3 reis magos versão blog (1)

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…e chegaram três Reis Magos em Agosto

TEXTO-Júlia Guarda Ribeiro ILUSTRAÇÃO – Guilherme Correia

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À memória do António José, que quis ver este conto publicado.

À memória das três pessoas que nele intervêm: . meu pai, com a sua generosidade; . minha mãe, com a sua coragem; . minha avó ,cuja grandeza de alma marcou não só a minha meninice, mas toda a minha vida. E ainda à memória dos três fugitivos espanhóis, cujo destino nos foi para sempre desconhecido.

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Que a leitura deste conto possa ser uma lição de vida para os meus netos

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Hoje vou falar-vos do meu Natal. Parecerá esta proposta tanto mais estranha, quanto é certo que nasci mês de Agosto. No dia 17. Não sei a hora, porque não havia relógios na casa em que nasci. A minha avó e a minha mãe regulavam-se pela caminhada do Sol. E quanto aos trabalhos no campo, as estações do ano, ou seja, a Natureza é que mandava. Por isso, sei apenas que quando nasci não era noite fechada, mas também não era ainda dia. Mesmo a essa horinha lavada, no alvorecer do dia, preparando-se para me receber, o calor já era intenso. Iria ser um dia sufocante aquele 17 de Agosto de 1938. A minha avó contava que, através da telha vã, viu perfeitamente que a lua cheia parecia prata e que as estrelas começavam a empalidecer.

Após um parto longo e difícil que exigiu a presença do médico, o que não era usual naquele tempo e muito menos em famílias pobres – para mais sendo a minha avó a aparadeira mais eficiente naquelas

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redondezas – (mas, pelos vistos, santos da casa não fazem mesmo milagres), após esforços, suores e gritos, entrei eu neste mundo. Ao pegar-me ao colo, a minha avó terá perdoado à minha mãe, pobre menina–mãe solteira que, extenuada, adormeceu profundament

A minha avó cuidou de mim com ternura e amor e foi na sua voz mansa e meiga que ouvi a primeira canção de embalar. Subitamente calou-se, apertou-me contra o peito e ficou à escuta. Pareceu-lhe que ouvira passos cautelosos no minúsculo quintal, perto da loja do burro, nas traseiras da casa. Apurou o ouvido. Não estava enganada. Agora ouvia vozes sussurradas. “ Meu Deus!”, pensou, “querem ver que vêm roubar-me o burrico?”.

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O burro, por assim dizer, era o seu braço direito, pois era metade do seu ganha-pão.

Ali não havia mais nada para roubar. A casa era pequena, o chão de terra batida, as paredes de alvenaria sem reboco. Podia ver-se de dentro para a rua, espreitando através dos inúmeros buracos. E foi isso que a minha avó fez. Espreitou e viu no quintalzinho, entre a velha videira, que quase não dava uvas mas formava uma grande latada, e a loja do burro, três sombras que avançavam com todo o cuidado para não pisarem os guiços que estalavam debaixo dos pés. Eram três homens barbudos e esfarrapados.

“ E que faço agora, meu Deus?”.

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A minha avó enviuvara já há muito. Era, pois, a casa de duas mulheres sozinhas e de uma criança acabada de nascer. Contava que teve medo. Muito medo! Mas não ia deixar que lhe roubassem o burro.

Apertando-me contra o peito com o braço esquerdo, abriu de rompante a porta de tábuas desconjuntadas com a mão direita e ralhou mais do que perguntou: “Que quereis daqui? Não vedes que não há nada para roubar?” Uma voz tímida, muito baixa, disse metade em espanhol, metade em português: “Que quereis daqui? Não vedes que não há nada para roubar?” Uma voz tímida, muito baixa, disse metade em espanhol, metade em português: 7


“No venimos a robar nada, señora. Solo necessitamos quedarnos escondidos… hasta que sea noche cerrada. Después nos marcharemos”. E as vozes, ainda mais abafadas, contaram que eram perseguidos em Espanha e haviam fugido para Portugal. Há largos dias que andavam em fuga. Tinham entrado pelo Norte e queriam chegar a Lisboa, onde contavam com a ajuda de dois ou três amigos.

Eram do lado perdedor da guerra civil. Foragidos destes não eram assim tão raros ao longo da raia. E o destino de muitos foi a morte.

Nos olhos dos três homens estampava-se o pavor dos acossados.

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Apiedou-se deles a minha avó. Mandou-os entrar e deu-lhes canja de unto com miolo de pão que tinha feito para a minha mãe. Em silêncio engoliram o caldo e as lágrimas que teimavam em saltarlhes dos olhos. Depois poisaram as malgas, tiraram as boinas surradas, ajoelharam-se em frente da minha avó. E, um por um, beijaram o pezinho que saía da envolta e abençoaram a criança, que era eu.

Já era manhã clara quando chegou o meu pai, avisado do meu nascimento pelo médico.

A minha mãe continuava a dormir. E eu também, agora no bercinho. O meu pai inclinou-se, pegou-me e olhou-me enternecido. Foi então que viu uma boina preta, suja, suada sobre o banco, junto do berço.

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Ficou estupefacto e olhou, suspeitoso, pela casa. Porém, não havia cantos onde alguém se pudesse esconder

Naquele silêncio, ouviu-se um ressonar. Só podia ser de alguém no quartinho de tabique da minha avó ou na loja do burro. A porta para o quintalucho estava escancarada e aí nada mais se via do que o velho animal à sombra da latada. “Quem está cá em casa, Tia Maria?” “Nós.” “Tia Maria, de quem é esta boina?” “Não é da sua conta.” “Tia Maria, quem está a dormir na loja do burro?” “Quem precisava de umas palhas para descansar.” “Tia Maria, recolheu um foragido de Espanha, foi isso? Não faz ideia do que pode acontecer-nos. Santo Deus, que falta de senso. É preciso ir à Guarda Republicana, já. É preciso entrega-lo.” A minha avó, realmente, não sabia o que podia acontecer-nos, mas apercebia-se muito bem do que aconteceria aos três espanhóis e

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respondeu ao meu pai , colocando nas suas palavras toda a raiva que sentia contra ele: “Esta casa é minha. Aqui quem manda sou eu. Dei-lhes guarida. Deilhes do meu caldo. Nunca os iria denunciar.”

“Ó Deus me valha! Então é mais do que um? “São três. Perseguidos, rotos, esfomeados. Tão cansados que nem se tinham em pé. Virgem Santa que os cá trouxestes. Na hora em que a minha neta nasce, vêm eles acoitar-se aqui. Acha que eu podia ir entregá-los à Guarda? Deus me livre.” “Mas, Tia Maria, não sabe que para esses homens não há Deus? Esses homens não têm alma. Mataram, violaram, incendiaram…” “Não sei quais são os pecados deles, mas já sofreram muito. Já pagaram. Não têm terra, nem casa. Mataram-lhes a família…”

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“Mas eles mataram primeiro. Não respeitaram nada nem ninguém, nem mesmo freiras ou padres. Queimaram igrejas, pisaram relíquias…” “Olhai quem fala de respeito! Acaso respeitou o senhor a criadinha que teve a pouca sorte de ir para a sua casa para o servir a si e à sua família? Olhe para a cara dela. Olhe bem. Minha filha, que é ainda uma menina! O senhor abocanhou-a que nem um lobo e fez dela uma desgraçada, desprezada por toda a gente. E um dia há-de ser desprezada por si. Agora olhe para mim e escute o que lhe vou dizer, porque eu nunca mais voltarei a falar consigo. Com que então, estes homens não têm Deus nem alma. Pois fique sabendo que os três abençoaram aminha neta. Pediram a Deus para ela as três coisas melhores que há neste mundo: saúde, pão e paz. Não lhe trouxeram ouro, nem incenso, nem mirra. Mas beijaram-lhe o pezinho como se beija o do Menino Jesus na Missa do Galo. E eu sei que Deus abençoará a menina, porque Deus ouve as preces dos infelizes.

E mais infelizes do que estes três homens nunca vi debaixo da roda do Sol. Pobrezinhos! Órfãos de pais e filhos.” “Não se diz órfãos de filhos, Tia Maria.” “Ai não se diz? Pois passa a dizer-se . E não corrija uma velha que já por muito passou. Escute e lembre-se que o Rei Herodes também queria que os Reis Magos denunciassem o Menino. Pois eu juro-lhe que não há-de ser o senhor a ir à Guarda Republicana denunciar os Reis Magos da minha neta. Mais depressa lhe parto uma perna com esta tranca.” 12


E o meu pai, aliás o melhor dos pais, homem extremamente conservador, não denunciou os três perseguidos espanhóis. Ou os argumentos da minha avó o convenceram, ou o meu nascimento, ou ambas as coisas.

Podem não acreditar, mas deixou para eles 20 escudos que colocou em cima da velha boina basca. E em 1938 uma nota de vinte escudos era dinheiro.

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