, é sim possível e desejável que os projetos arquitetônicos sejam pautados numa leitura do contexto social e cultural, mesmo que parcial, mas que, por meio da qual seja possível exprimir e reproduzir de forma condizente, através do espaço construído, as necessidades e demandas predominantes da comunidade onde será inserido e de seu público alvo primário. E, a partir de então, através da aplicação dos princípios e métodos de concepção de uma arquitetura líquida, produzir um espaço que seja flexível às transformações inevitáveis que deverá vivenciar ao longo do tempo. Transformações estas que são inerentes à nossa sociedade e que precisam acontecer para que o espaço mantenha sua importância, sua função e sua relação essencial com os indivíduos.

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Considerações acerca do contexto da região e do terreno proposto para a inserção do equipamento sociocultural e seus possíveis impactos A proposta de inserção de um equipamento sociocultural dentro dos parâmetros de arquitetura líquida, no bairro Adolpho Vireque em Juiz de Fora (MG), se faz necessária — além das necessidades do próprio lugar — em função dos diversos aspectos do contexto social, econômico e cultural da Cidade Alta, região na qual está inserido o bairro. Trata-se de uma região com características socioculturais ricas e complexas e, que ainda hoje, carece de equipamentos públicos de qualidade, principalmente destinados à cultura. FIGURA 10 - IMAGEM DE SATÉLITE DA CIDADE DE JUIZ DE FORA (MG)

Fonte: Google Images. Manipuladas pelo autor, 2020.

A Cidade Alta é um território extenso e populoso por ser uma região que abrange alguns bairros, incluindo o São Pedro, que em razão da Universidade Federal de Juiz de Fora, recebe alunos de diversas cidades, tanto do estado de Minas Gerais como de outros estados do Brasil e até mesmo pessoas de outros países. Essa diversidade social, resulta numa pluralidade identitária e cultural que demanda equipamentos e espaços apropriados que colaborem com a integração, o diálogo, a troca e o convívio harmonioso entre tantos e distintos indivíduos. O território da Cidade Alta engloba os bairros da Zona Oeste de Juiz de Fora e é uma das regiões da cidade que mais cresce de acordo com dados do IBGE (2000). De 54


acordo com os dados do Instituto, a população da região em 2010 era de 38.711 pessoas, enquanto em 2000 esse número era 32% menor, somando 29.313 habitantes. A Universidade Federal de Juiz de Fora tem grande influência no desenvolvimento e expansão da região, atraindo um grande número de alunos para os bairros adjacentes.15 Essa expansão acelerada da região deve ser analisada de forma cuidadosa, uma vez que o crescimento desordenado pode culminar em diversos problemas, em destaque para a falta de infraestrutura e equipamentos públicos adequados, assim como diversos outros problemas de ordem social. Esse é o caso da Cidade Alta que, apesar de seu desenvolvimento crescente, até hoje não dispõe de equipamentos públicos suficientes ou de qualidade para atender à demanda integral de todos os bairros que compõem a região, além da evidente desigualdade social e marginalização de alguns bairros, negligenciados pelo poder público, como é o caso do Adolpho Vireque. FIGURA 11 - IMAGEM DE SATÉLITE DA CIDADE DE JUIZ DE FORA COM A DELIMITAÇÃO DO BAIRRO ADOLPHO VIREQUE

Fonte: Google Images. Manipuladas pelo autor, 2020.

Outro aspecto importante da região trata-se da transitoriedade de boa parte de seus habitantes, composta por universitários. Essa população se renova constantemente

15

Disponível em:<https://tribunademinas.com.br/noticias/cidade/07-08-2011/cidade-alta-e-a-regiaoque-mais-cresce-em-jf.html>. Acesso em: 06 nov. 2020.

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ao longo do tempo e mantém um fluxo contínuo de relações e experiências sociais e culturais que podem ser valorizadas e impulsionadas. Incorporado aos diversos bairros que compõem a região temos o Adolpho Vireque, que é um dos bairros que mais sofre com o descaso do poder público e acumula diversos obstáculos complexos como a falta de infraestrutura urbana, equipamentos públicos, áreas recreativas, entre outros. O bairro é predominantemente residencial, e por isso depende muito da conexão com seu entorno, no entanto, essa relação é fragilizada por diversos aspectos, assim como em razão do contraste social, cultural e econômico, culminando na marginalização e exclusão social. FIGURA 12 - IMAGEM DE SATÉLITE APROXIMADA COM DESTAQUE PARA O BAIRRO ADOLPHO VIREQUE

Fonte: Google Images. Manipuladas pelo autor, 2020.

Introduzir um equipamento sociocultural no bairro é de extrema importância, pois a aquela comunidade necessita e demanda locais dessa natureza. Além disso, sendo concebido dentro dos parâmetros de inclusão social e cultural e através dos princípios de uma arquitetura líquida, esse equipamento pode ser um instrumento de valorização daquela comunidade e sua cultura e promoção da conexão com a população dos bairros do entorno, estimulando o contato e o intercâmbio sociocultural. A criação de um espaço com essa essência dentro de uma região marginalizada e carente é essencial para dar visibilidade e representatividade para a comunidade que 56


ali habita e reforça a necessidade de integração do bairro. Além disso, outro fator importante é a grande pluralidade sociocultural da Cidade Alta, devido à presença da Universidade Federal de Juiz de Fora, que atrai para a região alunos de diversas regiões do estado e do país, o que reforça ainda mais a necessidade de locais preparados para promover a integração entre as diversas identidades sociais e culturais que estão em contato constantemente na região. Como dito anteriormente, essa diversidade sociocultural da Cidade Alta se caracteriza por um aspecto muito relevante para os princípios de uma arquitetura líquida, que se trata da transitoriedade dos indivíduos, no caso dos estudantes da Universidade, que faz com que a sociedade que habita a região esteja em constantemente transformação. Essa característica amplia a relevância da concepção de um equipamento sociocultural dentro dos princípios de liquidez, ou seja, espaços flexíveis, que se adaptarão continuamente e paralelamente às mudanças determinadas pela transitoriedade de indivíduos e a consequente transformação das relações e formas de interação e apropriação espacial ao longo do tempo. Portanto, inserir um equipamento no bairro Adolpho Vireque dentro dessas premissas, deve servir para derrubar os muros invisíveis da marginalização, segregação e exclusão social e estabelecer a conexão dos moradores do bairro com o entorno através da sua valorização social e cultural e do estímulo ao diálogo democrático com a diversidade. O terreno escolhido para a implantação do equipamento cultural fica às margens da Avenida Pedro Henrique Krambeck, ao lado de um campo de futebol de propriedade privada que é utilizado eventualmente pelos moradores do bairro. Trata-se de um terreno grande, tendo aproximadamente 2.767 m² e com localização privilegiada, mas que, no entanto, não cumpre sua função social.

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FIGURA 13 - IMAGEM DE SATÉLITE DA REGIÃO DO BAIRRO ADOLPHO VIREQUE COM A DELIMITAÇÃO DO TERRENO

Fonte: Google Images. Manipuladas pelo autor, 2020.

O campo de futebol que fica ao lado do terreno não está no melhor estado de conservação e não é utilizado com frequência, de acordo com depoimentos de moradores. A construção de um equipamento sociocultural no local pode dar maior visibilidade ao campo, podendo estimular melhorias na sua infraestrutura e, inclusive, uma possível parceria com o complexo sociocultural adjacente. Diante dos diversos aspectos sociais e culturais analisados, pode-se concluir a eminente necessidade do bairro e da região de poderem dispor de um equipamento sociocultural que atenda às demandas locais. E, de acordo com os estudos abordados neste trabalho, a proposta deste equipamento deve servir como um agente da inclusão e da transformação, ao adotar métodos e princípios que viabilizem a acessibilidade universal, a valorização e visibilidade de toda diversidade social, identitária e cultural, a apropriação humana do espaços, assegurando a adaptabilidade do equipamento ao longo do tempo, além de garantir a interação e o diálogo democrático entre a grande diversidade sociocultural, que trata-se de uma característica da região e dos tempos líquidos.

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