Lucilia diniz frente e verso

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Lucilia Diniz Frente&Verso


Lucilia Diniz Frente & Verso



Lucilia Diniz Frente

& Verso


© Lucilia Diniz, 2004 Texto: Lucilia Diniz ©Lucilia Diniz: Coordenação de projeto: Copyright Editora CARAS S.A., São Paulo, 2004 – 1ª edição: Janeiro de 2004 - ISBN: 85Eduardo Logullo 7521-185-4 – Divisão Eventos Multimídia e Projetos Especiais - Luis Fernando Maluf (Geren-

Consultor:te), Fabio Cavicchiolli, Antonio Henrique Menendez, Andrea Liguori, Tathiana Vaz – Impressão e Acabamento: Brasilform Editora e Indústria Gráfica Ltda. - Todos os direitos para o Brasil Francisco Guglielme Jr. reservados à Editora CARAS S.A. – Av. Engenheiro Luís Carlos Berrini, 1253, 12º andar, -tel.:

(11) 5508-2000, CEP 04571-011, São Paulo, SP, Brasil Projeto gráfico: Leticia Moura

Diagramação: Douglas Watanabe Fotos: Vania Toledo Scanning: Felipe Caetano Ilustrações: Gustavo von Ha (página 16) Guto Lacaz (páginas 8, 11, 46, 114, 140, 150, 160, 206, 216 e 240) Marcelo Cipis (páginas 56, 58, 62, 82, 96, 100, 174 e 182) Mario Cafiero (páginas 20, 50, 92, 104, 178, 186, 190, 194, 220, 224 e 244) Revisão: Claudio Eduardo Nogueira Ramos

TIPOLOGIA Frutiger e Matrix Script PAPEL Couche matte150g IMPRESSÃO no sistema XXX, Gráfica XXXXXXX 1ª IMPRESSÃO janeiro 2004.


Dedico este livro ±àqueles que mais amo: Manoella, pela autonomia; Tiago, pelo companheirismo; Giovana, pela criatividade, e a minha Valentina pela inovação.



A vida pode ser bem mais leve para quem n達o oculta a frente, nem o verso.



Poucos têm a oportunidade de conhecer Lucilia Diniz. Seu carisma, pelo jeito de ser, surpreende e encobre seus pensamentos. Irrequieta, tempestuosa, ela adota um estilo de vida de sempre prosseguir, superando obstáculos. Exigente e crítica, pensa de forma prática como driblar as armadilhas que a vida traz. Com certeza, os traços mais marcantes da sua personalidade são a perseverança e a feminilidade. Forte e frágil, Lucilia expressa a experiência vivida como lição aprendida para impulsionar novas conquistas. Neste livro, todos encontrarão situações que confirmam suas reflexões. Não há seqüência de leitura, basta abri-lo em qualquer página e lá estarão momentos de todos nós. É uma obra de coragem e de auto-exposição, para ser debatida e até contestada. Mas de grande valor existencial. Francisco Guglielme Jr.



SUMÁRIO\

Sentimentos & Observações – Hoje é o primeiro dia do resto de sua vida . . FAMÍLIA – Pandora contemporânea . . . . . . . . . . . . . . . LEMBRANÇAS – Arquivos vivos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . PROTEÇÃO – Pêndulo doméstico . . . . . . . . . . . . . . . . . . ROMPIMENTOS – Meu mundo caiu . . . . . . . . . . . . . . . . . FALSO MORALISMO – Te perdôo por te trair . . . . . . . . . . . ENVELHECER SEM MEDO – Viva a ampulheta . . . . . . . . . . . AMIZADES – Além do horizonte . . . . . . . . . . . . . . . . . . APRENDER A FICAR SÓ – No silêncio do quarto . . . . . . . . VIAGENS – Terrenos minados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . GAFES E TRAPALHADAS – A comédia dos erros . . . . . . . . . MODA – Lances e relances . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . SOMATÓRIO DE ERROS – Erro ao quadrado . . . . . . . . . . . . O TEMPO

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Dia & Noite – Sessão de estréia . . . . . . . . . . . . . . . . A ÚLTIMA VEZ – Acabou-se o que era doce . . . . . . . . . . RITUAL DAS REFEIÇÕES – Saber comer, saber viver . . . . . . CUMPLICIDADE – Piscadelas de olho . . . . . . . . . . . . . . . . A PRIMEIRA VEZ

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– Pro dia nascer feliz . . . . . . . . . . . . . . VIDA DOCE – Alô, doçuras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ENCONTROS SUPERFICIAIS – Olá, muito prazer! . . . . . . . . . ESPELHOS – Qual é a imagem real? . . . . . . . . . . . . . . . . INVERDADES – Nunca fui santa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A VERDADE – Sem alívio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . VULGARIDADES – Um jeito feio de estar no mundo . . . . . DESAFIOS – Na mira do imaginário . . . . . . . . . . . . . . . . VAMPIROS – Baixa voltagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . HORA DO BANHO

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Dentro & Fora – Pista dupla . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CONFIDÊNCIAS – Falar é prata, calar é ouro . . . . . . . . . . BEM-ESTAR X SEXUALIDADE – De tudo, para todos . . . . . . . RECONHECIMENTO – Rol da fama . . . . . . . . . . . . . . . . . . EGOS INFLADOS – Infláveis & inflamáveis . . . . . . . . . . . . INTUIÇÃO – Será que fiz bem? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ANSIEDADE – O dragão nosso de cada dia . . . . . . . . . . . LIBERDADE – Liberdade ou independência? . . . . . . . . . . PERFEIÇÃO – Perfeição pode ser imperfeita . . . . . . . . . . DIPLOMACIA – Geografia humana . . . . . . . . . . . . . . . . . DESVIOS – Desafinando o coro dos contentes . . . . . . . . TERRITÓRIO – Áreas de proteção pessoal . . . . . . . . . . . . LÍNGUAS DIFERENTES – Torre de Babel . . . . . . . . . . . . . . . CAMA DE FILHO – Playground . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . USAR O OUTRO

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Amores & Desamores – O companheiro mágico . . . . . . . . . PRIMEIRO CASAMENTO – Cobaias e cientistas . . . . . . . . . . SEGUNDO CASAMENTO – Pânico de ser gueixa . . . . . . . . TERCEIRO CASAMENTO – Terceiro ato . . . . . . . . . . . . . . . HOMENS SEDUTORES – Atração fatal? . . . . . . . . . . . . . . . POSSE E SEDUÇÃO – As duas mosqueteiras . . . . . . . . . . PIGMALIÃO – Projeto sentimental . . . . . . . . . . . . . . . . . VOLTA AO PASSADO – Mil pontos de interrogação . . . . . . AMANTES – O negócio é amar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ROMPIMENTOS – Dores de amores . . . . . . . . . . . . . . . . . RITUAIS DE SEDUÇÃO – Jogo de damas . . . . . . . . . . . . . . UM COMPANHEIRO

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Verso & Reverso – Nem mestre, nem aprendiz . . . . . . . . . PREGUIÇA – Cadeira de balanço . . . . . . . . . . . . . . . . . . LUXÚRIA – Amiga de fé, irmã, camarada . . . . . . . . . . . ORGULHO – Pai herói . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . AVAREZA – A sete chaves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . GULA – Homens das cavernas em ação . . . . . . . . . . . . INVEJA – O quintal do vizinho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IRA – O leão está solto nas ruas . . . . . . . . . . . . . . . . . DESCOBERTAS – Olhando pelas frestas . . . . . . . . . . . . . . DOM QUIXOTE

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Sentimentos & Observações



O TEMPO

HOJE É O PRIMEIRO DIA DO RESTO DE SUA VIDA A cada vez que viramos uma página do calendário, ou quando somamos um mês a mais ou 30 dias a menos, ninguém se dá conta dessa realidade aparentemente abstrata que nos cerca: o tempo. É a partir da passagem contínua do tempo que os ciclos se renovam, a natureza se manifesta, os planetas permanecem em órbita e nós, desesperados com esse avanço ininterrupto do ponteiro, corremos atrás de alguma coisa que possa anular o efeito do tempo. Anular ninguém consegue. Nem aqueles mais radicais, que pedem em testamento para ter seus cérebros ou corpos congelados por período indeterminado, até que a ciência consiga ressuscitá-los. Acho isso meio macabro. Difícil imaginar minha cabeça dentro de uma redoma, com algum líquido estranho à volta. Será que me deixariam ficar de óculos de sol? E com um colar básico, pelo menos? Dá para brincar, mas o tema é assustador. Mesmo. Prefiro nem comentar muito sobre a passagem do tempo

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em nós, míseros mortais, e focar o tema sobre realizações inesperadas que os anos proporcionam à vida. O tempo é soberano. O tempo aprimora, paralisa ou piora. Prefiro sempre o melhor: o aprimoramento. Só o tempo pode me transformar de gorda em esbelta, de complicada em light. Apenas a passagem do calendário seria capaz de trazer interpretações mais suaves sobre as agruras da vida, para que não ficássemos o resto dos dias procurando entender com quantos paus se faz uma canoa, se São Jorge mora na Lua e porque os avós têm cabelos brancos. Ganhamos sabedoria com o tempo, mas, tristeza das tristezas, perdemos coisas essenciais como viço, esbelteza, tônus e… É melhor parar por aqui, senão começo a gritar. Contra esses efeitos catastróficos do tempo, batalhamos na manutenção contínua do corpo. Mas há efeitos mais terríveis ainda: ficar com a cabeça velha, com aquele papo de aranha e cheio de memórias nostálgicas. Devemos celebrar o passado, mas não nos entregarmos a ele. Aliás, já houve quem disse que passado e futuro eram as duas grandes invenções da humanidade. E se ninguém admite que o seu saldo de tempo diminui dia-a-dia, só nos resta misturar um punhado de resignação, duas colheres de loucura, 600 gramas de alegria, dois quilos de perseverança e um litro de energia positiva para continuarmos saltitantes ainda por longo tempo.

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Decisões que iluminam o cotidiano só impulsionam a novas e melhores conquistas. O tempo passa, mas não podemos nos submeter à acomodação da cadeira de balanço, nem ao fel do rancor, nem à paralisia do desânimo. O tempo não pára e o show deve continuar. O tempo depura, o tempo alarga, o tempo ajusta, o tempo apaga, o tempo enobrece, o tempo desfaz. A areia da ampulheta desce ou sobe, de acordo com a perspectiva de quem aciona a direção. A areia do tempo pode cobrir tudo, mas proponho ficar de plantão com uma pá e não deixar nunca que a avalanche do esquecimento caia sobre minha cabeça. A mesma cabeça, aliás, que jamais será congelada para ser revivida no futuro, como um andróide. Em matéria de congelados, prefiro os que sejam light, OK? E vamos tratar logo de fazer com que o tempo seja nosso sócio e não um inimigo.

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FA M Í L I A

PANDORA CONTEMPORÂNEA Conheci certa vez uma menina, filha caçula de um casal bondoso, trabalhador e bem-sucedido. A menina e seus cinco irmãos moravam em uma propriedade cercada por árvores frondosas. Ali, o entrosamento em grupo estava entre os valores essenciais para a harmonia familiar. As reuniões festivas eram freqüentes, assim como encontros com numerosos parentes, fatos que passariam a ser marcantes na memória da menina. Havia sinceridade, união e alegria em meio à atmosfera de fartura, simplicidade e amor – três pontos sempre desejados pelo casal. Acompanhei o crescimento dessa menina, que logo me escolheu por confidente. Descobria, assim, que a sua infância esteve repleta de momentos felizes, porém entremeados de isolamento: eram muitos os compromissos de seus pais, enquanto os irmãos viviam constantemente atribulados com afazeres ou estudos. Desse modo, ela habituava-se a receber a eventual atenção materna e a dividir seus pensamentos com bonecas, aquarelas e livros de fadas.

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Com a chegada da adolescência, ela se viu confinada à casa dos pais. Suas saídas e entradas eram controladas segundo os princípios rígidos da moral impenetrável dos pais, imigrantes europeus. Ela poderia ter tudo, mas não alcançava o que ansiava: ser levada por descobertas, erros, acertos e ímpetos de qualquer jovem. Logo perceberia que a solução apenas ela poderia criar, se partisse de alternativas que fossem socialmente aceitáveis. Casar, por exemplo. Moça precoce, aos 14 anos ela inicia um romance com o seu melhor amigo, decidida a conseguir a independência absoluta do território familiar. Ingênua, acreditava ser essa a grande opção. E, por certo, foi. Casada, viveu feliz por algum tempo com o homem que escolhera. Tempos depois, seu mundo caiu. O romance, tão aceso no início, estava transformado em prato morno. A menina que brincava de ser mulher pediu a separação. Houve enorme desgosto na família, que passou a considerá-la um problema ao cubo. Como fazer para preservar a imagem familiar de prestígio e de ramificações empresariais importantes? A irmã caçula apresentava a eles um potencial explosivo e autodestrutivo. Separação homologada, ela se viu na berlinda. Não poderia errar mais, sob pena de receber penalidades máximas no âmbito familiar. Mas como os corpos não são de ferro, lá se foi ela rumo ao segundo casamento. Antes, garantiu-me ser uma escolha mais amadurecida. O marido era empreendedor,

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havia entre eles grande atração física e afinidades diversas. Pausa. Vários anos mais tarde, depois de períodos de esmagamento pessoal, ela estava prestes a sucumbir à submissão imposta pelo marido, aos maus-tratos psicológicos e ao papel de subserviência doméstica. Rompeu-se o seu segundo casamento, com reação ainda mais dura da família. Restou à menina que conheci, naquele período transformada em animal acuado e indefeso, a punição com o que foi considerado condizente ao peso da separação: internação psiquiátrica. Ela se submeteu, sentindo-se apagada, sem viço, sem vigor, sem voz. Diagnóstico: tristeza. Cura: sem prazo. Suas tentativas e erros estavam transformados em drama familiar de grandes proporções. Os irmãos negavam apoio. Pior: os irmãos a faziam sentir-se deformada, derrotada, aniquilada. Sem contar que a sua opinião jamais voltaria a valer, por ela “só ter cometido erros”. Garantiam que ela nunca acertaria em decisão alguma. Qualquer que fosse a sua posição, essa posição seria considerada incômoda ao grupo. A minha amiga encurralada lembrava-me, naqueles momentos de baixa estima, que algumas plantas do deserto sobrevivem com apenas uma gota de água por ano. Essa foi a metáfora que usava para me dizer que um dia seria vitoriosa e voltaria a se sentir viva. Quisessem ou não os seus irmãos. Ela estava certa: invejada por se manter alerta, a perseverança seria a melhor resposta a dar.

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Excetuando-se o amor que recebia dos pais, ela sentia os dardos do desprezo e da maldade lançados pelos outros membros da família. Ultrapassada aquela fase terrível, ela passou a entender que se uma família propõe ajuda por outros ângulos, também pode oferecer desilusão, frustração e desrespeito. De nada adiantaria, pensava a minha sofrida amiga, o acúmulo de trabalho e de poder se não se consegue lidar com sentimentos humanos como a cordialidade, a fraternidade, o amor ao próximo. Mas a garota que eu conhecera e que se havia transfigurado em uma mulher maltratada, iniciava então um processo de renovação mental, física e espiritual. Como uma caixa de Pandora, ela aprendeu a lidar com seus desejos escondidos, com suas idéias em ebulição e com suas pequenas fadas invisíveis. Começava a sentir algo poderoso: uma força estranha, luminosa e renovadora a fazia encarar o mundo sem medo. Finalmente, surgia a mulher que conseguiria olhar as feridas sem medo do sangue, a mulher que enfrentaria traumas e a mulher destemida que podia até gritar “danem-se todos”. Era como se de dentro da caixa invisível de uma Pandora moderna, aparecessem mil e uma faces de deusas, amazonas, entidades mitológicas e espíritos delicados de grande intensidade cósmica. Ela abriu a caixa e deixou escapar Afrodite, Ísis, Zorya, Olulu, Maria, Juno, Diana, Ixchel, Bona Dea, Astrea, Kupalo, Lakshmi, Maha Devi,

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Yacy, Sophia, Shadai, Samana e mais uma série de pequenas criaturas que só ela conhecia pelo nome, que só ela sabia do poder de cada uma. Desde então, a menina que conheci ainda habita a alma dessa amiga, hoje uma mulher iluminada por uma beleza que ela própria buscou, por uma fortaleza espiritual que lhe foi dada depois do sofrimento, por uma conexão planetária que adquiriu ao olhar as coisas simples da vida. Minha amiga hoje é feliz. E conversa diariamente com suas fadas protetoras, com suas mil e uma faces femininas.

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Foi um pequeno momento Um jeito, uma coisa assim, Era um movimento Que aí você não pôde mais gostar de mim direito (Da Maior Importância, de Caetano Veloso)


LEMBRANÇAS

ARQUIVOS VIVOS Histórias de amor às vezes podem dispensar finais infelizes ou encerramentos aniquiladores. Isso acontece quando os amores interrompidos ficam como sinfonias inacabadas. Entre os enigmas nas relações de amor existe a estranha capacidade de se guardar na memória alguém de quem ainda se gosta. Afinal, algo forte não se apaga para sempre. Tudo pode começar depois de três ou quatro encontros: percebemos quando uma pessoa começa a nos interessar para valer. Basta um telefonema, a mensagem deixada no celular ou a simples menção de um encontro, a promessa de um passeio ou a surpresa de encontros durante as caminhadas matinais. A pele se enche de brilho, a espinha permanece ereta, os olhos faíscam, o humor reluz. E, toque após toque, aproximação após aproximação, o envolvimento para tornar-se uma presença essencial. A segunda fase tem início com o aprendizado do novo eleito, nas suas características por determinados prazeres, no tom da voz, nos gestos, na voz cheia de sedução, na inteligência das observações, nas pausas, nos silêncios.

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Vamos supor que o eleito veio de longe, separado e economicamente sem problemas, para buscar refazer a trajetória dele em rumo ainda indefinido. De repente, parece encontrar o que procura. Então, viva. Não há prazer igual a estar com a pessoa certa no momento certo, com o sol dourado detrás das árvores, a brisa suave, o champanhe no ponto e nenhum minuto de pressa. Cena de cinema. O indescritível continua. Mais empolgante ainda são as rápidas separações: em dado momento, cada um vai para a sua casa, toma banho, troca de roupa, torna-se atraente e depois se apressa em telefonar para confirmar a escolha do restaurante. O que mais desejar de um jantar com vinhos, conversas dos deuses e revelações envolventes? O que mais pedir quando há sinceridade no discurso e nas intenções de aprimorar um encontro especial? São etapas em que tudo ao redor se transforma na mais magnífica das paisagens e o seu romance na meta determinante da existência. Na terceira etapa, essas duas pessoas já lidam com aspectos de companheirismo. Apresentam solidez de planos, revisões, mudanças, proposições, retomadas, definições, reinvenções de metas. Atravessam meses de evolução sentimental e pessoal. Tudo certo? Não. Um dia, por obra e graça das forças inexplicáveis do destino, o ser amado pede uma conversa séria. Nenhuma conversa que se diz séria acaba sem deixar rastro.

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Recebe-se a seguinte informação: o seu amado pretende retornar para onde morava. Por aqui, muito amor, mas também inadaptabilidades, saudades, vontade de rever pessoas queridas. Argumentos terrivelmente simples. OK, você que já pressentia tal possibilidade no começo, pensou que isso desapareceria. E o seu coração faz crac dentro do peito. O baque é amortecido, contornado, disfarçado, assimilado, deglutido, pensado e, finalmente, resolvido. Aquele que poderia ser o enlevo de sua vida vai mesmo embora. Você: arrasada, porém compreensiva. Ele: promessas, projetos, garantias, declarações. Abraços e beijos no aeroporto. O avião decola, você não derrama uma lágrima. Durante as primeiras semanas, trocas diárias de emails, ligações telefônicas e tudo bem. Dois meses depois, raras mensagens. Seis meses à frente, ele a convida para visitá-lo, para retomarem o impulso do romance e, quem sabe, até pensar em morar por lá. Ele, animado. Você, apreensiva. Surpresa: você decide não viajar ao encontro dele. Nem manter contatos freqüentes. Se a decisão dele morar longe é irrevogável, você prefere sair dessa. Mudar de cidade, para ceder àquele chamado, seria anular-se demais. Com infinita tristeza, você prefere sumir de cena, mantendo a chama do que nunca fora acabado. Descobre sozinha que é bem mais valioso manter boas lembranças do que promessas que voam.

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PROTEÇÃO

PÉNDULO DOMÉSTICO

Dedico este texto à minha mãe Floripes, que sempre inventava um jeito de nos proteger além da conta

Geralmente a família Diniz costuma citar em muitas referências na imprensa a figura de meu pai, Valentim, por ter sido ele o fundador do nosso grupo de empresas. Eu também me incluo entre os que vivem a citá-lo com amigos, talvez devido à enorme consideração e à admiração que mantenho por ele. Mas, de repente, me dou conta de que a minha família não deveria ser considerada um patriarcado. E a minha mãe, Floripes, participa de qual parte dessa história? De origem portuguesa, ela mantém aquelas características discretas das tradicionais mulheres européias, que, por motivos agora já perdidos no tempo, preferiam deixar os maridos brilharem por si, sozinhos, contanto que as poupassem dos aspectos públicos. São mulheres que herdaram comportamentos provenientes da dominação, e

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que embora tenham caráter forte, são discretas e se mantêm, por vontade e tradição, em segundo plano. Minha mãe deve ser reconhecida também por outros valores. Enquanto meu pai se ocupava em fazer crescer continuamente os negócios, ela agia como o pêndulo familiar. Vinham dela a força, a perseverança, o senso de justiça, o equilíbrio e, acima de tudo, o exercício diário de manter a família em união. Sua preocupação com os filhos continua exemplar. Até hoje ela acha que precisamos comer mais, e vive a comandar/coordenar pratos tentadores para nos seduzir pelo estômago. Para minha mãe, vamos continuar a ser os seus eternos meninos e meninas (ainda hoje deve ser difícil aceitar que crescemos, saímos de casa e que ficamos independentes). Bom, agora que também sou mãe de três filhos, sei o quanto isso é duro. Mas fazer o quê? Regras da vida são regras da vida. Lembro-me de minha mãe, ainda hoje uma senhora relativamente vaidosa e atenta ao mundo, como uma torre de observação doméstica. Nada lhe escapava, apesar de nunca deixar transparecer que estivesse ciente de tudo. Coisas da contenção emocional dos europeus, talvez. Mas ela costumava se manifestar, sim, a qualquer momento, quando se fazia necessário defender um filho de alguma pequena injustiça familiar ou proteger a prole de qualquer risco. Como neste livro entro em temas inéditos na minha car-

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reira profissional, decidi aproveitar para registrar meu afeto por essa mulher que nos gerou e que sempre esteve oculta dos holofotes da fama. Sua discrição e sua forma suave de aceitar os contrapontos dessa família com personalidades tão fortes fizeram dela uma lição permanente de harmonia, de ternura, de sabedoria e de atuação pacificadora. Então, começo a pensar que faz muito sentido aquela frase popular que garante: Sempre existe uma mulher forte por trás de um homem importante. Floripes Diniz está, portanto, muito além de ser apenas uma rainha do lar.

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Ah, você está vendo só Do jeito que eu fiquei E que tudo ficou Uma tristeza tão grande Nas coisas mais simples que você tocou A nossa casa, querido Já estava acostumada Guardando você As flores na janela sorriam, cantavam Por causa de você (Dolores Duran, na canção Por causa de você)


ROMPIMENTOS

MEU MUNDO CAIU Os últimos ruídos que ouvi foram o da chave dando voltas na porta e o carro saindo da garagem. Depois disso, um silêncio incompreensível e assustador se abateu pela casa. Olhei em volta, completamente sem reação. Cada objeto parecia reter a sua marca, o seu rastro. Meus olhos pediam lágrimas, mas me faltavam forças até para isso. Eu estava em estado de letargia profunda e, ao mesmo tempo, com o pior dos sentimentos: autocompaixão. Na cabeça ainda ecoavam as últimas frases que trocamos. Sim, a saída dele já estava definida entre nós. Eu sabia que o dia D chegaria, mas durante o arrastado processo da separação, preferi me portar como se aquilo não fosse realidade. Fingi estar dentro de um filme, em que o final seria, sobretudo, sorridente e feliz. Portei-me como se ainda recebesse demonstrações de afeto – e não o tratamento meramente educado que ele me dispensava. Distanciado, a palavra melhor. Tratou-me assim para evitar

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qualquer ebulição súbita, qualquer atitude inesperada ou outros princípios de discussão. E isso é o pior: quando alguém se porta de modo calmo em situações de rompimento, é porque a decisão já foi amadurecida, pensada e tomada. Decisão. Uma palavra que me fazia tremer. Mas agora lá estava eu, inerte no sofá, olhando para o teto. Não tinha vontade de ouvir música, de falar, de comer. Nada vezes nada. Náusea. O sol brilhava intenso lá fora. Seria melhor que o dia estivesse cinza, chuvoso, com intensidade dramática suficiente para combinar com o meu estado de ânimo. Para não dizer que me faltava ação por completo, eu sentia vontade de pegar o telefone e ligar para o celular dele. Pedir uma revisão daquela decisão drástica. Argumentar que fomos tão amigos e que poderíamos pelo menos retomar tudo de forma civilizada, tentar voltar o filme, sei lá. Quantas vezes eu já havia repetido esse mesmo procedimento, de ligar para ouvir apenas respostas vagas? O resultado, no final, me deixava atônita. Pior do que se tivesse evitado telefonar. E mais: com vergonha de ter, novamente, disparado em busca de uma corda que se rompeu. Sensação de gritar sozinha à beira do abismo. Os amigos, há semanas, tentam me confortar. Perante eles confirmo que ultrapassei o estágio de desamparo e que começo a me sentir renovada, que bom, pronta a rever a minha existência, disposta a corrigir inseguranças

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emocionais, a fazer análise, qualquer coisa. Depois dos discursos cheios de clichê e estereótipos, me pego ausente, oca, com o olhar paralisado. No pensamento, uma única missão impossível. Ele de volta. Percebo que sofrer por rompimentos é estar a um passo do masoquismo. Sofre-se, sente-se compaixão de si próprio, suspira-se, inventam-se saídas, sofre-se, sofre-se e conforma-se com o círculo contínuo de flagelação. Descubro existir certa elegância na dor, que faz as pessoas falarem baixo e se portarem de modo menos expansivo. A dor nos amadurece. Só que esses momentos de clareza acontecem como fagulhas. Na grande parte das horas, sei que vou apenas roer a minha obsessão de não aceitar a perda, de jamais aceitar que alguém aperte a tecla delete na minha vida. Isso nunca, porque fiz tudo para que a relação fluísse com beleza, amei-o como ninguém, gastei anos ao lado dele. Inadmissível agora ser tratada como personagem estranho. Em que parte dessa história foram parar as cumplicidades, as viagens, os planos, o casal considerado quase modelo? Quando despencou o meteoro no lago? Quando a lua deixou de furar o nosso teto para salpicar estrelas no chão? Difícil captar o pensamento do outro. Mas estou absolutamente certa de que ele foi imaturo, inconseqüente, egoísta. No estado de torpor em que permaneço, a única

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coisa que poderia me mover seria a vontade de buscar forças, desconheço onde, para dedicar um longo tempo a vigiar a vida dele. Nem seria difícil: conheço bem os seus novos projetos de vida. Embora ele tenha garantido não querer saber de casamento, considero isso apenas outra hábil conversa para evitar cenas de mulher abandonada. Óbvio que ele vai procurar parcerias. E depois descartá-las, como fez comigo. Preciso me levantar do sofá. Talvez uma caixa de bombons me faça bem. Ou sair para a rua, mudar o corte do cabelo, viajar para um país distante, fazer curso de italiano. Sei que vou passar a minha vida tentando esquecer esse rompimento. Nunca mais serei a mesma mulher. O amor, como dizia aquela antiga canção, é o ridículo da vida. E ele onde estará? Já se passaram duas horas e 17 minutos desde que saiu de casa. Será que ligo agora?

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FA L S O M O R A L I S M O

TE PERDÔO POR TE TRAIR Fica fácil explicar o que é falso moralismo: é condenar algo e fazer exatamente o que condenou, só que de forma escondida ou velada. Aliás, para esse tema existe uma frase perfeita do dramaturgo Nelson Rodrigues: “Se cada um soubesse o que o outro faz na cama, ninguém se cumprimentaria”. Conheço, conhecemos e conheceremos batalhões infindáveis de gente que age de modo dúbio, farsesco e limitador. Apegam-se a detalhes ínfimos do comportamento alheio, adoram comentar as agruras sentimentais dos amigos, bisbilhotam a vida sexual de todos e, sobretudo, mantêm uma máscara de padre no altar. Daqueles que exigem punição, pedido de perdão e penitência. Os falsos moralistas são altamente repressores e repressivos. Detestam que os desmintam, odeiam ser rebatidos em uma discussão e não aceitam argumentos contrários à visão conservadora que exibem. Decotes, namoros, demonstrações de afeto? Eles querem morrer só de imaginar as cenas. Festas prolongadas, filhos que chegam tarde e reuniões fora de casa? Não, o filho ou a filha deles

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são de outro meio, retrucam para negar a permissão. Mas longe dos olhares comuns, distantes do altar que ergueram a si próprios nas suas casas, eles aproveitam as viagens para tomar todas, dançar todas, namorar todas e pintar o sete do jeito que o diabo gosta. Na verdade, uma cabeça antiga. Existem ainda os falsos moralistas atualizados, com layout moderno e sem denotar o tom policialesco que rege a sua vida em grupo. Para eles, tudo pode até ser permitido. Aos outros, apenas o dedo apontando, duro. Pessoas assim são aquelas que vão para a happy hour e tomam suco de laranja, embora estivessem loucas para pedir um conhaque. Ou, quando saem com a esposa, se portam como um controlador de vôo: inspecionam cada passo dela, perguntam com quem estava falando, quem telefonou no celular e coisas tão horríveis quanto. Demonstrar ciúmes é um procedimento básico do falso moralista, porque ele vive de consciência pesadíssima por saber que pequenas traições, contanto que escondidas, são com ele mesmo. Por sua vez, a esposa falsa moralista é geralmente meio limitada, que estende toda a repressão recebida no colégio interno para cima das filhas moças. Mas, lá no fundo, ela adora contar piadas cabeludas para as amigas e, de vez em quando, passa um batom e resolve que hoje é dia de paquerar no shopping. Como dizia o Geraldão, êta vida besta!

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Falsos moralistas perigosos são os que condenam os radicalismos políticos e agem de modo radical fora dos partidos, ou mesmo aqueles que obrigam os filhos a ir à missa e ficam em casa folheando Playboy. Falsos moralistas são aqueles que fazem longos sermões para os filhos sobre os problemas do uso de drogas e à noite fumam seu baseado na festa dos amigos. Falsos moralistas são os padres que condenam o homossexualismo e depois são flagrados com adolescentes de calças arreadas. Falso moralismo é pregar economia e gastar escondido, é ver alguém se dar mal e falar “está vendo, não avisei?”, é defender uma vida saudável e atacar uma bandeja de pururuca no boteco da esquina, é ser a favor da paz universal e viver a atacar o vizinho, é pedir perdão enquanto guarda mágoas antigas, é mentir sabendo que está mentindo apenas para construir uma referência forte para si próprio. Se você é assim, consulte seu médico, porque o falso moralismo é contagioso.

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De modo que meu espírito Ganhe um brilho definido Tempo, tempo, tempo, tempo E eu espalhe benefícios Tempo, tempo, tempo, tempo (Oração ao tempo, de Caetano Veloso)


ENVELHECER SEM MEDO

VIVA A AMPULHETA Somos angustiados desde a infância pela noção da morte. O homem é o único animal a ter esta noção. Cavalos, cães, tigres ou sapos demonstram apenas seus instintos de sobrevivência, não a consciência da sua finitude enquanto seres vivos. Terrível isso? Não. Fazer o quê? Só nos resta achar graça, muita graça. Tudo que está no planeta integra um ciclo de começo, meio e fim, seja rocha, material gasoso, célula, vegetal ou ameba. Tudo começa e cumpre determinado ciclo de existência, na lei natural em que se cede lugar à chegada de outras criaturas, outras manifestações da Mãe Natureza. Percebido isso, notado o que se chama inexorabilidade da vida, ou seja, o que não tem mesmo jeito, só nos resta viver, viver e viver. Cada segundo, cada fração de tempo. Sem olhar muito para trás e sem querer saber o que vem pela frente. Passado e futuro parecem ficções. O que existe é o momento presente, aquele em que as coisas existem, em que os atos são feitos, em que o sangue pulsa nas veias, em que o nariz aspira oxigênio. Somos matéria. E dentro dessa matéria está o enigma da vida, o mistério da alma.

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Bom, escrevi esse preâmbulo acima apenas para me forçar, isso mesmo, me forçar a avaliar um assunto que ninguém gosta de ouvir: saber envelhecer. Semanalmente lemos reportagens que garantem métodos revolucionários de conter a passagem do tempo no corpo humano, além do avanço dos estudos sobre alimentação. Para ver como o panorama é alentador, basta lembrar que no início do século 20 a tuberculose ainda era uma doença mortal. Hoje podemos regenerar tecidos, alterar formas do corpo, melhorar performances sexuais, calibrar os hormônios, moldar a silhueta, adotar dietas rejuvenescedoras, detectar problemas com antecedência, corrigir imperfeições, alongar a estatura, acrescentar cabelos, extirpar pêlos, polir a aura, renovar o espírito. Tudo parece possível, tudo parece estar à mão e tudo nos faz acreditar que não seremos anciãos decrépitos. Mas e daí? O que precisamos ter sempre em mente é que, em um belo dia, a matéria despenca. Ninguém, infelizmente, descobriu o elixir da eterna juventude. Esse tema é tão importante que os mitos de Narciso (autocontemplação pela beleza) e de Fausto (a entrega da alma em troca do não-envelhecimento) continuam presentes na consciência coletiva da humanidade. Ninguém quer entrar em degeneração física e atingir o fim de sua história. Eu também não.

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Então, vamos tratar de contornar o precipício desde já. Envelhecer sem medo é possível, sim. Sempre parto da idéia de que a minha cabeça está cada vez melhor: sem mágoas, sem rancores, mais experiente, aberta a novidades, destemida, jovial. O contraponto é que o invólucro da cabeça, o tal do corpo, não acompanha esse ritmo, coitado. Então, toda atenção a ele, o corpo. Não existe mente boa sem um corpo são. Discordo radicalmente da possibilidade de um obeso feliz. Creio que as pessoas até têm a capacidade de se dizerem felizes, sem estarem nada felizes. Envelhecer sem medo é complicado e simples ao mesmo tempo, exatamente como acontece nas questões elaboradas da vida. Quando o tempo avança e conseguimos manter o corpo em bom estado de conservação, a carga da passagem do tempo se torna bem mais leve. O espelho deixa de assustar, as roupas não viram inimigas, a alimentação se torna um prazer, o amor pode acontecer, o olho continua a brilhar, os risos são constantes e o calendário parece uma bobagem. Sem excessos, a trilha pode ser longa.

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Quem me telefonou Seus dramas contou Pois se sentia sozinho É meu amigo É isso o que eu tenho no mundo, em qualquer lugar (Quem perguntou por mim, de Milton Nascimento e Fernando Brant)


AMIZADES

ALÉM DO HORIZONTE Como quase todos os temas atuais, a amizade também começa a virar mais um item de consumo. Ter amizade hoje em dia passou a significar enviar cartões virtuais, mandar mensagens engraçadas pelo celular, cantar parabéns bem alto, sair nas noites de sábado para assistir um filme. Que pena. Ainda acredito que amizade é algo muito mais à frente disso tudo, além de abranger sentimentos de profundidade incomparável. Nada se compara a uma amizade sincera, de verdade, daquelas que se conta para ligar até as 4 da madrugada, nem que seja para pedir alívio na dor de cotovelo que não acaba nunca. Acho espantoso como as pessoas agora utilizam com freqüência a palavra amigo para gente que absolutamente não nutrem um naco sequer de amizade. Na grande parte das vezes, o que agora se chama amizade é apenas, e olhe lá, uma forma de companheirismo entre colegas de empresa, ou afinidades entre conhecidos do mesmo bairro que saem para shoppings e baladas.

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Amigo é um termo forte, que ressoa no peito. Quem pode dizer que tem amigos nunca está só, nunca sente desamparo, nunca sofre de carência afetiva crônica. Digamos que os amigos preenchem aquele vácuo que qualquer amor sempre deixa, mesmo durante as fases boas de namoro e casamento. Um marido ou um namorado jamais se equivale a um amigo, por mais que se esforce em parecer. Uma briga de namorados pode significar trovões e relâmpagos durante uma semana, porque nenhum dos dois toma providências de avançar o terreno para pedir perdão. Na amizade, um desentendimento costuma acabar em cenas dramáticas bem exageradas, feitas para que o outro comece logo a rir e a perceber a bobagem que estavam cometendo. Claro, nem sempre que dois amigos brigam a coisa acaba em bandeira branca. Mas se existir um fluxo contínuo de afeto, a amizade se mantém viva, tenaz, gratificante, envolvente e atraente. Amigos de verdade, aliás, não exigem nada do outro amigo. Ou exigem? Não pedem exclusividade, jamais reclamam se você andou sumido, não inventam desculpas bobas para justificar faltas cometidas, nem ligam para tomar satisfação de nada. Só sei que os bons amigos deixam tudo fluir, flutuar, espairecer, pois sabem que a amizade sobrevive a tremores de humores, a chás de sumiço e até a falta de notícias. Tenho amigos de anos a fio, verdadeiros tesouros da vida. Costuma ocorrer que fiquemos algum tempo sem

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nos ver. Quando vem o encontro, os primeiros diálogos parecem uma continuidade da última conversa que mantivemos há meses. Ou, quem sabe, anos antes. Sem cobranças, sem expectativas, sem mágoas, sem rancores, sem nada. Evitam tomar partido durante uma separação, ou então tomam logo o seu partido, imediatamente. Só perguntam sobre o trabalho depois de alguns minutos, para fugir do papo-escritório. Sobre a família, esperam primeiro você comentar algo. Namoros? Ah, isso cada bom amigo adora dar o máximo de força, pedir detalhes, esmiuçar quem são os pretendentes e rir das situações acontecidas. Os amigos são mesmo a alegria da vida. Mas, cuidado: recuse as imitações.

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APRENDER A FICAR SÓ

NO SILÊNCIO DO QUARTO Somos educados desde pequenos a conviver em grupo, a resolver situações de modo coletivo, a raciocinar segundo opiniões de consenso. OK. O problema é que nas sociedades ocidentais, diferentemente do que ocorre no Oriente, as pessoas nunca são ensinadas a pensar por si, a amadurecer opiniões e, o mais importante, a aprender a viver só consigo próprio. O pior é que todos, nem que seja por um momento, acabam ficando sem ninguém. Então, logo surge o bicho da ansiedade, que nos obriga a reagir do modo mais primário possível: comer, falar, comer, falar. Confessar publicamente que se está só parece um ato vergonhoso, por denotar um raciocínio completamente errado: “Se estou só é porque não encontro companhias, e se não encontro companhias é porque devo ser alguém desinteressante”. Para suprir essa ausência de alguém constantemente ao lado (note-se que não estou falando de casamento), vale qualquer coisa: ligar a tevê, o toca-discos, falar ao telefone, abrir uma garrafa de vinho, comer doces e abrir a geladeira de cinco em cinco minutos. Tudo ao mesmo

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tempo, lógico. Esse procedimento é comum, principalmente em grandes centros urbanos, onde se convive no trabalho com grandes quantidades de pessoas. Ao se chegar em casa, parece faltar algo: multidão. Engraçado é que deveríamos sentir alívio por chegar em casa, sem ter que continuar a ouvir o rumor das ruas, nem conviver na pressão dos aglomerados humanos. Mas qual o quê. Mal se chega da rua e logo se inicia um ritual de suprir o suposto vazio. Isso também vale para quem mora com alguém: a aceleração é a mesma. Nunca se está satisfeito, nunca se relaxa, nunca se acalma. Podemos levar em conta que esse traço é um dos males da civilização moderna. Mas prefiro conduzir o assunto para outro lado, o de saber ficar só, o de aprender a ser só. Ou como disse Gilberto Gil em uma bonita canção, “eu preciso aprender a só ser”. Pois bem, quando chegar a tal constatação, quando saber o momento de ouvir a voz que vem do interior de cada um? Ficar só é fundamental para se colocar as idéias em ordem, para analisar os acontecimentos do dia, para projetar o andamento da vida. Ficar só faz parte da essência humana, do aspecto animal que obriga cada ser a refletir, a se programar, a se corrigir. De nada adianta a humanidade se refugiar em paraísos artificiais ou recursos tecnológicos para fugir de si próprio. Precisamos saber nos desligar, nos desplugar, nos desconectar. Ficar

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só engrandece, amadurece, suaviza, acalma. Saber ficar só é uma virtude. Importante observar quanto a isso: quantas vezes por semana tentamos fugir da situação de nos sentirmos sós? E por que agimos assim? Vale mesmo falar tanto ao telefone, assistir dezenas de filmes ruins na tevê, perder incontáveis horas nos bares, exercitar sem parar a musculatura da língua? Qual é o problema de sentar, cerrar os olhos, meditar e descobrir como somos grandiosos, interessantes e cheios de infinitas possibilidades? Ficar só é uma arte, uma ciência, uma religião. Reze para você mesmo.

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Viver é bom, nas curvas da estrada Solidão que nada Viver é bom, partida e chegada Solidão que nada (Solidão que nada, de George Israel, Nilo Romero e Cazuza)


VIAGENS

TERRENOS MINADOS Nada tão próximo dos sonhos como as viagens. Deslocar-se no mapa de um ponto a outro continua a ser um fator físico que modifica a percepção, aguça os sentidos e provoca aprendizado. Mudar de paisagem, pisar em locais desconhecidos, ter acesso ao novo: viajar é a mais profunda forma de compreender a noção de espaço e tempo. Tudo pode ser assim, grandioso e importante. Contudo, todo viajante também acumula histórias às vezes complicadas ou situações esdrúxulas, porque o imprevisível faz parte do espírito das viagens. Senão, qual seria a graça em percorrer trajetos banais? O preâmbulo acima serve apenas para fazer pensar sobre outros aspectos do verbo viajar. Por exemplo: viajar com algum amigo. Viajar e se aborrecer. Viajar e se arrepender. Tudo é possível, a partir daquela hora em que se deixa a casa rumo a paragens distantes. Principalmente se vamos acompanhados por pessoas que irão conviver conosco 24 horas do dia. Nos casamentos, as viagens são o grande teste para o relacionamento. Mais do que no convívio diário, um casal

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em viagem precisa estar munido de cinco arrobas de paciência e uma tonelada de companheirismo. Haverá convivências obrigatórias em táxis, aviões, camas de hotéis, visitas, refeições, compras, passeios, horários de despertar e o diabo a quatro. Tudo com direito a permanecerem juntos, cotovelo com cotovelo, por grandes períodos do dia. Em lua-de-mel, lindo. Na vigésima viagem, suplício. Conselho: no meio da viagem seria ideal que cada um inventasse seus programas separados, desse um tempo para o outro, pedisse para ficar sozinho no hotel lendo um livro, etc. Trocando em miúdos, é muito importante procurar trazer doses de alívio para que a viagem do casal não se torne uma chatice. Viagens com filhos também costumam ser transtornos, principalmente se os seus rebentos vão dividir a mesma suíte ou a mesma habitação. Tolerância zero para tevês ligadas, banheiros molhados, correrias nos corredores em dias chuvosos, reclamações constantes sobre a culinária local e mais 217 pequenos imprevistos, de comprar band-aid a trocar camisetas na megastore mais distante da cidade visitada. Como se nota, viagens também produzem olheiras. Chega, entretanto, a pior das viagens. Trata-se daquela que se convida um grande amigo, fazendo-se planos antecipados de muita diversão, saídas à noite, roteiros mirabolantes, bons jantares, museus, antiquários. Como são

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poucos os que convivem ininterruptamente com amigos próximos, descobre-se durante a viagem que eles se encaixam na complicada categoria: de chatos. E que os hábitos do amigo denotam certa avareza irritante, certa displicência blasé, certos atrasos constantes, certas manias, certos modos bobos de se comportar. Até o terceiro dia, tudo podem ser flores. O impacto da viagem ainda permanece forte e capaz de anular as discrepâncias. Mas existe um momento – não se sabe quando esse momento acontece exatamente – em que o amigo começa a parecer o mais estranho dos seres em sua vida. E a tragédia ocorre: descobrir, em silêncio, que ele o incomoda bastante e que pode comprometer a viagem. Quando se atinge esse ponto de ebulição, é importante ter uma conversa direta e sincera, expondo o que incomoda. Caso contrário, o sentimento de arrependimento crescerá como o fermento da discórdia. E a sua tão bela viagem poderá acabar em cara feia, trombas e falta de assunto. Ou pior, antecipação do retorno. Ou pior ainda: término da amizade. Antes de pegar o próximo vôo das férias, verifique quem vai com você. Ou escolha a opção que sempre funciona: viajar sozinho. O mundo continuará lindo.

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G A F E S E T R A PA L H A D A S

A COMÉDIA DOS ERROS Sim, cometer gafes é terrível. Ninguém admite a possibilidade de parecer indiscreto, atrapalhado, bisbilhoteiro, maldoso, sem educação ou desrespeitoso. E quando acontece tudo isso ao mesmo tempo? Mas existem formas, formas e formas de se compreender ou analisar as gafes cometidas por alguém. As piores são as que podem ser usadas como instrumento para reforçar idéias contrárias à presença de alguém, ou as que submetem pessoas atrapalhadas a julgamentos sociais. A velha sentença “falar de corda em casa de enforcado” poderia ser considerada a matriz da gafe. Quem nunca indagou notícias de pessoas que já haviam morrido, quem nunca tentou apresentar um inimigo a outro, quem nunca esqueceu o nome do amigo próximo, exatamente na hora mais importante da conversa? Atire a primeira pedra quem não revelou indiscrições que não deveriam ser ditas naquele momento ou quem nunca pediu informações constrangedoras? Conheço gente que derrubou tinta nanquim em vestido de noiva. Ou pessoas distraídas que abrem cartas dirigidas a pessoas amigas e descobrem fatos de arrepiar os cabelos.

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Existem muitos que fazem revelações maliciosas sobre determinada pessoa, para em seguida descobrir que abriu a boca para alguém muito íntimo de quem atacou. E aqueles que contam detalhes dos amigos e depois descobrem que o mesmo amigo soube em detalhes do que foi comentado? Uma coisa é certa: as mulheres são mais vítimas das gafes do que os homens. A resposta? Elas falam mais, são bisbilhoteiras de plantão e adoram instilar eventuais venenos. Mulheres também amam implicar com certos personagens ou enxergar disputas territoriais onde não existe nada. O resultado: amizades que se rompem, pequenos escândalos, discussões e toneladas de perigosos equívocos. Precisamos, portanto, exercitar a ponderação, contar até cem a cada vez que baixar a vontade de avaliar o comportamento de alguém. Há situações em que as pessoas não sabem lidar com comportamentos excêntricos, ou mesmo traços marcantes, e transferem seus julgamentos para uma linguagem repleta de cobranças sociais. E nada mais desagradável do que ouvir um falso moralista, inspetor de salão ou doutor-sabe-tudo. Pior ainda, passar por zen-vergonha, que são os sonsos fingindo ser liberais. Mas na essência são altamente repressores. Vale refletir sobre isso. Gafes imperdoáveis não faltam: ter mau caráter, ser ambicioso em excesso, demonstrar arrogância, falar em demasia, mentir sem motivos, acolher fofocas, repassar informações sigilosas, fingir amizade, roubar namo-

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rado, atrair funcionários, ser presunçoso, entregar-se à preguiça, esconder fatos, ocultar negligências, ser displicente, ocupar espaço em ambientes públicos, achar graça em cometer pequenos furtos, brincar de ser saudável e continuar com os mesmos hábitos, não respeitar os ancestrais, enviar mensagens anônimas, ouvir conversas alheias, captar informações de modo sorrateiro, não limpar os pés no capacho, comer com ansiedade, falar demais de si próprio, dar sinais de que não presta atenção à conversa, mexer no controle remoto sem consultar os demais, fazer ligações interurbanas na casa de alguém sem pedir licença, fuçar arquivos do computador de um amigo, pedir coisas emprestadas e nunca devolver, não demonstrar gratidão, obrigar os amigos a conviver com o barulho das suas crianças, criar animais domésticos apenas por modismo, gastar além do que pode, aplaudir desgraças alheias, fumar em ambientes fechados e dizer que é direito seu, casais que discutem na rua, beijar ardentemente o parceiro em qualquer local público, andar o tempo todo de mãozinhas dadas com o seu par, falar alto em restaurantes, tratar mal os empregados, diminuir o esforço de alguém, não ser gentil, criticar a opção sexual, pedir favores profissionais a um profissional, ficar impassível na hora em que recebe a conta, chegar atrasado a qualquer compromisso, provocar temores, ser alarmista, contar vantagem, fingir que não vê alguém, ser sovina, não amar o próximo, não admitir que errou e, principalmente, nunca pedir desculpas. O resto vale. Ou não?

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MODA

LANCES E RELANCES Antes de iniciar essa costura, é bom esclarecer: a moda não pode mais ser compreendida como algo frívolo. O que usamos e vestimos reflete exatamente a época em que vivemos, a partir de uma série infindável de releituras, códigos, símbolos e referências. Talvez o grande lance da moda contemporânea seja o de permitir milhares de combinações, escolhas e possibilidades, no mesmo ritmo em que se compartimenta por segmentos bem específicos de consumo. Quero contar como foi e como passou a ser minha relação com a moda. Quando me tornei obesa, tudo, obviamente, era um gigantesco tormento. Aquele tormento que os gordos conhecem bem: provar roupas que não entram, raramente encontrar peças adequadas e tantas outras situações deploráveis. No meu caso, eu só usava calças fuseau com camisões por cima. Nada deslumbrantes, porém corretos e discretos. Depois das mudanças de layout ocorridas na minha figura (e no layout da cabeça, também), detectei um fator novo na vida: descobri que sou tridimensional. Isso mesmo,

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descobri pelo espelho a tridimensionalidade do corpo! No tempo da obesidade eu só me via de frente e de costas. Não havia lados, saliências, reentrâncias, volumes separados, nada. Eu era uma massa compacta. Adaptar-me ao meu novo perfil de mulher magra também não foi nada fácil. Os ex-gordos demoram um tempo para se livrar da sombra de sua antiga silhueta. Passei então a ler muito, a buscar informações e a observar preferências. Tudo me parecia novidade, mas seria preciso encontrar a trilha própria. Coloquei todos os modelos que gostava e os que não gostava, fiz testes com golas redondas, babados de ombro a ombro, alças e decotes. Maravilha dos deuses poder, finalmente, ter acesso ao que me era proibido no tempo de obesidade. Centímetro a centímetro, botão a botão, consegui assim elaborar um estilo. Ou melhor, o meu mix de influências. Hoje vejo que me visto de modo clássico, com toques de perua. Gosto – e me permito – usar adereços, jóias, roupas de cores fortes, cortes insinuantes e braços de fora. Exatamente o contrário dos tempos de “roliça rebelde”. Naquele período, bastava colocar um cinto para parecer que explodiria tudo: figurino, cintura, costuras e até as paredes ao redor. Ah, como é bom ser magra. Como essas descobertas ainda são recentes, divirtome combinando trajes ou arriscando combinações. Roupa nova, adoro. Sinto raiva de quem tem corpo legal e não o

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valoriza. Por exemplo: tenho horror daqueles que usam roupa velha para ficar em casa, com figurinos destrambelhados, molengos e com cara de relaxo. Amo estar sempre impecável. Ninguém sabe o que pode acontecer no próximo minuto, não? Aprendi que estilo precisa ser um tom maior de se encarar a vida, de se olhar para as situações, de se reagir ao inesperado. Em moda vale perguntar, pedir opinião ao espelho, não agir por impulso, namorar o vestido da vitrine, evitar roupas que provoquem insegurança, saber como mostrar o corpo, entender que nem sempre o menos é mais e não se entregar a embalagens que não foram desenhadas para você. Porque na esfera do estilo nem tudo é necessariamente universal, usável ou duradouro.

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Vai, vai mesmo Eu não quero você mais nunca mais Tenha a santa paciência Ponha a mão na consciência Deixe-me viver em paz (Vai mesmo, de Ataulfo Alves)


S O M AT Ó R I O D E E R R O S

ERRO AO QUADRADO Acho que todo mundo já passou pela situação de ter que dispensar alguém de sua vida. Esse alguém pode ser funcionário, amigo, namorado ou amante. Óbvio que a situação é sempre delicada e nos deixa cheios de dedos na hora de elaborar palavras elementares ou para atingir o ponto de apertar o botão Sumase! para sempre. E como se chega a ponto tão crítico assim? Aí o bicho pega. Cada história apresenta o seu roteiro, alguns parecendo rocamboles, outros com jeito de labirinto. Mas há uma unanimidade sobre o assunto: as pessoas são dispensadas por pisadas na bola, por desatenção desmedida, por caráter duvidoso, por mentiras seqüenciadas, por bajulação excessiva, por falta de noção e por invasão de espaço alheio. O problema, talvez, é não se perceber como cada um difere do outro, exatamente do modo que os países podem ser antagônicos em culturas, características geográficas e idiomas. Se às vezes ocorrem aproximações, são meros movimentos diplomáticos e políticas de boavontade. No mais, tudo continua como antes. Voltando ao começo do tema, para se atingir o ponto X

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de enviar alguém ao espaço, será preciso ter suportado várias situações irritantes e diversas trapalhadas. Na maioria das vezes, quem comete as infrações não percebe nada. Ou quando leva uma chamada, arrepia-se feito jaguatirica pronta a dar o bote. Incrível como existem personagens sem a menor humildade para ouvir, aprender ou reconhecer erros, mesmo que essa reprimenda seja feita em tom brando, educado e aproximativo. Conheço histórias de pessoas que vivem pulando de emprego, sempre em atritos internos aparentemente bobos. Alegam ser incompreendidas. Tudo bem, isso pode acontecer em alguns casos. Na real, entretanto, a situação é a seguinte: é gente de nariz empinado na alma, que jamais se dobraria perante uma simples bronca. Pior: jamais se acham fora de rota, jamais cometem deslizes, jamais deixariam de ser perfeitas. Considero uma virtude poder ouvir alguém mais experiente ou desfrutar dos conhecimentos mais amplos de determinado amigo. Precisamos ter essa capacidade de admirar, de reconhecer análises mais elaboradas, de aceitar propostas rejeitadas, de compreender que não temos a chave do mundo. Tento ser assim, torcendo meu orgulho todo dia, baixando meu topete e engolindo palavras que ficam prontas para pular da boca. Então, espero que aconteçam aprendizados semelhantes com quem convivo. Quando não há, exercito meu lado de monja: olho para a janela, observo as nuvens e

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agüento o tranco. Com litros de paciência. Suporto uma, duas, três, quatro. Mas num belo dia a monja roda o hábito. E aciona o seu comando invisível que dispara pequenos raios e relâmpagos. Isso significa que aquela pessoa que incomodava tanto já não irá mais pisar na bola, muito menos dividir diálogos comigo. Não desejo nenhum descaminho aos que cometem somatórios de erros. Ao contrário: torço com sinceridade para que acertem o rumo, percam a altivez e ganhem concentração na vida. Voilà!

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Dia & Noite


Na primeira manhã que te perdi Acordei mais cansada que sozinha Como quem perde o prumo e desatina (Na primeira manhã, de Alceu Valença)


A PRIMEIRA VEZ

SESSÃO DE ESTRÉIA Ah, a primeira vez. Toda primeira vez é um mergulho no desconhecido, seja em qualquer tipo de ação ou de acontecimento. O resultado pode ser bom, ruim, mediano, complicado, inesquecível, marcante, desanimador, delirante, traumático, apaixonante, repelente, dos deuses ou dos infernos. Cada pessoa tem histórias a contar sobre a primeira vez que fez algo. A primeira vez pode ser sexo, uma estréia em teatro, uma receita culinária, uma viagem de navio, um salto de trampolim, um quadro, um beijo, a chegada de um filho, um sutiã, um livro, um casaco de tricô, um doce, um amor, um sonho. A primeira vez pode significar embaraço, medo, erro, primarismo, inexperiência, ousadia, arrojo, valentia, determinação, preparação, desejo, impulso, delírio, bobagem, sucesso. Quem disse que muitos não acertam logo na primeira vez? Muitos, aliás, ficam marcados por seus primeiros acertos profissionais, por mais que façam tentativas posteriores. Muitos também desaparecem de cena depois de uma estréia sem talento, depois de um beijo mal

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dado, depois de um bolo queimado. Quantos não sentem saudade da primeira vez em que viram a neve, da primeira vez que tomaram um pileque ou da primeira vez que sentiram prazer com alguém? Já nascemos com a estranha capacidade de querer experimentar tudo o que aparece. Basta ver a criança na fase oral, que coloca todos os objetos na boca, para que possa compreender através daquele contato a textura, o sabor, o volume e até se vale a pena insistir no aprendizado. Os testes com a boca evoluem com o tempo, mas continuamos curiosos e impelidos a fazer coisas que nunca realizamos antes. Com medo ou sem medo, o que vale é se jogar no tobogã da vida. Quebrar a cara faz parte das experiências. Ainda bem. Seria muito chato se todas as primeiras vezes fossem momentos sublimes. Bem melhor poder contar, depois de anos, como foi a sua reação quando se viu pelado ao lado de alguém também pelado, por exemplo. Encolheu a barriga, relaxou, aproveitou, ficou tímido, deitou e rolou? Tudo se torna divertido e importante na formação de qualquer um. Basta ter olhos divertidos para descomplicar os novelos do passado. A primeira vez em qualquer trabalho também é dureza: tudo parece estranho e capaz de provocar o seu imediato desligamento. A primeira vez em uma viagem é quase uma aula sobre o mundo e a nossa função aqui nes-

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sa imensidão planetária. E o primeiro medo? Pode ter acontecido na roda-gigante, na escuridão do bosque, na bronca do professor, no susto da madrugada, na perda do amigo, no ciúme de alguém. A primeira alegria talvez ninguém registre na memória, porque sentir-se alegre faz parte da condição humana desde a menor infância. A primeira decepção todos guardam dentro do vinagre do rancor e estará sempre disponível quando solicitada. A primeira conquista, essa sim, faz estufar a alma e o peito de empresários a pilotos, de agricultores a escritores, de conquistadores a conquistados. Bom, se tudo tem, obrigatoriamente, uma primeira vez, nem adianta se lastimar. Vale mais é armazenar sensações calorosas, cálidas, amistosas, sensuais, bem-sucedidas, curiosas, excitantes, apaixonantes ou mirabolantes. Nem que a primeira vez tenha sido uma catástrofe. E daí? Há sempre uma primeira vez. Certo?

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A Ú LT I M A V E Z

ACABOU-SE O QUE ERA DOCE A última vez pode trazer vários sentimentos e sensações: alívio, dor, concretização, perda, vantagem, acúmulo, desfecho, solução, partida, despedida, ausência definitiva de repetição, decisão, interrupção, ponto final. A última vez lembra lenços brancos na despedida e também lembra felicidade por ter, finalmente, atingido a esperada etapa final de um acontecimento. A única carga terrível encerrada no termo a última vez pode ser a expressão nunca mais. A última vez, portanto, só se torna definitiva com a passagem do tempo. Ninguém pode garantir que “esta é a última vez que procuro por você”, como os namorados e os amantes costumam proferir em momentos de pouca lucidez. Se realmente não se encontrarão mais, é decisão do destino. E cada um só poderá afirmar “a última vez que o vi” depois de um longo período de confirmação do afastamento definitivo. Senão estaremos diante da tragicomédia da vida amorosa, que permite idas e vindas como as marés, e onde nada costuma ser definitivo. Não é assim? O compositor Noel Rosa escreveu uma letra que dizia assim:

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“Jurei não mais amar, pela décima vez”. Isso, cá entre nós, demonstrava a sua imensa sabedoria. Bom, vamos mudar de canal? Fazer algo pela última vez também pode provocar alívio, essa palavra linda que parece um bálsamo para qualquer situação possível. Não é delicioso sentir-se aliviado porque, pela última vez, fez a aula final do curso, ou porque deixará de voltar àquela situação X que tanto evitava? Às vezes o destino nos dá uma rasteira e acabamos por voltar a situações que pareciam absolutamente improváveis de acontecer novamente. E lá vamos nós, murchos, de rabo entre as pernas. De repente começo a perceber que pronunciar a última vez é uma tarefa complicada e que, aparentemente, só as situações de morte traduzem sua real amplitude. Dizer que fará algo pela última vez? Quem garante que não? Ninguém. Só as impossibilidades físicas impedem algo de acontecer mais uma vez. Vamos supor, por exemplo, que você teve um namoro com alguém da Hungria, há muitos anos. Mesmo assim, não há garantia de que a última vez que vocês se encontraram foi a última vez definitiva. Nas voltas que o mundo costuma dar, existem incontáveis possibilidades de se encontrar com o seu antigo amor húngaro no meio da rua – por meio das travessuras que o destino adora fazer com todos. Uma amiga que tenho, outro exemplo, ficou pasma ao encontrar, no trigésimo-segundo andar de um hotel de Tóquio,

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com um garçom cearense que conhecera muitos anos antes no Brasil. A última vez fica terrível quando sabemos que alguém muito especial se foi para sempre, tornando uma situação irremediável, sem volta, sem possibilidades físicas de contato. Então podemos, assim, de verdade, dizer nunca mais ou que houve uma última vez em tal história. OK, mas vamos virar correndo esta página do livro porque prometo ser a última vez em que escrevo sobre a última vez. Será que terei que jurar dez vezes? Pela última vez, acredito que não.

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RITUAL DAS REFEIÇÕES

SABER COMER, SABER VIVER Acompanho com enorme interesse um movimento que só existe na Europa, chamado de slow food. A tradução do termo significa literalmente comida lenta, ou comida sem pressa. É o contrário de fast food, comida apressada, comida de balcão e uma das pragas da vida moderna. O movimento slow food procura trazer de volta o ritual das refeições, a confraternização à mesa, a alegria de compartilhar a comida com amigos, a leveza e a alegria que a alimentação deveria sempre proporcionar aos comensais. Tudo em ritmo desacelarado, para que cada pessoa possa valorizar os aromas, as texturas e as receitas, além de encontrar pessoas em busca de conversas amenas e inteligentes. Vivemos em um país que, talvez pela péssima influência dos hábitos norte-americanos, começa a abandonar o costume de almoçar e jantar com a dignidade que o ato de se alimentar pede de cada um. As pessoas optam, cada vez mais, por lanches calóricos, sucos industrializados e locais barulhentos. Poucos ainda se dedicam a sentir prazer no ato de comer, que é uma ação quase sagrada, por ser a única forma de se renovar a energia do corpo.

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Fico assustada ao ver pessoas comendo em pé, quase enfiando um hambúrguer pela goela abaixo. Mesmo quando têm um pouco mais de tempo, elas preferem comer de modo apressado, como se estivessem sendo empurradas por alguém. Comem, ou melhor, engolem, sorvem refrigerantes o dia inteiro e reduzem sua alimentação a uma cadeia de alta ansiedade. Água, por exemplo, deixou de ser o líquido mais consumido no planeta há mais de 20 anos. Você sabia disso? O consumo de refrigerantes suplantou, com grande diferença, o consumo de água. E por quê? Talvez o homem contemporâneo considere ao pé da letra os slogans publicitários dos refrigerantes, que prometem ação, emoções fortes e muita adrenalina. Tomar água deve parecer coisa da terceira idade. Então, voltando à premissa inicial, vivo a falar, em palestras ou em encontros menores, da importância de se voltar a comer sem pressa. De nada adianta, inclusive, entrar em dietas e continuar a comer de modo ansioso. Os resultados serão sempre menores. Para reeducar a alimentação também é preciso reeducar a atitude perante o alimento. Nada tão simples e nada tão complexo quanto uma simples berinjela ou um ovo. Procure observar como são os legumes, as verduras, as proteínas que se transformam em receitas elaboradas para vir à mesa. Procure apalpar as frutas, cheirá-las, sentir a textura das cascas, saborear lenta-

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mente uma mordida, deixar o paladar em êxtase. Há quanto tempo você não faz isso? E por mais quanto tempo pretende continuar almoçando um sanduíche de três andares? A vida acaba ou se renova todos os dias. Precisamos estar atentos à quantidade de toxinas e de alimentos equivocados que ingerimos. Quem muda a alimentação, muda de vida. E quem muda a forma de se comportar na hora das refeições, enaltece o espírito e celebra a própria existência.

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CUMPLICIDADE

PISCADELAS DE OLHO Ser cúmplice traz inicialmente um sentido de alguém com quem se divide um delito, ou algo errado. Certo? Errado. A cumplicidade também costuma aparecer como uma participação efetiva de algum parceiro em algo específico. Trocando em miúdos, o cúmplice pode ser o seu sócio de travessuras pela vida afora, o avalista de todos os seus rompantes inesperados e, melhor ainda, aquele que pisca o olho feito um anjo protetor na hora que você pede socorro publicamente. Sob aspectos mais amplos, os cúmplices nem precisam ser apenas duas pessoas. Pode-se muito bem inventar uma confraria de cumplicidades sobre um mesmo objetivo, sobre um tema aproximativo ou sobre formas semelhantes de compreender o vaivém da vida. Com um bando de gente amiga. Um cúmplice entra em ação de modo silencioso, porque aí reside a graça da cumplicidade. Não se deve evidenciar nunca quais são as suas bases de sustentação. O bom é deixar esse rastro de mistério, como se fosse uma

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rede de conexões e de senhas que só nós, os cúmplices, conhecemos. Para se estabelecer essas cumplicidades será preciso, antes de qualquer ação, haver algum tipo de sintonia, algum tipo de opinião em comum, algum direcionamento. Não que da cumplicidade deva surgir necessariamente uma obra ou um fato concreto. Ser cúmplice é ter uma aliança invisível, para o que der e vier. De preferência em situações que provoquem muitas risadas depois. O bom humor deveria ser o combustível das cumplicidades. Sabe aquele amigo que o incentiva a fazer traquinagem com alguém bem chato, só para vocês se deleitarem depois, às gargalhadas, com o ocorrido? Sabe aquela amiga que passa bilhetes com deliciosas bobagens no meio de uma reunião maçante? É isso. O melhor da cumplicidade é tentar controlar o riso e viver inventando pequenos terrorismos poéticos para testar a reação das pessoas. E quando ninguém sabe a autoria de uma ação, por mais inócua que seja, é um momento indescritível dividir a sensação de vitória com algum cúmplice. A cumplicidade corre em trilhos paralelos à amizade. Cúmplices não se cobram por nada. De vez em quando até atualizam as conversas, mas não ficam comentando ou estendendo demais um assunto. Cúmplice ideal é aquele rápido, que pega as coisas no ar, que sabe ser criativo, inventivo, brincalhão e manter a cara mais séria do mundo.

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Isso porque um cúmplice se torna co-autor da ação cometida por você. Dá para entender? A cumplicidade gera elos de aproximação, de quase dependência e de uma intensa parceria moral. Um sinal com a mão, um telefonema rápido, uma palavra ao ouvido, duas piscadelas de olho e o roteiro está pronto. Com bons cúmplices ao lado, suportamos qualquer baque na vida: eles sabem levantar nosso ânimo, sabem arrasar com o caráter dos que nos fizeram ficar mal, sabem como injetar ânimo em nossas reações. Um cúmplice é um amigo com a elegância de um mordomo, a sabedoria de um feiticeiro, a rapidez de um matemático, a sensatez de um diplomata e a disposição anárquica de um comediante. Tudo em segredo. Não é o máximo? Procure já formar um time de cúmplices do bem.

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HORA DO BANHO

PRO DIA NASCER FELIZ Habitar grandes cidades significa pouco ou quase nenhum tempo privado, tempo para se ficar a sós, tempo para colocar a cabeça em ordem. Não vale dizer que existem por aí dezenas de academias de ioga ou centros de meditação, porque mesmo em situações assim estaremos próximos a outras pessoas na idêntica busca por isolamento, relaxamento, elevação e autoconhecimento. Descubro, portanto, que o último reduto a me permitir estar completamente isolada é o banheiro. Intuitivamente, com o passar do tempo, transformei o meu banheiro em uma sala de banhos, com tudo a que teria direito para sair renovada. Pena lembrar que a maioria das pessoas considera que o banheiro apenas uma parte na planta da casa reservada à higiene do corpo, nunca à higiene mental. Muitos também tratam o banheiro de modo relaxado, sem charme, sem elegância, por achar que não é uma área nobre. Sempre penso que o banheiro reflete a elegância da casa, a hospitalidade dos donos, a personalidade dos que habitam um endereço.

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Bom, mas como transformar de forma adequada esse local? Primeiro, o banheiro precisa ter algumas referências pessoais agradáveis, como uma planta bem-cuidada, uma gravura que traga boas lembranças, toalhas nas cores que se gosta e cheiros suaves. Nem é preciso gastar muito para se obter resultados de efeito, simples e gostosos de ver. Um quadro, uma toalha felpuda, um vaso de flores, uma luz indireta, espelho polido, sabonete cheiroso e pronto. Mas o melhor do banheiro está em saber aproveitar o momento de se banhar na água que jorra do chuveiro. Tenho tendência a me prolongar ali um tanto além do que devia, embora procure me corrigir para evitar desperdício de água – esse bem tão precioso para o planeta. Então aproveito cada segundo em que ocorre o contato desse líquido renovador com a pele, com os cabelos, com a alma. A água é um elemento quase misterioso, por sua fluidez, por sua rapidez, por suas capacidades adstringentes, por sua mobilidade física de líquido. A água é algo sagrado. E desse contato da água com o meu corpo saem as impurezas adquiridas durante o dia, saem as idéias pesadas, saem as sensações de desânimo, saem as amarguras do espírito. Um banho é capaz de trazer novo ânimo, ressaltar intenções, animar o cérebro, restaurar a umidade da pele, recarregar as baterias do otimismo necessário para enfrentar outras jornadas e, acima de tudo, colocar a cabeça em ordem.

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Banhar-se às vezes é como chorar, deixar fluir aquilo que precisa sair, aquilo que impede o fluxo energético, aquilo que trava a garganta. Banhar-se é saber se renovar, se gostar, se admirar, se cuidar. Um bom banho tem ação terapêutica, arruma a desordem dos neurônios e traz luz sobre fatos aparentemente obscurecidos pelo cansaço. Meu banho, minha terapia de cada dia. Meus banhos, meus momentos de isolamento do mundo. Meus banhos, minha limpeza de alma, de aura, de ânimo. E viva a água, essa seiva que traz vida à natureza, que movimenta os ciclos ecológicos e que sempre significará fertilidade.

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VIDA DOCE

ALÔ, DOÇURAS Gostosuras, travessuras, doçuras e delícias. Fiz, há pouco, um livro inteiramente voltado a um dos temas mais preocupantes para quem deseja se manter em forma: os doces. Parece, inicialmente, um tema tolo, mas não é. E nem está ligado apenas às questões de silhueta. Vou explicar o porquê. O açúcar, no grande painel da história da humanidade, é um elemento recente: entrou em cena por volta do século 16, a partir dos grandes descobrimentos e do crescimento das legendárias rotas de comércio marítimo. A sua forma refinada, que agora domina o consumo mundial, é um processo bastante recente, advindo do século 20. Entretanto, os confeiteiros já desenvolviam técnicas apuradas do uso do açúcar, desde os grandes banquetes das cortes francesas. Naquele período ninguém nem sequer sonhava com taxas de colesterol, glicídios ou excesso de glicose. O que valia era se empanturrar, viver espremido entre espartilhos torturantes, administrar os constantes problemas de saúde e morrer. Sem levar em conta os malefícios bucais que o consumo do açúcar pro-

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duzia nos períodos em que a escova de dentes era uma ficção científica. As pessoas ficavam sem dentes aos 30 anos. E depois ainda queremos glamourizar os personagens que freqüentavam o Palácio de Versalhes. Mas a humanidade sempre esteve voltada aos sabores que adocicassem o paladar. Nos tempos antigos, os escritos consagram os prazeres do mel e do néctar das frutas. Poetas, profetas e pregadores sempre relacionavam o sabor adocicado às visões do paraíso. No céu, os fiéis teriam, entre outras recompensas, muito mel a jorrar das fontes, muitas frutas doces colhidas à mão. A vida deveria ser tão dura – e tudo tão precário – que só o sabor doce na boca poderia proporcionar algum descanso, algum prazer degustativo. As doçuras continuariam a acompanhar a humanidade desde sempre. Basta reparar nos contos tradicionais europeus, indianos e chineses. Neles, sempre ocorrem histórias com citações de tesouros com jarras de mel, de palácios cercados por pomares de frutas doces ou até de casas feitas de gulodices, como na história de João e Maria. A literatura infantil, aliás, parece construir um mundo sobre o sabor que mais encanta a criançada: o doce. Quase tudo traz aspectos de doces elaborados, mágicos, mirabolantes e tentadores. Bruxas oferecem bolos sedutores, fadas mostram onde na floresta se encontram tortas de maçã, animais falantes constroem abrigos repletos de

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doces e até a Branca de Neve cai no truque de uma fruta doce, a maçã envenenada. Atualmente, o açúcar refinado tornou-se um dos grandes vilões da saúde mundial. O seu uso indiscriminado acarreta centenas de problemas, ciclos de obesidade, blablablá (Nem vou entrar no assunto, porque este livro não é sobre produtos light). Apenas tive a idéia de associar o sabor doce à noção do prazer. O sabor doce, além de provocar energia, saciar ansiedades e agradar as papilas da língua, é algo que permanece no inconsciente coletivo da humanidade. Tudo nos leva a crer que o bom será sempre uma placa com os dizeres “Lar, doce lar” e nunca “Lar, azedo lar”. Por isso, viva o bico do beija-flor e cuidado com a cintura!

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Inocentes, as conversas começam, / depois envolvem os sentidos, / Meio a contragosto. / Depois não há mais escolha, depois não há mais sentido; / Até que some a diferença entre sentido e nome. (Elizabeth Bishop, em Conversação)


ENCONTROS SUPERFICIAIS

OLÁ, MUITO PRAZER! Viver e trabalhar entre grandes cidades me obriga, há tempos, a manter seqüências contínuas de encontros rápidos, apertos de mão, compromissos sociais e diálogos que às vezes nem ultrapassam duas frases. É impressionante, de qualquer forma, como situações assim podem ser produtivas, marcantes e decisivas na minha vida. Aprendo a extrair o máximo do mínimo, sem me deixar levar por impressões imediatistas – que sempre conduzem idéias preconcebidas. Encontros rápidos costumam ser considerados “encontros superficiais”. Não deixam de ser, na acepção correta do termo. Mas acredito que na superfície das coisas, ações e pessoas se encontram películas bem acabadas, interessantes e que me fazem observar com agudeza os matizes do comportamento humano. Ninguém se parece inteiramente com outra pessoa, por mais que as aparências nos levem a pensar assim. Pequenas atitudes são capazes de transformar uma conversa de dois, três minutos em algo que permaneça por tempos na minha

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memória. Ou um encontro que seria passageiro em momento histórico na vida de alguém. Por que não? Isso depende da abordagem, da forma com que alguém se aproxima, do modo de tocar, de sorrir, dos lampejos de inteligência e, sobretudo, da naturalidade de agir, ser e estar. Nunca deveríamos evitar a aproximação de outras pessoas – a não ser quando o infalível radar da intuição avisa que existe simulação naqueles contatos. Mesmo assim, aprendi a sair dessas situações sem parecer desagradável. Sugiro que cada um desenvolva as suas próprias técnicas. No roteiro dos incontáveis encontros em reuniões, coquetéis, eventos, espetáculos ou meetings profissionais, ocasionalmente ocorre de conhecermos alguém bastante interessante, atraente e bem resolvido. Em geral, a primeira reação é evitar que cresça a animação daquela descoberta, porque os mandamentos sociais impedem precipitações nos encontros. E o que acontece? Corta-se qualquer possibilidade de desenvolver ligações um tanto mais próximas, apenas por ser alguém que se conheceu minutos atrás. Convencionou-se que agir assim seria imprudente, deselegante, etc. Discordo inteiramente. Apesar de não fazer dessa posição uma prática comum, devemos, sim, demonstrar curiosidade por quem nos desperte interesse. Afinal, estamos no século 21, uma era em que vale mais ter valores

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essenciais de caráter do que permanecer preso à rigidez das normas sociais. Encontros prazerosos costumam deixar um resultado de histórias maravilhosas em nossas vidas. É só questão de saber escolher, de mirar olho no olho, de apresentar segurança de atitude. Quando os caminhos se cruzam, acontece uma superposição de idéias, sentimentos, gostos, afinidades. Tudo pode ser válido, desde que ninguém decida impor regras imediatas nos encontros que começam de modo passageiro. Vale lembrar que às vezes a gente se desgasta com pessoas que estão de passagem. Mas em outras ocasiões perdemos a oportunidade de transformar um encontro superficial em um grande e único encontro.

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ESPELHOS

QUAL É A IMAGEM REAL? Desde criança ficava intrigada com os espelhos. Como e por que refletem imagens? O que há do outro lado? Gostava de imaginar que havia um mundo invertido dentro dos espelhos, habitado por pessoas que andavam ao contrário e que nos viam lá de dentro. Não deixa de ser intrigante ver imagens refletidas. O espelho tem um poder misterioso. Narciso, talvez por não ter sequer um espelho na penteadeira, apaixonou-se por sua própria imagem refletida na água de um pequeno lago. Ou teria sido naquilo que hoje chamamos de “espelho-d’água”? Nos primórdios históricos da Grécia e do Egito, os mais abastados usavam superfícies de metal polidas para que pudessem mirar os seus rostos. Essas peças eram de extremo valor e eram enterradas junto com seus proprietários. Com a evolução do tempo, o espelho continuou a ter status de riqueza. Basta lembrar dos palácios barrocos e dos salões do período clássico europeu. Depois seriam incorporados até em lendas e folclores. Espelho, espelho meu: existe alguém mais curiosa do que eu?

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E o medo que os espelhos provocavam (ou ainda provocam em muita gente)? Alguns não gostam de olhar para o espelho à noite, outros cobrem espelhos em casas de pessoas que morreram, muitos têm pavor de quebrar um espelho e os índios continuam perplexos perante a contemplação dos espelhos. Às vezes me divirto sozinha imaginando o que seria de algumas amigas sem um espelho por perto. Acho que morreriam de crise de abstinência caso fossem deixadas três dias sem um espelho. Conheço mulheres que também não sobreviveriam sem um estojo de maquiagem com espelho. E a turma dos vaidosos que quer se contemplar a todo instante, nem que seja para corrigir uma dobra da blusa? E aqueles que colecionam espelhos pela casa? E os voyeurs que colocam espelhos no teto do quarto? E os que adoram banheiros espelhados? A sociedade moderna está profundamente ligada ao espelho. Em uma época de extrema vaidade, fica impensável imaginar as pessoas sem o cumprimento do ritual do retoque, da vigilância constante, da cumplicidade com a imagem refletida. Parece até que precisamos estar bem para não brigar com o espelho. O espelho é a entidade que pauta a nossa vida estética. Ou não? Quem discordar que atire a primeira pedra. No espelho. Porém, gosto ainda de pensar sobre as seguintes questões em torno do reflexo: a imagem nos espelhos côncavos

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e convexos, as imagens distorcidas nos espelhos dos parques de diversões e as imagens que temos de nós mesmos em nossos espelhos domésticos. Qual seria a imagem real? E se a projeção da imagem não passasse de um sonho dentro de outro sonho? Por que ficamos tão atentos ao espelho? Por que o reflexo daquele rosto é tão importante? Por ser revelador do grau de conservação do corpo ou por mostrar que somos uma coisa viva, com movimentos, com olhos, com boca, com medos, com lógicas, com cabelos, com superfícies físicas estranhas. Por que quando estamos mal evitamos o espelho? Por que quando estamos bem corremos ao espelho? Está percebendo como o espelho é uma entidade a nos perseguir? Experimente ficar um dia sem se olhar em qualquer superfície que reflita imagens. Difícil, não? Está aí um dos mistérios da vida contemporânea: a overdose do espelho.

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INVERDADES

NUNCA FUI SANTA Existem situações que ocultamos pelo resto da vida, até que, sem motivos aparentes, decidimos contá-las. Aproveito agora para revelar uma série de acontecimentos pouco conhecidos da minha vida. Ninguém imagina que, ainda menina, adorava escrever cem vezes em um caderno o nome do cantor Roberto Carlos. Diariamente fiz isso, até que minha mãe descobriu e queimou o meu caderno de fã. Na mesma época, sempre que me levavam à missa, eu dava um jeito de furtar um missal da igreja. Colecionei dezenas. Na adolescência, comecei a fumar cachimbo, escondida de meus pais. Subia em uma grande árvore que havia no fundo de nossa casa e ficava lá em cima, pitando por horas a fio. Depois enjoei dessa mania e passei a comprar perucas de todos os tipos: platinum blonde, afro, oriental look, Chanel, camponesa, melindrosa e psicodélica. Convidava algumas amigas, colocávamos as perucas mais absurdas e saíamos para caminhar pelo Parque do Ibirapuera. As pessoas não acreditavam.

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Quando comecei a namorar, decidi que me especializaria em atiçar os namorados alheios. Assim cumpri a decisão: cada um ao seu tempo, namorei com mais de dez rapazes e arranjei dez inimigas ferrenhas. Depois, senti que havia chegado a hora de partir para uma longa viagem. Era o auge do período hippie. Embarquei para a Europa, deixando meus pais em desespero. Morei um ano em Amsterdã, em uma comunidade que estudava os ensinamentos de Hare Krishna. Viajamos até a Índia e o Nepal, em trajeto que durou oito meses. Fomos detidos algumas vezes, por porte de substâncias alucinógenas ou por falta de vistos nos países que a nossa caravana maluca atravessava. Como sempre dei voltas na vida, retornei ao Brasil disposta a buscar a paz que tanto procurava. Para outro desgosto de meus pais, falei que desejava ir para um convento e fazer voto de clausura. Fui levada, em uma manhã fria de junho, ao convento da Ordem das Irmãs Dominicanas, em Ubá, Minas Gerais. Lembro-me da despedida: meus pais em prantos e eu sendo levada para uma área restrita às internas. Permaneci no convento por dois anos e meio, com voto de silêncio. Minha rotina era acordar às 4h30, rezar no quarto até as 6h30, ajudar na preparação do café, limpar e varrer os corredores, rezar o restante da manhã, etc. Em 1977, decidi que gostaria de voltar ao convívio da sociedade. Comuniquei o fato à madre supe-

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riora, que, a princípio, demonstrou certa irritação. Telefonei a meus pais, que vieram me buscar, mais uma vez muito comovidos. Quatro dias depois de minha chegada em São Paulo, promovi uma festa à fantasia no night club Papagaio, então a casa mais fervilhante de São Paulo. A festa foi um escândalo, com centenas de amigos, muito champanhe, namoros e cenas engraçadas. De lá, partimos em grupos para o Guarujá, onde continuamos no clima da festa. Foi na casa de uma amiga, no Guarujá, que conheci, naquela esticada, o rapaz que viria a ser o meu primeiro marido. Seis meses depois, estávamos casados. Que tal esse insight inédito da minha vida? Ninguém soube disso até agora. OK, tudo o que está escrito acima é mentira. Mas se eu sustentasse as informações, poderia deixar de ser invenção. Fiz isso apenas para mostrar como a manipulação da informação pode ser algo perigoso. Quantas pessoas que você conhece mentem por compulsão? Eu conheço um monte. Mentir, infelizmente, passou a ser um jogo social da vida moderna. Que pena. Seria melhor que todos tentassem mudar as suas realidades de modo inventivo e delirante. Sem precisar forjar filmes, sem precisar dar combustão à mentira. Que, é bom que se diga, nem sempre tem pernas curtas.

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A VERDADE

SEM ALÍVIO Somos ensinados que dizer, saber e praticar a verdade é o ato mais importante da vida. Somos levados a acreditar que a verdade, sob todos aspectos, conduz a situações melhor resolvidas, onde o que estava nebuloso se torna visível. Somos forçados a dizer a verdade em situações comprometedoras, delicadas e que podem transformar completamente o rumo da história de cada pessoa. Todos concordamos que a verdade esteja acima de tudo. Pois eu não concordo. Quer saber por quê? Na tragédia grega Édipo Rei existe uma frase que continua marcante para mim: “É sempre terrível a verdade quando ela não traz alívio”. Certíssimo estava Sófocles, o autor desse clássico. A verdade, quando é exigida, pode trazer uma seqüência de fatos desastrosos e impensáveis, capazes de aniquilar alguém para sempre. Jamais defendi que se ocultem fatos profissionais importantes, nem que as pessoas apostem na duplicidade de suas intenções. Não defendo os mitômanos, os mentirosos ou os dissimulados. Ao contrário, adoro lidar com posições claras, luminosas e

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sinceras. Mas, em situações de relacionamentos pessoais e na amizade, quando tudo corre aparentemente bem, para que tentar arrancar depoimentos forçados, em busca de supostas verdades? Ninguém quer passar por tolo. Nem eu. Entretanto, convenhamos um detalhe importante: vale mesmo saber tudo de alguém, se esse alguém é muito importante na sua vida? Vale querer descobrir se o seu namorado piscou o olho para alguém na festa, ou se o seu amor trocou uns beijos com uma desconhecida na última viagem à Europa? Você também acha necessário revelar que teve sonhos eróticos com um amigo em comum ou que sente estranha atração pelo corpo do instrutor de tênis? Meus amigos e amigas, em boca fechada não entra mosca e todos vivem felizes para sempre. São, por isso, chatas as pessoas que vivem querendo discutir o relacionamento, sempre para cavar a tal da verdade. Penso que nem as freiras na clausura dos conventos estão livres de sentir ondas de desejo, nem os nossos parceiros ou parceiras não deixam de cometer várias pequenas traições por dia. Em pensamento, vontade ou ação. E vamos agir como? Enlouquecer? Sair pelas ruas disfarçadas de Sherlock Holmes? Virar megeras indomáveis? Soltar os cachorros? Revirar lenços em busca de marcas de batom, procurar telefones estranhos nos bolsos do paletó, telefonar a todo o momento,

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desconfiar de tudo e de todos? Olha, meu conselho é: relax, baby. A verdade, se não for na barra dos tribunais, pode muito bem ser dita quando se quer, sem forçar a barra, sem obrigações. Ou, quem sabe, omitir fatos que não fariam mal a ninguém deixa de ser uma falta. Sejamos modernos e menos arcaicos: se alguém gosta sinceramente de nós e nós gostamos sinceramente desse alguém, nada de cobranças para saber a verdade. Porque a verdadeira elegância, senhores e senhoras, está em nunca perguntar nada. Nem todos conseguem. Mas, volto a repetir, vale saber a verdade se ela não traz alívio? De jeito algum, baby. Sejamos light em tudo e menos dramáticos.

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VULGARIDADES

UM JEITO FEIO DE ESTAR NO MUNDO Os conceitos de vulgaridade se alteram de tempos em tempos e, muitas vezes, o repugnante de antes se transforma no belo de agora. Importante não querer armazenar tabelas estéticas pela vida afora, mas ficar atento à maleabilidade das interpretações, à mudança inevitável que o tempo produz e ao ritmo incessante de renovação do mundo contemporâneo. O kitsch, o cafona e o brega são continuamente assimilados na moda, nas artes plásticas ou na música, acrescentando citações que só enriquecem suas criações e produtos, além de propor convivências mais democráticas. Maneirismos, manias, cores, excessos, colecionismos, misturas, contrastes, releituras, replays, revisões: tudo pode conter gotas de vulgaridade, sem perder nada em qualidade. Que bom. Agora vamos descer a lenha? Vamos. Há vulgaridades e vulgaridades, convenhamos. Ligadas a propostas estéticas, serão sempre bem-vindas, louvadas e assimiladas com muita bossa. Mas o que dizer quando a vulgaridade traz apenas a banalização da burrice, o uso estúpido da sensualidade e a reprodução de comportamentos agressivos?

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Temos sido forçosamente obrigados a aceitar, pela TV, essa avalanche ininterrupta de jovens pretendentes ao posto de celebridades instantâneas. São pessoas que, paradoxalmente, ficam famosas apenas porque ficaram famosas. Tudo alimentado por exaltações à vulgaridade, pela falta de propostas profissionais interessantes e por excesso de oportunismo. Cultuam os próprios corpos de maneira meramente exibicionista e, ao divulgarem em excesso suas supostas possibilidades sensuais, se tornam os seres menos sedutores do planeta. Ocos, sem conteúdo, com tempo datado, os fenômenos da vulgaridade são perigosos. Mas, sorte nossa, têm vida curta. Triste é constatar que a vulgaridade ronda o nosso calcanhar. Como se fosse um vírus sem controle, ela pode atacar a qualquer momento, a toda hora, segundo a segundo. A vulgaridade pode surgir no cabelo louro farmácia da quarentona exibida, na risada alta do homem que fuma no corredor do hotel, no rímel borrado da recepcionista, na camiseta regata usada fora de hora, no barulho do chiclete, no uso excessivo de celulares, na comida gordurosa, no marketing religioso, nos cabelos com descuido, na exibição de poder, na ostentação de dinheiro, no cinema americano violento, no som alto do carro, nos bíceps estufados, no carro parado em fila dupla, no jardim particular mal cuidado, na gula, na informalidade obrigatória, na máfé, na ultrapassagem do sinal vermelho, nos decotes no

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trabalho, nas pernas de fora dentro do ônibus, no consumismo bobo, na vizinha que dispara palavrões pela janela, no aeroporto lotado, na falta de assunto, na conversa mole, nas modelos de lábios abertos, nas festas barulhentas, no macarrão mole, na cabeça dura, no descontrole de ações, na exposição das emoções, no excesso da palavra eu, na falta de amor ao planeta. Tudo depende de limites: vulgaridade é um modo doente de ver a Terra, um modo viciado de conviver com o próximo, um jeito feio de se estar no mundo, um egoísmo cheio de pontas.

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DESAFIOS

NA MIRA DO IMAGINÁRIO Dispor-se a um desafio é como empunhar um arco-e-flecha determinando-se a acertar o mais próximo possível do alvo. No início, há a insegurança de conseguir firmar a flecha, de desconhecer a trajetória a ser percorrida do momento do impulso até a ponta da seta ser cravada no alvo. Quando se consegue um arremesso bom, ótimo. Chegar ao alvo é puro êxtase. Uso essa imagem por considerar que desafios são como apostas sobre a sua própria capacidade, conjugada à potência dos instrumentos que serão utilizados para se alcançar o objetivo pretendido. Olho, cálculo, músculos, braços, mãos e decisão. Lá se vai a flecha, lá se vai a decisão de fisgar o objetivo. Para mim, essa imagem é muito importante, por significar o resultado das alterações de corpo, mente e coração a que me propus de alguns anos para cá. Decidi-me a fazer uma manobra radical, implantando nos meus comandos os chips invisíveis da determinação. Andava farta de ver meus planos esmorecerem e de ser considerada uma pessoa fraca, daquelas que nunca eram ouvidas para

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decidir nada e que mantinha uma aparência que traduzia infelicidade completa. A partir daquele estado, só me restaria fazer voto de clausura para entrar em algum convento perdido na mais alta montanha do mais escondido dos países. Entretanto, o alarme soou e eu disse a mim mesma: não sou o que pensam. Provei a mim, aos amigos, à família e a tudo o que me cerca que eu armazenava uma gigantesca capacidade de realizar, produzir e gerar boas idéias. Capacitei-me porque assim quis, porque me decidi a cumprir o objetivo de nunca mais ser uma pessoa passiva, desconsiderada, apática, fora de forma, em processo contínuo de falta de estima e confusa quanto ao que esperava da vida. Eu sabia que lá dentro havia um dínamo, uma potência, uma força latente de proporções desconhecidas. Sentia o rugido da fera. A fera surgiu, eu me refiz, a vida foi inteiramente reconstruída, adquiri excelente forma física, passei a propagar minhas idéias, ganhei novos e fiéis amigos, tornei-me independente da sombra da família, gerei negócios, consegui administrar os vulcões emocionais, restaurei nova ordem nas relações pessoais, ganhei maior confiança dos filhos e, nada se compara a isso, pude encontrar a forma exata de me expressar perante o mundo. Apegar-se a desafios é, portanto, um exercício fundamental para quem deseja ir além. Contra a acomodação, contra a mesmice dos dias, contra o amortecimento

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que nos impõem, só existe uma solução: decidir-se por buscar seus objetivos. De nada adianta optar por escapismos de religião, nem fugir da realidade que não se deseja ver. Antigos pensadores orientais diziam que manter um objetivo seria praticamente meio caminho andado para a realização da meta desejada, do sonho pretendido, da mudança almejada. Nunca defendo positivismos ou esoterismos de butique: apenas quero esclarecer, a quem quiser prestar atenção em mim, que nada pode ser tão importante quanto se pautar por objetivos. Alcançar um objetivo, por menor que seja, já é o suficiente para trazer um enorme bem ao coração.

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VA M P I R O S

BAIXA VOLTAGEM Talvez não exista na face da Terra alguém que não seja vítima de alguma forma de vampirismo emocional. Sabe do que estou falando? Claro que sim. São aquelas pessoas sem luz própria, geralmente complicadas e emaranhadas em problemas diversos, e que sobrevivem graças à energia alheia. Energia em vários sentidos: profissional, financeira, sexual, emocional e por aí afora. Pois bem. Então essas pessoas – coitadas delas e coitados de nós – precisam inventar uma gambiarra de energia. Puxada diretamente de quem? De nós ou de outros, as usinas geradoras de luz. Não que elas façam isso de modo proposital. Não que todas sejam um estorvo. Na maioria das vezes, essas pessoas mal têm consciência da carência energética a que estão submetidas, nem ao uso que fazem dos contatos humanos. O vampirismo mais corriqueiro ocorre quando alguém sente fascínio por outra pessoa e a tal pessoa escolhida se torna a sua referência máxima de realização, de postura e de layout social. Fascínio declarado, vampirismo de

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contrabando. Não estou inventando coisas. Basta analisar com calma todos os que estão ao seu redor. E os vampiros agem na calada da noite ou na calada do dia. A sugação se processa mais ou menos assim: contam seus problemas, pedem atenção ilimitada, requerem tempo infindável, riem, choram, fazem lamúrias e parecem estar sempre à espera do apocalipse. Depois, aliviam um pouco essa dinâmica. Porém, novos ataques podem acontecer em edição extraordinária. Vampiros emocionais não são amigos. Os amigos podem chorar, espernear, contar relatos tristíssimos e pedir ajuda. Em contrapartida, existe um recarregamento mútuo de baterias. Também estamos sujeitos a furar o pneu no meio da vida e precisar de um ombro amigo. Por isso, não se confunde amizade com vampirismo. Deu para entender? Os vampiros são meio bajuladores, adoram demonstrar simpatia, sabem tudo da sua vida e dizem conseguir realizar qualquer tarefa. De repente, pimba: falam durante meia hora sem parar, pedem sua opinião, inventam situações absurdas, dão nó em pingo d’água, torram a sua paciência, não registram nada do que você propôs e vão embora, felizes da vida por ter encontrado algum ser disposto a ouvir suas vampirices. E você? Sente-se enfraquecido, zonzo, com a cabeça confusa. Missão cumprida: o vampiro emocional conseguiu o seu intento. Saiu todo serelepe, descarregou o seu

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embrulho de confusão na sua cabeça, bebeu da sua disposição e pronto. Aí você fala que está se sentindo sem energia, não é assim? O que nos traz consolo é saber que os sugados são completamente antagônicos aos sugadores. Os primeiros são poços intermináveis de alegria, experiência de vida, decisão, resolução, amor-próprio e um bando de coisas legais. Bom, enquanto isso, os segundos parecem fadados ao amortecimento contínuo de suas vidas tão opacas, tão bobas e tão desajeitadas. São pessoas que parecem ter vindo ao mundo para não realizar nada além de depender do fluxo de criatividade do outro. Rezemos por eles.

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Dentro & Fora



Cada vez que te vierem propor Personagens pra vida real Jogue as máscaras fora ou não Mas não se esqueça que é triste o flagrante no fim (Café, de Egberto Gismonti)

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USAR O OUTRO

PISTA DUPLA Há certas pessoas que adoram usar e abusar de contatos profissionais, sociais ou sentimentais para abrir caminhos por onde passam. Não elaboram duas frases sem citar o nome de alguém, de preferência famoso. É o chamado despejador de nomes: basta pronunciar com segurança que é amigo de fulano, ou que está ali para checar tudo a pedido daquele ator ou empresário famoso. Façanhas que costumam ser bem-sucedidas, já que citar o nome certo no lugar certo funciona como chave-mestra em várias situações. Há pouco soube de um produtor de teatro que usou o meu nome em cidades do Sul do Brasil para tentar apresentar por lá a montagem beneficente de um grupo do qual eu participei. Ok, nem me importei tanto. É impossível evitar passagens desse tipo, principalmente quando lidamos com pessoas de áreas distintas, em situações nunca repetidas. Se nada impede que sejamos usados, só nos resta tomar consciência de quem está ao redor. Será que todos

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merecem confiança absoluta? Em que momentos é essencial falar menos, revelar menos? Ser usado pode ser o resultado direto de palavras que proferimos a esmo. Os que citam com constância o nome de amigos poderosos por interesse próprio merecem até olhares de compaixão. São pessoas sem repertório próprio, sem brilho pessoal e sem carisma suficiente para circular com segurança. O problema é que os despejadores de nomes jamais admitem que acionaram da agenda um punhado de nomes cintilantes para galgar escalas sociais. Seria como assumir que são inodoros, incolores e insípidos. Gente de luz própria não precisa de recursos desse tipo, nem pontuam a conversa com artimanhas que não lhes pertencem. Vale citar uma curiosidade. Existiu no século XIX uma escola de pensamento que propunha o utilitarismo como doutrina para conseguir prazer individual. Se todos aderissem à prática, haveria um equilíbrio entre os interesses diversos e a felicidade seria possível para um número maior de pessoas. Hoje ninguém se atreve a defender coisas desse tipo… Em determinadas ocasiões, porém, nossos amigos íntimos podem usar do conhecimento que têm sobre nós para nos defender em público. Nesse caso, trata-se de usar o conhecimento de outra pessoa de forma altruísta, zelando pela imagem do amigo por desfrutar de sua intimidade. Um bom exemplo de que, às vezes, há fatos positivos para quem permite ser usado. Desde pequenos, usamos em benefício próprio a pro-

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teção biológica dos pais. Eles, por sua vez, usam os filhos para dar continuidade a suas vidas, planos e histórias. Entre amigos, ocorrem trocas constantes de idéias, confissões, preferências e parcerias. Até na relação com os animais domésticos há o uso explícito: o cão traz alegria, calma e faz companhia, enquanto damos abrigo, alimentação e carinho. Agora chego ao ponto essencial: o uso que existe num relacionamento amoroso. Há quem prefira dizer que são trocas. Mas qualquer troca exige uma situação de uso. A relação serve para proporcionar prazer, companheirismo, divisão de idéias comuns e conexões de confiança mútua. Geralmente só temos essa visão quando avaliamos os antigos namoros ou casamentos. Sim, sempre houve e haverá algum tipo de uso. Quando somos avisados de que alguém usou nosso nome de modo impróprio, devemos cortar relações. Principalmente se houve intenção de conseguir vantagens imediatas ou puxar o tapete de outras pessoas. Porém, se a atitude foi inofensiva, vale lembrar do antigo slogan de um fabricante de mate: use e abuse. Basta não darmos peso excessivo aos verbos. Afinal, não são esses os ossos do ofício de quem se tornou usável?

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CONFIDÊNCIAS

FALAR É PRATA, CALAR É OURO Ah, como é bom poder contar segredos, revelar situações íntimas, abrir o coração, mostrar fatos desconhecidos. Ah, como é bom ter alguém que nos ouve, alguém com quem se divide uma confidência, alguém que compreende cada resgate do nosso passado. Ah, mas como pode ser perigoso fazer confidências! Sempre vai existir um momento em que passamos a sentir confiança em determinadas pessoas, a ponto de revelar assuntos íntimos ou detalhes pessoais altamente bombásticos. Bom, por mim, não considero mais nada capaz de ser bombástico. Porém, existem muitos que, tão logo recebem informações delicadas, sentem-se portadores de algo precioso, de segredos que passam a significar poder sobre alguém. E, em uma seqüência que varia de situação a situação, revelam exatamente aquilo que nunca poderia ter prosseguido adiante, por motivos óbvios. Hoje são poucos os que ouvem um segredo e mantêm a boca fechada. Falar muito, contar tudo e espalhar brasas alheias virou uma especialidade quase profissional. Dá a sensação de impotência e raiva descobrir que a

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sua confidência caiu em bocas de Matildes, sem o menor pudor ou acabamento final. A bem da verdade, passa a existir arrependimento antecipado assim que acabamos de contar algo importante a alguém não merecedor de confiança. Passamos a desejar, ardentemente, que aquela pessoa esqueça o que falamos. Ou que, pelas condutas civilizadas, jamais toque outra vez no assunto. Em tempo: contar mais do que se deve acontece com freqüência quando se ultrapassa os limites do vinho, por exemplo. Vinho é aquela bebida leve e traiçoeira que nos impulsiona, sem que se perceba, a desfiar rosários de confidências, gerando aproximações indevidas, ou criando um delivery imediato de segredos. No vinho está o segredo. Na manhã seguinte, o alarme grita na memória: “Para que fui contar aquilo, meu Deus? Onde eu estava com a cabeça? E agora? Ai, que vexame”. Frases clássicas de um day after. O único jeito é se fingir de morto, rezando para que a outra pessoa tenha esquecido tudo. Claro que isso nunca ocorre, mas é lindo acreditar em milagres. Quarenta e oito horas depois, que tal uma discreta sondagem de terreno? Pode-se telefonar à pessoa em questão, comentar a noite, disfarçar e comentar meio sem-graça sobre a quantidade de bobagens que foi falada por todos. Quando se trata de alguém elegante, você até pode ouvir esta frase confortadora: “Não se preocupe, tudo o que foi falado vai ficar

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entre nós”. Com certeza, esse é o maior bálsamo que se pode ter em vida. O problema, caindo na real, é que apenas 1% das pessoas teria um comportamento tão impecável assim. Então só resta tirar lição da tolice cometida para, em uma próxima vez, exercitar o autocontrole, estancar o fluxo de segredos, tratar de não falar sem refletir sobre as conseqüências, e por aí afora. Tenha sempre em mente que, por meio de uma confidência, sim, de uma simples confidência, podem surgir golpes de estado, rompimentos amorosos, perdas de cargos, maledicências em grupo, finais de amizades, atitudes preconceituosas, decepções, sustos, isolamento e, o pior, a fama de ser indiscreto. Repita muitas vezes o velho ditado: “Em boca fechada não entra mosquito”. E boa sorte.

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B E M - E S TA R X S E X U A L I D A D E

DE TUDO PARA TODOS Às vezes fico pensando como as pessoas se entregam a impressões rasteiras sobre assuntos que, de certa forma, seriam complexos. Ou então como todos adoram chegar a conclusões precipitadas e tolas em vez de se abrirem a perspectivas renovadas do comportamento humano. Para localizar isso melhor, sou obrigada a me tomar como exemplo. Todos sabem que atravessei mudanças radicais de vida e que consegui demonstrar, de modo inteiramente profissional, como é possível deixar de ser uma pessoa abatida para se transformar em uma mulher que se determinou a nunca mais esmorecer e a não mais passar a imagem da deformada pela balança, sofredora por não ter rumos e mal-amada depois de experiências equivocadas. Tenho certeza absoluta de que essas conjunções pessoais não mais se repetirão. Claro que tantas alterações não me fizeram perder a feminilidade. Ou melhor, adquiri outra noção de feminilidade, mais amadurecida, mais experiente e muito mais decidida. Por estar antenada com as possibilidades de meu

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tempo, compreendo que não é tão difícil atingir metas físicas, emocionais e até econômicas. Quando se quer, nada parece longe, impossível ou inalcançável. Pois bem. Então me pego em certos dias agindo como uma máquina, feito uma personagem repleta de ações a realizar, a executar, a criar, a pensar. Gosto de estar em ação e de ver resultados daquilo que até pouco pouco tempo atrás era apenas uma idéia. Acontecimentos assim me animam, me deixam exultante, me impulsionam a outras vontades de expansão. Gosto – e me permito – de estar de bem com a vida. Em todos os sentidos. Entretanto, muitos me vêem como uma mulher que canaliza toda essa energia e esse dinamismo para um destino único: a sexualidade. Pensam que por eu estar sempre bem disposta e com gestos amplos, por achar graça com quem está ao meu redor e por expor minha forma de ser generosa perante o mundo, seria apenas para enaltecer a minha libido. Ora, minha libido vai muitíssimo bem, obrigada. Assim como também vão muito bem a minha cabeça, o meu tronco e as minhas pernas. Cuido de cada parte do corpo – e da psique – sem tentar enaltecer ou forçar ciclos ou ritmos diferenciados. Gosto de amar aquilo que me faz contente, gosto de ser gentil com o que me possibilita troca de alegrias. Se durante muitos anos estive escondida no sótão da falta de amor-próprio, de cinco anos para cá posso propagar

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que me abasteci de auto-estima suficiente para ser uma outra pessoa. Livre, rejuvenescida, libertária, aberta, desencanada e sempre disposta a inventar novas frentes de trabalho, amor e amizade. Evidentemente que no meio de todas essas possibilidades se encontra também o sexo, essa dádiva com que os deuses contemplaram os seres viventes. Mas é importante avisar aos navegantes: não confundam energia de vida com mera disposição sexual. Acho que os que pensam assim estão apenas projetando situações complicadas das suas próprias vidas, em que deve faltar disposição, idéias e sexo. Ainda bem que não pendo para nenhum lado. Meus funcionamentos físicos, emocionais, sexuais e espirituais andam no mesmo ritmo e passam todos muito bem. São como filhos: gosto de todos e dou atenção a todos. Certo?

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Vejam que situação E vejam como sofre um pobre coração Pobre de quem acredita Na glória e no dinheiro Para ser feliz (Saudades da Bahia, de Dorival Caymmi)


RECONHECIMENTO

ROL DA FAMA Encontro pessoas que se transformam imediatamente quando percebem a aproximação de um fotógrafo ou de uma câmera de TV. Para esses, a imagem parece ser a forma real da vida, e não o contrário. É como se elas vivessem eternamente estrelando um comercial de televisão, só que o produto são elas mesmas e serem aceitas pelo mercado é questão de sobrevivência. A espontaneidade cedeu lugar ao posicionamento de personagens, dos superegos e dos ventríloquos de salão. Foi-se o tempo em que bastava a frase deita-te na cama e cria fama. A compreensão da palavra fama na sociedade contemporânea obedece às obrigações da tresloucada sociedade do espetáculo. Tudo deve ser espetacular, animado, mega, produzidíssimo, ostentativo, festivo. Ninguém convida mais para se tomar um prato de sopa, sorver um licor ou ouvir um CD. Existe a obrigação de que todos os atos sejam expostos, abertos, visíveis e compartilhados. Claro que reconhecimento autêntico é a melhor das recompensas para o nosso trabalho, mas é preciso criar defe-

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sas, muitas vezes contra nós mesmos. Para quê? Para domarmos o ego que volta e meia insiste em nos convencer que só ele pode reinar em nosso castelo. Não dá para deixar relativa a vida em um único aspecto, não dá para viver mendigando cinco milésimos de segundos de fama, e não me corrija, nos dias de hoje basta isso para o novo ficar antigo. É como um glacê, sem consistência seu destino é a lata de lixo. E ser reconhecido implica significados mais brandos, como gratidão, agradecimento, identificação, observação, aceitação. Fácil não é. Conquistar o tal reconhecimento é processo longo, pressupõe aceitar nossas limitações e falhas. Reconhecer que nem todos os valores ditados pela mídia são necessariamente melhores do que os seus. Saber que existem outras formas de viver com satisfação além dos flashes. Por isso costumo dizer que não ando no encalço da fama, nem atrás dos aspectos vazios da celebridade. Sou impulsionada a concretizar propostas com o meu dínamo: idealizo, busco, realizo, questiono, analiso e mostro resultados finais aos públicos-alvos. Conquisto outras áreas porque jamais forjei situações que trouxessem reconhecimento. Vale notar aqui que jamais colocaria o meu rosto em algo que eu mesma não acreditasse. Se agora sou reconhecida em determinados setores, isso se deve basicamente ao fato de ter conseguido atingir metas a que me propus com seriedade nos últimos anos. Não

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creio nas escaladas profissionais fáceis, nem em transformações pessoais sem dificuldades. Mudanças em série e que ainda vão continuar por bastante tempo a me levar a outros meios de expressão. Continuo inquieta e disposta a ser ajustada ao arrojo dos novos tempos. Ser reconhecida é decorrência desse trabalho. Nunca uma meta.

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EGOS INFLADOS

INFLÁVEIS E INFLAMÁVEIS A vida moderna e os rituais sociais contemporâneos nos levaram, nas duas últimas décadas, a aprender a conviver com os chamados egos inflados. E o que significa esse termo? Não é bem uma forma de exibicionismo. Não seria puramente ausência de altruísmo. Não se trata apenas de assuntos auto-referentes. Nem tampouco de pessoas que compreendem o mundo somente a partir das idéias próprias. Os egos inflados são isso tudo junto, mais uma porção de intolerância, desatenção, invasão de espaço alheio, desinteresse por opiniões diferentes e algumas gramas de presunção, isso só aprendi a duras penas. Participei há pouco de uma montagem teatral beneficente que reuniu um grupo de personalidades com destaque quase permanente nos jornais, nas colunas sociais e nas revistas. Altos profissionais de áreas diversas, celebridades e instant darlings da mídia. Do processo de encontros iniciais à convivência obrigatória dos ensaios

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constantes, foi possível observar reações inesperadas e humores oscilantes. Talvez eu tenha presenciado um pouco da comédia humana relatada por Balzac. Claro que revi amigos no grupo, além de ter feito novas amizades. Da equipe de produção aos técnicos, dos atores aos diretores, descobri gente com vontade de aprender e humildade de reconhecer seus desacertos. Como também alguns que vieram e saíram, deixando rastros de estrelismos. Pessoas com dificuldades para dividir encontros coletivos ou participar de uma criação em grupo. A rápida passagem pelos palcos só me acrescentou. Vi como seria possível lidar com a representação das emoções, percebi que o esforço contínuo leva a performances bem realizadas e compreendi o valor da tolerância para se conviver em agrupamentos de pessoas diferentes. Abri-me, como nunca fizera antes, a ouvir opiniões, toques e sugestões. Observei ser inútil e pueril reagir com ataques súbitos, principalmente quando se buscam objetivos comuns, dentro de prazos determinados. Vi adultos que lembravam crianças esperneando, caso alguém chamasse a sua atenção ou pedisse correção no comportamento. Alguns saíam e não retornavam mais aos ensaios. Vários abrandaram explosões de ira com comentários bem-humorados. Outros souberam derreter o iceberg do orgulho. Quanto a mim, confesso que preferi deixar claro que pouco sabia daquelas situações novas, e tudo o que acon-

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tecesse seria gratificante. Óbvio que durante certos momentos senti ímpetos de abandonar a guerra e retornar às minhas atividades profissionais. Não agi assim pela decisão de enfrentar um desafio desconhecido. Porque existem duas espécies de entusiasmo: o da alma e o do ofício. Não sei se voltaria novamente aos palcos. Quem sabe? Mas considero ter aprendido experiências importantíssimas. Se como disse Caetano Veloso “de perto ninguém é normal”, em grupos de convivência constante é onde se revelam os verdadeiros personagens. Cada um com suas manias, egos em expansão, colisões de idéias e pouco controle verbal.

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INTUIÇÃO

SERÁ QUE FIZ BEM? Nem sei por onde começar este relato aturdido, a fim de contar uma parcela do que me ocorreu. Vamos lá. Após dar, por meses a fio, alguns conselhos para minha melhor amiga sobre relacionamentos, resolvi fazer o que era certo, assim achava. Contar-lhe que ela estava sendo traída pelo seu marido. Minha intuição feminina dizia que algo andava estranho, nele o comportamento oscilante, o cheiro de perfume e outras minúcias. Minha amiga, baseada nas minhas observações, resolveu colocar um detetive para sondar essa situação nebulosa. Caso existisse adultério, ela saberia logo. Contratou em seguida uma agência especializada em serviços secretos. Cinco dias depois assistiu, gelada, passada e trêmula, o sinistro resultado. Na sala daquele escritório, fotos digitais mostravam José Roberto, seu marido, com a amante, namorada, sei lá como chamaria a tal sirigaita. Ao sair de lá, completamente desnorteada, cheia de provas e com a listagem de endereços freqüentados pelos

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dois, sentiu que a minha intuição, mais uma vez, estava certa. Seria uma lição de moral, um golpe de superioridade se o pegasse. Parou o carro, abriu um envelope e viu a direção do principal local que ele, seu marido José Roberto, costumava ir com ela, a sirigaita-piranha-bandida. Chorou, e telefonou, ainda fungando, para mim. Eu a incentivei a prosseguir no seu intento. A minha intuição também pedia vingança. E lá foi ela, feito uma barata tonta, em busca do seu grande amor em um bar escondido dos Jardins. Estacionou, desceu e caminhou desvairadamente até o local do crime, ou seja, o bar. Olhou através da grande janela da fachada e viu, logo na segunda mesa, ele, José Roberto, seu marido, segurando as mãos dela, a monstra loira. Ele, de costas, não a viu. Ela, a sirigaita, a viu. Mas desconhecia quem ela fosse. Lágrimas grossas caíam do seu rosto. Voltou arrasada, massacrada, destroçada. Dá para imaginar como foi aquela noite? O que soube é que ela disse tudo o que sentia ter direito. Saiu de casa, fez as malas de José Roberto, quebrou um pufe e um cinzeiro, xingou, bateu os pés, chorou, mostrou as fotografias. Tudo. Estão separados desde aquela ocasião, com o divórcio correndo por intermédio de advogados. Tenho o pressentimento de que ele vai se arrepender. Mas enquanto isso, para não cair em desespero, ela consulta oráculos esotéricos que aprimoram a aura e a intuição. Usa cores indicadas para levantar o astral, mudou o visual e sentiu que deveria pedir

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demissão do seu emprego de fonoaudióloga. Isso foi outra bomba: nunca mais conseguiu colocação no mercado. Algo me diz que era preciso inventar, urgentemente, saídas alternativas para esses casos. Sentiu também intuições estranhas de que captaria algum tipo de sorte nesse período, pois há dito: infelicidade no amor traz sorte no jogo. Comprou montes de bilhetes lotéricos – inteiros – e passou dias e dias e dias nos bingos. Perdendo cifrões. Achou que inaugurava a categoria infeliz no jogo e infeliz no amor. Durante certa madrugada, perdeu o sono e ficou na cama analisando a confusão que se tornara a sua vida. Mas ela não é mulher de desistir fácil daquilo que se propõe conseguir: estabilidade emocional e econômica. Sentiu que poderia abrir um negócio próprio, conseguiu um namorado interessante, mudou de casa e arrumou a vida. Aconselhada por mim, pediu um alto empréstimo no banco e apostou cada centavo nas minhas intuições. Oh vida! Oh céus! Oh dias! Hoje, aos 34 anos, é uma mulher endividada, amargurada, neurótica e assustada. Os negócios não prosperaram, brigou feio comigo, a separação continua emperrada e o tempo não pára. Puxa, mas lá no fundo tenho a percepção de que tudo ainda poderia dar certo. Bastaria que eu insistisse e não desistisse de aconselhá-la. Minhas intuições ainda vão trazer resultados. Pressinto isso ou pergunto isso?

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ANSIEDADE

O DRAGÃO NOSSO DE CADA DIA Dias atrás me perguntaram no chat do meu site como agir para controlar a ansiedade. Na hora, confesso ter respondido de maneira simplificada, mas depois fiquei a pensar sobre a complexidade do tema. Ansiedade é a doença dos tempos modernos e o epicentro de incontáveis males. Tecnicamente, a ânsia seria um sentimento oco, desprovido de objetivos lógicos. Devido a causas psicológicas inconscientes, o cérebro envia comandos que provocam no corpo estados de angústia, necessidade imediata de suprir carências desconhecidas, abrandar temores, saciar algo indizível, preencher os vazios físicos, existenciais e emocionais. A velocidade do cotidiano das grandes e das médias cidades impôs ritmos tão acelerados que os surtos de ansiedade nem sempre são percebidos de imediato. Milhões de pessoas desconhecem porque continuam a agir de modo ansioso, incorporando assim hábitos que passam a destruir o corpo e a mente. Hábitos que corroem a resistência orgânica, trazem envelhecimento celular e acúmulo calórico.

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A ansiedade pode acometer também as pessoas deprimidas, sem ser um componente psicológico ligado apenas aos que apresentam comportamentos agitados. Sob os impulsos da ânsia fala-se mais, come-se mais, bebese mais, respira-se errado, dorme-se menos, travam-se os músculos, altera-se a circulação, envelhecem-se as células, crispam-se os gestos, turvam-se as idéias, perde-se a ponderação, agita-se a alma, morre-se ao poucos. São combustíveis da ansiedade o excesso de informação, a obrigação do consumismo, a falta de silêncio, a poluição visual, a velocidade dos deslocamentos, a degradação do meio ambiente, a alimentação inadequada, os prazos curtos, o esquecimento de hábitos simples, a demanda pelo tempo, o desamor próprio e os desequilíbrios sociais. Para se contornar o furacão da ansiedade – nem digo acabar, por parecer uma missão improvável – seria preciso buscar alterações radicais na qualidade de vida. Não quero aqui passar nenhuma fórmula mágica antiansiedade, mas o primeiro passo está em reconhecer que se é vítima desse mal invisível. Depois, procurar abrandá-lo. Parece fácil? É dificílimo. Para quem dispõe de tempo livre, recursos e intenção de mudar, o processo de enfrentar a ansiedade costuma obter resultados. Porém, a maioria esmagadora das pessoas vive rotinas duras que permitem quase nenhum controle. Aliás, este é o termo-chave: controle. Ansiedade não se cura, apenas se controla.

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Igual a um dragão dos tempos modernos, a ansiedade pode atacar a qualquer momento, brotando lá do mais profundo abismo existencial de cada um. Longe de ter controle dos surtos coletivos de ansiedade, o planeta começa a produzir gerações com componentes genéticos de angústia. E para abrandar esse rombo na estrutura psicológica da humanidade, só uma pausa que nos faça repensar tudo, refazer tudo, renovar tudo.

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LIBERDADE

LIBERDADE OU INDEPENDÊNCIA? Assim caminha a humanidade: sempre em busca de liberdade. Liberdade, clamam os grupos políticos. Liberdade, bradam os jovens à sociedade. Liberdade, pedem os que se sentem oprimidos. Liberdade, acertam os casais. Liberdade, anseiam os que não a têm. Liberdade, abre as asas sobre nós. E então somos envolvidos nesse gigantesco clamor universal em que até fatos corriqueiros podem significar o oposto da liberdade. Então, a busca pela liberdade parece impulsionar, mover e empurrar cada um de nós, gerando uma obrigação de pregar a importância de ser livre, de se amar a liberdade e de proteger os que nos liberam de algo considerado pesado. Como não podia deixar de ser, essa característica não apenas humana (os animais também desejam ser livres do jugo de seus proprietários) acabou sendo incorporada por outras formas de linguagem. Em algumas situações, virou clichê, como na publicidade. Ninguém deveria se esquecer daquela frase que dizia assim em um anúncio de jeans: “Liberdade é uma calça velha desbotada”. Nos discursos

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políticos, essa palavra é mais usada do que as vírgulas. No campo das conquistas sociais, liberdade é o combustível de cada avanço. Na economia, o mercado pede para ser livre. E por aí afora. Então precisamos tomar o refrigerante que traz sabor de liberdade, precisamos correr atrás do autor que ninguém jamais viu escrever com tanta liberdade, precisamos conhecer aquele guru que anuncia uma vida espiritual plena de liberdade. Daqui a pouco teremos o chiclete com sabor Tutti liberdade, o miojo com molho Liberdade e a tintura de cabelos no tom Liberdade. Pois é. De repente, num momento qualquer do dia, a gente pára e reflete sobre isso. Para que tanta liberdade? O que fazer com tanta liberdade, ou melhor, com tanta liberdade rotulada? Penso que se busca um objetivo que virou outra banalização dos tempos modernos e uma palavra que infelizmente foi esvaziada de seu conteúdo real. Liberdade seria apenas ficar com alguém (mas manter a mesma postura conservadora de gente que não quer mudanças), liberdade seria sair da happy hour no instante em que desejar, liberdade seria escolher o show mais conveniente, liberdade seria optar pela roupa favorita? Liberdade, atitude, estilo: três palavras que parecem não dizer mais nada. E o termo liberdade prossegue na mesma direção. Prefiro dar ao termo liberdade o sentido de inde-

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pendência. Independência seria pensar de modo inteiramente sem amarras, independência seria agir sem culpa, sem pecado, sem peso. Independência é acreditar nas mudanças, é apostar no novo, é não seguir tendências. Independência para se conseguir ar puro, para se abrir ao romance, para se levar a vida com leveza, para dar palavra boa a quem precisa, para acreditar na amizade, para poder falar o que pensa. Independência para observar borboletas, para beijar na boca, para melhorar o planeta, para respeitar os ancestrais, para alcançar o futuro. Independência para deixar tudo fluir: pensamento, espiritualidade, sexo, energia, intuição e sentimentos. Liberdade só vale com independência.

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PERFEIÇÃO

A PERFEIÇÃO PODE SER IMPERFEITA Um dos meus maiores defeitos atende pelo nome de perfeição. Sei que há muito tempo deixou de ser virtude para se transformar em um processo ininterrupto de procurar ajustes, alterações e mudanças. Tudo em nome do perfeito, da exatidão, do mais adequado, do que não tem arestas, do que não erra. Quanta chatice e quanta caretice, reconheço. Por buscar a tal da perfeição, costumo sofrer decepções ou ser obrigada a enfrentar as miragens da ilusão. Se idealizo algo, passo a acreditar na melhor formatação possível para a realização do que idealizei. Obviamente, na maioria das vezes, preciso voltar atrás e reconsiderar decisões. Sofro com isso, mas procuro me trabalhar para não perder esse empenho. Nem me tornar obsessiva. A perfeição é uma meta? É. A perfeição exige atenção triplicada, organização mental, gavetas em ordem, equipe sintonizada, propostas estruturadas, controle sobre excessos, manutenção dos fluxos de informações e de atualizações, boa intuição, disciplina e prática constante naquilo que se faz. Todos esses aspectos anteriores também podem

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ser aplicados a outras modalidades da vida: relacionamentos, amizades e negócios. Sempre dá certo? Não. Tentar ser perfeito ou tentar encontrar a perfeição é um sofrimento contínuo, aviso logo. Na verdade, tenho a fórmula na mão. Mas como se eu fosse um cientista que conhece bem a teoria, os experimentos tendem a não produzir os resultados esperados. Já me acostumei ao estado de chabu. Nem ligo mais quando uma idéia, que tinha tudo para dar certo, é descartada por ser inviável. Nem ligo mais quando o que me parecia perfeito se revela o mais imperfeito do universo. Faz parte do show. Perfeição seria poder falar o mínimo e obter o máximo. Perfeição mesmo seria nunca pedir duas vezes a mesma coisa, conviver com pessoas de iniciativa, ter amigos com o mesmo tom de humor, não guardar rancor, ter sempre uma saída para as soluções complicadas, acreditar que a crise passa, receber a ligação esperada na hora marcada, encontrar vaga em qualquer vôo, ter um amor que nunca nos aborreça com bobagens e conseguir parceria dos filhos. Perfeição é um final de semana sem acrescentar nenhum grama a mais ao peso, é conseguir o vinho na temperatura ideal, receber a visita inesperada daquele amor que não sai da cabeça, ouvir elogio por um trabalho bemfeito, ver que as plantas foram bem cuidadas durante a sua ausência, receber pagamentos em dia, reservar doses de alegria para o próximo dia.

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A perfeição se esconde nos detalhes. Pode estar na dobra do guardanapo, na luz bonita que entra pela janela, no sino que toca ao longe, no cheiro de mato molhado, no beijo que sela um grande amor, na boa notícia que chega pelo e-mail, no aroma de tangerina no café da manhã, na canção romântica que toca no bar, no sol que aquece a areia, no som da cachoeira, na turbina do avião que me leva de férias, no abraço de quem me recebe de volta, no reencontro da rotina, na cumplicidade do amigo, nos cabelos brancos dos pais, na paz que nos invade sem motivo. A perfeição se oculta. Quando ela quer, aparece. Quando não, corremos atrás. Isso não é perfeito?

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DIPLOMACIA

GEOGRAFIA HUMANA Desde sempre ouço as pessoas dizerem: “Fulano usa muita diplomacia”. Depois, fui informada por amigos de que eu seria uma pessoa extremamente diplomática. Então comecei a perceber que este era um traço herdado de meu pai, ele, sim, um diplomata nato. Agora que chegamos ao final do parágrafo, vale questionar: o que é diplomacia? No entendimento mais correto do termo, seria a ciência de negociar as relações exteriores de um país com outro. Mas o uso corriqueiro dessa palavra ganhou outras interpretações e também pode ser compreendido como uma espécie de arte das negociações, ou certa astúcia em analisar tudo o que está ao nosso redor, sem emitir opiniões imediatas ou sem deixar de tratar bem qualquer pessoa. Jamais me imaginei virando o rosto para alguém, por mais que esse suposto personagem fosse extremamente nocivo. Prefiro dispensar tratamentos cordiais, por uma simples questão de atitude. Posso e tenho minhas opiniões contrárias sobre pessoas diversas, mas só quem sabe disso são meus amigos mais próximos.

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Ser diplomata na vida tem me ajudado a circular por situações completamente opostas, sem deixar um rastro de mal-entendimentos. Chego, olho, analiso, avalio, cumprimento, converso, registro. De certa forma, é um comportamento político. Seria capaz de apertar a mão de pessoas com as quais aparentemente não tenho nada a ver, apenas por uma questão de educação, trato civilizado e… diplomacia. Agir assim, de modo diplomático, tem suas compensações sociais e pessoais. Socialmente me alivia, porque não sou obrigada a demonstrar posições arredias a ninguém, nem evidenciar que discordo das opiniões daquela pessoa X, Y ou Z. De certa forma, é um jeito que encontro para me poupar e não me aborrecer com minúcias alheias. Se fulano pensa assim, deixa ele pensar exatamente assim. Nas internas, comento e discordo das suas idéias. Mas publicamente não convém, para que ele também não se sinta no direito de revidar os meus pensamentos. A outra vantagem de ser uma mulher diplomática é a de exercitar por completo um lado que pede prudência, paciência e análise. Aprendi a agir assim com meu pai, que cada vez que o interrogam se entendeu determinado assunto ele responde uma clássica sentença: Registrei. Portanto, faço cá os meus registros da forma mais pessoal possível, sem ter a obrigação de externar na hora julgamentos precipitados, conceitos apressados ou avaliações incorretas.

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Sem contar que atualmente as pessoas querem opinar sobre tudo. Basta ligar a tevê e lá vão estar, a qualquer hora do dia, um grupo de cidadãos discutindo o sexo dos anjos, a inflação da Bulgária, a cor do cavalo branco de Napoleão ou a neurose múltipla que foi descoberta na semana passada. Por que todos querem emitir tantas opiniões assim? O verbo achar, por exemplo, é um vício na boca de milhões de seres. Ninguém mais diz eu considero, eu penso, eu avalio. Está aí uma descoberta que fiz agora: talvez eu seja diplomática para evitar cair no lugar-comum do achismo. Eu prefiro não achar nada sobre nada, mas pensar sobre algo. Nada mais sensato, então, do que exercer nosso lado diplomático nas relações humanas. Que tal imaginar que cada pessoa é um país diferente e que os inter-relacionamentos pedem a máxima atenção no que se diz, se age ou se comenta? Registraram essa? Eu registrei.

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DESVIOS

DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES

Por ser um mestre em criar situações desviantes, este tema é dedicado a meu irmão Arnaldo.

Um concerto de orquestra pode soar desafinado por inteiro se um instrumentista resolve tocar fora do tom. Uma gota d’água é o bastante para atingir o ponto de vazamento. Um minuto a mais ou a menos é capaz de mudar a vida de qualquer pessoa. Um jeito diferente de agir significa um desvio incontornável. Conheço algumas histórias de vida que se aproximam desse processo “desviante”. Talvez a mais marcante seja a do filho de um amigo que desejava ser músico, enquanto ele esperava que fosse cumprida a tradição familiar: o rapaz se formaria em medicina. Depois dos dramas típicos que acontecem nesses momentos de decisão profissional, o clima fica aparentemente resolvido. Aparentemente. Sim, porque convencer alguém que sonha com determinada profissão a cursar uma área oposta não é nada simples. Nem de fácil resolução. E o

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filho desse amigo amargou seis longos anos até se formar como médico. Dias depois da formatura, ele chamou o pai, entregou-lhe o diploma e disse: “Aí está o que prometi. Agora vou cuidar da minha vocação”. Partiu em seguida para atuar como músico. Esse seria um final triste? Talvez para os pais. Mas felicíssimo para quem sente o alívio da decisão, o alívio de correr em raia própria, o alívio de ser dono de sua própria trajetória. De certa forma, também fui considerada “desviante” perante os padrões pré-estabelecidos pela minha família. Por períodos – de nada saudosa lembrança – fui analisada como outsider completa. Por quê? Por tentar acreditar em mudanças, por exigir mudanças, por querer mudar sempre. Muitos não seguram as expectativas de irmãos, pais, parceiros ou sócios. E acabam sem realizar nada de prazeroso para si mesmo, nada de autoral, nada de verdadeiro. Sobrevivem em um pântano de frustrações, daquelas que mantêm o travo amargo por prazo indefinido. Quantas pessoas se adaptam a rotinas medíocres, com temor de serem classificadas como desviantes? Quantos atravessam suas existências em linha reta, sem novidades, sem nenhum fato que traga luz, explosão, renovação, brilho? Quantos milhares vão continuar a nascer, a crescer e a morrer na mais obscura e triste rotina, sem nem sequer ter ímpetos de brigar para desviar o caminho de suas vidas? Definitivamente, desolador.

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Acredito que os desvios de rota costumam trazer belas surpresas. Certamente nada deve ser considerado uma regra imutável, mas vale bastante apostar em mudanças, em cambalhotas, em reviravoltas. Importante é nunca esmorecer. Tornam-se grandiosos aqueles que enfrentam oposição para demonstrar que estavam certos nas escolhas, ou que desejavam investir em sonhos. Às vezes, para nossas idéias passarem do preto-e-branco para o colorido é necessário dar murros em ponta de faca. Por isso, as palavras de ordem são: não se acomodar jamais, não seguir retilíneo jamais. Um desvio aqui e outro lá faz bem à saúde de todos.

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TERRITÓRIO

ÁREAS DE PROTEÇÃO PESSOAL Muita gente me fala sobre as tormentas que passam por ter suas realizações não respeitadas, suas vidas invadidas ou suas privacidades devassadas sem permissão. Fico calada e apenas exibo um leve sorriso. Longe de pretender parecer ter respostas prontas para tudo, apenas considero isso como questão de ausência da imposição de limites. Ou melhor, como falta de delimitação de território próprio. Até os animais determinam seus limites por meio de sons, rastros, dejetos e expressões de afaste-se. Ora, ora, ora. Vale lembrar um fato fundamental que todos fingem esquecer: o ser humano é um animal. Então, para que aconteça alguma forma de convivência no mínimo tolerante, seria preciso evidenciar os limites e extensões possíveis para cada chato sem noção que circula por determinados ambientes. Seja homem, mulher, papagaio, bandido, político ou cachorro. Quando digo ser importante delimitar territórios, refiro-me a situações em que pessoas invasivas começam a se sentir inteiramente à vontade para agir de qualquer

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modo, sem se preocupar se incomodam, se irritam ou se são intrusos. Refiro-me principalmente às figuras conhecidas, algumas dessas muito célebres pelo mau-caráter empresarial, político ou pessoal, e que se acham no direito de chegar, puxar conversa, pegar no seu braço e até dar beijos no rosto. Nunca estive fechada a conversar com desconhecidos, ao contrário. Penso até que quase todo mundo que vemos pela frente pode ter pureza de alma. Muitos dos que se aproximam sem nos conhecer chegam de cara limpa, com boas intenções. Se depois mudam, é outra história. As velhas raposas dos encontros sociais não percebem quando as evitamos ou fingem não ter compreendido a mensagem. Esses invasores de território tão logo encontram algum conhecido, vão lá abraçar, dar tapinhas nas costas, perguntar como vai o trabalho, onde está morando e outras chatices assim. Uma estranha compulsão pela intimidade imediata, pela obrigação de parecer o mais animado e simpático do planeta. Só que esse comportamento é inconcebível em certos momentos. Os intrusos profissionais não conseguem ser formais, gentis, sorridentes e civilizados sem apertar o antebraço do interlocutor. Adoram sentar no braço do sofá para trocar duas frases, falam ajeitando a gola do seu vestido ou ajustando o nó da gravata alheia. Ou começam a contar piadas sem saber que você odeia ser platéia de piadistas de salão.

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Também adoram exibir uma intimidade que jamais existiu. O ataque dos invasores não perdoa. Declaro aberta a campanha pela delimitação de território. Cada chato desses que fique na sua, até que aconteça a sinalização para avançar, ou o sinal verde para andar mais alguns passos. Gente intrusa, seja político, cunhado, genro, amigo do amigo ou pilantra, precisa de limites, antes que tomem conta do planeta, dos salões, dos encontros, das relações de amizade e dos contatos profissionais. O pior é que eles estão por toda parte. Mantenha-se firme e forte!

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LÍNGUAS DIFERENTES

TORRE DE BABEL

Para o meu irmão Abílio, que embora fale uma língua diferente da minha, sempre acabamos por nos entender

Incontáveis acontecimentos desagradáveis surgem por motivo bem simples: não saber lidar com gente que fala outra língua. Nada a ver com um brasileiro não poder se comunicar com um búlgaro, ou um neozelandês sentir impasse na hora de ser entendido por um peruano. Aliás, há situações em que pessoas de idiomas diferentes conseguirem se comunicar, inexplicavelmente. A metáfora que uso aqui se refere exclusivamente àqueles que desistimos de manter qualquer possível diálogo, visto que pensam de modo oblíquo ou então analisam de maneira oposta a maioria das situações consideradas resolvidas. São fatores complicados, mas vale a pena comentar isso tudo. Exemplos? Conheço quem não se importe a mínima em deixar de comparecer ao aniversário para o

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qual fora convidado pelo próprio aniversariante. Além de nem se tocar, também é incapaz de justificar a sua ausência. Não que seja apenas sinal de desinteresse (também é), mas a pessoa que age assim simplesmente não compreende porque os outros se chocam com a sua atitude. Há gente que interpreta os valores da boa convivência de jeito estranho à maneira que pensamos. Pode-se explicar em detalhes a nossa posição, mas os que falam outra língua vão permanecer na sua posição inarredável, sem mover-se para trás ou para frente. Nem para os lados. Essa pessoa simplesmente não entende a sua linguagem, ela construiu (ou foi levada a construir) imagens do mundo sob prismas diferentes, em que as coisas não têm peso nenhum – ou passam a ter peso em excesso. Muitos são simpáticos, educados e gentis. Isto é, na medida do possível. Ficam boiando quando um tema determinado é abordado e se questionam porque aquele tema teria sido abordado. Ficam atônitos se são repreendidos, porque a gramática de vida deles é outra. Cometer deslizes? Desistir de objetivos? Nunca retornar a sua ligação? Jamais responder e-mails? Discutir pontos de vista bobos? Prometer muito e realizar pouco? Encerrar uma atividade coletiva e sair sem demonstrar saudades do grupo? Continuar a falar sobre futebol, mesmo depois que você diz não gostar do assunto? Insistir para que você coma pratos que você diz querer evitar? Repetir brinca-

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deiras que incomodam? Todas essas ações, e muitas outras mais, integram o repertório dos que falam outra língua. E olha que nem entrei na questão de se relacionar com alguém que fala outra língua de verdade. Nem adianta reclamar ou tentar convencê-los de que estão equivocados. Suas profundas certezas continuarão arraigadas na mente, formando um dicionário próprio de analisar o mundo e as pessoas. O único jeito, conselho de quem já lidou demais com gente assim, é concordar com tudo, em uma espécie de retirada estratégica de cena. Não gaste palavras à toa. Não haveria diálogo, mas apenas a confirmação de dois pontos de visão inconciliáveis. Sem contar que lidar com gente que fala outra língua dá trabalho, perde-se a paciência e utiliza-se mal o tempo. Desista, mesmo quando são parentes ou amigos próximos. Eles moram em outro planeta, gostam de coisas diferentes das que gostamos, têm sensibilidades voltadas a outros pontos e, sobretudo, se consideram certos em tudo. Quem se habilita a fazê-los falar outra língua? Eu, não. Já fiz muitas tentativas. Hoje fico no meu observatório.

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CAMA DE FILHO

PLAYGROUND

Para meus filhos Manoella, Tiago e Giovana, as três jóias mais importantes da minha trajetória nesta vida

Primeiramente, quando o casamento não vai bem, ir ao quarto dos filhos costuma ser uma boa desculpa para evitar a presença opressora do marido. Inventam, as mulheres, que precisam ficar um tempo com as crianças e depois somem por horas a fio. Essa justificativa, quando ocorre com freqüência, denota que as coisas entre o casal estão realmente afundando. Fugir de marido chato só tem um refúgio doméstico, portanto: o quarto dos filhos. Mas comecei a descobrir, na época em que fazia isso, que ficar no quarto das crianças é como se atingir um outro universo. Parece que entramos na tela de um filme em projeção contínua. Ou que retrocedemos algumas décadas no tempo. Quem gosta de crianças, ou quem tem filhos, como eu tive, conhece a indescritível sensação do que é a cama de um pequeno ser com menos de dez anos.

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Limitei a idade para entrar nessa viagem, porque depois dos dez anos, entram em cena os efeitos especiais da pré-adolescência. Mas voltando ao assunto, sempre costumo dizer que sentar ou deitar ou conversar na cama de um filho é uma das sensações mais gratificantes da maternidade. Nesses momentos é que percebemos a dimensão real (e irreal) daquela pessoa que colocamos no mundo, de seu universo com aspectos ainda tão restritos, de suas descobertas da vida, de suas expectativas perante um longo tempo que prevê para sua vida. A realidade da criança que está a seu lado é delirante, permite tudo, alcança tudo e decifra tudo, de acordo com códigos que só ela tem acesso. Existe naquela criatura humana um fator real de desabrochamento, de crescimento, de emissão de sinais. O que é o viver para uma criança? É receber conforto, ser alimentada, ganhar atenção, ter carinho, poder observar tudo ao redor. Tão pouco para os adultos e tanto para elas. Ternura é o nome do sentimento que me invadia quando eu ia até a cama dos meus filhos. Para eles, era sempre uma visita inesperada e um componente a mais de alegria. Imediatamente se sentiam impelidos a me mostrar novidades, pequenas bobagens, deliciosas tolices do mundo infantil e que só nos enchem de amor. Sobre os lençóis, objetos coloridos que não nos dizem nada. Mas que para uma criança pode ser a chave do mundo.

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De um pequeno aeroplano de plástico ou de uma casa de bonecas, tem-se um mundo inteiro à disposição da imaginação. Sempre foi assim e sempre será: a infância tem olhar minucioso, atento, detalhista, possuidor, sem limites. Olhares rumo ao infinito. Cama de criança também tem cheiro diferente. São cheiros que nos levam de volta a algum lugar do passado, como se nós mesmos nunca tivéssemos saído daquela cama. São cheiros que misturam fragrâncias silvestres, sabonetes, travesseiros, brinquedos de borracha, madeiras claras, roupa lavada, sonhos com fadas. E as texturas? Nosso tato de adulto se envolve na sensação de apalpar pelúcias, substâncias molengas, mantas fofas, caixas bem lixadas, cubos, esferas, losangos, varetas mágicas e pequenos tapetes prontos para voar. Toda essa ternura se mistura a uma vontade de encolher a estatura para se juntar àquele pequeno planeta que gira em torno daquela cama. A atmosfera se torna mais tocante ainda quando contamos histórias cujas origens se perdem no tempo, histórias de amigos alados, de árvores falantes, de animais sábios, de viagens a reinos encantados, de vôos sobre palácios dourados, de choupanas perdidas na floresta. O grande escritor argentino Jorge Luiz Borges dizia que a literatura infantil é a mais importante formação da mentalidade de qualquer pessoa. Fazer sonhar é educar. Por tudo isso, considero a cama de um filho como

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uma das experiências mais bonitas da vida. De lá emanam a pureza que perdemos, os aromas que lembram antigos momentos, as cores que provocam efeitos sensoriais retroativos, as formas que explicam como o mundo poderia ser singelo e, o mais importante, aqueles dois pequenos olhos que não sabem de nada. Mas que estão abertos a tudo e que tentam nos proteger.

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Amores & Desamores


U M C O M PA N H E I R O

O COMPANHEIRO MÁGICO Uma vez soube que existiu nos anos 70 um grupo musical chamado Companheiro Mágico. Esse nome de vez em quando me vinha à cabeça, sem motivos aparentes, mas talvez porque encerrava um punhado de significados que pareciam fazer sentido apenas para mim. Porém, o tempo se encarregou de dizer que aqueles meus devaneios tinham sentido. Companheiro mágico. Duas palavras que traduzem a combinação com que quase todos sonham: encontrar alguém que reúna a capacidade de formar uma parceria verdadeira, a partir da companhia física e, ao mesmo tempo, exercer uma atuação mental capaz de trazer magnetismo, encanto, crescimento, envolvimento e, sim, magia. Se levarmos essa análise adiante, corremos o risco de desistir da possibilidade de permanecermos abertos aos grandes encontros. Todas as pessoas que conheço sabem como se tornou desgastante a busca pelo romance, a procura pela parceria perfeita. O mundo contemporâneo, entre as suas enormes contradições, oferece recursos tecnológicos que foram criados para melhorar a vida e propor-

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cionar mais tempo livre. Entretanto, esses mesmos recursos acabam por afastar as pessoas de convívios, de descobertas e de aproximações. Ou, pior ainda, o ritmo da vida moderna está tornando as pessoas auto-referenciais em excesso. Poucos dizem nós. Muitos só conhecem a primeira conjugação: eu sou, eu faço, eu tenho, eu quero. Bom, voltando à busca do suposto companheiro mágico, vale acreditar que esse termo, aparentemente utópico, possa mesmo existir. Por que não? No momento em que começamos a entender alguém, alguma estranha luz transforma tudo em situações indescritíveis. Gostar de alguém é algo indizível, próximo da plenitude. Então por que, depois de reações adversas que não têm um momento exato para ocorrer, “faz-se de triste o que se fez contente”, como diz a letra da canção de Tom Jobim? Pois é, o encontro de duas pessoas costuma sempre ser algo enigmático. Abracadabra. Mas se há enigma, há a possibilidade da magia, não? Não a magia da flutuação, da alquimia ou dos coelhos da cartola. Mas a magia que provém dos olhares em silêncio, das mãos que se tocam, das perguntas que não precisam ser perguntadas, dos detalhes que vão atingir profundamente a alma do outro. Ser companheiro é, antes de tudo, um exercício diário, minuto a minuto, de compreensão, de manutenção e de busca pela harmonia. Se a palavra é prata, o silêncio é ouro.

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De nada adianta projetarmos a busca do companheiro perfeito no outro. Precisamos, antes de tudo, trazer esse companheiro ideal dentro de nós. Ao se buscar a parceria exata, estamos apenas tentando satisfazer uma projeção de perfeição, uma idealização daquilo que sabemos nunca estar aptos a realizar. Não é o companheiro que precisa ser o mais sublime dos seres. Nós é que devemos nos trabalhar para que esse fator do sublime aconteça primeiro dentro de nós. Isso, claro, requer paciência, inteligência e a capacidade de até se dispor a ser coadjuvante. Tarefa aparentemente difícil em uma época em que todos pretendem ocupar o papel de estrela convidada na vida do parceiro. O companheiro mágico existe, concluo. Só que essa dádiva celestial raramente será alcançável. Pelo menos enquanto houver demonstrações de egos inflados, surtos de ansiedade, análises corriqueiras, palavras inúteis e desconhecimento da psique humana. O companheiro mágico existe, acredite. Você já esteve com ele, ou está agora com ele bem aí do seu lado. Não dê uma palavra sequer. Feche os olhos, respire lentamente e abra as pálpebras devagar, como se estivesse desembarcando em um planeta estranho. Comece a ver tudo a seu redor de outro modo. E a observar esse ser que você conhece tão pouco. Ali dentro mora o companheiro mágico. Para ter acesso a ele, basta encontrar a senha que está dentro de você.

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Vem sentar-te comigo, à beira do rio Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas. (Enlacemos as mãos) Depois pensemos, crianças adultas, que a vida Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa Vai para um mar muito longe, para o pé do Fado, Mais longe que os deuses. Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. Mais vale saber passar silenciosamente E sem desassossegos grandes. (trecho de O Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa)

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Porque tu me chegaste Sem me dizer que vinhas E tuas mĂŁos foram minhas Com calma Porque foste em minha alma Como um amanhecer Porque foste o que tinha de ser (O que tinha de ser, de Tom Jobim e VinĂ­cius de Morais)


PRIMEIRO CASAMENTO

COBAIAS E CIENTISTAS Casar é complicado. E casar jovem pode ser ainda mais problemático. Principalmente no meu exemplo, aos 19 anos. Embora me considerasse pronta e madura o suficiente para enfrentar a missão, hoje percebo que mal passava de uma adolescente bem desenvolvida. Por ser filha caçula, mimada e controlada pelos pais, viver oficialmente com alguém era tão importante quanto atingir a tão desejada declaração de independência sentimental, emocional e existencial. Joguei-me, portanto, de cara e coração em uma aventura de exatos oito anos – o mesmo tempo que duraram os meus outros dois casamentos. (Costumo até brincar que esse é o limite de tempo que tolero nas relações amorosas.) OK, mas casar, naquele momento, valeria como o primeiro vôo solo de uma crisálida recém-saída do casulo. E assim parti da casa paterna, no princípio pensando que estreava uma vida em que só aconteceriam situações divinas e maravilhosas para todo o sempre. Afinal de contas, essas eram as palavras proferidas pelo padre na cerimônia.

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Alegria, alegria, alegria. Todo começo de união é leve e pode conduzir os pares a estados próximos da plenitude. Porém, com o passar dos anos, desenvolveu-se no meu casamento uma estranha forma de amor. Estávamos tão próximos, meu marido e eu, que desenvolvemos uma relação como se fôssemos dois primos, sempre prontos a rir e a se divertir com tudo e todos. Tamanha intimidade e conhecimento mútuo em excesso nos afastaram gradativamente de contatos físicos. Agíamos como parentes fraternos que, por mero acaso, estavam casados. O resultado, como não podia deixar de ser, nos impulsionou na direção daquela palavra feia que faz tremer os casais: separação. Romper o primeiro casamento foi como fazer desmoronar uma utopia de felicidade, um reino de sonhos. E, com menos de 30 anos, me deparei com uma mulher isolada, magoada, com sentimento de rejeição, começando a acumular quilos de rancor na alma e muitos quilos de ansiedade na cintura. Para mim, a partir daquele momento, o mundo caía de modo irreparável, tudo parecia estar de ponta-cabeça. Reagi como agem os que perdem algo que consideram de grande valia. Passadas duas décadas dessa separação – que eu considerei, imagine-se, a maior tragédia da humanidade – percebo que também tive significativas parcelas de culpa na separação. Conduzi e deixei os fatos se dirigirem a um ponto sem retorno. Hoje garanto que desapareceram com-

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pletamente as mágoas, as dores, os corações partidos, as tristezas. Prefiro – e consigo – recordar situações interessantes que atravessamos a dois, ou lembrar da forma com que nos divertíamos como casal, dos anos que repartimos prazeres, viagens, cama, mesa e idéias. Além de gerar dois filhos, muito queridos. Meu primeiro casamento trouxe, de forma que apenas agora analiso, a base emocional para compreender envolvimentos, sexualidades e as parcerias que acontecem debaixo do mesmo teto. Tornei-me menos auto-referencial e mais generosa, menos cobaia e mais cientista. Desenvolvi atitudes para evitar a passividade feminina em excesso e comecei a olhar o mundo com interpretações feministas. Começava assim o prenúncio da série de mudanças que ocorreriam depois em minha vida. Foi quase um prenúncio, um relâmpago, do que viria à frente. Não me arrependo de nada que aconteceu nesse primeiro casamento. Ao contrário, só adquiri conhecimento e desenvoltura.

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SEGUNDO CASAMENTO

PÂNICO DE SER GUEIXA Quem sai abalado do primeiro casamento, inevitavelmente vai depositar mais esperanças do que devia no segundo casamento. Assim acontece com a maioria das pessoas, assim aconteceu comigo, assim acontecerá ainda com muitos. E agora que o tempo já se encarregou de trazer alívio a tantas lembranças de sabor amargo, não vejo problemas em rever esse período de tormentas pessoais e de submissão absoluta. Aliás, só a distância é que nos permite rever fatos anteriormente complicados como uma série de cenas de algum filme distante no subsolo da memória. Esta impressão se torna ainda mais forte se conseguimos, durante esse tempo, evoluir a cabeça, o corpo e o espírito, sabendo deixar para trás os personagens que nos entristeceram e os comportamentos equivocados que exibimos. Meu segundo casamento foi uma fase de aprendizado. No primeiro eu havia me casado muito jovem e saíra magoada de uma experiência que tornou dois parceiros em apenas dois bons amigos, sem cama nem mesa. Fui, portanto, buscar em seguida algo que adicionasse aventu-

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ra, ação e trepidação em minha existência. Eu não chegara aos 30 anos e queria aprender a decifrar o universo masculino. Mal sabia eu o que me esperava. Em pouco tempo, comecei a perceber que o papel reservado a mim naquela relação era o da esposa submissa e completamente isolada de grupos masculinos. Mulheres servem, todo playboy pensa assim, para proporcionar prazer, cuidar de manter a beleza e ficar calada. Nada de emitir opiniões, nada de ousar no figurino, nada de buscar um tanto de independência. Submeti-me a situações frustrantes, em que eu me via forçada apenas a representar o papel da mulher servil, prestativa, maternal e máquina de fazer sexo. Qualquer ensaio de mudança, um grito. Qualquer alteração de comportamento, uma reprimenda. Gostasse ou não, eu precisava aprender que a mulher era um segundo gênero, fraco, débil e acuado por natureza. A mim cabia levar uma bandeja de aperitivos, sorrir com educação, renovar o gelo, trocar a música, apresentar-me sempre composta, jamais perder a linha, conversar apenas com as outras esposas, dar boa noite, sair de cena e ponto final. O mais louco é que existem milhares de mulheres que aceitam como normal esse procedimento, essas imposições dos maridos. Seria como usar um manto invisível. E o mundo cairia se alguém olhasse mais demoradamente para mim. Meu lado feminino estava restrito a agradar o marido,

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a cuidar das atividades do lar, a acompanhá-lo em eventuais encontros sociais, a cuidar dos filhos, a dispor flores no jarro e a aceitar tudo sem fazer cara feia. Ninguém podia prever, talvez nem eu, que daquela colossal submissão começava a brotar um sentimento de mudança. Problemas com o corpo e o excesso de peso apenas confirmavam a minha extrema falta de auto-estima e era a radiografia da infelicidade. Lá dentro, o vulcão começava a rugir, a querer entrar em erupção. Então chega o tempo em que não se suporta mais a pressão e atingimos o ponto X da decisão. Como sempre, finalizar um casamento nunca é fácil, principalmente quando dele se tem uma filha muito amada. Mas quando estamos decididos não existem empecilhos, e sim obstáculos que precisamos transpor. Lá fui eu embora, mas decidida a nunca mais bater continência a marido algum. Desde então, penso que os encontros sentimentais precisam ter, para começo de conversa, respeito pelo território do outro. Descobri que independência também pode rimar com amor.

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TERCEIRO CASAMENTO

TERCEIRO ATO Deveria iniciar esse parágrafo enaltecendo o otimismo e as estranhas formas como quase todos vivem a apostar em reviravoltas. Mesmo quando essas tais reviravoltas signifiquem fazer um lifting em situações de envolvimentos amorosos, por exemplo. Bom, vamos passar logo ao tema. Senhores e senhoras, meu terceiro casamento. Como a novela havia parado? Primeiro, contei sobre o primeiro casamento, quando nós, feito dois namorados nos tornamos amigos. Tão amigos que parecíamos primos – e não mais um casal. Depois, veio o segundo round amoroso da minha vida: virar esposa-modelo de um protótipo de macho, daqueles para quem mulher é artigo de cama, mesa e banho. Desta última jornada, saí amadurecida à força. Em parte pelo sofrimento da submissão prolongada, em parte por ter começado a desenvolver capacidades que então desconhecia, como a força de vontade, os objetivos e a determinação pessoal. Seria natural, portanto, que me considerasse madura o suficiente para me casar com um sábio, ou com um

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homem extremamente professoral, cheio de ensinamentos e disposto a dividir seu conhecimento prático. Adivinha o parceiro que chegou? Um homem mais velho, culto e que trazia um jeito de estabilidade que eu não experimentara anteriormente. Assim, meu terceiro casamento despontou de modo antagônico aos dois anteriores. A meu lado estava um companheiro cheio de paciência, bondoso, compreensivo, dono de histórias para contar. Hoje analiso aquele período como a minha plataforma de lançamento: ele, como parceiro, foi o instrumento ideal para quem, como eu, precisava desenvolver-se intelectualmente e buscar soluções inteligentes, capazes de mudar minha postura perante o mundo. Sim, ele pode ter sido esse agente. Só que existia o tempo certo para a aluna se tornar independente do marido instrutor. Ele continuava no personagem de estabilizador. Mas havia um problema: tudo começou a ficar estável demais, zen demais, acomodado demais. Eu, em ebulição, trocando de pele para virar outra mulher. Ele, apegado a seus princípios imutáveis. Ele sonhava com um carrossel, eu sonhava com um supersônico. Quando veio o rompimento, nenhum trauma de lado a lado. A compreensão dele, a correção dele, a atenção dele nunca o levariam a agir com tom intempestivo perante a relação amigável que mantivemos por oito anos.

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Ele percebeu que havia chegado o meu tempo de inventar uma rota própria e de alçar planos profissionais maiores. O saldo foi – e vai continuar – positivo. Ficaram lembranças calmas, serenas e apaziguadoras. Não me senti explorada, nem subjugada, nem atada a moralismos machistas. Houve desligamentos simultâneos: cada parte seguiu rumos diferentes. Cresci, mudei, evoluí, dei saltos. Desde então adquiri notável poder de observar – e de me surpreender – como são os homens, as mulheres, os seres. Não voltei a me casar, embora continue disposta a encontros duradouros. Encontros feitos de romance, encontros de dois que se gostam, encontros que traduzam o termo amantes naquele sentido dos amores épicos, enlevados, faiscantes e envolventes. Não é fácil. Do terceiro casamento para cá, considero-me outra pessoa. E. por isso, como naquela canção de Roberto Carlos, “Só vou gostar de quem gosta de mim”.

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HOMENS SEDUTORES

ATRAÇÃO FATAL? Um, dois, três: a sorte está lançada. Quando eles entram no ambiente, mulher alguma deixa de esboçar reação. Um homem sedutor vira acontecimento onde quer que passe. E como elas percebem? Ora, por meio de um simples gesto parado no ar, de um olhar que parece desnudar corpo e alma, ou de um magnetismo físico que obrigatoriamente atrai os olhares. O curioso dessa situação é que os sedutores sabem como seduzem. Pior ainda: eles sabem a intensidade do impacto que provocam. Algo ainda pior? Às vezes eles fingem não saber do poder. E nós, mulheres, presas indefesas, na mira dessas feras impiedosas, entramos no jogo de brincar de difícil. Jogamos os cabelos, evitamos olhar naquela direção perigosa, puxamos assuntos longos com o interlocutor mais próximo, estendemos a conversa sobre qualquer assunto e sorrimos do modo mais enigmático possível. Quando existe um homem sedutor de alta intensidade, é bem provável que no mesmo instante, no mesmo recinto, cerca de dez mulheres estejam arrastando a asa, discretamente. Elas são capazes disso: saber que existe

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concorrência forte no salão, mas acreditar firmemente na sua vitória. Isso nem sempre acontece. Sempre haverá um homem sedutor disposto a jogar seu charme, a exibir-se como um deus que escapou do Olimpo, a fazer tremer uma mulher apenas com um simples olhar. O que vem depois, ninguém garante. Seduzir é quase uma prática esportiva, ou não? Depois de efetivada a sedução, aquele mesmo homem que parecia prometer um festim diabólico, pode se revelar tão sem graça quanto um picolé de chuchu. Acredite quem quiser. Existem, ainda bem, outros tipos de homens sedutores, diferentes desses cheios de estampa. Penso naqueles mais discretos, que só costumamos reparar nos últimos momentos, exatamente quando estávamos quase indo embora da festa. Sabe aquele ser absoluto, insinuante e belo, que faz qualquer uma pedir outro drinque e comentar que ainda vai ficar “mais um tempo” por ali? Aliás, essa frase funciona bem para se livrar de possíveis concorrentes. Se foi detectado um clima entre aquele homem sedutor e você, e que ninguém ainda percebeu a grandeza do lance, é bom tratar logo de limpar a área de possíveis concorrentes. Eis uma seqüência de frases úteis para mandar as amigas embora: 1) “Hum, se você quiser, pode ir, porque ainda vou demorar mais uns 40 minutos por aqui”; 2) “Você vai ficar comigo por mais quanto tempo?

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Marquei um encontro daqui a duas horas”; 3) “Depois não vou sair com você, preciso passar de novo no escritório”; 4) “Saindo daqui ainda preciso passar em dois eventos profissionais”. Depois de uma frase dessas, qual amiga ficaria dando sopa no salão e atrapalhando o seu flerte fatal? Então, tudo resolvido, você está só na área e o sedutor discreto continua lá no canto, sempre à espreita. Pega mal se aproximar e puxar conversa? Pega. Ou não? E se ele for o homem da sua vida? E se você for a mulher que ele esperou durante anos? Peça outro drinque, crie coragem e dê um alô. Somos adeptos dos filmes de suspense. Então, boa sorte.

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POSSE E SEDUÇÃO

AS DUAS MOSQUETEIRAS

Um texto para minha irmã Vera, que conheceu muito bem as trapalhadas dessas duas mosqueteiras

Atenção: essa conversa é fechada a homens. Podemos começar? OK. Então aquelas duas amigas tão liberais – e aparentemente satisfeitas com as suas liberdades conquistadas – começaram a dar sinais de que estariam fingindo. Fingindo que não desejavam envolvimentos sérios, fingindo que apenas buscavam seduzir possíveis parceiros e fingindo ser avançadas. Resultado: confusão, aborrecimentos, mal-entendidos e rompimento de amizade. Vamos supor que as tais amigas são uma dupla de mulheres bem-sucedidas, desenvoltas e com enorme disposição de aproveitar o que a vida traz de melhor. Gostam de viajar, freqüentam bons restaurantes, têm vida profissional equilibrada, são convidadas para as melhores festas, sabem cuidar bem do corpo, conversam com inteligência e, melhor de tudo, adoram namorar homens bonitos. Qual

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o problema? Nenhum. Principalmente quando atingimos uma etapa histórica em que dá para ser, simultaneamente, feminista, feminina, fêmea, fatal, fina, faceira e feliz. As duas amigas, vez por outra, não se importavam em confessar que estavam a fim do mesmíssimo homem, um personagem meio calado, discreto, independente, bemcuidado e sorridente. Um homem que não se aproximava com as velhas cantadas de sempre, um homem que provocava um misto de atração e curiosidade, um homem, enfim, para mulher nenhuma encontrar defeito. Pois esse homem foi conquistado pelas duas amigas, cada uma por seu turno. Ele marcava encontros em datas diferentes, enquanto elas faziam o teatrinho de desconhecer que o mancebo saía com ambas. Só que a dupla de mosqueteiras não se importava nada com o fato, bem como adorava contar – de pestanas piscando – como os encontros eram maravilhosos, divertidos, blablablá e uma série de adjetivos cabíveis. Passados dois meses, a situação começou a tomar contornos mais ou menos previsíveis. As duas amigas se descobriram envolvidas pelo mesmo homem, que, por sua vez, não parecia estar envolvido com nenhuma delas. Ele pretendia boa companhia, namoro, champanhe e bom humor. Nada mal, não? Mas no meio do trajeto surgiu uma pedra no escarpim de cada uma delas: o ciúme. Os sinais de posse começaram em sintonia baixa e

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cresceram à medida que elas descobriam brilhos insuspeitos no olhar da outra. Aliás, as mulheres percebem a léguas de distância quando existe ameaça de concorrência. E logo pipocaram as pequenas tiranias: telefonar para ele com maior insistência (muitas vezes só para atrapalhar o encontro da outra), deixar recados irônicos no celular da amiga, convidálo para viagens prolongadas, não responder mensagens da amiga ou telefonar dizendo: “Liberei ele hoje para você, mas saiba que sou a dona”. Estado velado de guerra. Obviamente o resultado foi desastroso para as duas amigas que viraram rivais peçonhentas durante um tempo. Acusaram-se de usurpadoras, conquistadoras irrefreáveis, dissimuladas e por aí afora. Depois, deram boas risadas da situação e voltaram às boas. Claro que o alvo da disputa percebeu a manipulação dupla (homens só admitem manipular) e pulou fora de vez. Elas, as duas amigas, decidiram que conquistas, de agora em diante, só se for cada uma por si. E Deus por todas.

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PIGMALIÃO

PROJETO SENTIMENTAL Conheço mulheres que almejam conhecer um homem rude, simples e tosco para transformá-lo imediatamente em um príncipe encantado, louro, de olhos azuis, gentil, perfumado, sensual e educado. Sei de mulheres que ignoram essa balela, e que continuam a tentar, a tentar e a tentar modificar seus pares. Mulheres que adorariam viver dentro das páginas dos contos de fadas. Claro que é um tanto incômodo ter namorados que diferem muito dos seus padrões sociais, culturais e econômicos. Incômodo porque é uma saia-justa permanente. Mas, curioso notar, quando os homens fazem isso, a aceitação é bem facilitada, e as tais eleitas, consideradas sereias fora d’água, um dia acabam por ganhar estilo, ficam atraentes pra valer e se tornam interessantes de verdade. Talvez essa trajetória faça parte da vida de muitas mulheres. Bom, voltando ao lado oposto, coitadas daquelas que procuram dar pedigree ao namorado. Primeiro porque todos cochicham quando elas passam. Segundo, por ser uma situação meio patética. Terceiro, porque está fa-

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dado a não dar certo. Quarto, por parecer falta de senso. Quinto, porque a humanidade é preconceituosa mesmo; uma pena. Lembro-me de uma antiga novela, inspirada em texto de Shakespeare e atualizada na época para Pigmalião 70, onde a personagem vivida por Tonia Carrero queria transformar um feirante simplório, interpretado na trama pelo ator Sergio Cardoso, em um homem finérrimo. Deu certo? Nem é preciso responder. Claro que são poucas as que chegam a extremos assim, mas ao ajustar-se o foco encontramos comparações aproximativas. E alto lá: quero emitir concepções sociais libertárias. Aviso que continuo muito a favor de qualquer forma de amor. Mas isso não me impede de analisar determinados comportamentos caricatos, como, por exemplo, daquelas que preferem não perceber as limitações do parceiro, forçando a sua presença em momentos que só geram desconforto geral. Geralmente mulheres assim moldam o namorado de maneira artificial, para construir nele uma projeção de valores que são mal resolvidos nela própria. As pessoas não são, pelo menos até a hora em que escrevo este texto, marionetes de ventríloquo. Então porque tentar mudar alguém que nunca pediu para ser transformado? Isso é compreensível se houvesse solicitação da pessoa que deseja se aprimorar, ou daquele que pede correções de rumo das atitudes. Aí, sim. Fica lindo elaborar

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alguém, acompanhar o seu crescimento intelectual, a sua busca pelo refinamento. Por outros aspectos, nada tão feio quanto impor trajes, assuntos, posturas, discursos e comprometimentos em pessoas que ficariam bem mais interessantes sem lapidações artificiais. E outra coisa: por que não aceitar o namorado do jeito que é? Só não vale deixá-lo colocar as botas em cima da mesa. O resto vale a pena, o resto é lucro. Precisamos nos esforçar para evitar a mania de querer idealizar ou construir pessoas. Isso só dá certo no palco ou no cinema. Ou melhor, nem no palco e nas telas dá certo, não é Shakespeare?

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V O LTA A O PA S S A D O

MIL PONTOS DE INTERROGAÇÃO Era uma vez um daqueles momentos em que se olha para fora da janela e se decide procurar um antigo namorado que não sai da memória. Aliás, dizer “aqueles momentos” é modéstia, pois já existia vontade diária de ouvir a voz dele. Por tudo isso, teria sido importante utilizar o controle remoto da emoção para conter esse ímpeto. Mas que nada. Ex-namorados que vivem grudados na nossa memória significam que o amor valeu? Ou será, em hipótese contrária, que foram um pedregulho no sapato? Como dizia um antigo bolero, quizás, quizás, quizás. Mas se considerarmos válida a primeira possibilidade, buscar namoros passados pode ser um passatempo divertido. Entretanto, ao se procurar via telefone, atenção: há procedimentos básicos. Primeiramente, telefona-se a um amigo em comum. Assim como quem não quer nada. Depois de 15 minutos de assuntos sem sentido, pergunta-se displicentemente sobre o ex. O que todos esperam ouvir é a seguinte frase: “Ah, ele vive perguntando por você”. Ledo engano. Diálogos assim só acontecem em novelas.

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A resposta costumeira para a questão acima será sempre evasiva, com informações que trazem mal-estar: “Ah, não tenho visto ele, não. Parece que já está namorando de novo”. Você, do outro lado da linha, passada. Bem-feito. Quem mandou perguntar? Mas, alto lá, quem falou que o romance está acabado? Ele também não enviou, pouco tempo atrás, sinais de simpatia, que logo foram interpretados por seus amigos como uma “tentativa de reaproximação”? Puxa, como gostamos de nos iludir. Evidente que nem deveria haver tentativa de aproximação alguma, mas aquela simples mensagem ainda paira na sua cabeça como um néon de loja de flores. Então, por bem ou por mal, você decide procurar aquele amor, cutucar aquela ferida, mexer em vespeiro, levantar a poeira. Tudo ao mesmo tempo. O máximo que pode acontecer é ouvir um não, repete para si mesma. De repente, surge uma série de dúvidas: 1) como vou reagir se me tratar friamente; 2) o que devo dizer se falar que ainda prefere “dar um tempo”; 3) o que fazer se me convidar para sair; 4) como manter o controle se disser que fui culpada pelo fim da nossa história; 5) e se atender uma secretária eletrônica; 6) e se atender uma voz de mulher nada eletrônica; 7) e se todas as boas lembranças forem por água abaixo com esse telefonema? Mil pontos de interrogação. Às 20 horas em ponto, horário que você considerou civilizado, é o momento escolhido para telefonar ao seu ex-

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grande-talvez-futuro amor. Você já tomou banho, vestiu-se como quem vai a um restaurante, perfumou-se, tomou duas taças de champanhe, abriu e fechou a janela 126 vezes, ajeitou todas as almofadas da sala, penteou o cabelo 21 vezes, ensaiou frases, passou hidratante nas mãos seis vezes, pensou em voltar a fumar, conferiu 19 vezes se o celular está ligado, colocou um CD de jazz, olhou para o relógio de 45 em 45 segundos. Finalmente, oito da noite. Melhor pensar pouco e telefonar logo. Barulho do teclado: tictictictictictic. Errou o número. Volta novamente. Tictictictic-tictictictic-tictictictic. Do outro lado, o ruído da campainha: truuuuuu. Segundo ruído: truuuuu. Terceiro ruído: truuuuuu. Quarto: truuu – “Alô.”. É ele. Você, lívida, respira fundo. Tenta fazer voz firme, sedutora, convincente, sem mágoas. Tudo ao mesmo tempo: “Olá, sou eu. Há quanto tempo…”. Ele: “Oi. E aí, tudo bem?”. Você, ainda sem graça, tenta ser conveniente: “Tudo ótimo. Você pode falar agora?”, propõe. Ele: “Agora não, desculpe, porque começou o Jornal Nacional e depois vou ter que sair em seguida. Dá para ligar amanhã ou outro dia?”. Você, atônita, mas sem demonstrar o terremoto: “Claro. Não tem problema. Ligo depois. Tchau. Um abraço”. Ele: “Um abração também”. E desliga. Ploft. Nem será preciso descrever o estado de calamidade pública da sua fisionomia. Durante dez minutos você permanece paralisada, sem ação nem para se levantar do

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sofá. Sente-se a última das mulheres, a derradeira criatura na fila dos insensatos, a mais inútil criação da natureza, a mais desamparada das desamparadas. Aquele passado que foi tão importante para vocês dois desmorona em câmera lenta, como as torres de Nova York. Só que a única vítima parece ter sido você. E aí vem a ressaca moral, com a dúvida cruel: valeu a pena remexer em um romance passado, mesmo quando esse romance parecia não ter acabado? Teria sido melhor reter boas lembranças ou desintegrar tudo com um único contato? Quizás, quizás, quizás.

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Quanto tempo longe de você Quero ao menos lhe falar A distância não vai impedir Meu amor de te encontrar Cartas já não adiantam mais Quero ouvir a sua voz Vou telefonar dizendo Que estou quase morrendo De saudades de você (Eu te amo, te amo, te amo, de Roberto Carlos e Erasmo Carlos)


AMANTES

O NEGÓCIO É AMAR Homens e mulheres disfarçam, mudam de assunto e ninguém aceita encarar um assunto polêmico: amantes. Entretanto, quantas pessoas do seu círculo de amizades – para não se estender muito – têm ou tiveram tórridos e calientes amantes? Evitar um tema tão recorrente na literatura, no cinema, na TV e na vida real seria apenas camuflar um falso moralismo. Nem vamos aqui entrar na discussão moral que pretende analisar os casos extraconjugais como a mais terrível das traições. Cada pessoa tem critérios próprios para compreender ações alheias – ou explicar os seus próprios métodos de atuação no território sentimental. Há romances tão vulcânicos que aniquilam pessoas, histórias de vida, agrupamentos familiares e êxitos profissionais. Existem aqueles seres que se entregam a uma paixão de forma avassaladora, como se novas esferas da existência fossem construídas para sustentar o amor que sentem um pelo outro. Lembro de uma canção da bossa nova que diz: “amor ciumento/amor vira-lata/amor que só cria caso/amor vagabundo/ Mas não interessa: o negócio é amar”.

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Se o negócio é amar, vamos todos encarar a face de Cupido. Mas por que não conhecer algumas opções que comumente surgem entre os amantes? A mais clássica, sem dúvida, é a que envolve dois parceiros casados em uma história paralela, repleta de lances dramáticos, momentos de puro êxtase, desfechos lacrimosos, cenas de cinema e a agonia permanente que as vidas duplas proporcionam. Quando esse amor é do tipo explode coração, o casal assume tudo e manda o mundo oficial para o espaço. Pois é, às vezes surge um antagonismo: para se construir a felicidade própria se torna necessário provocar um turbilhão de infelicidades em volta. Lei da compensação? Sei lá. Ninguém gosta de estar do lado que foi rompido. Prefiro, por isso tudo, usar a palavra amante no sentido daquele que traz o romance, de jeito calmo, galante, sedutor, cheiroso, porém menos explosivo. Continuo a acreditar nas parcerias que dão certo, no casamento com proposta de durar para sempre e nos amores transformadores, capazes de mudar definitivamente a vida de duas pessoas. Mas quando essa junção de mundos não se torna possível, por vários motivos, vale optar pelo amante versão número dois. O amante ideal sabe manter situações que tragam prazer, júbilo, celebração à vida, parceria, alegria, sexo, romance, diversão, viagens, expansão de sentimentos. Poucos alcançam a sorte de ter encontros grandiosos assim. Encontros que se tornam leves por não exigir com-

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promissos bilaterais nem amarrações imediatas. Vale agir com tanta pressa ao se lidar com um assunto tão fugidio quanto o amor? Negativo. Ninguém passa a vida inteira em um parque de diversões. Existem períodos quando tudo brilha na luz perfeita, na cenografia exata. Depois podem ocorrer curtos-circuitos, escuridão, silêncio e tédio. Fazer o quê? A vida é repleta de lances inesperados, como dados jogados ao acaso. Por vezes tangenciamos os sonhos de encontrar a leveza no amor. Vale tentar.

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Quando olhaste bem nos olhos meus E o teu olhar era de adeus Juro que nรฃo acreditei (Atrรกs da porta, de Chico Buarque)

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ROMPIMENTOS

DORES DE AMORES Há um tanto de engano em pensar que a verdadeira percepção do rompimento amoroso surge de imediato, logo após algo brusco, dolorido e de forte impacto. Do momento em que o cérebro armazena que uma relação se rompeu, e até o fato vir nos atingir, passam-se intervalos de tempo. Quanto tempo, ninguém saberia precisar. Mas num belo dia a tempestade despenca sobre cabeça, tronco e membros. Romper, desligar-se, ser desligado, descartar ou ser descartado. Muitas palavras e verbos podem ser empregados para revestir um dos momentos mais determinantes que acometem a vida emocional da maioria dos homens e mulheres. (Vale até lembrar: vida emocional é uma espécie de trajetória repleta de emoções, sustos, novas experiências, imprevistos, delícias, dores e prazeres. Se fosse um percurso linear, reclamaríamos da monotonia. Pois é. Caso não existissem altos e baixos, nem haveria romances, canções, novelas e tampouco aprimoramento sentimental.) Entretanto, subitamente acontece. Choque, espanto, resoluções. No início do fim seremos fortes e prometemos

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a nós mesmos que daqui a pouco a perda passa. Dor, eu? Tristeza, eu? Ninguém admite ser observado com compaixão nessas etapas de separação, porque significaria expor publicamente uma série de frases diretíssimas: “estive iludido”, “me enganei” ou, muito pior, “perdi o meu tempo”. Sim, é chato. Sim, é quase caricato. Mas quando se enfrenta rompimentos de forte intensidade, percebe-se que a imagem do coração partido se transforma em uma projeção próxima do palpável. Difícil seria escapar desses fragmentos amorosos, desses cacos. Hoje, ao notar alguns comportamentos públicos, considero admiráveis aquelas pessoas que, ao se separar, conseguem dizer, poucos dias depois: “OK, estou feliz”. Que bom. E a tristeza foi para onde? Abalar-se por amor parece ter ficado contraproducente, ultrapassado e inútil. Que pena. (Falamos de amor, não de paixões para pronto uso.) Rompimento continua, queira-se ou não, uma palavra assustadora. Puf. A bolha de sabão some e deixa apenas um pequeno sinal líquido no chão. Será possível reverter essa situação? Talvez. Penso ser sempre melhor partir do pressuposto de que os romances só retornam quando não houve desfechos dramáticos ou rastros de incômodos. De fazer um pouco de drama, ninguém escapa. Mas o que dizer daqueles que perdem o prumo, o tino, o senso? Importante saber entrar e se desfazer de tudo com elegância, controle, dignidade. A última lem-

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brança de um rompimento pode ser a primeira saudade para a possível volta. E quando alguém perguntar se a situação continua dolorosa, responda sempre que sim. Fica bonito, sincero, ponderado. Choro também pode, principalmente em ombros amigos. A angústia de uma separação geralmente custa a passar. Não se esconda disso. Porque se a dor de um rompimento de tendões, por exemplo, é forte, a do coração, nem se fala. Ou melhor: fala-se, sim.

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RITUAIS DE SEDUÇÃO

JOGO DE DAMAS Existe um momento na vida em que percebemos ter desenvolvido olhares agudos e perspicazes sobre situações diversas. Nada mais parece chocar tanto ou nos deixar boquiabertos como antes – pelo menos perante comportamentos sociais. Vamos direto ao ponto? Falo dos jogos de sedução. Quando, como e com quem ocorrem os jogos de sedução? A qualquer momento, em qualquer local, com qualquer pessoa. São pequenos ritos de convencimento, de exibição sutil, de mise-en-scène de salão. As trocas de olhares servem para enviar códigos sutis, devidamente captados pelas partes interessadas. Às vezes sem ninguém suspeitar de nada. E aí é que fica o melhor lado da história: agir sem deixar pistas. Mas ninguém deve pensar que esses códigos são indecifráveis. Eis que surge o lado perigoso da história: estar com pessoas que conseguem perceber exatamente as mensagens da sedução enviadas de um emissor para um receptor – ou receptores. Até aí, nada de mais, porque o flerte sempre faz parte dos encontros e, por isso mesmo, nada tão

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humano. Mas agora desponta uma nova categoria: a dos homens que estão aptos a serem seduzidos pelas mulheres. Historicamente, é uma conquista feminista, embora existam famosos relatos de mulheres sedutoras do passado. Mas quando essa prática se torna um procedimento comum, então estamos diante de alterações importantes nos jogos de sedução. A situação funciona mais ou menos assim: duas ou três amigas em comum detectam um alvo interessante. Conversam entre si sobre a balística necessária para atingir aquele alvo disponível. Subitamente, todos os recursos femininos da sedução podem ser colocados em ação. Bateria de olhares, apontar. Tropa das conversas interessantes, avançar. Note-se aqui algo importante: muitas mulheres já não se importam em desejar namorar o mesmo homem. Há um acordo tácito de que a exclusividade virou artigo raro e, como homens interessantes são eventos raríssimos como a aparição dos santos, por que não dividir? Namorar desse jeito é simples, moderno e produtivo. Conheço várias situações parecidas em que os participantes vivem felizes da vida. Mas vale avisar: dividir não significa ser coletivo. É uma questão de agendamento, de customização, de planejamentos individuais. Cada encontro é formado separadamente, a dois. Espero que isso esteja claro. Sem moralismos ou falsos pudores, os homens aptos a serem seduzidos por mulheres são um fato social em

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crescimento vertiginoso. Primeiro porque eles já deviam andar aborrecidos de sempre ter que iniciar uma aproximação. Segundo, por que as mulheres do século 21 decidiram que podem agir com atuações semelhantes às dos homens, sem perder o rebolado. Ou, como dizia Che Guevara: é preciso endurecer, sem jamais perder a ternura… Cada mulher conhece bem suas táticas e seus arsenais de conquista. Toda mulher almeja desenvolver seus talentos de sedutora, sem nunca precisar ser vulgar, pegajosa ou fácil. A sedução é um ritual pleno de delicadezas, sutilezas, avanços, recuos, acordos, avaliações, armazenamento de dados, persistências e conquistas prazerosas. Lembrei-me agora de uma referência musical importante, cantada por Rita Lee, em que o refrão diz tudo: “Toda mulher é meio doida / Toda mulher quer ser feliz / Toda mulher é meio Leila Diniz”. E, para quem não sabe, Leila Diniz foi precursora no Brasil dessa liberação feminina que fez a mulher escolher seus parceiros com a maior naturalidade. Viva nós e vivam eles.

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Verso & Reverso




DOM QUIXOTE

NEM MESTRE, NEM APRENDIZ

Relato dedicado a Francisco Guglielme Jr., meu conselheiro de todas as horas, de todas as direções e de todos os prumos

Nas minhas últimas férias resolvi fazer uma viagem pelas páginas do texto que é considerado o mais importante romance da literatura ocidental: Dom Quixote. O intertítulo original dessa obra de Miguel de Cervantes, publicada originalmente em 1604, já traz a pompa e a circunstância da leitura: O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha. A envolvente história de Cervantes relata as andanças de um fidalgo andarilho e idealista, acompanhado por seu fiel escudeiro, Sancho Pança. No trajeto do livro acontecem várias seqüências de paixões, desilusões, lutas, perdas, conquistas, aprendizados, situações de limite e acontecimentos de sonho. Quixote se lançou por caminhos que não conhecia, apenas pelo intuito de ganhar sabedoria através da observação dos personagens que encontrassem, e por meio das manifestações da

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natureza. Sancho era a voz que o enchia de lições, sempre retiradas de coisas mínimas ou de parábolas visionárias sobre a vida. O mais belo nesse grandioso romance está na atitude de entrega, de confiança e de comunhão entre duas pessoas aparentemente opostas. Um fidalgo, por sua condição de nobreza, dificilmente dividiria pão, vinho e abrigo com um escudeiro. Cervantes foi moderno para o seu tempo por criar dois personagens literários que conseguiram alterar bastante a concepção social do mundo. Um aprendeu com o outro, e vice-versa. Vamos fechar o zoom. Muitas vezes nos portamos como fidalgos anteriores a Quixote: com arrogância, presunção e orgulho. E isso independe de recursos econômicos. A soberba pode ser encontrada pela vida afora, em grupos diversificados, em situações corriqueiras. Quantas vezes já presenciamos cenas de pessoas de nariz empinado, sobretudo sem motivo aparente? Quantas vezes encontramos alguém que prefere morrer atado a suas idéias preconcebidas, sem nunca se abrir para o novo e para a novidade? Eu poderia enumerar dezenas de questões assim. Melhor avisar logo que ninguém está a salvo do contágio da soberba. Evidentemente que todos já dissemos algo em tom que mais tarde nos deixaria arrependidos, ou cometemos gestos que poderiam ter sido menos ríspidos. O importante é ter a noção exata desses acontecimentos e

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atos, para atenuá-los, corrigi-los ou mudá-los completamente. Precisamos estar de olhos e coração abertos para ouvir o que pessoas, comuns ou especiais, nos têm a dizer, mesmo quando não as indagamos sobre nada. Muitas vezes, da observação dita em palavras diretas surgem soluções para coisas que andavam complicadas. Olhar nos olhos, dividir, pedir opinião, escutar também a voz das pessoas sem erudição, prestar atenção ao acaso, consultar a natureza: são incontáveis as possibilidades de se compreender aspectos desconhecidos da existência humana. Nem é preciso eleger um Sancho Pança fiel, nem se considerar um fidalgo dono da verdade. Cada pessoa pode ser Sancho, fidalgo, rei, ascensorista, arquiteto, costureira, mestre, aprendiz e, acima de tudo, um ser disposto a criar parcerias de alma com pessoas diferentes. A multiplicidade de pontos de vista engrandece a condição humana.

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PREGUIÇA

CADEIRA DE BALANÇO Decidi pensar alguns tópicos sobre os sete pecados capitais, um tema sempre citado e, na verdade, tão pouco conhecido. Primeiro foi importante descobrir que os sete pecados não estão ligados à Bíblia, mas apenas trazem interpretações segundo os códigos dos cristãos da Idade Média. E, para começar, vamos levantar da cadeira e falar sobre a preguiça, este que, entre os sete pecados, talvez deva ser o que confessamos com maior facilidade. Ter preguiça faz parte da condição humana e do comportamento dos animais. Quem nunca ficou admirando um gato se espreguiçar? Quem nunca sentiu prazer em ficar pegando brisa na espreguiçadeira da varanda? Sentir preguiça é uma espécie de reação física à aceleração forçada do cotidiano. O corpo também gosta de sossego, moleza e do bem-bom. Os que negam isso sofrem de hiperatividade. Mas a preguiça também pode nos levar à estagnação, ao marasmo, à acomodação, à inércia, ao conservadorismo. Os preguiçosos compulsivos rejeitam qualquer possibilidade de movimentos inesperados, de alterações no percurso pre-

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viamente traçado, de atividade extra. Depois que sentam, incorporam o espírito da moleza, como se estivessem acometidos de uma ausência, de um distanciamento inexplicável. Pensando melhor, a preguiça em excesso, acho, deve ser capaz de deixar alguém em estado de contemplação zen. Ficar sem fazer nada é esvaziar a mente. E esvaziar a mente é o primeiro passo para a meditação. Brincadeiras à parte, a preguiça pode ser extremamente perigosa, por produzir acomodação diante de situações injustas. Ai, que preguiça!, falam aqueles que só reclamam da falta de ações dos governantes, quando poderiam colaborar com ações elementares de cidadania. Ai, que preguiça!, constatam os alienados, aqueles seres incapazes de nem sequer analisar o mundo, a vida e a vida paralisada que levam. Essa é a pior forma de se ter preguiça: esperar que as mudanças aconteçam por si, sem mover uma palha para conseguir ajustes. Acho intolerável conhecer gente assim, que só espera mudanças e que não se move do lugar. Por outro aspecto, sentir preguiça se torna essencial quando estamos em uma atmosfera preguiçosa: mormaço, praia, sombra, água fresca, barulho de vento nos coqueiros, nenhum compromisso à vista. O pior é que existe gente que, mesmo em lugares paradisíacos, continua em ritmo elétrico, sem conseguir se desligar da agonia urbana. Preguiça deixa de ser pecado quando a natureza

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pede que fiquemos calmos, calados e com movimentos arrastados. Preguiça combina também com manhãs de domingo, finais de tarde no campo, a moleza súbita depois do almoço, a vontade de olhar para a janela, a lembrança de momentos de prazer, as pausas depois do amor e os primeiros minutos após o despertar. Ter preguiça, afinal, é pecado ou não? Pecado é apostar na imobilidade. Pecado é saber que deveria – e poderia – fazer um movimento, mas permanecer sem ação. E, cuidado, ela ataca a qualquer hora. Contra a preguiça vale um arsenal de munição contrária: guaraná em pó, clorofila, banho gelado, puxão de orelha, alongamento ou, caso se prefira, dar uma corrida pelo quarteirão.

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LUXÚRIA

AMIGA DE FÉ, IRMÃ, CAMARADA

Para minha grande amiga Hebe Camargo, mulher que irradia uma energia capaz de ultrapassar as vibrações de qualquer forma

Ela é minha amiga, daquelas que a gente pode contar a todos os momentos. Companheira disposta a enfrentar qualquer parada, mulher de fibra que não há quem deixe de admirá-la. O nome dela é Hebe Camargo e sempre quis fazer alguma homenagem pública a ela. Obviamente falo de uma mulher que exerce um lado extremamente aproximativo, de forma que todos no seu entorno se mantêm em permanente imantação. Aliás, Hebe é um ímã: atrai olhares, sorrisos, afetos e demonstrações de carinho. Mas prefiro me deter sobre outros aspectos de sua personalidade: o da sedução, no sentido mais amplo que essa palavra possa ter. A sedução de Hebe não está ligada a apelos sensuais nem as jogadas pessoais deliberadamente feitas para encantar. Ela seduz por outros caminhos. Seduz por irra-

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diar bem-estar, mesmo quando sabemos que possa estar lá com suas dores. Hebe seduz por sua naturalidade perante qualquer assunto, dos mais complicados aos cotidianos. Sua reação será sempre íntegra e livre de estereótipos, porque ela não oculta quando está indignada, feliz ou ressabiada. Hebe, enfim, seduz por se manter espiritualmente jovem, em meio a seus ataques de ira e de cidadania, em meio a suas gargalhadas contagiantes. Uma supermulher. Os amigos dela costumam dizer que formamos um grupo de seus amantes. Gostamos de segui-la, contemplála e amá-la por Hebe ser do jeito que é, por nos seduzir com pequenos detalhes, por viver para insuflar alegria de vida em todos que a rodeiam. Lembro-me de um réveillon que passamos juntas, a bordo de um iate em Angra dos Reis. Quem já passou por experiências marítimas prolongadas sabe que, a partir de determinado momento, o programa se torna meio tedioso, repetitivo e, principalmente, cansativo. Pois enquanto todo mundo já estava com a cara meio jururu, Hebe não perdia o rebolado: era a mais disposta, a mais brincalhona e a que menos se importava com os contratempos do trajeto – além da demora dos festejos que as datas especiais costumam ter. Ali, no meio do mar, percebi como ela exerce controle sobre suas ações, como sabe ser altruísta e jamais baixar o astral. Essa mestra também pode às vezes parecer uma

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menina travessa, ou, de repente, dar conselhos dignos de um sábio. Daqui a minutos, tudo vira uma gargalhada só. Não há quem não se deixe seduzir. Também, pudera. Por isso tudo posso me considerar uma seduzida pela Hebe. Tenho certeza de que se, por acaso, amanhã eu estivesse perdida no meio da neve do Pólo Norte, poderia contar com a sua ajuda. Hebe não tem horas, não tem preconceitos, não tem protocolo, não tem má vontade. Hebe Camargo é uma pessoa rara. E tão saborosa quanto uma taça de champanhe. Mil brindes a essa amiga.

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ORGULHO

PAI HERÓI

Para meu querido pai, Valentim, que sempre se declara orgulhoso por ter realizado os seus sonhos de um homem disposto a vencer

Eu não poderia escrever um livro sem reservar um capítulo especial a meu pai, Valentim Diniz. Ele talvez seja o homem-modelo da minha vida e o personagem cuja trajetória mais admiro e que nunca deixarei de comentar. Motivos não faltam. Mas como este volume passeia entre lembranças e resoluções pessoais, escolho apenas um fato curioso de minha infância para ser o tema do texto dedicado a ele. Sempre percebi meu pai como um homem altivo, seguro de si. Desde pequena costumava observá-lo, sem que ele percebesse que carinhosamente eu espionava os seus atos. Era uma admiração secreta. Aos poucos, como acontece quando observamos alguém especial, passei a notar uma peculiaridade, quase em forma de pureza: papai se considerava inatacável.

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Explico melhor. A sua história é a odisséia de um vencedor. Trabalhou arduamente a existência inteira. Ainda hoje, aos 90 anos, ele, como sócio-fundador, participa das reuniões, opinando com tino e apuro mental. Meu pai, enquanto alicerçava o seu conglomerado empresarial, considerado um império sem precedentes no setor do varejo no Brasil, jamais deixou de ser zeloso com os filhos. O crescimento dos negócios, o seu tino comercial e a sua diplomacia social o elevaram ao posto de herói – para filhos e descendentes, e para muitos empresários também. Essa noção gerou nele um comportamento altaneiro, de homem elegante e que deixava claro ter adquirido por merecimento aquela posição na vida, nas finanças e no trato com o mundo. Não passaria a idéia de que o destino pudesse provocar reveses, ou que a má sorte o escolhesse para pregar uma peça de desencanto. Ele seria sempre um contemplado e as coisas ocorreriam em harmonia e equilíbrio. Lembro-me, então, de uma passagem na minha infância, quando ele costumava nos levar para passear de carro. São Paulo era uma cidade calma e diferente da atual loucura urbana. Era uma festa sair com papai. Tudo parecia um filme. Com um detalhe: para nosso espanto, ele raramente obedecia a um sinal fechado. Essa pequena contravenção, hoje percebo que lhe dava muito prazer, no entanto, perante nós vinha o discurso: “Todos me conhecem e quando me virem

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passar vão frear seus carros”. Grande mentira! Mas, acreditávamos e percebíamos sua satisfação com a situação. Essa lógica de vencedor parecia afastá-lo de qualquer causalidade ou evento funesto. Seu argumento, na época, fazia sentido: ele era Valentim Diniz, homem considerado exemplar. Portanto, merecia que, vez por outra, lhe dessem passagem preferencial. Ninguém poderia considerá-lo infrator; era um pai de família e empresário passeando com os filhotes. Bons tempos. São Paulo não permite mais essa liberdade. Mas, para nós, foi determinante observar a segurança paterna perante tudo. Hoje analiso que o raciocínio dele era desprovido de sentimentos de superioridade: era uma compensação afetiva ou a certeza de que receberia a retribuição amorosa da cidade onde investira todo o seu potencial, toda a sua disposição de imigrante. Seria inadmissível, portanto, que alguém se tornasse seu desafeto ou que os sinais de trânsito atrapalhassem o seu passeio de guerreiro, mesmo quando cometia um pequeno pecado.

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AVA R E Z A

A SETE CHAVES

Para Alcides, meu irmão e a pessoa mais generosa que existe na face da Terra, exatamente o oposto dos que praticam a avareza

Responda rápido: quantas vezes encontramos pessoas simpáticas, acolhedoras, sorridentes, versáteis em qualquer assunto, e que, perante uma aproximação posterior mais aprofundada, revelam-se terrivelmente sovinas? Socorro. A avareza assusta. Principalmente quando provém de quem não deveria nunca praticar a sovinice, o pão-durismo, a ausência de partilha. Socorro. Detesto, execro e afasto-me de pessoas assim. Nenhuma chance de convivência seria possível. OK, ninguém está obrigado a ser perdulário, a pagar todas as despesas dos amigos ou a pouco se importar com um monte de gastos inúteis. Isso também seria tolice, principalmente se não envolver os tão valiosos ritos de amizade, amor, prazer e generosidade. Mas, cá para nós, conviver com os

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avaros não dá pé. E esse nefasto pecado capital, é bom que se diga bem alto, acomete qualquer classe social. Catar tostões, economizar migalhas, reter o inútil, temer ficar na pobreza, jamais ofertar com o coração, negar a quem precisa? Acho que não existem atitudes mais feias e desconcertantes, para quem as pratica e para quem as assiste, geralmente em meio ao constrangimento. Ser sovina é o princípio dos malefícios sociais do mundo, desde os tempos imemoriais. O avarento é assustado, egocêntrico, exclusivista e ultrapassado. Ele evita encontros numerosos, para nunca ser posto à prova em possíveis divisões finais de gastos. O avarento vai às compras sozinho para, desta forma estúpida, nunca se ver obrigado a pagar um objeto sequer ao acompanhante. Existem pessoas de mãos tão fechadas – esse exemplo aconteceu com um velho conhecido meu – que cobram até um creme dental que fora incluído, por praticidade, em meio às enormes compras que o pão-duro fazia. Dá para crer? Pois é, aconteceu. Já li sobre mendigos que amealharam fortunas, descobertas depois de suas mortes, geralmente ocultadas sob assoalhos de casas abandonadas ou dentro de velhas malas. E isso não saiu dos romances de Victor Hugo, não. A avareza, na sessão acredite se quiser permanece muito bem fornida. No Japão, há poucos anos, um homem idoso, encontrado morto em um casebre na mais absoluta penúria,

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mantinha escondido, soube-se depois, uma conta astronômica no banco. Dispensam-se os comentários, não? Exemplos existem aos montes. O pior é descobrir, assim meio por acaso, durante um jantar simpático, que aquele amigo bem-sucedido é do tipo que faz questão de contar os tostões, jamais arredonda contas, escapole na hora das gorjetas e finge não ver o guardador de automóveis. Triste também é ficar sabendo que aquela pessoa – que sempre lamentava a falta de recursos – tem belas somas de dinheiro aplicadas no exterior. Conheci personagens assim. Terrível, o pecado da avareza. Terrível encontrar quem não divide, quem não abre a mão, quem não sente prazer em ser generoso, quem se compraz no mero acúmulo de valores pessoais, quem não entendeu ainda que dividir é parte essencial da vida. Pai, afasta de nós o cálice dos sovinas. Eles não herdarão reino algum. Bem-feito.

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GULA

HOMENS DAS CAVERNAS EM AÇÃO Fui gorda. Ou melhor, obesa. Sei onde a coisa pega quando se fala em gula. Não que todo obeso seja necessariamente um glutão, mas é óbvio que a maioria come em demasia. Há centenas de explicações. Disposição genética, ansiedade, desequilíbrios hormonais, psicológicos, o pudim a quatro. Mas o tema deste capítulo é a gula, considerada um dos pecados capitais e um dos hábitos mais ancestrais da humanidade. Por isso, vale um passeio rápido pelo túnel do tempo. Na Antiguidade Clássica, a Grécia foi uma sociedade de gente esbelta, enquanto Roma defendia a vida prazerosa, a sensualidade e a disposição guerreadora: comer muito, se divertir muito, lutar muito. Tudo muito. A saudável dieta grega, mais os esportes, privilegiou corpos tão perfeitos que ainda hoje são considerados exemplos acadêmicos insuperáveis. Roma bem que tentou o ideal grego, mas acabou descambando para a circunferência rotunda das cinturas, pernas e flancos. Comiam tanto que inventaram o vomitório: vomitava-se para se voltar à mesa e recomeçar novamente.

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Na Idade Média, as pessoas se alimentavam de modo absurdo: com exageros, sem talheres, em grandes quantidades, em condições péssimas de higiene, mais o consumo imenso de carnes e, claro, nenhum planejamento nutricional. Também, pudera, morria-se antes dos 40, de doenças ligadas aos excessos alimentares, ao sedentarismo e às pestes. Voltando mais ainda na linha do tempo, sabe-se que a alimentação do homem das cavernas era um show animalesco. Primatas que também eram, comiam a caça em grandes nacos, jogavam os ossos para o alto e brigavam pelo pedaço que o outro mastigava. Mulheres e crianças? Ficavam com os restos, já que não existia noção nuclear de família. Moleza não devia ser. Cito os homens das cavernas, os romanos e os castelões da Idade Média como exemplos radicais sobre a gula. Mas sempre me vêm essas imagens quando encontro pessoas glutonas. A gula transforma o rosto das pessoas em máscaras de feras: nada em volta passa a ter importância, apenas olhar para a comida e querer saciar algo insaciável. Já vi quem comesse 12 pedaços de pizza. Homem primata, gula selvagem. A gula é uma estranha forma de compulsão. Não se consegue parar, porque o cérebro não emite ordens para interromper a refeição. Os glutões não pensam no que vem depois. Só pensam no antes e no durante. Dos sete pecados capitais, a gula talvez seja o que mais traz arrependi-

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mentos: dilata, infla e provoca tristeza. O filme A Comilança mostra a melhor metáfora: transfere-se para a boca o prazer da libido, e come-se até a morte dos comensais. Uma tragédia contemporânea é comum: ver pais que incentivam filhos e amigos a competirem para ver quem come mais. Ou produzindo quantidades quase industriais de guloseimas para o uso doméstico. Ou a moça desiludida que devora uma caixa de bombons enquanto assiste a um programa de televisão. A gula é triste, deprimente e insensata. Os resultados da gula são de difícil retorno. Nada como celebrar o prazer dos sabores com a comida. Mas, cuidado: a gula é traiçoeira.

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INVEJA

O QUINTAL DO VIZINHO

Para Sônia, minha irmã, que, por diversas ocasiões, me fez sentir inveja de suas atitudes perante a vida

Impossível encontrar alguém que jamais tenha cometido o pecado da inveja. Impossível, mesmo. Mais intrusa do que a preguiça ou a gula, a inveja é sorrateira e, pimba, quando menos se espera lá está ela, terrível, à espreita, aguardando o momento certo de se manifestar, de mostrar suas unhas roxas. Arrisco até a dizer que existem os profissionais da inveja, aquela categoria que não pode ver nada de aproveitável ou desfrutável na vida alheia, sem que sinta imediatamente as punhaladas da inveja. Não seria à toa que muitos consideram os invejosos como seres com olhares do tipo seca pimenteira, ou, mais popularmente, com o conhecido olho gordo. Pé de arruda neles. A inveja, como a luxúria, a ira e a avareza, é bastante perceptível. Fica nítido. Muda o tom da voz, o gestual e o tratamento. Difícil para o invejoso ocultar esse sentimento

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arroxeado que corrói a sua alma. A inveja talvez seja prima do ciúme, por provocar a sensação quase semelhante de vazio no coração, de assento perdido, de preterimento pessoal, de favorecimento inexplicável. A inveja é amarga, avassaladora e capaz de causar imensa destruição. Nunca é bom duvidar da palavra de um invejoso, porque para ele o quintal do vizinho será sempre o mais belo, o mais verde e o mais tentador. Inveja mata. Nos dois sentidos. Há ainda aquele tipo de inveja pequena, boba, que nos acomete quando não temos mais nada a pensar. Comigo já aconteceu uma história de inveja, que hoje acho bastante engraçada. Sou canceriana, ligada em família, e sempre fui meio fascinada pela minha irmã Sônia. Fascinada, como assim? Explico esse episódio que vem a seguir com calma. Durante as primeiras fases de turbulência emocional da minha vida de casada, eu invejava essa irmã por ela ser casada com um médico desligadão, charmoso e, confesso, uma espécie de homem perfeito para o sonho de qualquer mulher. Em tempo: eles continuam casados e felizes até hoje. Então, a minha inveja era repleta de subterfúgios, como convém aos invejosos educados. Eu queria porque queria descobrir como um casal daqueles podia se dar tão bem e qual seria a fórmula mágica daquele amor. Por duas vezes cheguei a pedir para me hospedar na casa de Sônia, apenas para fazer observações de suas qualidades secretas como esposa. Pode? Pode, sim. Eu a pers-

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crutava, disfarçadamente. E suspirava ao vê-la de óculos, lendo livros, com ares intelectuais. Como minha irmã era muito desligada e dinâmica, fiquei a imaginar ser esse o clima exato para deslanchar o seu charme. E que talvez por tanto dinamismo, ela nunca chegasse ao fim de um livro. Obviamente aquelas observações não levaram a nada. Agora são lembranças curiosas que voltam. Assumo-as como um ataque bobo de inveja em uma mulher pouco liberada, como eu era. Não foi inveja baixo-astral, nem de roer unhas pelos cantos. Foi inveja de querer ser aquela pessoa, de querer se transformar em alguém quase mitificado. Hoje a inveja é algo raríssimo em minha vida. Invejo apenas os prazeres simples da vida e as pessoas que sabem levar a existência com doses intermináveis de bom humor. E viva o pé de arruda!

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IRA

O LEÃO ESTÁ SOLTO NAS RUAS Você sabia que, pelos preceitos cristãos, a ira só é pecado quando acontece com freqüência? Ao se ocorrer um ataque de ira voltado a defender a justiça ou a abrandar alguma situação indigna, ela passa a ser considerada manifestação do poder divino, de defesa da vida e da busca de correção. Trocando em miúdos: para a ira não ser pecaminosa, é preciso existir um fundamento justo. Aliás, a bem da verdade, ter ira não significa sentir raiva. A raiva seria, digamos assim, uma demonstração de pequeneza do ser humano, de mesquinhez das relações pessoais. A ira tem magnitude, atitude e objetivo. A ira é soberana, a raiva é rasteira. A raiva dá chineladas, a ira solta um leão nas ruas. Durante a minha vida aprendi que a ira pode trazer alterações importantes. Tive poucos ataques de ira, mas foram suficientes para mudar completamente uma série de situações que se haviam tornado insuportáveis. Por exemplo: quando decidi que não seria mais uma mulher obesa e coitadinha, senti uma força inexplicável, estra-

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nha e vulcânica, que vinha lá de dentro. Era a ira. Irava-me por ter me deixado ser maltratada durante tantos anos, por haver chegado ao fundo do poço da falta de estima. A partir dessa ira, decidi que seria uma mulher destemida, audaciosa e com metas profissionais ambiciosas. A partir da ira, mandei tudo para o espaço: gorduras, passividade, desamor, desatenção, falta de objetivos e sofrimentos. A ira trouxe renovação e fôlego novo. Em retrospectiva, agora percebo também que consegui me libertar de três casamentos sob o impulso altamente necessário da ira. Em cada um deles (conforme conto aqui neste livro, em capítulos separados), deixeime ser dominada por parcerias equivocadas, que me consumiam lentamente. Quando eu percebia o tamanho do embrulho em que estava metida, gritava Shazam!, ficava irada e me soltava definitivamente, saindo para outra jornada existencial. A ira foi a chave certa, a solução correta, para romper coisas tão desgastantes e inúteis em minha vida sentimental. A partir daí, passei a analisar que a ira derruba estruturas apodrecidas. A ira invade terrenos minados. A ira é destemida. A ira movimentou os revolucionários, os grandes criadores, os rompantes artísticos e as derrubadas de situações tirânicas. Sentir ira envolve fúria, muitas vezes. A ira também me fez reunir forças para interromper encontros furados, falsas amizades e negócios que anda-

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vam errados. Quando a ira traz justiça, não ficamos dominados. E o melhor: é uma manifestação que pode durar pouco, como uma tempestade de raios seguida por um inesperado céu azul. Coisas da natureza humana.

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D E S C O B E R TA S

OLHANDO PELAS FRESTAS

Para minha neta Valentina, que me fez ter olhares novos para tudo na vida

Coisa boa na vida? Resposta: Descobrir algo, descobrir pessoas, descobrir lugares, descobrir novidades próximas e nunca percebidas, descobrir os segredos do mundo. Ter olhos novos para o novo, não se retrair perante fatos reveladores, manter os sete buracos da cabeça sempre prontos para conhecer novidades. Sempre me senti uma mulher destemida, pronta a olhar pelas frestas em busca do desconhecido, a desejar situações que parecem misteriosas, a subir no sótão só para fuçar objetos perdidos no tempo. Tudo isso parece me completar de modo misterioso, como se as descobertas de cada dia fossem condições essenciais para a vida fluir. Muitas vezes me pego distraída, mirando alguma coisa minúscula e tão repleta de pequenos segredos. Talvez por pensar assim, evito pessoas acomodadas. Não gosto de quem pouco se importa com a cor da asa da

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borboleta que acabou de passar, ou com quem não fica curioso perante ruídos inexplicáveis ouvidos na madrugada. Tudo pode ser fascinante, tudo tem interpretações múltiplas, tudo ensina, tudo revela. Então como não gostar de ser um descobridor 24 horas ao dia? Tem gente que leva a existência como se estivesse eternamente em uma cadeira de balanço, permitindo ao marasmo invadir a mente como um maremoto. Outros se submetem à repetição mecânica das situações, por medo de ousar, por receio de dar saltos, por temor de apostar na descoberta. Alguns esperam que as oportunidades despenquem do teto ou que os lampejos da sorte enviem aviso de chegada. Há enorme diferença entre ser prudente e ser acomodado. A prudência até que pode ser um componente posterior das descobertas, quando se chega a um ponto que nos faz pensar se vale mesmo continuar avançando. Para se estar aberto a descobrir novidades, é preciso ter noção de atuar como em um jogo: perde-se, ganha-se, empata-se, recua-se, avança-se, desiste-se. O mais importante é saber que, sob qualquer circunstância, o resultado que as descobertas trazem será produtivo, fará refletir, trará impulsos mentais, reavaliará métodos, proporcionará novas interpretações sobre a vida. Então, mãos à obra. Entre no jogo das descobertas: puxe aquele assunto que deseja conversar com alguém

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especial, siga a trilha de João e Maria, assista um programa naquele canal que nunca chamou a sua atenção, ouça conversas de pessoas desconhecidas, abra na página 207 daquele livro e leia a terceira frase, converse com alguém diferente pelo menos uma vez ao dia, jogue-se de férias em destinos absolutamente desconhecidos, prove receitas culinárias ousadas, ouça o CD daquele artista estranho, espie de vez em quando pelo buraco da fechadura, roube um beijo, envie mensagens surpreendentes a um amigo, visite um museu, abrace quem nunca foi abraçado, colecione fotos de girafas, aprenda a dançar ritmos difíceis, cheire flores exóticas, brinque de fantasma com os sobrinhos, conquiste alguém especial, cultive um cacto raro, aprenda canto, olhe a paisagem de binóculos, assista um filme da Nova Zelândia, abra um champanhe no café da manhã do próximo domingo, abra a janela, abra o sorriso, abra o coração, abra a mente, abra-se para o universo.

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