Contruindo vinculo

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Construindo

vĂ­nculo entre

paIS E FILHOS

adotivos



Construindo

vínculo entre

paIS E FILHOS

adotivos

Maria Salete Abrão



Às minhas filhas Bel, Bia e Sil, que iluminaram minha vida; aos meus pais, que sempre me acompanharam; aos meus pacientes – Ê por eles que esse trabalho se construiu.



Agradeço, ao Helvio, companheiro de muitos projetos, que sempre me encantou com suas palavra, pela revisão cuidadosa e entusiasmada desse texto; a Bel, que com seus olhinhos vivos me ilumina, pela honra e orgulho tê-la comigo nesse projeto, elaborando a ilustração da capa; a Bia e Sil, que com doçura e graça me alimentam, por todas as ideias para a construção desse trabalho; aos meus irmãos, Biba e Antonio, pelo que me ensinaram sobre compartilhar; a Berenice Blanes, Patrícia Villas Boas, Celina Giacomelli, Maria Teresa Montserrat, Antonio Geraldo de Abreu e Ana Lucia Bastos, amigos queridos, pelas sugestões e disponibilidade nos vários passos dessa trajetória; a Maria Luisa Assis de Moura Ghirardi, Cynthia Pieter, Marcia Porto Ferreira e ao Grupo Acesso, pela ajuda que sempre me deram nesses caminhos pela adoção; a Ethel Battika e Ana Paula Gonzaga, fundamentais para que esse projeto acontecesse; à minha querida amiga Valderez Terribili, exemplo de coragem que com sua disponibilidade contribuiu para as reflexões que compõem o texto; aos meus professores do curso de Formação em Psicanálise, pelo que aprendi sobre clínica, parte essencial desse trabalho; à professora Maria Lucia Amiralian pelas orientações; e às professoras Olga Maria Pires de Camargo e Maria Aparecida Dória, mestras dos remotos tempos da minha graduação, responsáveis pela paixão que tenho pelo que faço.



PREFÁCIO

Recriando a própria história

Nascemos todos em uma condição de absoluto desamparo. Diferentemente de outros mamíferos, que parecem já nascer ‘prontos’, inauguramos nossa presença fora do útero em situação de dependência total da mãe, da família, do grupo que nos cerca. Sem tal suporte, viveríamos sozinhos apenas algumas horas. Daí a excepcional importância, para o bebê, daqueles primeiros dias, semanas, meses, primeiros anos. Trata-se de uma importância que se estende para muito além das necessidades físicas, biológicas. O seio materno supre muito mais que a fome e a sede. É o prazer mais primitivo do bebê, é seu vínculo inicial com o mundo, que ele não sabe ainda diferenciar de si próprio. Para construir uma relação equilibrada com o munto exterior e consigo próprio, esses momentos iniciais são decisivos. No entanto, basta dar uma olhada ao lado para verificar que muitos de nós não passamos bem por esse período. Não tivemos aquilo que o pediatra e psicanalista inglês, David W. Winnicott, chamava de “mãe suficientemente boa”. No entanto, não culpemos a mãe. Ela já carrega culpas demais. Além disso, é bem possível que as mães que não foram “suficientemente boas” tenham sido também, elas próprias, geradas e criadas por mães que não foram “suficientemente boas” – estabelecendo-se assim um círculo vicioso, cuja origem remonta ao começo dos tempos.


O fato importante é que a filiação biológica não garante a formação dos vínculos estruturantes entre pais e filhos. Maternidade e paternidade biológicas podem ocorrer de modo fortuito, não intencional. Geram filhos, mas não produzem necessariamente pais e mães. A biologia não garante a cultura. Neste sentido amplo, filhos biológicos precisam também ser adotados. Que sejam a mãe e o pai que o conceberam. Ou que sejam pais e mães movidos por um desejo profundo de assumir esse papel. É neste contexto que este livro pode conquistar a atenção de um universo amplo de pessoas, que inclui, certamente, pais e filhos adotivos, mas que inclui também todos aqueles que se deixam sensibilizar pelas questões envolvendo maternidade e paternidade, biológica ou adotiva. Ao voltar sua investigação para algumas das principais questões psíquicas envolvendo filhos, mães e pais que viveram a experiência da adoção, a Autora lança luz sobre temas essenciais, como o da chamada “revelação”. Para o público não especializado, que inclui, naturalmente, a ampla maioria dos que vivem a experiência de adoção, a revelação à criança da sua condição de adotivo é um momento cercado sempre de muita tensão e expectativa. Lançando mão da psicanálise como instrumento de reflexão, o livro apresenta relatos comoventes de gente que viveu essa experiência, seja como filho adotivo, seja como mãe ou pai que adota. Mais do que compartilhar a emoção e o sofrimento dessas pessoas, a Autora propõe um olhar generoso e crítico sobre o assunto. A “revelação”, para pais e filhos adotivos, tem mais força constitutiva e emocional quando for permeada de narrativas que misturam realidade e fantasia, fato e ficção, cujo amálgama é o desejo inconsciente dos pais. Mostra o livro que a história de adoção traz sempre fraturas, interrupções, rupturas. “Para legitimar essa filiação, (pais) precisam historiar em vez de rememorar”. É impossível ficar preso estritamente ao factual: vão faltar peças nesse quebra-cabeças. “Não se corrige a fratura, a ruptura produzida pela transferência de cuidados da mãe biológica para outra mãe. É preciso integrá-la, considerá-la, absorvê-la e, sobretudo, falar sobre ela.”


“Aprendizes de narradores”, os pais adotivos precisam também compreender o que há de específico na sua condição. “Pais adotivos não são iguais a pais biológicos. Não são melhores, nem piores, são diferentes. Para que a adoção transcorra bem, o imprescindível é poder lidar com a diferença.” Em uma “sociedade marcada pela estética da igualdade e da semelhança”, os pais adotivos precisam escapar dessa igualdade, propõe a Autora. “O filho adotivo precisa ser reconhecido como o outro que é, originado geneticamente por outros.” E tudo isso terá de ser feito com palavras. “Os sintomas só ocorrem se houver impossibilidade de se olhar para as diferenças, para o outro. É preciso dar espaço para que o filho adotivo veja a sua dimensão por ‘outro’. Se lhe for garantido esse espaço, ele constrói a sua história, incluindo a diferença e podendo falar sobre isso.” Quem se dedicar à leitura deste livro, terá acesso a um olhar sobre o tema da adoção fundamentado na experiência clínica e na reflexão psicanalítica, recursos poderosos para que a experiência de adoção seja cada vez mais uma vivência humana rica e profunda, capaz de gerar pais e filhos “suficientemente bons”. Trata-se, talvez, de uma expectativa ambiciosa demais. Mas sonhar é também um jeito de projetar o futuro. Boa leitura. Helvio Falleiros Jornalista



Sumário

introdução

14

1. Quatro histórias

19

A menina que não aprendia história

20

Dupla adoção

32

Não podemos, mas temos uma filha

42

Será que são nossas?

54

2. Infância, abandono e adoção

65

Roda de expostos

67

Adoção no Brasil

70

Maternidade negada

70

3. Adoção e psiquismo

76

Superar uma ruptura

76

Origens e fantasias

78

Estranhamento e adoção

82

Identificações

85

4. Esterilidade e Abandono

92

5. Elos perdidos e seus reflexos

101

6. A família adotiva: Desafios e mitos

113

Psicanálise e família

113

A família por adoção

118

A família adotiva na TV e nos meios digiTaIs

126

A adoção e o mito do herói

138

7. Dito, mal dito e não dito

146

8. Aprendizes de narradores

153

Ser pai e ser mãe por adoção

153

Criar, narrar, historiar

167

BIBLIOGRAFIA

174


IntroDução

Este livro é dedicado ao estudo da filiação por adoção e à análise das peculiaridades psíquicas envolvendo os dois principais elos desse processo – os filhos adotivos e os pais que adotam. Tão antiga quanto a história da humanidade, a adoção continua hoje a produzir desafios a quem se dedique a estudá-la. Há muitas questões que o tema suscita. Um dos desafios principais diz respeito aos valores culturais, associados à maternidade e à paternidade, que habitam o imaginário. Nele está inscrito que a mãe que gera deve ser a mesma mãe que cria. Nas situações de adoção, este elo indissolúvel é rompido. O vínculo simbólico entre pais e filhos adotivos precisa incorporar, portanto, este elemento de difícil superação. Ocorre nas adoções uma passagem, uma mudança de cuidados, mesmo que o adotado seja um recém-nascido. Característica da experiência de adoção, essa peculiaridade não tem um sentido negativo. Implica, no entanto, em um trabalho de elaboração psíquica. Pais e filhos adotivos precisam integrar a experiência vivida e as suas particularidades. Esse livro tem por base duas pesquisas, de mestrado e doutorado, realizadas no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, a partir da clínica psicanalítica. Nessas pesquisas foram estudadas as vicissitudes da adoção para a constituição da subjetivi14


dade em filhos adotivos. Outro foco foi a compreensão dos aspectos psíquicos envolvidos no estabelecimento das funções materna e paterna no processo de filiação adotiva. O interesse por esse tema surgiu da experiência clínica e educacional no atendimento a crianças e adolescentes com dificuldades de aprendizagem. Foi possível observar nesse trabalho que havia um grande número de crianças adotivas que demandava atendimento clínico, com um sintoma comum. As dificuldades em relação à aprendizagem eram manifestações sintomáticas frequentes nas situações de adoção, fato que motivou o início de meus projetos acadêmicos. Tal experiência clínica e educacional aconteceu nas Clínicas de Saúde Escolar da Prefeitura do Município de São Paulo, na supervisão de estágios de alunos de graduação de psicologia e em consultório particular. Os projetos acadêmicos que resultaram dessa experiência motivaram minha inserção no Grupo Acesso – Pesquisa, Estudo e Intervenção em Adoção, do Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo. O Grupo Acesso dedica-se, desde 1996, ao estudo, pesquisa e intervenção em questões ligadas à adoção. Realiza um trabalho abrangente em situações clínicas e institucionais, utilizando-se da psicanálise como referencial. A participação no grupo fortaleceu minha convicção de que estudar os aspectos psicodinâmicos da adoção poderia contribuir no planejamento e execução de ações psicoprofiláticas em apoio a pais e filhos adotivos. Apresento aqui quatro histórias clínicas. Duas delas são narradas segundo a perspectiva do filho adotivo. Nas outras duas, a narrativa é desenvolvida a partir do olhar dos pais adotivos. Tais histórias são exemplos dos desafios e das particularidades por que passam pais e filhos adotivos. Mostram também como os narradores encontraram recursos no trabalho terapêutico para tentar superar muitos de seus desafios. A trajetória de quem viveu a experiência de adoção apresenta, em geral, um amplo espaço de lacunas. Mãe e pai traduzem a 15


adoção para seu filho e o fazem a partir de suas histórias individuais e, também, de sua herança cultural. O imaginário individual é composto por conceitos construídos e transmitidos em sociedade. É com base nesses conceitos que pais que adotam constroem as suas histórias com seus filhos, compõem a história ancestral e escrevem os ditos familiares. Na história da humanidade, a adoção está ligada aos conceitos de infância e abandono. Faço no livro uma breve retrospectiva do estatuto da adoção e das circunstâncias envolvendo infância e abandono ao longo da história. É um passo necessário para ajudar o leitor a compreender mais ampla e profundamente as reflexões relativas aos quatro casos analisados. Para favorecer o entendimento dos casos clínicos, abordo mais detalhadamente as peculiaridades que a adoção traz para a subjetividade. Uma delas é absorver a descontinuidade que caracteriza toda a vivência de adoção. Outra é a amplitude e a importância das fantasias sobre a origem. E há ainda questões tão presentes nesses processos como as que envolvem o estranho e o estranhamento. A psicanálise é a principal referência teórica aqui utilizada para avaliar o que ocorre com a constituição subjetiva nessas situações. Quatro autores formam a base dessas reflexões – Sigmund Freud, Donald Winnicott, Silvia Bleichmar e Eva Giberti. As referências a eles estão presentes em diferentes trechos do texto. Reservo um capítulo para falar de esterilidade e abandono, elementos frequentes nas adoções, e sobre suas consequências para pais e filhos adotivos. Em outros capítulos abordo questões que aparecem com frequência nas famílias constituídas por adoção. O foco recai ali sobre noções como revelação, bondade e salvamento. Apresento por fim a ideia de que a principal tarefa de pais e filhos adotivos é a criação de uma narrativa coerente, o esforço de historiar sem ter à mão evidências factuais e achados arqueológicos. O elo perdido é um elo construído. Quando a história de 16


adoção é construída por pais e filhos como uma narrativa com elos de continuidade, cria-se uma versão possível para o sujeito, o que a torna uma história humana como qualquer outra. Esse trabalho representa um esforço para aprofundar o conhecimento sobre o tema. Um texto sempre comporta abandonos e frustrações e, aqui, não foi diferente. Trata-se de uma condição humana que se replica na adoção: jamais se conhece a história completa. Identifico-me com as palavras do historiador francês Philippe Ariès: “... A vida de todos os dias é apaixonante e quanto mais ela for cotidiana, mais é apaixonante. Talvez essa para mim seja a maneira de entrar na História. Não digo que seja o fundamental. O fundamental, como já disse, é mais o desejo de encontrar um mistério central. Mas nunca estamos diante do mistério central. Estamos no meio da rua. Então eu caminho por um mundo que é um mundo de curiosidade, que excita constantemente minha curiosidade, algumas vezes maravilhando-me: por que tal ou qual coisa?” (Trecho de entrevista concedida ao Nouvel Observateur, publicada no Brasil em Ensaios de Opinião nº02). Sou psicanalista e sonhei um dia ser historiadora, movida pelo encantamento e a curiosidade sobre a vida humana. Esse trabalho é, de certa forma, um exercício dessa curiosidade. Gostaria de convidar o leitor a dividir comigo essa aventura e compartilhar algumas descobertas. Ressalto que após anos de pesquisa considero a adoção uma história humana como qualquer outra. Desafios que podemos observar nesses casos estão presentes em muitas outras histórias de filiação biológica que comportam lacunas e não-ditos. Nas situações de adoção, quando é possível estudar as lacunas e os 17


não-ditos, cria-se uma condição privilegiada para que se possa cuidar disso. Existe a chance de um trabalho profilático e é nele basicamente que eu acredito. É com esse pensamento que publico este trabalho. Espero que esse material suscite novas reflexões e interlocuções com profissionais de diferentes áreas, ligadas aos processos de adoção, ampliando e multiplicando as possibilidades de intervenção. Confio que a ampliação dos conhecimentos sobre as peculiaridades afetivas e intersubjetivas desses processos abrirá caminho para o planejamento e a execução de ações preventivas que visem à saúde mental e ao desenvolvimento psíquico dos indivíduos.

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