O Gosto do Mercado

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Ficha catalográfica LEMES, Lisia Marcia O gosto do mercado. / Lisia Marcia Lemes. – São Paulo, 2009. 128f. il.: Color Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Apresentado ao Instituto de Ciências Sociais e Comunicação da Universidade Paulista, São Paulo, 2009. Área de Concentração: Fotojornalismo Orientação : Prof.ª Su Stathopoulos Co-Orientação : Prof.º André Carrieri; Prof.ª Denise Casatti 1. Mercado Municipal Paulistano. 2. Mercadão. 3. São Paulo. 4. Alimentos. I. Título.

Orientação: Su Stathopoulos (Fotos) e Denise Casatti (Textos) Produção Fotográfica: Lisia Lemes Colaboradores: Fred Antônio Ferreira e Dennis D. F. Arruda Projeto Gráfico e Diagramação: Lisia Lemes Revisão: Leonardo dos Santos Gomes Impressão: RR Donnelley

© Todos os direitos reservados: Lisia Lemes


Para Otávio (in memorian), que me ensinou como é gostoso viver; Para Alice (in memorian), a pessoa mais doce que já conheci; Para Inês, fruto de Alice E para Osvaldo, que se não tivesse saboreado Inês, este livro não existiria.



agradecimentos Em primeiro lugar agradeço ao Prof. André Carrieri, por todo seu conhecimento e dedicação, pois sem ele este livro seria um apanhado de fotos sem sentido e, principalmente, sem objetivo nenhum. À mais do que orientadora Su Stathopoulos, por toda sua sensibilidade fotográfica, paciência e, muitas vezes, psicóloga nos momentos mais angustiantes. A Denise Casatti, que além de corrigir alguns textos, deu dicas e me fez “observar e perceber” todos os entrevistados. Ao poeta, amigo, e conselheiro José Luiz Moreira, por sua inspiração para o nome deste livro. Ao grande amigo e fotógrafo Fred Antônio, que me ensinou técnicas e me acompanhou diversas vezes ao universo das cores e dos sabores. Ao Dennis Arruda, companheiro das madrugadas. A Fernanda Geppert, da Prefeitura de São Paulo, pelas inúmeras autorizações de entrada no Mercadão. Ao sociólogo Paulo Cesar Oliveira, pelo cuidado em descrever o que minhas imagens passavam. A Mariza Simão, uma grande incentivadora. Ao Leonardo dos Santos Gomes, pela correção e também por sua imensa paciência. E por fim, a todos os entrevistados que tanto colaboraram, todos os amigos e a minha família que me aturou e me apoiou para a realização deste projeto.


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degustação

8) Prefácio 10) Um pouco do todo 12) O Mercado 26) Curvas, ondas e brilho 38) Antes das portas se abrirem 52) Cores e Sabores 66) Se as placas falassem 80) Pessoas que ali habitam 98) Domingo tem chorinho 114) Quando as portas se fecham 128) referências bibliográficas


prefácio Sempre me interessei por fotografia e por alimentos. Coisas totalmente diferentes, mas que no fim me levaram ao mesmo lugar, pois a relação entre fotos e alimentos presente neste livro não é mero acaso. Pela alimentação, supro uma paixão muito antiga de quando ainda estudava Nutrição, um curso muito difícil e ao mesmo tempo encantador. Foi lá que descobri a máquina mais perfeita que jamais será copiada: o corpo humano. Já o gosto de fazer fotos foi motivado pelas experiências que se seguiram. Mas o destino nos prega muitas peças e quando menos esperava tive que abandonar o curso de Nutrição antes de iniciar o terceiro ano. Foi na loucura que entrei para o Jornalismo e a princípio, não tinha muita pretensão. Comecei a faculdade porque já trabalhava na área editorial, mas queria mesmo era esquecer a frustração do abandono da outra faculdade. Entretanto, nas aulas fui descobrindo coisas novas, diferentes visões da realidade das quais nunca havia me atentado. Aprendi fazer uso do olhar jornalístico, da imparcialidade, da importância de checar fontes e de como é fundamental escrever de forma clara. Porém, a descoberta do poder das lentes veio com as aulas de Fotografia e Fotojornalismo, ministradas pelo Prof. Elisandro Ascari. Foi com ele que me descobri apaixonada pelo ato de fotografar – o que até então nada tinha a ver com o interesse por fotos.

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A partir daí alguns interesses mudaram, pois os trabalhos que envolviam fotografia tornaram-se os mais prazerosos e era onde eu queria estar. Para pegar o jeito da coisa, comecei fotografando com uma máquina emprestada até adquirir a minha. Com a ajuda do Prof. Elisandro, de amigos e dos livros, fui aprendendo mais sobre técnicas e sobre o olhar fotográfico e assim criando o meu próprio estilo. Os semestres da faculdade foram passando e o tão temido trabalho de conclusão de curso se aproximava. Não sabia ainda que tema escolher, mas entre produtos como vídeo, revista, rádio, etc., já tinha uma certeza: queria um livro de fotos. Como o tema Mercadão surgiu ainda é um mistério, só sei que aquilo tomou conta de mim. No meio do caminho a fotógrafa e orientadora Su Stathopoulos apareceu, com dicas que não poderiam ser encontradas em nenhum livro. No fim, ter que fotografar um local tão cheio de vida foi a desculpa para o trabalho duro realizado no decorrer deste ano. Foram dezenas de visitas ao local, muitas delas durante a madrugada para registrar os raros e belos momentos. As entrevistas também foram extremamente interessantes. É cada história de vida... Fazendo uma análise de tudo o que se passou, o alimento voltou a mim, por meio de imagens, para acabar de vez com a antiga frustração e para a minha plena felicidade, estou contente com o resultado do livro. Outubro - 2009 9


Um pouco do todo Se os olhos são as janelas da alma, a fotografia é a

singular na busca de um raro momento. As imagens

janela do mundo, da imaginação e do pensamento. Se o

não são uma mera representação da realidade, porque,

mundo, por sua vez, fosse dentro do Mercado Municipal,

elas têm vida. Aguçam o pensamento, se prendem ao

ele teria mais cores por metro quadrado do que se pode

olhar e transmitem o reflexo de uma lembrança.

imaginar, talvez fosse mais feliz por ali estar, mas penso que tanta cor o deixaria cego e atordoado por não conseguir ver beleza em nenhum outro lugar. Um universo paralelo, certamente essa seria minha resposta se alguém pedisse uma definição para o Mercadão, pois muito além das cores, outras coisas que inebriam e hipnotiza são a infinidade de sabores e a mistura de cheiros presentes em uma atmosfera capaz de encantar até o mais amargo dos mortais. Este livro nada mais é do que um pouco do meu olhar incansável percorrendo as ruas e avenidas desse local tão 10

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Quando a palavra “lembrança” é realçada, uma pequena frase do famoso fotógrafo Robert Doisneau (19121994) traz bem seu significado em relação a uma fotografia: “Durante muito tempo pensei que precisava pôr toda a atenção em cortar do presunto do tempo fatias cada vez mais finas. Os resultados são decepcionantes. Quando a fatia não é recheada de um pouco de passado e de um bocadinho de futuro, restam sobre a transparência apenas gesticulações sem sabor”.


É desse sabor que o título do livro surgiu: O gosto do mercado. Um nome de sentidos diversos, como a palavra “gosto” que se relaciona ao prazer de fotografar um local tão cheio de vida e de alimentos. Já a palavra “mercado” relaciona-se com o local e também diz muito sobre o “mercado de trabalho” que existe nesse espaço. Porque sem as pessoas que ali estão, toda a imponência da sua arquitetura o transformaria em apenas mais um prédio bonito, porém sem vida no meio dessa metrópole tão cinza.

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o início do século XX, a cidade de São Paulo estava a pleno vapor. O fortalecimento da economia devido à maciça produção de café, o crescente processo de industrialização e a migração de trabalhadores rurais para

áreas urbanas marcaram uma época de grandes mudanças. O ritmo acelerado de expansão e o consequente aumento populacional geraram vários problemas sociais e econômicos. Um deles foi o abastecimento de alimentos, que já não atendiam mais a crescente

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demanda da população. Exemplo disso foi o antigo Mercado Municipal que funcionava próximo a Rua 25 de Março, esquina com a Ladeira General Carneiro. Seus mantimentos chegavam através de canoas e batelões às margens do rio Tamanduateí, mas devido o crescimento voraz da cidade, foi demolido em 1907 para dar lugar, anos depois, a um mercado maior e mais moderno. O Mercado Municipal Paulistano, popularmente conhecido como “Mercadão”, foi uma das propostas para atender às constantes transformações que ocorriam no contexto paulistano. O prédio começou a ser construído na Rua da Cantareira no final de 1925, com projeto elaborado pelo escritório do famoso arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851-1928), e edificado sob os cuidados do projetista italiano Felisberto Ranzini (1881-1976). Porém, as obras não foram tão aceleradas quanto o ritmo da cidade. Em 1929, a construção sofreu muitos atrasos em reflexo da crise econômica mundial, e quando o prédio estava quase pronto, abrigou um depósito de mantimentos e munições das tropas paulistas durante a chamada Revolução Constitucionalista de 1932. Finalmente, em 25 de Janeiro de 1933, ele foi inaugurado. O prédio destacava-se pela sua ampla dimensão de 12.600 m2 de estilo eclético e requintado, enquanto São Paulo contava ainda com cerca de 1 milhão 13


de habitantes. Sua organização interna, com setores divididos por ruas, identificados por letras, os boxes separados conforme o produto oferecido e os novos conceitos de higiene representavam um avanço em relação aos antigos mercados. Mas como nem tudo é só glamour, durante décadas nem mesmo sua exuberante arquitetura foi capaz de enaltecer toda sua importância histórica, arquitetônica e turística. Na década de 60, com a criação de seu então maior concorrente, o CEASA – Centro de Abastecimento de São Paulo – no bairro do Jaguaré, a importância do Mercadão foi abalada e, em 1973, esteve prestes a ser demolido, por não atingir mais as normas de segurança e principalmente de higiene. Sua importância histórico-cultural só voltou a ter reconhecimento após o tombamento do prédio pelo Patrimônio Histórico Estadual e Municipal em 2004 e graças a investimentos de US$ 100 milhões financiados pelo Banco Internacional de Desenvolvimento (BID) e de outros US$ 60 milhões da Prefeitura de São Paulo, utilizados para a revitalização da área central da cidade. Com o recurso financeiro foi possível realizar entre 2003 e 2004 uma ampla melhoria. A reforma foi um sucesso. Um mezanino de 2.000 m2 foi construído, abrigando restaurantes e praças de alimentação. No subsolo, foi criada uma área de 1.600 m2, com sanitários, fraldários e vestiários para atender aos usuários e trabalhadores do local. A obra foi projetada pelo arquiteto Pedro Paulo de Mello Saraiva e o intuito da revitalização era um só: tornar o prédio mais atraente ao público. Desde então, o Mercadão é um dos mais representativos, belos e aconchegantes centros de compra e venda de São Paulo e, com certeza, o mercado mais paulistano da metrópole. 14

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Toda sua imponĂŞncia vista do EdifĂ­cio Altino Arantes (Banespa)

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Assim como o Teatro Municipal de São Paulo, o Mercadão tem sua construção dentro dos moldes europeus que caracterizam uma cultura erudita que invade a cidade de São Paulo entre o final do século XIX e inicio do século XX. Sua edificação corresponde a um período conhecido na historiografia como Belle Époque (bela época) que buscava agradar uma elite crescente em todo o Estado. Matheus O. Lemes1 - Historiador

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Hoje em dia, andar pelas ruas do Mercadão é voltar a uma época muito rica culturalmente dentro de nosso estado, é sentir na pele, toda uma história de imigração e o crescimento de uma cidade miscigenada. Enfim, andar por lá, é como flutuar nas notas musicais de Noel Rosa. Matheus O. Lemes1 - Historiador

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curvas, ondas e brilho

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e fosse preciso definir a estrutura do Mercadão em uma só palavra, esta seria “imponência”. Sua arquitetura de cimento armado é rica em iconografias clássicas, suas colunas em estilo grego e suas fachadas ecléticas retratam a moda eu-

ropéia da época em que foi construído e dialogam com a variedade de formas e itens existentes em seu interior. As máscaras gigantescas de rostos femininos que representam a abundância da produtividade da natureza e as torres com arcos emoldurados pelo brasão da cidade de São Paulo foram obras do artista plástico J. Wasth Rodrigues (1891-1957). Sua parte interna é coberta com telhas de vidro e clarabóias, em um sistema de lanternins (aberturas laterais) metálicas, que permite a iluminação natural, dando ao local todo um toque nostálgico e ao mesmo tempo acolhedor. Outro destaque são os 72 vitrais, assinados pelo consagrado artista plástico Conrado Sorgenicht Filho (1904-1994) que, além destes, realizou trabalhos na Catedral da Sé e em outras 300 igrejas brasileiras. Os painéis representam os meios da produção agrícola e pecuária sob os quais São Paulo alçou seu status econômico no final dos anos 20. Esses vitrais tiveram que ser quase completamente reformados antes mesmo da inauguração do prédio, pois os soldados da Revolução Constitucionalista que lá estavam abrigados treinavam sua mira nas cabeças dos personagens retratados. Hoje, a beleza de sua arquitetura e o colorido dos vitrais são constantemente fotografados por turistas e transeuntes que apreciam suas curvas, suas ondas e todo seu brilho.

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“São Paulo, a partir de meados do século XIX, tem um caráter ambíguo. É uma mistura de todos os estilos realizados na Europa e que refletiam os confusos destinos estéticos da classe burguesa da cidade. Os patriarcas do café viajavam para o exterior e se agradavam daquilo que viam - ainda que em obras separadas. Chegando a São Paulo ordenavam aos seus escritórios de Engenharia e Arquitetura que reproduzissem - em uma só obra - a somatória de todos os tempos históricos e estéticos” Helena Werneck2 Arquiteta e Urbanista

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“Em sua construção existe um similar europeu: a arquitetura vernacular francesa. A qualidade da obra, foi realizada com esmero utilizando-se a mão de obra principalmente italiana - professores do Liceu de Artes e Ofícios da cidade” Helena Werneck2 Arquiteta e Urbanista

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O café é o ouro silencioso De que a geada orvalhada Arma torrefações ao sol Passarinhos assoviam de calor Eis-nos chegados à grande terra Dos cruzados agrícolas Que no tempo de Fernão Dias E da escravidão Plantaram fazendas como sementes E fizeram filhos nas senhoras e nas escravas Eis-nos diante dos campos atávicos Cheios de galos e de reses Com porteiras e trilhos Usinas e igrejas Caçadas e frigoríficos Eleições tribunais e colônias Oswald de Andrade, “Prosperidade” 35


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antes das portas se abrirem

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nquanto os milhões de veículos da cidade de São Paulo estão “dormindo”, outros veículos entram em ação. Mas seu trajeto não é pelas avenidas da metrópole, e sim pelas ruas do Mercadão. Nesse corre-corre, quem não tomar

cuidado é atropelado pelos carrinhos cheios de pêssegos, laranjas, peixes e outras tantas mercadorias que circulam por lá. Esse é o horário de comércio de atacados. Funciona das 20 horas até as 6 da manhã e atende aos feirantes, quitandeiros, donos de supermercados e também a população que vai a busca de preços mais baratos. Pela grande quantidade de alimentos que circulam ali pela madrugada, tem-se pelo menos uma pequena noção de como é complexo abastecer essa cidade que dorme com o barulho de buzinas e acorda com o som dos arranques dos motores para mais um dia de luta. Quando entramos pelas suas inúmeras portas, somos transportados para um novo mundo. Suas grades da entrada agem como um portal que nos leva a outro planeta. Um planeta cheio de fartura onde a fome poderia não existir. Eis o Mercadão.

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“Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, Para que a manhã, desde uma teia tênue se vá tecendo, entre todos os galos.” João Cabral de Melo Neto, “Tecendo a manhã” 40

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“Em 1997 o renomado fotógrafo Sebastião Salgado simbolicamente deu adeus ao trabalho manual, que na sua opinião, estava “lentamente desaparecendo”. E na mesma obra ofertou “um tributo aos homens e mulheres que continuam a trabalhar como trabalharam durante séculos”. Estas fotografias do Mercado Municipal expressam semelhante utopia, pois evidenciam uma condição humana de orgulho e decepção num ambiente de trabalho fático.” Paulo Cesar Oliveira3 - Sociólogo 43


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“As imagens expressam um fetiche da mercadoria que persiste neste início de século XXI, entrelaçando, sem aparente saída positiva, trabalho, trabalhadores e o ambiente obreiro, por onde ininterruptamente circulam os produtos.” Paulo Cesar Oliveira3 - Sociólogo

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“Ambos, relação de trabalho, trabalhador e ambiente de trabalho abrolham como mercadorias em exibição nas vitrines do Mercado Municipal, emergindo como seres e coisas.” Paulo Cesar Oliveira3 Sociólogo

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e por um lado, temos a opulência de uma edificação tradicional, simétrica e uniforme, por outro, dentro do Mercadão podemos ver uma vasta quantidade de formas e linguagens em cada um dos itens existente nos boxes. É

cores e sabores

como se as variedades culturais do mundo inteiro fossem transformadas em produtos e protegidos dentro de um abrigo seguro e estável. Diariamente, são comercializadas cerca de 350 toneladas de alimentos. Cada produto carrega na cor o sinal do lugar que veio, de quem o cultivou e suas propriedades nutricionais. A cor presente nos produtos traz possibilidades artísticas além de medicinais. É justamente essa variedade que identifica um local tão único com produtos que vêm dos confins do Brasil e do exterior para aqui chegarem ao público. Ainda assim, com tanta diferenciação, os quase 300 boxes espalhados pelo Mercadão trazem algo em comum: o sabor e a cor. E quem não vende prazeres para o paladar, se satisfaz em entregar um belo ornamento para os olhos.

“A couve mineira tem gosto de bife inglês Depois do café e da pinga O gozo de acender a palha Enrolando o fumo De Barbacena ou de Goiás....“ Oswald de Andrade, “Digestão” 53


“ De fruta é tua textura e assim concreta; textura densa que a luz não atravessa. Sem transparência: não de água clara, porém de mel, intensa. 54

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Intensa é tua textura porém não cega; sim de coisa que tem luz própria, interna. E tens idêntica carnação de mel de cana e luz morena....” João Cabral de Melo Neto, “Jogos Frutais”

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As cores dos alimentos servem para harmonizar o prato e a saúde. Quanto mais colorida for uma refeição, mais balanceada ela se tornará, oferecendo assim os nutrientes essenciais para o corpo. Rita de Cássia Soares4 - Nutricionista

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Um prato sem cor é igual a uma vida monótona. Rita de Cássia Soares4 - Nutricionista

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s placas dos alimentos são um dos atrativos do Mer-

se as placas falassem

cadão, porque trazem a tona a realidade heterogênea existente no local, compõem o ambiente e também fazem a história. Isso pode ser visto nos versos e frases

feitas usadas para vender seus produtos, na grafia desenhada dos números, no “aportuguesamento” presente nos inúmeros itens importados e em outros que abusam da tecnologia dos códigos de barra para chamar a atenção. Mas é interessante observar também as frequentes variações no uso da língua portuguesa e como eles podem ser interpretados. Para algumas pessoas , esses chamados “erros” não incomodam, para outros causa desconforto e insegurança quanto ao produto e ainda tem quem diga que isso é um fenômeno cultural, que mostra as diversidades de cada povo. Não importa se o escrito está errado, o que vale é a qualidade daquilo que se apresenta, pois como já dizia Oswald de Andrade, “para telhado dizem teiado, e vão fazendo telhados”. E é assim que os “teiados” continuam em pé, duram gerações sem perder o glamour. Dessa mistura de idéias, podemos concluir que um erro pode ser

mais rico que um acerto e que o importante é informar - mas uma vez feito isso, o resto não será silêncio.

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Para dizerem milho dizem mio Para melhor dizem mió Para pior pió Para telha dizem teia Para telhado dizem teiado E vão fazendo telhados Oswald de Andrade, “Vício na fala “

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Um povo se identifica por meio da língua, que pode variar de acordo com o tempo, o espaço, o nível cultural e o contexto da comunicação. Assim como fato social, a língua se adapta às situações, pois é dinâmica. No entanto muitas vezes variações como encontradas nas placas são consideradas erros e como conseqüência há uma discriminação em relação a isso, afinal a língua padrão, a gramática correta , é a prestigiada socialmente. Adriana Catharino5 Mestre em Língua Portuguesa

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ssim como em qualquer outro ambiente, o Mercadão

pessoas que ali habitam

nada seria sem as milhares de pessoas que passam por ali diariamente. São elas que abrem e fecham as portas todos os dias. Os turistas e paulistanos vão em busca de

algo que refresque os olhos a alma e, principalmente, o estômago, e os comerciantes vendem seu peixe, e não esquecem de tratar adequadamente a quem vier. Para dar mais vida tudo o que já foi visto, convidei sete pessoas que abriram o livro de suas vidas para habitar um lugar especial nas pessoas que gostarem ou se identificarem com seus relatos. O sr. Quintas, o primeiro a ser citado, é dono de um box que vende produtos para feijoadas e que está no mercado praticamente desde a sua inauguração. O Sr. Nelson, peixeiro de mão cheia há mais de 40 anos, mas que nunca experimentou salmão. Outra personagem é a Gal, uma pessoa preocupada com o meio ambiente, que além de vender sacolas ecologicamente corretas, ainda dá o exemplo pessoal da reciclagem. Seu Romano, um italiano de 80 anos que decidiu estudar artes cênicas aos 70: um exemplo de superação. Outro é o Luciano, um “cara gente boa” que vende laranjas no comércio de atacado que funciona durante as madrugadas. Tem também o seu Roberto, descendente de espanhóis, dono de um olho azul feito o mar, que é pioneiro na venda de saladas de frutas. E, para fechar a seção, convidei a Marilene, ela que não é comerciante, mas sim uma paulistana que nunca havia pisado no Mercadão. Uma experiência diferente. Somente através destes personagens e dos outros incontáveis integrantes da história do Mercadão é que podemos descobrir o perfil diversificado que ele tem.

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Quintas, uma feijoada que não acaba

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Nem quarta nem sábado, a melhor feijoada é na “Casa Quintas de Feijoada” 84

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m 1936, ele era apenas um menino de 8 anos, mas já tinha uma responsabilidade de gente grande. Dia após dia, levava o almoço para seu pai, um português recém proprietário de um box de produtos para feijoada no Mercado Municipal. Lá, ficava até o final da tarde, ajudando-o no atendimento aos clientes e aprendendo, por consequência do destino, cada vez mais sobre os produtos que seu pai vendia. Sem perceber, a marmita tornou-se o ponto de partida, sua referência. O que carregava ia muito além de uma simples refeição, ali estava contida toda a trajetória de uma vida. Muitos anos se passaram, e é difícil de acreditar que a loja “Casa Quintas de Feijoada”, fundada ironicamente num 1º de abril, há 73 anos atrás, ainda conta com aquele garoto de antigamente, embora hoje com 81 anos. Antônio Quintas, mais conhecido por “seu Quintas”, tem uma vivacidade de jovem e não se arrepende de ter crescido em meio às carnes, orelhas, toucinhos e pés de porco. Ele é só orgulho por ter ali aprendi-


do tão bem a melhor forma de comprar e vender seus produtos. Se houvesse curso superior de feijoada, seu Quintas já seria PHD, afinal nunca trabalhou com outra coisa. Quem o vê pela primeira vez, com seu jeito sério e voz grave, não pode imaginar que aquele senhor de quase 1,90m guarda tanta simpatia. Seu maior prazer é atender bem os clientes, que com freqüência acabam comprando até coisas que nem imaginavam, graças à atenção por ele dispensada. “Fiquei surpresa, ele me perguntou o que eu pretendia fazer com a carne seca. Eu estava só olhando, mas depois disso, resolvi comprar”, relata uma turista de Taubaté, que nunca havia ido ao Mercado e ficou surpresa com a forma com que foi atendida. Não foi por acaso que seu Quintas tornou-se presidente do Sindicato do Comércio Varejista de São Paulo, cargo que ocupou por nove anos consecutivos sem perder nenhuma eleição. Nesse tempo, frequentou a casa de Jânio Quadros e de Abram Szajman, presidente da Federação do Comércio. Segundo ele, foram momentos muito agradáveis, mas seus compromissos eram numerosos, seu tempo começou a ficar escasso, foi então que se viu obrigado a deixar o cargo do sindicato para dedicarse melhor ao seu negócio. Mas quando se fala de pessoas famosas e influentes, seus olhos brilham. Seu semblante muda ao relatar o breve momento em que esteve com o rei da Noruega, Harald V, em 2003. “Posso até dizer que nem todos os grandes e os maiorais do país tiveram essa oportunidade: eu cumprimentei o rei da Noruega aqui no Mercado, dando a mão. Essa é uma das lembranças maravilhosas da vida que a gente não esquece“. Relembra com o sorriso estampado no rosto. Se apenas um sorriso ou uma atenção fossem necessários para ganhar a vida, seu Quintas não precisaria mais trabalhar. Porém, para ele, o sucesso de sua loja é decorrência da qualidade dos produtos que vende. Todos os alimentos são adquiridos de frigoríficos que possuem o selo da SIF (Serviço de

Inspeção Federal). Aliás, esse é um dos requisitos fundamentais para um estabelecimento que nunca teve problemas com a Vigilância Sanitária, ressalta seu Quintas, que mantém clientes fiéis há décadas. Os turistas também fazem parte da clientela. Eles chegam de todos os cantos do mundo e se espantam com o tamanho do local, com a variedade de produtos, com a beleza de sua arquitetura e, claro, com o diferencial de poder comprar desde 100 gramas até 100 caixas de um alimento. Para esse tipo de público, seu Quintas guarda um segredo: ele “habla castelhano“. Pode ser por charme, ou por prazer, mas isso lhe permite dar a receita e até mesmo ensinar o preparo de uma feijoada do início ao fim, levando em consideração o número de pessoas e a quantidade adequada de cada iguaria, o que, sem dúvida, é uma venda garantida, seja aqui ou para “los hermanos”. Seu tom de voz só muda quando se fala em empreendedorismo, pois afirma que para produzir algo no mercado é preciso ter muito conhecimento: “Este é o maior mercado do mundo neste tipo de vendas. Aqui não é um local para aventureiros, para iniciar um negócio é preciso ter muita capacidade, contatos e conhecimento“, ressalta. Devido a sua experiência no ramo, foi convidado diversas vezes a sair do país e levar tudo o que aprendeu a lugares desconhecidos, contudo, prefere ficar onde está e não deseja mudar de vida. Casado há 55 anos, com três filhos e um casal de netos gêmeos, seu único medo é de ficar velho ou de adoecer da mente, provando mais uma vez que aquele garoto de 8 anos ainda pulsa em suas veias. E a marmita? Era nela que estava o futuro do seu Quintas, seu conteúdo era uma pitada de sabedoria, grãos de conhecimentos e pedaços de experiência. Seu pai também lhe deixou a maior parte da sobremesa — uma vida inteira de histórias para contar.


Histórias de um (quase) pescador

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anjubinha, lagosta, salmão, polvo, ostra, sardinha,

Artes, local onde mora, para as 6 horas estar atrás dos balcões. Tudo

pescada, cação, corvina, atum, e tantos outros no-

isso, como diz seu Nelson, é por causa do fanatismo por peixes.

mes de peixes fazem parte do vocabulário e da

Ele fala com tanto carinho sobre os peixes expostos que até

vida de Nelson Ravelino dos Santos, um peixeiro

parece que são de estimação. Em um pequeno passeio de olhos

de mão cheia. Este homem sabe cada detalhe do produto que

sobre sua vitrine ele fala, com seu jeito manso, sobre cada um de

vende, pois já são mais de 40 anos trabalhando no mesmo ramo.

seus companheiros: “Esse peixe aqui, o salmão, se cria em água

Seu destino de peixeiro foi sendo lentamente desenhado du-

salgada e sobe para água doce. Quando sobe o rio ele desova e

rante sua infância na Bahia. Ele nasceu no município de Cícero

morre, quem volta agora são os filhotes. Essa aqui é a truta, é um

Dantas e mudou-se ainda bebê para Coaraci. Quando moleque,

peixe de água doce que é criado em cativeiro. Essa é lula calamar,

vivia nadando e pescando na beira de um lago que atravessa a

ela vem da Argentina....” E assim vai dando uma pequena amostra

cidade até chegar em Ilhéus.

de toda a sua sabedoria.

Veio para São Paulo aos 18 anos com uma família conhecida

Outra característica desse peixeiro é sua atenção na hora da

e já tinha emprego certo, iria trabalhar em uma peixaria, profissão

venda e da conversa, muitas vezes adivinhando até o gosto do

essa que nunca mais abandonou.

freguês. Seu jeito conquistou diversos clientes famosos, dentre

Hoje em dia, as fortes marcas de expressão e o grisalho do ca-

eles, o cantor sertanejo Sérgio Reis e outros que ele não lembra

belo, não deixam esconder seus 66 anos de vida e outros tantos de

o nome, mas sabe que é gente famosa, que ele vem atendendo

trabalho duro. Ás 4 da manhã já está na labuta, esse é o horário em

desde quando trabalhava na peixaria Akama, a atual Ki-peixe, local

que precisa sair de casa para pegar primeiro ônibus em Embú das

onde permaneceu por mais de 20 anos.

o gosto do mercado


Quando está atendendo do lado de fora da loja, é uma pessoa

um pedaço sequer de salmão, muito menos ostra. Difícil de acre-

franzina e acanhada, mas quando passa para o lado de dentro da

ditar. Parece até mais uma história de pescador, daquelas que você

Peixaria Cibele, local que trabalha há 6 anos, ele se transforma:

fecha os olhos e tenta imaginar como será possível. Mas é verdade,

cresce pelo menos uns 30 centímetros, fica todo falante e revela

porque seu Nelson não tem cara de mentiroso, e não o é.

um olhar apreensivo e atencioso. “Quando a gente sai de casa,

Essa é a sina do peixe e do qual ele nunca teve jeito de fugir. Uma

já sabe que vai ficar atrás de um balcão, então a gente acostuma,

história que começou lá na sua infância, com banhos de rio e pesca de

brinca com a clientela e vai matando o tempo.” Comenta ele.

moleque. Paixão essa que o fez desistir ainda na 4ª série do mundo das

O segredo dessa súbita mudança é uma espécie de banquinho im-

letras, porque tempo ele até tinha, mas o desgosto era maior. Muito di-

provisado que fica escondido atrás do balcão, tudo para que ele possa

ferente de esposa, que com 56 anos está no último ano de pedagogia.

ver do alto os seus clientes. É como se a altura de uma pessoa desse

Essas são as histórias de um (quase) pescador, que todo fim

mais status e mudasse alguma coisa no mundo. Se muda ou não, isso

de mês tira do peixe – mesmo que sem comê-lo – seu sustento.

não se sabe, mas o fato é que ele se transforma, e para melhor.

Assim, provando seu gosto pelo ofício, continua sua explicação

Mas como toda rotina tem seus momentos de crise, por um tem-

com seu jeito manso de falar:

po tentou deixar para trás a carne branca e rosada para trabalhar com

“O polvo tem que cozinhar não mais do que 15 minutos para

a vermelha viva. Durante três meses foi entregador de uma rede de

não ficar borrachudo. O bagre é um peixe do mar, também dá

açougues chamada Tennessee. Toda manhã saía carregado de tudo

na água doce, mas quando é criado em água salgada ele fica bem

quanto é tipo de carne. Nesse pequeno tempo, foi assaltado três

maior. Aqui, embalamos à vácuo com etiqueta e tudo para o fre-

vezes, sendo que na última, quase foi sequestrado. A mercadoria que

guês ficar bem orientado”

carregava era muito visada, então, com medo do pior, desistiu. Porém, seu Nelson não deixou de sonhar em ser patrão. Seu desejo é abrir novamente uma peixaria nas redondezas onde mora, um comércio que teve durante 10 anos, mas que não conseguiu sustentar após a morte de seu sócio e por isso voltou a ser funcionário, e muito exemplar, como relata seu patrão Marcos Santos Domingos, de 32 anos: “Seu Nelson é um ótimo profissional, é uma pessoa responsável que traz os clientes. Eu prefiro contratar pessoas de mais idade, porque os mais novos são cheios de ambições, e a maioria são desonestos. A idade dele e o conhecimento que ele tem é o diferencial.” Seu Nelson retruca o comentário dizendo: “Meus patrões são muito bons, aqui se ganha pouco, mas é divertido”. Mas até agora não foi contado o mais incrível sobre o seu Nelson. Como diz o ditado popular, “em casa de ferreiro, o espeto é de pau”. Os anos de profissão não fez do peixe o seu prato principal. E por incrível que pareça, nunca lhe chegou ao paladar

Mesmo sendo peixeiro há mais de 40 anos, seu Nelson nunca comeu salmão


O

garoto das laranjas

de conseguir o seu espaço. Eu conquistei o meu devido a honestidade e bom desempenho, porque tudo o que você faz com

I

carinho e amor dá certo”. Depois que termina a frase, a nítida magine um cara “gente boa”. Imaginou? Acredite, o garoto das

Entretanto, muitas pessoas não têm ideia do que significa ali-

isso porque ele tem um sonho: fazer um pezinho de meia e ir

mentar uma cidade tão grande como São Paulo. Durante a ma-

embora para Goiás. Já tem tudo esquematizado em sua cabeça

drugada, caminhões de todos os cantos do Brasil lotam o estacio-

e no máximo daqui a 10 anos quer parar de trabalhar para viver de

namento e os arredores do Mercadão para descarregar os mais

renda com o dinheiro que já vem juntando há um bom tempo.

variados tipos de alimentos. Uma tarefa árdua e cansativa, mas

Também pudera: Luciano Medeiros da Silva tem 31 anos e

compensadora na opinião de Luciano: “Não tem coisa melhor do

trabalha no comércio atacado do Mercadão desde os 12. Sua

que trabalhar com frutas. É muito bom trabalhar com a comida

jornada de ganha-pão é um pouco diferente, pois enquanto São

que a população consome. Nunca pensei em fazer outra coisa”.

Paulo dorme, lá está ele todo serelepe, em pleno vapor. Durante

Mas trabalhar à noite e ter tantas responsabilidades não são

o período das 20h às 7 da manhã, sua função é vender laranjas

coisas fáceis, por isso Luciano se protege como sabe, porque a ma-

para feirantes, supermercados, lanchonetes e até para os próprios

drugada também guarda seus temores. A noite é a hora, dentro da

comerciantes do local.

cultura popular, que os fantasmas e medos aparecem e até o uivo

Ele trabalha na mesma empresa há 17 anos, tempo esse que

88

impressão de orgulho se sobressai em seu semblante moreno.

laranjas é mais. Porém, se quiser conhecê-lo, apresse-se! Digo

do cachorro, que significava quase-nada, torna-se perigo iminente.

conquistou a confiança dos proprietários, fazendo dele o principal

É justamente nesse momento que Luciano busca a proteção

administrador do negócio e por isso afirma: “Tudo é uma questão

por meio de suas orações. Diz que é devido a isso que não tem

o gosto do mercado


medo das ameaças e das maldades do mundo afora. Por isso, diariamente, antes de iniciar suas atividades, repete sua oração: “Senhor seja feita a sua vontade, espanta os maus elementos do meu caminho. Nem que for para vender mais barato, mas espanta os maus elementos”.

“Eu sou o filho do dono do mundo! Basta não fazer mal a ninguém que tudo dá certo”

E é com esse monte de reza que ele vai caminhando, pois a palavra moleza não entra pelas portas do mercado, e nem vem

em nossas origens e refletir que se antes imperava a lei do mais

embalada junto com as frutas. Ali o trabalho é duro, puxado e

forte, hoje o que está valendo é a lei dos mais espertos. É o caso

difícil. É preciso enfrentar noites de frio e chuva, fora as enchentes

de Luciano, que estudou até a 6ª série, mas diz ganhar salário de

que acometem a região. A disposição é o principal remédio para

gente estudada, de “doutor”, prova que a inteligência vai além de

suportar, como define Luciano, a batalha naval.

um diploma estampado na parede.

“Aqui é um batalha, a responsabilidade com o dinheiro dos

E é com esse salário de doutor que ele vai enchendo sua meia.

outros é muita. São muitos calotes e pessoas ruins rondando seu

Não vê a hora de conseguir sua tranquilidade e ir embora para

caminho. A concorrência também existe. O que manda aqui é o

Goiás, um estado que como o próprio nome diz: “indivíduo igual”,

preço. Vender é fácil, o ruim é receber,”.

“pessoas da mesma origem” e que, segundo ele, não tem tanta

Luciano não tem religião definida, e mesmo assim ecoa em alto

criminalidade como São Paulo e as pessoas não tem grandes am-

e bom som, quase como uma prece vinda de seu mais profundo ín-

bições. Pensando mais na condição de futuro pai afirma: “Quero

timo: “Eu sou o filho do dono do mundo. Ele sabe o quanto eu luto

que minha filha ou filho cresça em um lugar melhor”.

para conquistar meus objetivos, basta não fazer mal para ninguém e tudo dá certo”.

Quando tinha 12 anos, conheceu sua atual esposa. Aos 14 já moravam juntos e há 6 anos estão casados no papel. Agora se prepara

E dá certo mesmo, porque por provar sua responsabilidade, já

para ser pai. O tão comentado salário de doutor proporciona uma

recebeu outras propostas de emprego, porém não troca sua liber-

vida estável para sua mulher, que nunca precisou trabalhar na vida e,

dade por nada neste mundo, mesmo tendo uma rotina maluca de

de novo, com o peito estufado de orgulho comenta: “Não vou deixar

horários, que só quem vive pode entender: ele chega em casa 8

ela sair de casa para ganhar 700 ou 800 reais para ela se matar e a

da manhã, janta às 9, deita às 11 e acorda às 18h para vir trabalhar.

gente não se ver. Esse dinheiro, dou pra ela ficar em casa”.

Chega no Mercadão às 20h e vai embora às 7h. São tantos horários que é difícil até de assimilar. “Não vejo muita vantagem em trocar o dia pela noite, mas o desemprego está muito e pelo que a gente ganha vale a pena, fora a liberdade que tenho. Aqui eu posso sair a hora que quiser para tomar um café, se fosse em outro lugar isso não ia acontecer”

Morador da Cohab I Itaquera, o transporte público é seu meio de locomoção. Não quer nem saber de carro, prefere guardar o dinheiro para comprar um cavalo na tão sonhada terra. Quando pergunto se as vendas daquele dia tinham sido boa ele responde: “Boa é uma Antártica. Hoje as vendas foram ótimas!” Sinal que em mais um dia de trabalho, a garantia de seu pezi-

Essa “liberdade” é puro reconhecimento do que Luciano tem

nho de meia está sendo feito. Se quiser conhecê-lo vá até a rua

de sobra: Inteligência. Pensemos: se o estudo traz dignidade a uma

J no box 12 entre 20h e 7 da manhã e procure pelo garoto das

pessoa, o que a esperteza e a experiência podem trazer? Nessa

laranjas. Se ele estiver com uma faca e uma laranja na mão, não

briga pela fatia mais gorda do mercado, podemos voltar a pensar

recuse: uma das metades será sua.


Gal

ecologicamente correta

S

Quem vai ao Mercadão para consumir, compra uma sacola e colabora com o meio ambiente 90

o gosto do mercado

ustentabilidade está em alta, mesmo que a verdade é que temas assim já deveriam ser rotineiros em nossa vida há muito tempo. Se tratando de assuntos tão fundamentais, o Mercadão também faz sua parte. Quem entra no prédio pela Av. do Estado, já pode ver o primeiro box logo à esquerda, bem grudado a porta o Instituto Pró-Verde, que comercializa sacolas produzidas de material ecologicamente correto. É lá que Gal Pacheco Silva trabalha há 1 ano e meio. Sua função vai muito além de vender, o mais importante, em sua opinião, é conscientizar as pessoas para questões ambientais e a utilizarem sacolas retornáveis. Além de simpática, Gal também é muito vaidosa. Tem 48 anos, está sempre maquiada e com unhas impecavelmente feitas. Recebe os clientes com um sorriso que vai de ponta a ponta, e cativa até aqueles que estão de passagem. Quem não


leva a sacola, pelo menos sai de lá com a sensação de ser bem atendido: “Oi meu anjo, já conhece nosso produto? É R$ 12 reais a sacola... Não vai levar? Então leva a revista e o folheto, é de graça minha querida” Gal fala do produto que vende com muito entusiasmo, explica detalhes, dá exemplos, fala da instituição e arremata dizendo que não basta apenas fazer o seu trabalho, mas também dar o exemplo: uma atitude que como diz, vem de berço. “Eu separo todo o lixo da minha casa e levo para a reciclagem. Quando vou ao mercado, sempre levo minha sacola e não aceito sacolinhas plásticas. Agindo desta forma, conscientizo também as pessoas do meu bairro”, afirma. Moradora da Zona Leste de São Paulo, se diz apaixonada pela região central da cidade. Seu sonho é um dia ser guia turística do centro velho, e para isso, sempre que surge alguma oportunidade, nunca deixa de conhecer e aprender um pouco mais sobre a história de cada cantinho dos arredores do Mercadão. Sonho este que tentou passar para sua filha mais nova, incentivando-a a cursar uma faculdade de turismo, mas segundo ela, não teve muito sucesso, pois a menina, que ainda está no colegial, quer mesmo é estudar farmácia. Tentou também convencer seu filho mais velho, mas este, foi estudar economia, e hoje, assim como ela, acabou indo parar no ramo do comércio. Porém, enquanto o sonho não chega, Gal não deixa de se atualizar nas questões ambientais. Ela não faz parte do Greenpeace, ou de qualquer outra entidade do gênero, mas se dói toda ao saber notícias sobre os danos que o homem produz na natureza: “Você já ouviu falar de uma baleia que foi encontrada morta na França com 800 kilos de plástico no estômago? É um horror, tem países que já proibiram o uso de sacolas plásticas porque

Além de vender sacolas que não agridem o meio ambiente, ela também dá o exemplo, reciclando o lixo em sua própria casa. elas demoram 20 minutos para serem produzidas e 500 anos para se decompor” Após esse comentário, ela volta a falar das qualidades do produto que vende como ninguém. Tanta informação também é fruto da participação de palestras com Fernando Brigidio, ambientalista e sócio-fundador do instituto, e com quem aprendeu muito; isso antes de entrar na empresa. Ele só não ensinou a ela a técnica da venda, pois isso Gal já tinha na bagagem. Mas não foi do dia pra noite que ganhou tanta experiência no que faz. Sua vida sempre foi o comércio, antes do Mercadão, trabalhou durante anos em Shoppings, e fala da nítida diferença de público existente entre os dois ambientes de trabalho: “No Shopping tem muita gente que quer ser e não é, e no Mercadão tem gente que não quer ser, e é. O público daqui vem mesmo para consumir, diferente dos Shoppings” A média de vendas é de 50 sacolas por dia, com preços que variam de R$ 8,00 a R$ 12,00 Reais. O box está localizado em um ponto estratégico e quem vai para consumir, compra uma sacola, e colabora com o meio ambiente. Gal, sempre com seu sorriso bonito, dá uma gargalhada gostosa quando pergunto: Qual é o gosto do mercado para você? “Aqui é uma mistura de todas as frutas, o Mercadão é tudo de bom, é igual a sacola que vendo, é ótimo e eu adoro trabalhar aqui”.


Molhados finos e

famosos

S

eu Giuseppe Romano tem 80 anos e está em busca de alguém para escrever sua biografia. Antes mesmo da entrevista, me convidou para um café e queria logo saber se eu trabalhava para alguma editora que pudesse fazer isso.

Sem conhecê-lo, fiquei imaginando o quanto interessante poderia ser sua história. Apesar da idade, seu Romano, como é chamado, ainda é um recém-nascido no Mercadão. Sua loja, a Casa Godinho Molhados Finos, localizada na Rua F, box 2, está para completar 1 ano de vida, mas traz em seu slogan “120 anos de tradição”, pois esta é uma filial de sua outra loja, que fica na Rua Líbero Badaró, 340, no coração de São Paulo.

Além de bacalhau, frutas secas e vinhos, seu Romano distribui todo o seu charme

Por tudo o que sofreu para chegar a esse patamar, ele pode ser considerado um herói. A história de seu Romano começou um tanto agitada. Aos 22 anos, em aventura juvenil e com toda a coragem que Deus lhe deu, juntou-se com alguns amigos e, sem nenhum familiar, pegou o navio na Itália e veio se arriscar em terras brasileiras. Quando chegou ao porto de Santos, cada amigo

92

o gosto do mercado


tomou seu rumo e ele, sozinho, sem conhecer nem nome de rua,

Como o comércio sempre foi seu ponto forte, no início deti-

foi espirrado para São Paulo, no embalo de pessoas estranhas, que

nham apenas 25% da empresa, mas o negócio deu certo e o que

fizeram sua cabeça e o trouxeram para a terra dos mais espertos,

antes era só uma pequena parte, hoje, já é 100%. Além disso, a loja

São Paulo.

tem até filial no Mercadão. Miguel é quem fica no comando da loja

“Eu não tinha ninguém e, quando cheguei, 3 ou 4 malandros

da Líbero Badaró e seu Romano cuida da filial.

me trouxeram para São Paulo, para ficar no mesmo hotel que

Quem o vê atendendo, percebe que o pouco tempo que está

eles”, conta. No entanto, a sorte não estava ao seu favor. As mes-

no Mercadão não o atrapalha, porque além de especiarias finas,

mas pessoas que o trouxeram para uma vida cheia de promessas

bacalhau e vinho, ele tem algo a mais a oferecer: seu charme. Seu

levaram todo o seu dinheiro junto com seus pertences na calada

Romano é assim mesmo, charmoso. Está sempre bem vestido.

de uma noite. Uma recepção calorosa. Porém, seu Romano con-

Usa terno e blusa de gola alta, tudo combinando para atender

seguiu esconder a sete chaves o que tinha de mais precioso: sua

os clientes. Gesticula muito quando fala, talvez seja para se fazer

esperança, que ninguém nunca conseguiu levar.

entender devido ao sotaque carregado, ou estratégia para com-

“Cheguei aqui, passei muito mal. Depois que me levaram tudo,

pensar sua baixa estatura, mas o correto seria dizer que ele deve

fui acudido por um patrício meu. Em seguida conheci um tio que

ter se especializado na técnica do encanto, porque sua mais nova

já morava em São Paulo há 40 anos; ele me acolheu e me ajudou

especialidade é atuar.

muito”, relata seu Romano com seu sotaque carregado.

Aos 77 anos, foi estudar no Teatro Escola Macunaíma, só não

As decepções de sua chegada e as dificuldades enfrentadas

conseguiu se formar por não ter o segundo grau completo, o que

não afetaram o carinho especial e o respeito que ele tem pela

não interferiu em nada, pois já fez comerciais, filmes e recentemen-

“melhor terra do mundo”:

te atuou na mini-série global Som e Fúria. No entanto, classifica-se

“Na Itália eu era lavrador e se lá fosse bom, não tinha vindo para cá. O Brasil não chama ninguém, ele te acolhe e a pessoa que fala mal desta terra ou não é gente, ou sofre da cabeça”.

como um ator não famoso – e modesto. Nesse frenesi entre atuar e atender clientes, seu Romano está numa fase de adaptação, tem coisas que demoram um

O tempo foi passando, assim, seu Romano foi se estabele-

tempo para se aconchegarem. É uma vida nova, mesmo aos

cendo. Primeiro, foi trabalhar como sapateiro. Em 1957, machu-

80 anos. E quando diz respeito ao seu comércio, afirma que

cou a vista e passou a ser engraxate, depois começou a vender

ainda prefere a Loja da Líbero Badaró, pela qual tem um ca-

loterias até adquirir sua própria casa lotérica, na Rua Miguel Cou-

rinho especial. No Mercadão ainda está aprendendo e diz: “O

to, travessa da Rua Líbero Badaró, onde foi proprietário durante

Mercadão é uma boa pessoa, uma clientela muito boa, muita

décadas.

gente bonita e orgulhosa também. Está sendo bom porque aqui

Suas paixões nessa época era além do centro velho de São Paulo, a Casa Godinho, um estabelecimento que ficava muito próximo

tem muita relação pública, é um pouco cansativo, mas tem que aguentar”.

do seu comércio e no qual criou uma amizade muito forte com os

Seu Romano, muito religioso, agradece o tempo todo ao seu

proprietários. Foi por isso que, em 2003, surgiu o convite de entrar

Deus todo poderoso e ao Brasil por ter lhe acolhido tão bem. Essa

em sociedade na Casa Godinho. E seu Romano, com toda a cora-

dura fase de adaptação vai passar porque se cada venda feita vier

gem que ainda lhe restava, vendeu sua casa lotérica para entrar de

com um pouco de seu charme, logo vai ter fila em seu box só para

cabeça no negócio junto com seu filho Miguel Romano.

provar um pouquinho do seu mel.


Simpatia, sonho e superação em potes. R$ 2,00 cada Coincidentemente, ele também tinha um avô comerciante no

E

Mercadão, mas isso nunca o fez escolher um caminho junto ao seu m uma cidade onde tantos se sustentam com salgadinhos

parente, pois seu principal desejo era a liberdade. Como ele diz:

e outros petiscos por falta de tempo e opção, certas ini-

“Eu quis ser independente. Meu avô já tinha o box dele, mas eu

ciativas podem parecer um milagre para o paladar. Quem

não quis trabalhar com ele.”

recusaria uma salada de frutas baratinha e viçosa, ainda

mais no Mercadão, o grande celeiro frutuário de São Paulo? Hoje, felizmente, temos a chance de fugir do “sabor-comum”, gra-

empregado, até que teve sua tão sonhada independência, com-

ças às superações, lutas e desventuras de Carlos Roberto Machado, o

prando a banca de seu patrão e então passou a ser chefe até se

seu Roberto, 56 anos, morador da Mooca, que vende sua salada de

aposentar.

frutas na Rua M, box 42/44. Esse neto de espanhol trabalha no Mer-

Mas para seu Roberto, o tempo não podia passar em bran-

cadão há 46 anos e simboliza em sua vida duas das grandes marcas

co. Ao se aposentar, ficou 1 ano sem fazer nada, mas não

desse lugar: as cores e as frutas. Não entendeu? Veja só então.

aguentou e voltou a trabalhar, alegando sentir-se inútil por não

Os primeiros anos de Roberto mostraram que o seu cami-

ter o que fazer.

nho seria verde. Ele vendia limão quando tinha 8 anos no meio

Seu regresso foi no mesmo box que era de seu avô, vendendo

de uma feira-livre, onde ele destacava-se por ser mais esperto

frutas e também fatias de melancia e abacaxi. Porém aquilo tudo

e comunicativo. A pessoa da qual ele comprava limão percebeu

fazia muita sujeira e era anti-higiênico.

isso e chamou-lhe quando fez 11 anos para trabalhar com ele no Mercadão, num box chamado Adonis Pereira. 94

Já que o verde é cor de sorte e esperança ao mesmo tempo, seu Roberto trabalhou com os limões por 20 anos como

o gosto do mercado

Mas uma mudança de situação só viria mesmo com a chegada da crise. O tempo ficou cinza para seu Roberto, os negócios fica-


ram difíceis e ele se viu em uma situação de risco: se entregava ou superava as dificuldades. Porém, foram esses obstáculos que deram o empurrãozinho certo em seu negócio. Para fugir do temido “vermelho”, o comerciante resolveu usar a criatividade para atravessar as adversidades. Foi então, há 4 anos, quando todos estavam entrando em desespero, que ele inventou a saladinha de frutas: a salvação de sua lavoura. Tudo começou quando ele e sua filha tiveram a idéia inicial de colocar os pedaços de melancia em potes, depois, como já vendia outras frutas, começou a misturar tudo, e foi assim que surgiu uma das sobremesas mais famosas do Mercadão. “Hoje, depois do pastel, o que mais vende é a salada de frutas.” Afirma ele. Mamão, manga, maçã, abacaxi, melancia, uva, morango e leite condensado: Pronto! Tudo é feito com muito cuidado, e a higiene é a principal preocupação. O sucesso de sua invenção foi tão grande que hoje, vendem-se aproximadamente 500 saladas por dia e até uma rede de entregas foi criada para suprir a demanda. Seu Roberto afirma que foi o primeiro a vender a salada

Seu Roberto é exemplo que os primeiros serão os últimos: O primeiro a inventar a salada de frutas é o ultimo a desistir

e que seus vizinhos copiaram sua ideia por terem “olhos muito grandes”.Mas o que mais o orgulha não é a quantidade de

Mas mesmo na dificuldade, seu Roberto sabe elogiar sua

vendas, e sim o gosto de trabalhar com o público. O principal

família, que não só trabalha com ele como também cuida de

produto desse homem é a simpatia e atenção, além de seus

saúde e evita que ele fique comendo coisas indevidas. “Às ve-

fundos olhos azuis, que completam o quadro multicolor pre-

zes (eu) como um doce escondido, por isso minha filha foi na

sente em sua história. Ele até mesmo lê livros de receitas para

lá na doçaria para proibir que vendam doce pra mim”. Depois

poder passar para os clientes. ”Não importa o tipo da oferta,

que conseguir um transplante de fígado, seu sonho é ir embora

o que vale mesmo é atender bem. Tem que saber com quem

para a praia.

você conversa, e adivinhar o que o público quer”, esse é o lema do seu Roberto.

Talvez em Janeiro ou Fevereiro do ano que vem, seu Roberto deixe de trabalhar no Mercadão, mas ele sempre exalta a satis-

Entretanto quando todas as cores pareciam que já tinha pas-

fação de estar lá. “O que você imaginar tem aqui (...) Aqui é um

sado por esse homem, uma nuvem negra veio rodear sua vida.

mundo diferente. Não sei que gosto tem o mercado, mas quando

“Peguei hepatite A e B e virou cirrose hepática. Faz 6 anos que

descobrir eu paro.” Como se a grande sacada do Mercadão fosse

estou na fila do transplante de fígado(...). Convivo muito bem com

sua infinidade de leituras.

a doença. Tem hora que os médicos falam que eu judio de mim, porque trabalho muito.”

Depois de tantas cores e frutas, a continuidade da vida desse homem é transparente para quem quiser saboreá-lo e conhecê-lo.


Estranhos no ninho dos sabores

M

esmo se tratando de um local tão conhecido, palco de diversas reportagens e cenários de novelas, existem muitas pessoas que nunca visitaram o Mercadão. Esse era o caso de Marilene Moreno de

Jesus, uma paulistana de 45 anos que jamais saiu da capital e, por ironia, trabalha no centro de São Paulo há 6 anos. Marilene é uma pessoa de meias palavras, tímida, de voz tão baixa que em alguns momentos é preciso chegar mais perto para ouvi-la. Mas sua timidez é compensada pelo seu olhar extremamente observador. Ela é o tipo de pessoa que não precisa de palavras, pois percebe-se através de seus gestos quando algo não está lhe agradando. Para encarar o desafio de entrevistá-la foi preciso antes enten-

Um shopping dos alimentos, essa foi a definição para o Mercadão 96

der um pouco de sua linguagem corporal, que muitas vezes, diziam mais do que palavras. Entretanto, decidi convidá-la para conhecer o universo tão particular que é o Mercadão. Nosso passeio começou em frente ao Mosteiro do São Bento. Junto com seus dois filhos, Vítor, 12 e Felipe, 9. Descemos a Rua Florêncio de Abreu, rumo ao nosso destino. Uma caminhada

o gosto do mercado


diferente para os meninos, que também nunca haviam pisado por

refeição, entre uma mordida no pastel e um gole de refrigerante,

aquelas bandas, e por alguns momentos acharam que estavam na

a entrevista continuou:

China ou no Japão devido ao grande número de imigrantes existentes naquela região. Antes de chegarmos, a curiosidade foi falando mais alto e decidi começar a entrevista no meio do caminho: — Você tem alguma idéia do que irá encontrar lá no Mercadão? — Não tenho idéia do que vou encontrar, já vi pela televisão, mas pessoalmente não sei como pode ser. Ainda não tenho expectativas de como será, mas acho que vou me surpreender. — Por que você nunca foi no Mercadão, mesmo trabalhando tão perto?

— Qual foi a impressão que você teve daqui? — Eu gostei bastante e achei interessante. É um mercado que mais se parece com um Shopping, é bem variado, e o mais interessante é que a praça de alimentação tem muitas opções que agradam adultos e crianças.... não é meninos? Que balançam a cabeça em sinal de aprovação. — Antes de você vir e agora que já está aqui no Mercadão, era aquilo que imaginava? — Era mais ou menos o que eu imaginava por tudo que já tinha visto matérias de TV, mesmo assim me surpreendeu bastante. — O local te lembrou alguma coisa da sua vida?

—Por falta de oportunidade mesmo, sempre morei aqui na

— Não na minha vida, mas me lembrou coisas de época e

capital já tive muita intenção de vir, mas na hora H sempre surge

também quando passava aquela novela... como é o nome mesmo...

algum empecilho e nunca deu certo.

A próxima vítima, quando tinha o Tony Ramos com a barraca do

Quando o prédio já estava à vista Felipe, o mais falante da turma solta um comentário muito observador: — Nossa! Parece que voltei no tempo, acho que esse prédio foi construído em 1942. De onde ele tirou essa data, ainda é uma incógnita, foi então que comecei a dar explicação sobre o lugar, falei sobre as datas, os vitrais e os pontos comerciais mais famosos, uma espécie de guia turística mesmo. Mas os olhos treinados de Marilene logo

Juca. Sua estrutura também é muito bonita, passa uma coisa boa. — O que te chamou mais atenção? — O colorido, as pessoas simpáticas, o espaço amplo e a praça da alimentação. Achei um ambiente sadio, os alimentos são todos de primeira, e tem muita coisa aqui que não se acha em qualquer lugar, acredito que só tem aqui. — Se você pudesse definir esse local em poucas palavras, como seria?

perceberam como se dava a organização do lugar. Nos primeiros

— É um lugar histórico que tem que se manter, é um am-

10 minutos de passeio ela logo observou que cada produto tinha

biente público que dá para se divertir e se distrair, além de comer

o seu canto. Peixe com peixe, fruta com fruta, uma divisão mais

coisas gostosas.

ou menos como aquela música que impregna na cabeça: “Cada

— O que você não gostou?

um no seu quadrado”.

— O que não gostei muito, mas que é comum pelo fato de ser

Eles conheceram cada cantinho, um passeio que durou cerca

popular, é que tem muita gente

de 2 horas, onde os meninos puderam quase tocar em lagostas,

— Você voltaria?

polvos e outras qualidades de peixes que nunca haviam visto de

— Sim, com certeza.

tão perto. Mas a visita não estaria completa se nada fosse provado. Paramos no Hocca Bar, para provar o famoso pastel, e no meio da

Depois do “com certeza” e para fechar a entrevista com chave de ouro, partimos para a sobremesa, que não poderia deixar de ser o famoso sorvete italiano do Empório Chiappetta.


98

o gosto do mercado


C

horinho, cerveja, alegria e boniteza num domingo na hora do almoço: o que mais pedir? Desde a Virada Cul-

domingo tem chorinho

tural de 2009, os domingos no Mercadão tornaram-se um dia em que todos podem usufruir gratuitamente

um evento de cunho cultural que visa valorizar o espaço histórico do local através da música e da celebração, pois é quando sobe ao palco a “Banca do Choro”. A banca é festejada das 12 às 14 horas na praça de alimentação do térreo. Os músicos de grande estirpe apresentam-se mostrando leituras atuais de antigos sons e também suas composições autorais. Esse projeto acaba por misturar memória e democracia além de ser um banquete para os ouvidos. Mesmo sendo um dos primeiro gêneros musicais urbanos, o chorinho ainda se encontra elitizado e longe de espaços mais populares. Quem sabe esse evento ocorrendo no Mercadão divulgue a mais pessoas esse estilo. Talvez também nas imagens a seguir esteja registrado um momento único ocorrido no Mercadão, pois segundo Livia Manini, produtora do evento, o projeto passa por sérias dificuldades financeiras e procura urgentemente por um patrocinador. Esperamos, eu e todos aqueles que se divertem em um local tão cheio de vida, que essa situação seja resolvida logo, pois além de alegrar os ouvidos, faz bem ao coração. Que fique aqui registrado a alegria!

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“Aqui me sinto maravilhosamente bem. Tomo minha brahminha e fico mais feliz ainda, revejo meus amigos e me divirto muito. É um espaço que tem que ser mais divulgado porque alia prazer e negócios” Amália Saltz, 67 anos

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“Este é um espaço que estava faltando em São Paulo. Aqui lavo minha alma e é um tipo de música que ressalta a jovialidade, o ambiente é ótimo” Edna Colomba, 65 anos

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“Esse é um espaço que acorda as pessoas para o chorinho. Quem não gosta e vem aqui, acaba se apaixonando. Acho maravilhoso” Mônica Cruz - Funcionária da Crepes e Cia.

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“Sinto o maior prazer quando estou dançando, o ambiente é bom demais e já fiz muitas amizades” Deonice Figueira, 63 anos

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quando as portas se fecham

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uando o fim do dia chega no Mercadão, aqueles que estavam passeando foram embora e levaram consigo a fruta para a compota, o bacalhau para o bolinho, o tempero para celebrar uma janta familiar, o turista

embarcou com o seu mimo e o mais velho que foi lá para re-lembrar sua história, também voltou para casa. Porém, seria engano imaginar que tudo acaba por aí. Quando as portas se fecham, seu espaço é preenchido por pessoas tão importantes quanto os que estão lá para consumir: agora é a vez da turma da limpeza. Eles vêm para varrer, lavar, esfregar todo o vestígio de mais um dia, pois sem eles, a beleza do dia seguinte não estaria presente. Tudo deve estar limpo em questão de horas, afinal, mais uma jornada de trabalho virá logo a seguir. Mesmo com toda essa rotina regular da limpeza, uma vez por mês, durante 24 horas, o Mercadão fecha suas portas para uma faxina geral. É um mal necessário, para manter os padrões de higiene. Todo esse ciclo de abrir às 6 horas, fechar às 16 e voltar a abrir às 20 horas, faz parte da “vida” de um lugar que gira em seu próprio eixo. Suas voltas diárias servem para tomar fôlego e se preparar para o grande desafio: alimentar essa metrópole cinza, mas que requer os coloridos vindos das frutas e verduras que chegam todas as madrugadas.

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“Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? — O que eu vejo é o beco “ Manuel Bandeira, “Poema do Beco”

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Notas 1 Matheus O. Lemes é Historiador e Professor do Grupo Pueri Domus - SP. 2 Helena Werneck é Arquiteta e Urbanista, professora universitária na área de História e Teoria da Arquitetura, com mestrado pela Universidade de Roma. 3 Paulo Cesar Oliveira é Sociólogo, Consultor Político e Assessor Parlamentar, é Chefe de Gabinete da IV Subsecretaria Parlamentar da Câmara Municipal de São Paulo. 4 Rita de Cássia Soares é Nutricionista pós graduada em Nutrição Clínica pela Ganep. 5 Adriana Catharino é Mestre em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC.

Referências Bibliográficas ANDRADE, Oswald. Cadernos de poesia do aluno Oswald. São Paulo: Círculo do Livro, s/d. BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. BARTHES, Roland. A Câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1994. MARTINS, Carlos B. O que é sociologia. Coleção primeiros passos. São Paulo: Brasiliense, 2.ed. 1982. NETO, João Cabral de Melo. Poesias completas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1979. REVISTA EM CARTAZ, Guia da Secretaria Municipal de Cultura, n. 22, Março de 2009. SAMAIN, Etienne. O fotográfico. São Paulo: Hucitec, 2. ed. 2008. TIRADENTES, J. A. Mercado Municipal Paulistano. Setenta e cinco anos de aromas, cores e sabores. São Paulo: Supra,

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Fred Ferreira

Nascida em 1º de Março em São Paulo - SP, Lisia Lemes é designer gráfica e Jornalista. Amante da cidade de São Paulo, dos alimentos e também da fotografia, fez dessas paixões palco para a realização desta obra.





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