A Ponte # 14

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Na ponta dos pés O balé em primeira pessoa

As pétalas do ofício No centro do casamento: a noiva

24 controversas

delicadas

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Vidas moldadas pelo barro Uma família de artesãs de Cascavel

30 34

Orquídeas do despudor Profissionais do sexo relatam suas histórias

Vidas interrompidas As marcas do aborto

“Eu matei o Jorge de Jesus!” O direito de mudar a identidade sexual

Foto: Henrique Kardozo

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A vida começa aos 60 A juventude na terceira idade

Mãos delicadas, textos sensíveis Ensaio sobre mundo feminino e literatura

03 constantes

atemporais

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Mulheres transgressoras Quando elas rompem barreiras

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Ao leitor Uma guerra não declarada

Ensaio fotográfico Um sopro de ar

Artigo Metamorfoseando


cartas

Dinamismo A edição “Mundos” foi, para mim, a mais surpreendente. Textos descontraídos e fáceis de ler, mesmo com algumas reportagens longas. A matéria que aborda distúrbios bipolares é incrível, já li e reli algumas vezes. Parabéns, realmente é uma revista de ótima qualidade. Italo Pontes Estudante de Direito/Unifor

Criatividade

EXPEDIENTE Revista do Curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza Centro de Ciências Humanas - Universidade de Fortaleza - Fundação Edson Queiroz Diretora do Centro de Ciências Humanas: Erotilde Honório Coordenador do Curso de Jornalismo: Wagner Borges Conselho editorial: Alejandro Sepúlveda, Eduardo Freire e Erotilde Honório Coordenação editorial e de produção: Alejandro Sepúlveda Gerente do Laboratório de Jornalismo: Alejandro Sepúlveda Supervisão de produção gráfica: Aldeci Tomaz Diagramação e tratamento de imagens: Bruno Barbosa Supervisão de fotografia: Júlio Alcântara Edição de Fotografia: Fabiane de Paula Revisão: Gabriela Ribeiro e João Paulo de Freitas Suporte técnico: Aldeci Tomaz Supervisor da gráfica: Francisco Roberto Impressão: Gráfica da UNIFOR Colaboradores: Professora Liduína Figueiredo, Cleoneide Rodrigues, Allan Diniz, Georges Gomes, Débora Morais e Eduardo Buchholz ESTUDANTES DE COMUNICAÇÃO SOCIAL / UNIFOR: Coordenação de equipe: Gabriela Ribeiro e João Paulo de Freitas Editores assistentes: Viviane Sobral e Camila Marcelo Capa: Labjor Foto da Capa: Waleska Santiago 2ª e 3ª Capa: Agência de Publicidade - NIC Projeto gráfico: Eduardo Martins Fotografias/Reportagens: João Paulo Correia, Daniel Alves, Priscila Farias, Fabiane de Paula, Camila Marcelo, Bruno Barbosa, Rebeca Marinho e Waleska Santiago Fotografias/Ensaio: Larissa Andrade, Patrícia Mendes, Hannah Moreira, Lucas Dorini, Luiza Costa, Fabiane de Paula, Criselides Lima, Hyana Rocha, Camila Holanda, Waleska Santiago, Rebeca Marinho, Lia Fragoso, Jáder Santana, Erika Zaituni, Karen Oliveira, Lívia Marques, Lyzia Hanna, Aline Veraz, Tais Monteiro e Rayla Vidal Redação: Alunos da disciplina Princípios e Técnicas de Jornalismo Impresso II de 2009.2 (João Paulo Correia, Marta Cruz, Filipe Dutra, Wolney Batista, Priscila Farias, Daniel Alves, Bruno Barbosa, Mhahyara Valente, Taís Lopes, Indira Arruda, Jaqueline Longatti, Rebeca Nolêto, Camila Marcelo, Fernanda Vieira, Renata Maia, Thamyres Heros, Marina Alves, Carlos Augusto)

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A revista A Ponte com o tema “Mundos” ficou muito boa e criativa, com reportagens bem articuladas. A matéria que me chamou atenção foi sobre “transtorno bipolar ”. Parabéns à equipe da revista pelo excelente trabalho. Cleoneide Rodrigues Estudante de Psicologia/Unifor

Sincronismo A 13ª edição da revista A Ponte não poderia ter sido melhor. Os diversos assuntos despertam a curiosidade dos leitores. Com um desing muito bem projetado, as cores encaixam-se perfeitamente aos temas. Gostei muito dessa edição e parabenizo a todos que fazem parte da criação da revista. Patrícia de Holanda Estudante de Jornalismo/Unifor

Naturalidade A revista A Ponte, da última edição, me surpreendeu com a reportagem “Infinitos Particulares”, falou do autismo de uma forma muito natural. Ficou leve, dinâmico e com todas as informações necessárias para ficarmos por dentro do assunto. Parabéns, eu adorei. Kalil Lobo Estudante de Educação Física/Unifor


Caro leitor (ou deveria dizer “Cara leitora”?), este número da revista A Ponte traz reportagens com histórias relacionadas ao mundo feminino. E, repare, a maioria dos textos e fotos é assinado por jovens mulheres estudantes de Jornalismo. É um sinal dos tempos, a atuação de profissionais do sexo feminino tem crescido em todas as áreas. De uns anos para cá, a presença das mulheres nos cursos de Jornalismo e na imprensa em geral tem aumentado visivelmente. Segundo cálculos da Federação Internacional de Jornalistas (FIJ), existem, hoje, aproximadamente 300 mil jornalistas do sexo masculino e 300 mil do sexo feminino. Essa equivalência numérica, entretanto, não revela os constrangimentos e violências que muitas mulheres enfrentam. Sindicatos da categoria de vários países registram todo dia inúmeras reclamações de mulheres jornalistas por causa da discriminação de gênero e de assédio sexual. Também os cargos de chefia continuam a ser um domínio predominantemente masculino. Segundo um informe recente do jornal El País, apesar de as mulheres jornalistas ocuparem 46% das vagas na imprensa, elas alcançam apenas 24% dos cargos de direção nas empresas. Essa realidade se repete em muitas outras áreas. No âmbito da política, quando o voto feminino está completando 78 anos, constata-se que a maioria do eleitorado brasileiro é formada por mulheres (51,82% do total). Mas essa superioridade eleitoral não se traduz ainda em uma maior presença das mulheres em cargos de representação política. Para ilustrar este quadro, basta citar apenas um dado fornecido pelo site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Dos 22.562 candidatos registrados na Justiça Eleitoral para as eleições deste ano, 77,6% são homens e 22,3% mulheres. Mas há uma outra área onde a situação da mulher é mais alarmante. O Brasil, de acordo com a “Holding Brasil de violência e delinquência”, ocupa, no ranking mundial, a 12ª. posição em violência contra a mulher. Na edição do dia 3 de junho, o jornal O Estado de São Paulo publicou reportagem com dados parciais do Mapa da Violência no Brasil 2010, do Instituto Zangari, onde mostra que, “em dez anos, dez mulheres foram assassinadas por dia no Brasil. Entre 1997 e 2007, 41.532 mulheres morreram

ao leitor

Uma guerra não declarada

vítimas de homicídio – índice de 4,2 assassinadas por 100 mil habitantes”. Um verdadeiro massacre, se se compararem esses dados com os 2.090 soldados das forças da Otan, mortos no Afeganistão, em dez anos de conflito, desde 2001. Ou com os 43.370 militares americanos mortos na Guerra do Vietnã, de 1965 a 1975. Para ilustrar essa realidade, basta lembrar que, durante o fechamento desta edição, dois casos relacionados à violência contra a mulher chocaram a opinião pública por causa dos requintes de crueldade, os desaparecimentos de Mércia Nakashima e Eliza Samudio. No Ceará, o cenário também é desolador. No último dia 9 de agosto, dois dias após a “Lei Maria da Penha” (Lei No. 11.340) ter completado quatro anos, o Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Comarca de Fortaleza revelou que, de setembro de 2006 a junho deste ano, mais de 500 mulheres já foram assassinadas vítimas dos ciúmes e da prepotência masculina. Algumas reportagens desta edição retratam, de forma implícita, um pouco do que se pode chamar de “uma guerra não declarada”. Elas trazem histórias de vida que ajuda a refletir sobre o desafio de ser mulher na sociedade. Este número de A Ponte é uma homenagem a todas elas. Alejandro Sepúlveda Coordenação Editorial

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a t s i u q n o c e t A Pon l a n o i c a n o i m prê

1° lugar

Foto: Mig

a uel Portel

revista l laboratoria

jor utos do Lab a com prod ed lv ú ep S lejandro professor A a Ribeiro e el ri ab G , ldeci Tomaz o tema Marcelo, A como capa m ral, Camila te b o e S u e q n , ia Viv número 12

xpo do Prêmio E l a n o ci a n i vencedora perimental A revista fo Pesquisa Ex e d o çã si o o, mo (Exp ria Jornalism com 2010 o g te ca a n nto/ icação), ressa (conju p em Comun im o ri tó vista-labora sileiro de dalidade Re ngresso Bra o C I II X X X zado de nte o rcom), reali série), dura te n (I o çã a Comunic e de Caxias Ciências da Universidad a n , ro b m sete a revista 02 a 06 de representou e u q o ã iç A ed do Sul (RS).

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foi a de . d a n te s d a “Memória” p e lo s e st u a d zi u d ro p alismo A Po n te é icas de Jorn cn é T e s io ae Princíp rso de Jorn disciplina d estre do cu m se s º. A 5 . o r) ,d nifo Impresso II Fortaleza (U e d e d a id lo as pe s nivers são efetuad lismo da U o çã a m ra g ão e dia o (Labjor). fases de ediç de Jornalism o ri tó ra o b La bolsistas do


ral e traz, a ade semest id ic d o ri e p artir do Ela possui e capa, a p d a m te m ,u utas cada edição lvem as pa o v n se e d s udante qual os est gens. blicidade das reporta lismo e Pu a rn Jo e d Os cursos b é m fo ra m U n if o r ta m a d a d n a ades. Na e P ro p a g ês modalid tr s a tr u o m e o Sobvencedores encedor foi v o , o ri tó s bora or estudante de Jornal-la roduzido p p o ss l, re ta p n e pressão, im to E x p e ri m a s d e P ro je n li p presso ci Im is d o das rnalism Jo e d s a ic Técn ublicidade Princípios e Labjor. A P o d s ta is ls o uas mo I e pelos b lugar em d o ir e m ri p o Jr. de conquistou e Agência co fi rá G n Desig nto/série), dalidades, anda (conju g a p ro P e NICLaeitas Publicidade Paulo de Fr da Agência o li fó Foto: João rt o P to je ro p com o e Gênios. nual outorboratório d premiação a a m u é m os por A Expoco os produzid lh a b a tr s re e elho rientação d gada aos m ação sob a o u d ra g e e in d C s o, estudante rias Jornalism o g te ca s a a n r gand , um professo ade e Propa d ci li b u P l, lavisua plinar, e Re ma e Audio e Transdisci l a ri o it çã d a E gram o Produção arte da pro p z fa la E s. dade ções Pública rcom (Socie te In a d l a u da o an ciplinares do congress os Interdis d u st E e d io stíg na Brasileira de maior pre to n e v e – ) o ndada Comunicaçã nicação. Fu u m o C m e uisa rcom trouxe área de pesq aulo, a Inte P o ã S m e no o tema em 1977, nal deste a o ci a n o ss re que para o cong ventude”, o Ju e ra u lt u m ção, C mil inscrina Expoco “Comunica e mais de 3 nquistados d o co s çã u a fe ip o a tr ic is u e de Paula r seguram atraiu a part ores e pesq Foto: Fabian s do Labjo ntes, profess a Estagiário d u st e e r. tr tos, en e no exterio a no Brasil re á a d s e em duas re o d jetos ocorr ro p s o d dem os A defesa lunos defen a s o , a ir e s prim um júri no etapas. Na os perante ic st lí , a o rn n a jo este produtos Intercom. N a d is a n io a g re do e Campin congressos ste foi realiza e rd o N m o ho, na Unio Interc a 12 de jun 0 1 e d ), B primeiros Grande (P Paraíba. Os a d l a u d a st eram versidade E nais concorr io g re s o n os pla om. Nesta colocados n al da Interc n o ci a n o amente no congress nderam nov fe e d s te n a ud s venetapa, os est a banca. O v o n a m u erante ceberam as o projeto p dalidade re o m a d ca oite do cedores de ocom na n p x E io m rê s, oP elly Marque estatuetas d anha, Izab . ad o G ss to re o er g do con fessor Alb s integram andes, pro último dia Gustavo Rio Charles Fern e Aguiar e hani teiro, Step (NIC) Vicente Mon municação Co e d o ad gr te In Núcleo

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texto

· bruno barbosa · mhahyara valente ·

fotos

· bruno barbosa ·


delicadas

Deus fez o homem do barro, assim nos é apresentado o surgimento do ser humano segundo a Bíblia. Utilizando o mesmo material, sábias mulheres da arte popular produzem peças ricas com barro e renda. Continuando um trabalho iniciado por seus antepassados há cinco gerações, as mulheres da família Muniz não fazem do barro apenas utensílios domésticos ou peças decorativas, mas também seu sustento e desenvolvimento

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Além da tradição, essas mulheres trabalham motivadas por uma paixão que cresce a cada geração

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de março, Dia de São José. Como diz o costume popular, o pai adotivo de Jesus e padroeiro do estado do Ceará não falha, pois o dia marca o início da época chuvosa no estado. Este ano, não foi diferente. Partimos de Fortaleza em direção a Cascavel e, ao longo dos 64 quilômetros percorridos, enfrentamos algumas pancadas de chuva. Após o fim de uma delas, chegamos à loja de artesanato da família Muniz, que também serve de ateliê para a produção de suas peças. Logo na entrada, encontramos os mais variados modelos de artesanato em barro: peças de ambientação de jardim, luminárias, panelas, quartinhas e vasos. Uma moça muito bonita, com a boca vermelho sangue, mão no queixo, flor e trança na cabeça, nos olha um tanto esperançosa. Vamos ao seu encontro para iniciarmos uma conversa, mas, ao chegarmos perto, constatamos que aquela bela jovem é feita de barro e é mais um produto fabricado pelas artesãs. Após a constatação da boneca de barro, perguntamos ao senhor que vendia o artesanato na lojinha se poderíamos entrevistar as mulheres da família Muniz. Ele então sai por alguns minutos e, ao retornar, diz que poderíamos entrar. Ao chegarmos ao alpendre, que serve de ateliê, as mulheres estavam sentadas no chão, com as pernas levemente flexionadas formando um círculo onde as peças de barro eram esculpidas. Elas estavam finalizando os trabalhos que tinham iniciado no dia anterior e, enquanto davam o acabamento necessário a cada peça, as seis mu-lheres que lá estavam presentes riam uma das outras, ouviam música de uma rádio

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local e conversavam sobre os mais variados assuntos.

Entre olhares Depois desse primeiro encontro com elas, nos apresentamos como estudantes universitários que queriam entrevistá-las para uma revista acadêmica. Elas nos olham um tanto desconfiadas e também olharam-se entre si sem saber que resposta nos dar. Após alguns segundos, uma delas pergunta para as outras se concordam em conversar um pouco com a gente. Elas concordam e Antônia Lúcia é designada como “porta-voz” das duas irmãs, duas primas e uma amiga. A história de Lúcia nos chama a atenção. Ela tem 34 anos, é solteira, formada em Pedagogia e pós-graduada em Matemática. Trabalhou durante seis anos e meio na educação, mas viu que a sua profissão era mesmo trabalhar com o barro. Outra opção de trabalho ela tinha, mas voltou para o artesanato porque afirma que é isso que ela gosta de fazer. Esse amor pelo barro ficou claro nos depoimentos dessas mulheres, pois ele está presente há muito tempo no seio da família e é através dele que elas tiram seu sustento, ensinam seus filhos e as mantém unidas. Em cada peça trabalhada, vendida, ou que ainda está exposta, essas mulheres colocam não só a técnica de como se faz, mas também a esperança de uma melhor condição de vida para cada família de artesãos. Antes da criação do ateliê, a família vendia suas peças apenas na feira da Cidade, que é realizada nas manhãs de sábado. Hoje, elas tanto vendem suas peças na praça principal de Cascavel como na própria loja, uma casa grande, amarela, com porta de madeira e vidro, muro e colunas de tijolo aparente, decorada com as próprias peças


que elas produzem. Neste espaço, localizado às margens da CE 040, as mulheres da família Muniz conquistaram um lugar no qual elas agora podem expor todos os seus trabalhos sem problema algum e, além do mais, os clientes têm a oportunidade de ver como é feita a produção das peças, o que faz com que eles dêem mais valor ao artesanato na hora de adquirir.

O sorriso é o sol do lar Não menos tímida que Lúcia, Liduina é uma das mulheres que mais sorriu durante a nossa visita. Ela não se preocupa em conter o riso nos momentos de descontração. Casada e mãe de um menino de quatro anos, ela herdou da mãe o dom de esculpir peças em barro. Aos 32 anos, ela relembra que começou com catorze a fazer todo tipo de trabalho com o barro, pois antes só ajudava no acabamento.

Liduina nos conta que o processo de produção de uma peça demora três dias, em média. Primeiro elas moldam o barro na roda, que ajudará a deixar a peça mais uniforme. Em seguida, com a faca se retira o excesso do barro e depois alisa a peça com o sabugo de milho. Já alisada, é a vez do acabamento, Para dar brilho, é utilizada a semente da mucunã, uma espécie de planta trepadeira. Após a secagem do barro, a peça é queimada. Com o objetivo de tornar o trabalho mais bonito e diferente, Lucinete, a irmã mais nova, participou de um curso e, através do conhecimento obtido, ela ensinou as irmãs a trabalhar o barro com a renda, outro produto característico do Estado. Com o tempo, elas aperfeiçoaram a técnica, de forma que a renda fique aplicada na argila. Esta aplicação as tornou pioneiras e únicas a realizar esse trabalho na região.

Artesanato e muita arte Após quarenta minutos de conversa e com largos sorrisos, as mulheres da família Muniz nos falam sobre suas experiências, frustrações, vitórias e sonhos. Lúcia é quem nos retrata um pouco de suas vidas. ― Como o artesanato entrou na vida da família? ― O artesanato entrou em nossa família de forma hereditária. Nossos avôs já trabalhavam com o artesanato fazendo pote, quartinha, peças mais típicas do artesanato indígena. Depois nós fomos aprimorando, de acordo com a necessidade do comércio fazendo novos modelos, e outras formas, de acordo com a clientela. ― Como se dá a criação de novas peças? ― A gente faz muito pela necessidade do cliente; o cliente vêm e fala “eu quero uma peça assim”, e a gente trabalha de acordo com o gosto do cliente. Quando tem tempo, a gente faz um modelo diferente para ver se dá certo e coloca no mercado para ver se ele é aceito.

― Porque os turistas dão preferência ao trabalho de vocês e não ao dos outros artesãos? ― Desde quando meus pais começaram a produzir, eles tiveram aquele interesse de melhorar o artesanato, a peça, o acabamento, a delicadeza. Aí, a gente foi aprimorando e tendo essa preocupação de melhorar, de procurar criar outras coisas para quando o cliente voltar, poder levar mais peças. ― O artesanato produzido por vocês, aqui no interior do Ceará, é exportado para outras cidades e até outros países. Como é a sensação de saber que o trabalho de vocês está sendo reconhecido? ― É uma sensação boa. O sentimento que a gente tem é que o trabalho cresceu, evoluiu. Antes era vendido só na feirinha, eram só aquelas coisi-nhas para o pessoal da região, que comprava panela para cozinhar. Com o crescimento, foi ga-nhando o mundo, os turistas vem conhecer e compram direto da gente.

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“A história que eu tenho para contar é essa...” Dona Raimunda, como é chamada a artesã Raimunda Silva de Sousa Muniz, tem 66 anos e trabalha no artesanato com barro desde os sete anos. Ela é a matriarca da família Muniz, reside no Sítio Boa Fé, distrito da Moita Redonda, localizado a dois quilômetros do ateliê, e é casada com Francisco Muniz, presidente da Associação Comunitária da Moita Redonda e Círculo Vizinho. A seguir, ela fala um pouco da sua vida e dos seus sonhos. “A vida de uma mulher artesã é luta, e luta grande, viu? Porque a maioria das mulheres artesãs cuida da casa e ainda cuida do trabalho. A gente costuma levantar cinco horas; quem é dona de casa, tem que cuidar primeiro das coisinhas [trabalhos domésticos] e, quem não é, já vai logo começando a trabalhar. E não tem hora pra nós largar. Por exemplo, se a gente pegar uma encomenda fechada, não tem hora pra gente trabalhar, é de dia, é de noite, é feriado, é tudo... A gente tem o máximo prazer de trabalhar. Agora, quando não tem encomenda, a gente tem um horário certo pra trabalhar, porque não adianta a gente ficar só gastando material sem ver resultado, tá certo ou não tá? (risos) No momento de lazer a gente gosta de passear, que é o importante. Gosta de ir a uma prainha, gosta de visitar os amigos, de ir à missa aos domingos, que é a minha preferência. Só aos domingos não, mas quando tem oportunidade. Mas é muito difícil, a gente só faz quando tá podendo (com os dedos, Dona Raimunda faz uma referência ao dinheiro). Esse ano, a gente ainda não se reuniu, porque o movimento tá todo parado. E a gente só faz essas coisas se tiver dinheiro. Se não tiver dinheiro, vai fazer o que? Eu sempre fui muito interessada pelas coisas e também muito desenrolada (risos). Toda vida eu desejei melhorar a minha condição de vida. Na minha infância, meu pai era agricultor e minha mãe

era artesã. Minha mãezinha era muito pobre e meu pai também. Por ver minha mãe sofrendo, toda vida eu queria tá ajudando, por isso eu comecei a trabalhar muito cedo. O pessoal de antigamente não tinha lazer, como tem agora. Ninguém saía, ninguém ia a festa, a gente só fazia trabalhar e, aos domingos à tarde, minha mãe nos levava pra visitar a vizinhança. Eu fui crescendo, fui trabalhando e ajudando minha mãe, sempre estando ao lado dela. E não era só eu, eram os oito filhos e todos passavam pelo que eu passava. Casinha de palha, goteiras que, quando chovia grosso, a gente ficava no cantinho da parede esperando a chuva passar, pratinho de barro, panela de barro, pois na minha casa não usava alumínio, então eu sou vencedora de uma grande batalha. A história que eu tenho pra contar é essa, porque cheguei até aqui. Quando me casei, eu fui morar em uma casinha de três cômodos e, nessa casa, eu abrigava quatorze pessoas. Então, pra mim, era uma festa. A minha vida foi assim, de diversão. Tristeza, nem pensar (risos). Por maior que fosse a dificuldade que eu estivesse passando, eu não pensava em tristeza, eu nunca desanimei. O meu desejo era viver uma vida melhor. E, graças a Deus, eu já estou vivendo melhor que antigamente. Pra criar as minhas meninas nos estudos, foi outro sacrifício, muito sacrifício mesmo. Porque elas nunca estudaram em colégio público, toda vida a gente teve o sacrifício de botar elas no colégio particular. Passar bem, a gente não passava não, mas com muito sacrifício Deus me ajudou a superar a maior parte do sofrimento. Graças a Deus, elas nunca foram desinteressadas nos estudos e isso dava força pra gente, dava gosto ver o filho querendo subir na vida também. Quando eu olho pra trás, eu tenho a sensação de trabalho feito, cumprido. Mesmo nessa luta, eu nunca desanimei, eu nunca fiquei triste, confiava em Deus sempre. Quando a gente confia, a gente vence. Por isso, eu ainda tenho fé de viver melhor, mesmo que eu não tenha muita força de viver tudo que já vivi, mas que os que vão caminhando tenham uma vida melhor, porque se vier melhora pros artesãos, tudo melhora: vai se viver em um país melhor, um município melhor, onde as pessoas não passam por tanta necessidade. Porque uma tristeza da gente é conviver com as necessidades, de si e dos outros também, pois não adianta só um ter e os outros não terem”.

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Na ponta dos pés · texto · taís lopes · fotos · fabiane de paula ·

Para relatar a história que vocês vão ler a seguir, eu tive que buscar lembranças que guardo com carinho na minha memória. Por sorte, pude contar com um conjunto de anotações que venho fazendo desde muito nova, o que me permitiu descrever algumas passagens da minha vida de bailarina exatamente como elas aconteceram. Escrever esse texto em primeira pessoa, lançando mão do que se denomina de jornalismo literário, foi um desafio tão grande quanto o de aprender a dançar na ponta dos pés

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F

oi numa segunda-feira de março de 2010. Faltavam poucos minutos para as 20 horas. Estava atrasada para minha aula de balé. Estacionei o carro na primeira vaga que encontrei disponível na rua e desci carregando nos braços todos os apetrechos para a aula. Atravessei a entrada da escola correndo, mas em seguida escutei a voz da tia Mônica, minha professora de balé, me chamando: “Taís, venha cá!”. Brequei o passo, dei meia volta e entrei em sua sala, a primeira à direita do corredor. Ela estava sentada ao lado de uma moça que usava óculos de grau e segurava em uma das mãos um bloco de anotações, aparentando ser um pouco mais velha do que eu. Assim que entrei, fui apresentada a Amanda, repórter de um jornal da Cidade que estava ali para me entrevistar sobre um concurso de dança que haveria em Fortaleza dentro de poucos dias. Faltei à minha aula de 19 horas e 30 minutos, infelizmente. Sentamos no lugar mais afastado da escola, assim não seríamos importunadas por

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ninguém. Percebi que Amanda era um pouco tímida, o que me deixou mais a vontade. - Quando você começou o balé? - perguntou ela, assim que me acomodei no banco. Eu voltei sete anos no tempo para responder essa pergunta.Olhei para ela e sorri. Sorri porque imediatamente me veio à memória a desastrada menina que eu era como jogadora de vôlei. Tinha 13 anos na época e o meu pai me acompanhava, pacientemente, a cada um dos jogos onde eu, invariavelmente, tinha uma atuação decepcionante. Até que um dia, ele sugeriu, delicadamente, que eu deveria experimentar a dança. Quem sabe teria um pouco mais de sorte. Por que não? Resolvi tentar. Vesti uma meia calça rosa, coloquei um collant azul por cima e pedi para uma amiga do colégio fazer um coque de bailarina em meus cabelos. Pronto! Lá fui eu para a minha primeira aula de balé em algum dia de setembro de 2003. Amanda riu do meu relato. E achou engraçado quando lhe contei que, a cada aula, tinha que ir atrás de alguma amiga para fazer


o tal do coque, pois eu não sabia fazê-lo! A minha primeira professora chamava-se Dandara. Para mim, ela era a Tia Dandi. Eu era a mais velha da turma, e, no início, tinha vergonha por isso. Mas, com o passar do tempo, as aulas de balé tornaram-se a melhor parte do meu dia. Divertia-me muito... - Quantas horas por dia você dedica ao balé clássico? - interrompeu a repórter. Parei e comecei a contar nos dedos. Eu dedicava tanto tempo da minha vida para o balé, que nem sabia quantas horas passava dentro daquela sala de dança. Eu achava que eram umas cinco horas por dia, fora os ensaios extras, e só tinha o domingo de folga. Era muito tempo mesmo, mas eu não me importava. Ao contrário, eu passaria todo o meu tempo se fosse preciso. O problema é que o corpo dói - e muito. Surgem dolorosos calos nos pés, as articulações ardem, experimentamos nossos limites. Algumas coreografias acontecem no chão e, com tantas repetições, acabo por ferir minhas pernas, principalmente os joelhos, que também ficam roxos. A pele tem que ser branca ao extremo, então não dá para se bronzear. As unhas não podem ser grandes demais porque podem ferir os companheiros. Não dá para ser vaidosa de jeito nenhum! Contei a Amanda sobre o dia em que Tia Mônica me fez repetir muitas vezes os fouettés – um dos passos mais difíceis no balé clássico - até que eu completasse o trigésimo segundo giro e caísse dura no chão, ofegante. Minha mãe dizia que eu gostava de sofrer, e de certa forma ela estava certa. Mas, para chegar próximo da perfeição, era preciso muita dedicação e força de vontade, principalmente quando o corpo quer parar, mas a mente quer o contrário. Para qualquer bailarina, os ensaios são uma luta corporal diária. - Você pretende seguir carreira profissional de bailarina? – indagou Amanda. Fiquei em silêncio por um instante. Lembrei-me que, até o mês passado, eu sonhava em ser uma bailarina profissional, mas tinha enfrentado uma experiência que me fez duvidar se o conseguiria. Amanda olhava-me aguardando uma resposta. Então contei-lhe

Taís começou a dançar balé aos 13 anos, por uma sugestão de seu pai

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que não havia passado em uma audição para uma companhia de balé clássico, no Rio de Janeiro. Amanda parou de escrever. O que aconteceu comigo no Rio me marcou muito. Eu tinha muitas esperanças nesse teste. Era a minha chance de ser uma bailarina profissional. Passei uma semana inteira me preparando. Investi nos ensaios manhãs, tardes e noites. Emagreci cinco quilos para atingir o peso “ideal”. Exigi do meu corpo a perfeição... Fiz a minha cabeça de que moraria na Cidade Maravilhosa... O tão esperado dia chegou. Era um sábado de ma-nhã. Quando entrei no salão, já havia 60 meninas espe-rando ansiosas para se apresentar. Eu estava tranqüila e confiante. Tinha certeza que uma das vagas seria minha. Recebi o número 9 como identificação. Quando chegou a minha vez, dei o melhor de mim. Saí feliz com a minha apresentação. Quando todas se apresentaram, alguém falou em voz alta: “os números 4, 7, 8, 9... podem se retirar. Obrigada”. Assim, frio, seco foi que recebi o resultado. Não poderia entrar na Companhia Jovem do Rio de Janeiro. Saí do salão calada, peguei minhas coisas e deixei o local sem pronunciar uma palavra. Já no ônibus, a caminho do aeroporto, chorei o desespero que me consumia havia dias. E ainda chorei por muitos dias. O número “9” ficou associado na minha memória a tristeza e decepção. Mas não desisti. O balé, durante muito tempo da minha vida, foi meu único amor. Eu não tinha tempo para namoros firmes, pois dedicava a maior parte do dia aos ensaios. Eu só respirava balé, a dança era meu companheiro, não a trocava por nada. E isso não é coisa de louco! (Amanda concordou balançando a cabeça). - Quais eram seus principais obstáculos na dança clássica? Eu tinha alguns obstáculos a vencer se quisesse me tornar uma bailarina profissional. O maior deles era que eu não tinha físico de uma bailarina. Não tinha pernas

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arqueadas, mais conhecidas como pernas em “X”, e elas também não eram longas. Sempre fui baixinha com pernas grossas. Tinha mais físico para dançarina de forró do que para bailarina clássica. Cheguei a fazer dietas rígidas para ter o peso adequado. Eu encontrava gordura em toda parte do meu corpo, nunca estava satisfeita quando me olhava no espelho. Evitava balanças. Jamais! Eu estava esquálida, havia parado de menstruar por não me alimentar corretamente. Tudo para conseguir o padrão estético de uma bailarina. Um segundo obstáculo é que comecei tarde a dançar, pois o comum é começar aos cinco, seis anos de idade e continuar até se profissionalizar. Eu entrei no Centro de Balé Clássico Mônica Luiza aos 13 anos de idade. Mas esses obstáculos não impediram que eu vivenciasse vários momentos de conquista no balé. Um deles foi em 2007. Tinha aprendido há pouco a dançar com um “partner ”, ou seja, um companheiro bailarino, quando fomos selecionados para dançar em um dos maiores concursos do Brasil. Iríamos competir com algumas das maiores estrelas da dança clássica daquela época. “Como assim?”, pensei na época. Uma mera nordestina que tinha tido a sorte de conseguir uma vaga vai para passar vergonha em um palco paulista? Chorei, chorei muito de medo e insegurança nos dias que antecederam a apresentação. Eu estava muito nervosa, mal conseguia comer. Em São Paulo, ao reparar no meu estado, Tia Mônica segurou meus ombros magros, me sacudiu fortemente e disse: “Tu veio até aqui pra que, menina?”. Foi como um choque de ânimo. Respirei fundo e, ao anunciarem os nossos nomes, entramos no palco com toda coragem e determinação. Sentia-me como se estivesse dançando na sala da minha casa. Depois de dez minutos exaustivos de apresentação, saí do palco esbaforida, recebendo beijos e abraços de minha professora, e gritos animados do meu partner. Tia Mônica ficou emocionada - eu também. Nunca tinha dançado tão bem em toda a minha vida. Guardo na memória esse momento como uma doce lembrança.

Amanda fechou o bloco de notas sinalizando o fim da entrevista e disse que precisava voltar para a redação do jornal. Apesar de eu ter revelado importantes passagens da minha vida de bailarina, nossa despedida foi formal. Assim que ela partiu, peguei minhas coisas e me dirigi devagar para mais um ensaio de balé com a sensação de ter descoberto algo novo em mim.

A menina que trocou o vôlei pelo balé sente-se orgulhosa ao lembrar de quando se iniciou na dança

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texto e fotos

· camila marcelo ·

O casamento é a oficialização do amor entre duas pessoas. Entretanto, essa comemoração a dois torna-se dia de destaque para um dos personagens principais da noite: a noiva. Quando a marcha nupcial é anunciada, todos os convidados se viram, preparam as suas câmeras digitais e voltam toda a sua atenção para ela, que é símbolo dos planejamentos, das revistas, dessa ocasião e do desejo pelo casamento

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ma hora antes do casamento, encontravame de prontidão na Igreja de Nossa Senhora do Líbano, onde aconteceria a cerimônia religiosa e a recepção dos convidados. Sem convite oficial antecipado, falei com a equipe do bufê, da decoração e da fotografia. Apresentei-me ao motorista contratado e até aos familiares que estavam ali mais cedo, enquanto aguardávamos a noiva Luciana Campos da Rocha. Eis que ela chegou, alguns minutos depois, em pura ansiedade, romantismo e sorrisos contidos. Entrou no espaço onde aconteceria a sessão de fotos e, tentando deixar a vergonha de lado, exaltou beleza e felicidade de estar se casando depois de quase oito anos de namoro. Depois de explicar o meu objetivo naquela noite, com três profissionais presentes na ocasião, ousei pedir autorização à noiva para fotografá-la. Não conseguiu esconder o estranhamento e o nervosismo, mas não hesitou na resposta. Posicionei-me e registrei todas as poses tradicionais, descontrações, retoques de batom e bastidores dos milhares de flashs e filmagem de seus passos. A sessão acabou e todos foram embora, exceto a “ama” Cláudia Carvalho, que trabalha na equipe do cerimonial, e eu. Não pude resistir. Sentei-me ao lado da noiva e aproveitei para observá-la e até tentar fazer uma entrevista. Sua mente e seu corpo demonstravam estar concentrados no a-contecimento que viria a seguir, mas, muito delicada, respondeu a todas as minhas dúvidas e curiosidades. Falou sobre a preparação, a escolha da data e a confiança nas indicações da cerimonialista Andréia Cavalcante, que foi a primeira a contratar. Luciana tem 24 anos e acabou de se formar em Direito. Entretanto, naquele momento, nada mais importava. Aquecia a voz e treinava para uma surpresa que iria fazer durante a festa. Com as mãos enrolando o papel da música e a letra decorada, deu uma prévia de sua apresentação. Em sua belíssima voz, cantou “Todo azul do mar” sem errar melodia ou qualquer refrão. Depois, repassou os passos da sua entrada com a ajuda do motorista Roberto Jucá, olhou-se no espelho e respirou fundo para entrar no carro.

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Após três meses planejando, ela foi anunciada com a marcha nupcial e entrou ao som de “Um lugar perfeito para o amor viver”. Luciana e seu noivo, Carlos Bezerra, compartilharam o que ela considera ser “o começo de uma vida nova” com 250 convidados, entre eles amigos íntimos e familiares. “Porém, desde o início da criação, Deus os fez homem e mulher. Por isso, deixará o homem a seu pai e mãe [...], e, com a sua mulher, serão os dois uma só carne. De modo que já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem (Mc.10.06-09)”. Assim começou a celebração religiosa que estava marcada para às 19h, de uma quinta-feira chuvosa. Mas os céus cessaram as bênçãos por um momento para o cortejo na igreja. Tudo estava impecavelmente simples e singelo, exatamente como a noiva queria. Músicas escolhidas cuidadosamente e delicadeza em cada detalhe, desde o buquê com rosas e lírios ao vestido branco de ares românticos. Segundo Luciana, a intenção não era ostentar e, sim, celebrar e vivenciar o sacramento e a união do amor.

Troca de alianças Ser anunciada, à porta da igreja, com a marcha nupcial e caminhar a passos curtos em direção a uma das manifestações da vida adulta são momentos marcantes na história da maioria das mulheres. Ao subir ao altar, de véu e grinalda, e dizer o “eu aceito”, a noiva torna-se esposa. Ela passa a dividir novas experiências, um cotidiano, ao lado de quem escolheu. A advogada Renata Pinto, quando mais nova, não se imaginava com o tradicional vestido branco. Entretanto, agora ela tem 24 anos e durante a noite vira exclusivamente noiva. Orçamentos divididos em pastas, cartões de visitas de diferentes empresas grampeados na agenda e revistas de casamento guardadas em uma estante do armário. Essa é a atual realidade do quarto e da vida de Renata desde o seu noivado em 7 de março de 2009. Ela reserva o horário depois do seu trabalho para se dedicar a entrevistas com fotógrafos, decoradores e cerimonialistas.


Emocionada, Renata Pinto abraça a sua mãe, após ser pedida em casamento

O jantar, no qual foi oficializado o pedido de casamento, foi realizado na própria casa dos pais da noiva, apenas para familiares e poucos amigos. Antes de todos começarem a se servir, o futuro noivo, Hilton Cohen, começou a falar dos quase seis anos de namoro. Em meio à descontração e lágrimas enxugadas dos convidados, ele se ajoelhou e perguntou: “Renata, como eu já pedi para os seus pais e para suas irmãs, eu queria saber se você quer casar comigo?”. O “lógico” foi a resposta e, com muita emoção e fotografias, a festa se prolongou até o fim da noite. Um mês depois dessa ocasião, esboços da lista de convidados já eram feitos. Entretanto, somente em agosto ela começou a procurar indicações de cantores e decoradores, por exemplo, e a atentar mais aos detalhes do casamento alheio, como convite, cardápio e aspectos financeiros. “Agora eu não presto atenção somente nas emoções dos noivos. Já faço uma análise mais técnica e criteriosa da festa, para, o que eu gostar, utilizar na minha e o que não, melhorar para que minha festa não tenha os problemas que eu detectei”. A data foi pensada com cuidado e demorou um pouco para ser decidida, mas enfim o 6 de setembro de 2011 apareceu como uma opção e agora é dado como certo na igreja e no bufê. “No início, quando eu noivei e fui

marcar as reuniões com os profissionais, eu achei que estivesse muito adiantada, mas a medida que eu fui conversando com essas pessoas, elas disseram que era esse tempo mesmo. O noivado foi em 2009 e eu fiquei sabendo que a igreja que eu escolhi já estava toda preenchida em 2010, isso com um ano de antecedência. Então, eu passei a ver que eu já estava era atrasada ”, conta Renata. Ao todo, serão mais de dois anos de pesquisa e planejamento. As intensas atribuições do trabalho fizeram com que escolhessem mais tempo para oficializar a união. O dia do casamento será numa terça-feira, véspera de feriado, e o casal estará com mais de oito anos de namoro.

Pré-casamento

Antes do casamento, há o tradicional pedido e, depois disso, começam os planejamentos. Antigamente, nesse processo de preparação, o noivo era simbólico. Não participava das reuniões e não opinava. Segundo Lidiane Vieira, cerimonialista há 12 anos na Oficina de Eventos, é pequena a quantidade de homens que acompanham suas noivas. “Ainda hoje, 90% são mulheres que planejam, mas tenho alguns casos em que são os noivos que tomam a frente do casamento”. Renata afirma que sempre quem a acompanha nas escolhas e fechamentos de contrato

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A noiva Luciana Campos subiu ao altar depois de oito anos de namoro

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é a sua mãe, mas ele também tenta estar presente nesses momentos. “O Hilton está participando ativamente no casamento, porque é preciso comprometer o noivo também”, brinca. Mesmo tendo aumentado o número de homens que também se incluim nos preparativos, os profissionais ainda estranham quando atendem um casal e não somente a mulher. “Geralmente, quem se envolve mais são as noivas. A cerimonialista estranha ver o Hilton participando das reuniões, mas disse que ele não é o primeiro caso”. Não é só em livros e em filmes que as cenas de casamentos, dos mais luxuosos aos mais delicados à beira do mar, encantam as mulheres e as fazem debulhar-se em lágrimas. Mantém-se na sua criação esse cultivo para a construção da família. Assim, tanto nos planos, quanto durante a celebração, as mulheres se empenham, se dedicam e se emocionam mais com os casamentos. “O lado materno fala mais alto. A mulher por natureza já é materna. Ela é o encantamento. Então o romantismo e a beleza são a essência

feminina”, justifica Fátima Salvino, secretária particular do padre Monsenhor Philip Fouad e da Igreja de Nossa Senhora do Líbano. “Casar-se é um sonho para a maioria das mulheres e eu sempre soube que iria me casar. Eu sou romântica”, afirma a administradora de empresas Fabíola Coêlho, 38 anos. Depois de quatro anos de relacionamento, ela tornou-se, neste ano, noiva pela terceira vez. Fabíola nunca deixou de acreditar que encontraria uma pessoa para partilhar tristezas e alegrias, mesmo com dois outros casamentos de curta duração. O termo “casamento” carrega em seu nome o significado de união. Entretanto, as revistas exploram mais vestidos de noiva e novas dicas de beleza em suas páginas. Em uma celebração religiosa e festiva, tudo é mais feminino: as flores singelas, as músicas românticas e os detalhes em cada arranjo de mesa. A entrada triunfal e as maiores atenções são reservadas para a entrada de um dos dois personagens principais da ocasião: a noiva.

“Eu aceito” Parece uma transição simples, mas a tradicional pergunta, feita antes de qualquer planejamento matrimonial, faz qualquer mulher, até as mais incrédulas, ter uma ponta de dúvida sobre casamento. Afinal, ver o seu companheiro ajoelhar-se em sua frente e dizer: “quer se casar comigo?”, ainda faz parte dos sonhos de muitas mulheres. Pode-se considerar isso pelo aumento do número de casamentos. Segundo os dados mais recentes do IBGE, de 2007, foi registrado no Brasil um aumento de 2,9% com relação a 2006. Um total de 916.006 casamentos. Segundo Fátima Salvino, é falsa a ideia da oficialização estar em ruínas, pois a cada ano aumentam os números. São quase 300 celebrações por ano. Nos meses mais fracos, que fogem da “alta estação” de setembro a janeiro, são em média dez a quinze casamentos. Enquanto na Paróquia São Vicente de Paulo, Erivalda Mendes, secretária do padre Raimundo Neto, afirma que, até 2011, não há mais sextas e sábados livres para marcar. “Quando a noiva chega à igreja para procurar uma data de casamento e a gente diz ‘não tem vaga’, ela fica admirada como tem gente casando”, comenta.

Em 2009, foram registrados 155 casamentos, com destaque para dezembro e janeiro, os meses mais procurados devido à época das férias. Quando Vitório Rodrigues, gerente geral do Hotel Gran Marquise, começou a trabalhar, em 2006, eram registrados, em média, quatro casamentos por ano no hotel. Atualmente, mesmo com as limitações de poder marcar apenas às sextas e aos sábados, o número aumentou para 80. Baseado nos dados do IBGE, ele falou, em palestra no Fest Noiva Ceará 2010, que a facilidade em se divorciar é também um fator que reflete nesse indicativo, pois em 2007 foi registrado um comparativo de que a cada quatro casamentos, acontece um registro de divórcio.

Romantismo no mercado O casamento virou uma indústria que move diferentes setores empregatícios: decoradores, cerimonialistas, músicos, fotógrafos e outros serviços terceirizados.

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Tornou-se, para alguns, sinal de status exibir os valores abusivos dos seus contratos, tanto que não são poucos os noivos que fazem questão de mostrar o resultado de seu planejamento e alto custo em colunas sociais ou na televisão. Um exemplo disso é o programa Noivos In Foco, que é produzido por Bello Produções e Old Produções, e transmitido há cinco anos pela TV União. Maurício Aquino, produtor e responsável pelo departamento comercial desse programa, revela que o programa já motivou diversos casais a oficializar a união com o pacote completo. “Eu estou gastando mais de 60 mil reais no meu casamento e não passar no Noivos In Foco é a mesma coisa que eu comprar uma Ferrari e não poder andar para mostrar para os meus amigos”, relembra ele o relato de uma das noivas participantes. O Fest Noiva Ceará também é uma prova do crescimento do mercado. Desde 2007, quando foi a sua primeira edição, esse evento tomou tamanhas proporções que, em seu terceiro ano, mudou a sede do Hotel Gran Marquise para o Centro de Convenções do Ceará. O projeto Fest Noiva foi idealizado pela empresa César Serra & Renato Nunes Cerimonial, há 16 anos, em Brasília, e tem Fortaleza como um sistema de franquia. Entretanto, ainda se ressalta, nos dizeres dos padres, o valor do sacramento, significado primeiro da união. “Para a igreja é muito impor-

tante cultivar a tradição. E a sociedade também pede muito isso. Uma mãe não vai querer que a filha vá morar com alguém, vai querer que ela se case”, confirma Fátima Salvino, secretária da Igreja do Líbano. A advogada Goretti Távora reconhece a beleza do casamento. “É o momento mais importante da vida, porque você passa a dividir com o outro o dia a dia, o sentimento e tudo de bom que você tem”. Entretanto, embora se emocione e veja encanto no matrimônio, seu desejo nunca foi esse. “Não sou contra, acredito profundamente na instituição do casamento. A minha família tem exemplos extraordinários, mas, independente disso, acredito que eu seja muito apegada às minhas convicções, de que, estando sozinha, você tem mais liberdade”. Cada um na sua casa e com sua privacidade, assim ela mantém o seu relacionamento há 18 anos com a mesma pessoa. “Se você tem um companheiro morando junto, você sempre tem que estar dando satisfação e vice-versa. Então, eu acho que a convivência estraga um pouco a beleza de viver junto”. Ela não é a única a pensar dessa maneira. Assim como ela, há outros casos de namoros eternos sem dividir o mesmo teto, mas ainda é maior o número de mulheres que sonham em entrar na igreja e seguir o ritual.

O caminho ao matrimônio Igreja, padre, alianças, bufê, vestido, buquê, maquiagem. Esses são alguns dos tantos detalhes que são vistos com antecedência e dedicação pela noiva. Mas o que prezam os profissionais da área é preparar-se, no maior tempo possível, para realizar o casamento dos sonhos. “Quanto mais tempo, melhor. Casar com menos de um ano é loucura”, enfatiza o cerimonialista César Serra. Antes de comparar preços e serviços, deve-se definir a data e fazer a lista de convidados. Depois, é indicado escolher a igreja e o local da recepção e garantir o seu dia. Durante todo o período de preparação, o mais importante é ver referências e indicações de profissionais com os

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amigos e familiares ou com o próprio cerimonialista contratado. Serra define a sua profissão como um maestro que não tem direito a erros. “É a pessoa que vai auxiliar a noiva, por isso tem que entender tudo para poder dar opinião. Adoecer não nos per-tence”, explica. Também acha necessário não fazer economia com fotografia e filmagem e se ater a detalhes como o convite. “É o cartão de visitas do casamento. A qualidade dele diz até o traje que a pessoa tem que usar ”. E, quanto ao perfil do casamento, o tradicional ainda se mantém em alta. “Sempre querem inovar, mas nunca conseguem tanto. As noivas têm medo de inovar demais e deixar de ser um casamento”, esclarece Lidiane Vieira. Através de objetos perso-nalizados, como lembrancinhas e porta-guardanapos, tentam mostrar um pouco de si nos detalhes da festa. Vitório Rodrigues explica que os noivos tentam romper com a tradição, pois querem trilhar o próprio caminho, ter um diferencial.


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controversas

· texto · indira arruda · jaqueline longatti · rebeca nolêto · ilustração · rafael gomes

Considerada uma troca de favores sexuais por dinheiro, a prostituição ainda é um tabu. A profissão, permitida em alguns países e proibida em outros, é tema controverso. Mas o que pode levar uma mulher a escolher esse caminho? Como elas enfrentam o preconceito? Histórias como as de Antônia e Maria (nomes fictícios), contados nesta reportagem, podem nos ajudar a entender um pouco dessa realidade

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ssim como em muitas outras sociedades, as prostitutas no Ceará são consideradas um segmento transgressor da moral e dos bons costumes, além de facilitadora da transmissão de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST). Durante o século XIX, essa prática foi alvo de uma discreta, porém insistente, campanha que exigia do poder público providências que acabassem com o “mal que se alastrava”. Essas campanhas resultaram na concentração da prostituição no centro da cidade, local onde também trabalharam dona Maria e Antônia, cujas histórias conheceremos a seguir. São mulheres com trajetórias de vida diferentes, mas irmanadas pela profissão e pelo preconceito que tiveram que enfrentar. Uma delas começou a se prostituir na infância; a outra, já adulta.

Não fui mulher escandalosa Localizada no centro de Fortaleza, em frente ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE), a Praça Coração de Jesus é responsável pela renda de dezenas de pessoas. Há bancas que oferecem todo tipo de produtos, vendedores ambulantes, camelôs e exímios tatuadores. Dentre todos

os vendedores e transeuntes, uma das pessoas mais “famosas” por lá é dona Maria. Ela comercializa sandálias, ofício que, segundo afirma, rende duzentos reais por semana. Embora diga que se dedica exclusivamente à venda das sandálias, há quem acredite que ela tem outra fonte de renda, a prostituição. Indagada se ainda faz programas, responde, com olhar sério, que já foi prostituta, mas somente por dois anos. Maria mora em um apartamento alugado e tem orgulho de dizer que não precisa da ajuda de ninguém. “Meus filhos todos [três homens e uma mulher] vivem bem, mas não vou atrás de nenhum”, diz. Nascida na Região Metropolitana de Fortaleza, 46, Maria fez o 2º. Grau completo e casouse aos 18 anos. Passou muito tempo casada - “muito mesmo” - ressalta. Pela suas contas, o divórcio veio quando ela tinha mais de 40 anos, e começou a se prostituir por acaso. Quando se divorciou, trabalhou por seis a oito meses e foi demitida. “Um dia, tava sentada num banco, um cara chegou e perguntou quanto era o programa. E eu disse: ‘O que é isso?’ Aí ele falou: ‘Não, vamo ali,

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eu te pago’”. Segundo ela, isso aconteceu há dois anos, mas alguns conhecidos da Praça Coração de Jesus afirmam que, em 2002, ela já “fazia ponto” lá. A família não sabe dessa história. “Deus me defenda”, exclama. Além disso, Maria trabalhou alguns anos como recepcionista em um motel frequentado pelas prostitutas da área. Ela faz questão de enfatizar que era trabalho. O programa com Maria custava 30 reais, mais dez do motel. Em um ano, ela juntou dinheiro suficiente para comprar uma banca. Seu ponto sempre foi na mesma praça, e a proteção contra possíveis violências, como ela diz, “só de Deus”. Quanto à polícia, nunca lhe fez mal algum – nem poderia. “Sou sobrinha de quem manda na polícia”, conta, aos risos. Ela também diz que nunca teve problemas com clientes, porque só fazia programa com aqueles em quem “sentia firmeza”. Embora Maria não goste de falar muito sobre a época em que se prostituiu, ela afirma que não sofreu muito preconceito, principalmente porque não deu motivos para que os outros falassem dela. “Nunca bebi, nunca fumei. Não fui mulher escandalosa”, garante com um ar de orgulho.

“Não era moça ainda” Cabelos na altura dos ombros, fios negros com raízes brancas. Pele morena queimada pelo sol. Rosto envelhecido devido às agruras que a vida lhe impôs. Essa é Antônia, 51, nascida na cidade de Picos, no Piauí, situada a 321 km da capital, Teresina. De aparência simples, mas cheia de histórias, ela descreve como, aos treze anos, entrou no mundo da prostituição. “Eu vendia confecção. Então, eu peguei amizade com as prostitutas, pois eu tava vendendo confecção no cabaré. Mas disseram ao meu pai. Aí minha mãe disse que eu não era mais moça e meu pai me deu uma pisa. Fiquei toda cortada. Todo dia lá tinha um caboco que me chamava, né? Que eu pegava o carro dele pra vender a confecção. Peguei e disse: ‘Óia, Chico, todo dia tu me chama, mas hoje tu só num vai se tu num for homem’. Quando eu voltei, disse: ‘Ó, eu apanhei de graça, tô aqui toda cortada. Agora, se quiser me matar, me mate, porque

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agora eu dei’”. Emocionada, ela lembra que, após a agressão sofrida pelo pai, este a levou ao médico, quem constatou que ela “não era moça ainda, era criança”. Dois dias depois de perder a virgindade, ela saiu de casa somente com a roupa do corpo. Antônia veio para Fortaleza sem conhecer ninguém. Pegou carona com um caminhoneiro e, chegando à cidade, começou a trabalhar nas ruas, principalmente na Praça da Estação, na Praça do Teatro José de Alencar e no Passeio Público. Além das praças da cidade, ela trabalhou em uma casa de prostituição, onde conheceu Dona Zizi, que a salvou de uma possível morte por infecção. Antônia, logo na primeira relação sexual, aos treze anos, engravidou, mas não tinha conhecimento disso, pois ainda não havia tido a primeira menstruação. Ela conta que, após manter relações sexuais com os clientes, o sangue escorria por suas pernas, mas ela não sabia o que fazer e chorava sozinha. Até que, um dia, Dona Zizi a pegou chorando e perguntou o que ela tinha. “A Dona Zizi me levou pro César Cals [Hospital Geral César Cals], aí foi feita a curetagem. Diz que eu já tava era ficando podre com infecção, resto de feto dentro. Passei dezenove dias internada. Depois, morei seis anos mais a finada Zizi. Ela tratou de mim.” Antônia nunca foi casada, porém tem três filhos, dois homens e uma mulher, todos de pais diferentes. Eles sabem de sua condição de prostituta. “Sabem que eu criei eles batalhando, tudo que eu faço eles sabe. Eles sabe de tudo. Agora eu digo para eles que eu não faço mais programa não, mas eu faço”. O programa a que Antônia se refere, atualmente, se resume a quatro senhores aposentados, que são seus clientes fixos e a ajudam a pagar suas contas. Mas os encontros com esses senhores só acontecem uma vez por mês, quando eles recebem as aposentadorias. Após o parto do terceiro filho, Antônia descobriu que era diabética. Passou 29 dias na UTI do hospital sem se alimentar. Quando deram a primeira refeição, percebeu que o prato vinha com uma etiqueta onde estava escrito “diabética”. Depois que saiu do hospital, passou a fazer a dieta receitada pelo médico. Com dois meses, notou que seus amigos e as


pessoas da praça que lanchavam com ela começaram a se afastar porque pensavam que estava com o vírus da AIDS, devido a seu rápido emagrecimneto. Foi no hospital e fez o exame para saber se era soropositiva. “Os políticos não sobem no palanque, né, pra falar? Eu subi em cima do banco e disse: ‘Óia, tá aqui! À rapariga e ao viado que tava pensando que eu tava com a AIDS: tá aqui meu exame!’ E voltaram tudim a merendar comigo”. Se-gundo ela, nunca fez programa sem camisinha e sempre se negava quando o cliente queria que fosse sem o preservativo. Por isso acredita que nunca teve nenhuma Doença Sexualmente Transmissível (DST). Antônia diz não gostar das palavras que são empregadas para as prostitutas, nem mesmo a palavra prostituta. Ela critica o preconceito das pessoas contra a prostituição. “O pessoal diz assim: ‘Aí, prostituta tem

a vida fácil. ’ Fácil? Fácil é o c... Vá viver pra saber a humilhação que você aguenta. Aguenta, a gente fica nessa, porque a gente procura um emprego, procura uma coisa, não tem quem queira mais não. Nós, lá da Praça da Estação, todo mundo lá melhorou depois que a Rosarina [Rosarina Sampaio, presidente da Associação das Prostitutas do Ceará] começou a ajudar lá na praça. A Rosarina ajuda a gente demais, é que nem uma mãe pra nós”. Atualmente, Antônia ainda trabalha na Praça da Estação, mas só vendendo lanches para os frequentadores. Ela diz, mostrando as raízes brancas do cabelo, que não tem mais idade para ficar entrando em motel com homem e que não tem mais coragem de ficar na praça atrás de cliente. “Faço faxina, lavo roupa, mas não vou mais atrás, não. Eu tenho 51 anos”, enfatiza.

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Profissão antiga A prostituição sempre foi representada em pinturas, cerâmicas ou passagens bíblicas. Nas sociedades pré-históricas, cultura, religião e sexualidade estavam interligadas, e a mulher era associada à Grande Deusa, criadora da força da vida. Ela estava no centro das atividades sociais, o que lhe conferia o poder de controlar a sua sexualidade. Apenas por volta de 3.000 a.C., quando as primeiras civilizações da era histórica começaram a se desenvolver na Mesopotâmia e no Egito, é que novas formas de casamento foram introduzidas, visando, principalmente, a controlar a sexualidade das mulheres. Os primeiros bordéis de que se tem notícia surgiram em Atenas, durante o governo de Sólon, na virada do século VI a. C. Ele percebeu o lucro que as prostitutas obtinham e decidiu organizar o negócio, criando bordéis oficiais, administrados pelo Estado, nos quais as mulheres eram praticamente escravas. Os bordéis eram compostos, em sua maioria, por estrangeiras. Mas muitas mulheres gregas, estigmatizadas depois de casamentos desfeitos por suspeita de traição ou outros desvios de comportamento, não tinham outra opção além da prostituição. Na antiga Roma, a prostituição não era tão disseminada – pelo menos não até o início da República. Isso mudou com a expansão militar do império romano e a conquista de escravos. Eles eram os prostitutos – fossem eles homens ou mu-

lheres – e não eram estigmatizados. A cidade era sexualmente permissiva e o crescimento urbano permitiu o desenvolvimento da prostituição. Lá, não havia bordéis estatais, mas foi criado um sistema de registro estatal das prostitutas de classe baixa, separando-as em meretrizes, registradas, e as prostibulae (fonte da palavra prostituta), não registradas. Com o início da Idade Média, a vida passou a ser organizada em aldeias agrícolas, desfavorecendo a prostituição. Apesar de condenar todo relacionamento sexual, a Igreja aceitava a existência da prostituição, e a considerava um mal necessário. Era possível encontrar bordéis públicos e privados e também casas de tolerância - os banhos públicos – além das prostitutas de rua. Entretanto, a partir do Renascimento, ocorreu uma progressiva rejeição da prostituição. Pela primeira vez, prostituição e violência foram vistas de mãos dadas, e autoridades municipais, apoiadas pela Igreja, passaram a reprimir a prostituição. Na Modernidade, a prostituição foi se diferenciando, devido, principalmente, à conquista de maior visibilidade e atuação das mulheres na sociedade. Após a emergência do feminismo, o discurso sobre prostituição, tratada como patologia, virou debate médico e jurídico. Atualmente, apesar de essa visão ter mudado bastante, pode-se ver claramente que a sociedade ainda impõe forte preconceito contra essas mulheres.

Associação Em 13 de novembro de 1990 foi fundada em Fortaleza, no bairro Aerolândia, a APROCE (Associação das Prostitutas do Ceará), cujo objetivo é dar uma melhor qualidade de vida para as prostitutas e lutar contra o preconceito, a discriminação e a violência sexual contra a mulher. A entidade possui hoje 3.740 associadas em 35 municípios do estado do Ceará e tem o apoio dos Governos Federal, Estadual e Municipal. As “trabalhadoras do sexo”, como preferem ser chamadas, recebem uma carteirinha que dá direito a consultas em postos de saúde, auxílio jurídico, participação em palestras com orientação para a prevenção da AIDS e outras doenças sexualmente transmissíveis, além de informações sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e sobre a Lei Maria da Penha.

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Vidas interrompidas · texto · carlos augusto · marina alves · concepção fotográfica · eduardo buchholz · fotos · fabiane de paula ·

A decisão de interromper uma gravidez pode deixar marcas na vida de uma mulher. O aborto ainda é tratado como um tabu e gera polêmicas até hoje. No Brasil, ele é considerado crime e pode envolver valores morais e até religiosos. Valéria e Ana Maria (nomes fictícios) tomaram essa decisão por diferentes motivos, em situações de vida diferentes. Elas relataram suas experiências para A Ponte e o que mudou em suas vidas

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oram precisos vários encontros e longas conversas com a estudante Valéria para tocarmos em um assunto muito delicado de sua vida. Sempre descontraída, ficou séria na hora em que falamos sobre aborto, experiência que ela viveu há um ano. Hoje, ela está com 19 anos e, mesmo receosa, contou detalhes do que passou a partir do momento que soube que estava grávida. No começo de seu namoro com um rapaz da universidade, tudo era muito romântico e encantador. Eles estavam sempre juntos e ela confiava bastante nele. Com pouco tempo de namoro, começaram a ter relações sexuais e ela descobriu que estava grávida. “Minha menstruação já estava atrasada mais de um mês quando eu decidi fazer o teste. Fiz aquele de farmácia mesmo. Quando eu vi que tinha dado positivo, chorei tanto, tanto, tanto. Eu queria sumir”, lembra. Desesperada, ela procurou o namorado para lhe dar a notícia e buscar algum consolo. Mas para sua surpresa e decepção, ele disse que não podia e nem queria ter um filho. “Quando eu contei pra ele, ele ficou muito assustado e me disse que não podia ter filho

O aborto e a lei O aborto é uma prática proibida no Brasil. O Código Penal Brasileiro prevê detenção de um a dez anos, depen-dendo da situação, para quem induz o aborto. Segundo o advogado criminalista Jarbas Alves, só não se pune o crime de aborto em duas situações: de estupro e de risco de vida materno. “Há uma proposta de Anteprojeto de Lei, que inclui uma terceira possibilidade do aborto ser legalizado, que é quando se detecta anomalias fetais”. Ele explica que a questão do aborto no Brasil é tratada com muita polêmica e superficialidade, principalmente por parte da população. Em muitos casos, as mulheres vítimas de estupro têm enorme dificuldade de obter autorização judicial para realizar o procedimento. Isso acontece porque a decisão do juiz eventualmente pode levar em conta questões religiosas ou, ainda, dúvidas a respeito da ocorrência desse crime. O estudo Magnitude do Aborto no Brasil, da Organização Não-Governamental Ipas Brasil, mostra que, a cada três crianças nascidas vivas no País, existe um aborto induzido. O aborto também é uma das principais causas da mortalidade materna e as regiões que mais sofrem com esse problema são o Norte e o Nordeste.

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nenhum. Que eu me virasse. Nessa hora, todo o amor que eu sentia por ele se transformou em raiva. Eu fiquei com muito ódio dele”. Só de lembrar-se do ex-namorado, Valéria fez uma cara feia e apertou as mãos como se quisesse esganá-lo. Contou, então, que foi depois desse momento que optou por fazer um aborto. “Eu me vi sozinha. Sem ninguém pra me apoiar. Quando uma amiga minha disse que sabia como conseguir um remédio para fazer a criança sair, e me garantiu que eu não ia sentir dor, eu topei na hora. Ela me disse que várias conhecidas dela haviam tomado e tinha dado tudo certo. Aí eu confiei”. Dois dias depois, Valéria já estava com o remédio em mãos, mas confessou que estava morrendo de medo. “Eu pensei muito antes de tomar. Pensava na minha mãe, no que ela diria se soubesse daquilo. Meus pais me botariam pra fora de casa, com certeza. Aí, lembrei também que não tinha nenhuma condição de criar um filho. Fechei os olhos e engoli os comprimidos”. Aqueles pequenos comprimidos fizeram-na passar por maus momentos. “No fim do dia, eu comecei a sentir umas dores muito fortes. Depois, vi que estava sangrando. Nessa hora, liguei para a minha amiga e ela foi me buscar em casa. Já na casa dela, nos trancamos no quarto e eu pensei que ia morrer. Sentia umas pontadas muito fortes no pé da barriga e quando fui fazer xixi, saiu um bolo enorme de sangue”. Lembrar desse momento fez Valéria parar por uns instantes e ficar com um olhar distante. Recomposta, disse com tristeza no rosto: “Acho que foi nesse momento que meu bebê saiu de dentro de mim e caiu no sanitário. Eu fiquei arrasada. Continuei sentindo dor e não conseguia mais tirar aquele momento da minha cabeça”. Depois desse dia, Valéria ainda sentiu algumas dores na barriga, mas nada comparado à dor que sente atualmente. “Hoje, eu me arrependo muito. Sei que foi um risco muito grande. Ainda bem que não aconteceu nada de mais grave comigo. Às vezes, fico imaginado como seria o meu bebê, se eu não tivesse tomado aquele remédio”. Com os olhos cheios de lágrimas, ela abaixou a cabeça com o sentimento da dúvida e o arrependimento que a acompanham até hoje.


Causas e consequências

Tentamos marcar várias vezes uma entrevista com Ana Maria, até encontrar um dia que a atendente de telemarketing, de 22 anos, pudesse nos encontrar, com calma, para contar o que aconteceu na sua segunda gestação. Quando chegou, agitada, conversamos primeiro sobre amenidades e, só depois, ela contou a sua experiência. “Eu já tenho uma filha de 1 ano e 11 meses, e há 3 meses descobri que estava grávida outra vez. Fiquei feliz, mas muito preocupada também. Quando estava na minha primeira gravidez, eu tomei um remédio para abortar, mas ele teve outro efeito e minha filha nasceu com o crânio aberto. Sofro muito com ela, levando em vários médicos, pois isso requer um cuidado muito grande. Dessa segunda vez, eu estava tomando mais cuidado, mas não foi suficiente. Eu estava dentro do ônibus quando, de repente, senti dores muito fortes, como se fosse uma cólica insuportável, e quando olhei para as minhas pernas, estavam banhadas de sangue. Foi a situação mais desesperadora de minha vida. As pessoas dentro de ônibus não sabiam o que fazer comigo e eu fui até o terminal, mais ou menos meia hora de onde estava, sentindo dor e sangrando muito. Depois do desespero, já medicada, eu descobri que tinha perdido o bebê porque ainda tinha resquícios do remédio que eu tinha tomado para abortar na primeira gravidez”, conta. Sobre esse caso de Ana Maria e vários outros de aborto espontâneo, o médico ginecologista/obstetra Márcio Alcântara explica que, quando a mulher aborta, ela tem que se submeter a um procedimento chamado de curetagem. “Na curetagem são retirados os restos do feto e da placenta”. Segundo ele, o procedimento pode trazer riscos. “Como todo procedimento cirúrgico, na curetagem podem ocorrer problemas como o perfuramento da parede uterina, tendo sangramento abundante. Se for retirado muito tecido, pode levar a paciente à esterilidade”, explica. O fato da paciente já ter tomado remédios abortivos deixa a situação mais grave ainda. “Esses remédios são muito fortes. Imagine que eles têm a capacidade de corroer o feto inteiro,

Clínicas clandestinas Pelo fato de o aborto ser proibido no Brasil, muitas mulheres decidem interromper a gestação em clínicas clandestinas, colocando suas vidas em risco. O pro-blema é que nessas clínicas, geralmente, as pessoas são despreparadas e usam equipamentos sem a devida esterilização. Em dezembro de 2009, uma jovem de 25 anos foi encontrada morta em uma clínica clandestina no bairro Bom Jardim, em Fortaleza. Ela sofreu hemorragia e morreu em decorrência da perda do sangue. Em março deste ano, a polícia fechou uma clínica clandestina de aborto no bairro Esplanada Castelão. A dona da casa onde a clínica funcionava foi presa. Ela era enfermeira. No local, a polícia apreendeu vários materiais usado nos procedimentos abortivos: uma maca, equipamentos ginecológicos, medicamentos, instrumentos médico – cirúrgicos como seringas e tesouras. O maior problema é que os abortos feitos em clínicas clandestinas, ou em casa de pessoas que se dizem aptos a fazê-lo, oferecem sérios riscos à mulher e não é raro aparecerem, nos hospitais, pacientes em estado grave e correndo risco de vida por causa de complicações.

imagina o que faz dentro do organis-mo humano. Pode trazer consequências para o resto da vida”. Segundo a psicóloga comportamental Sara Bastos, o aborto ainda é um tabu, e a decisão de abortar, principalmente para uma adolescente, é assustadora. “Com medo de serem julgadas, elas não procuram o médico e preferem conversar com as amigas ou buscar ajuda em uma farmácia”. Em países desenvolvidos como a França e a Inglaterra, há centros de aconselhamento psicológico e atendimento de aborto, mas segundo a psicóloga, no Brasil, uma jovem nem pensa em chegar a um centro de saúde e expor suas dúvidas, principalmente aqui no Brasil, onde as pessoas criticam tanto a mãe solteira. Com o preconceito contra si e a falta de informações, as mulheres se vêem com poucas opções quando precisam de uma orientação. Algumas pessoas, como Valéria e Ana, ao tomarem essa decisão, interromperam suas próprias vidas, porque não estavam preparadas, nem tinham informações suficientes para tomar uma decisão.

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“Eu matei o

Jorge de Jesus!” ·

texto

· joão paulo correia · marta cruz ·

fotos

· joão paulo correia ·

Quem olha para a mulher da foto não imagina a sua história. Nasceu Jorge de Jesus, mas por não se identificar com o gênero masculino, sofreu preconceitos e precisou lutar muito para ser aceita. Jovem, começou a operar uma transformação no seu corpo para ganhar contornos femininos. Ao final, tal como uma borboleta, saiu de seu casulo. Jorge de Jesus virou Renata

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orge de Jesus, 34, escolheu se chamar Renata porque esse nome significa “renascida”. De estatura mediana, cabelos loiros que caem até os ombros, boca e olhos pintados discretamente, em nada a aparência dessa dona de salão revela as dificuldades que enfrentou para ser aceita e transformar a sua vida. Hoje, conta com orgulho a sua história de vida, vida de mulher. Diz que a infância não lhe traz boas recordações. “Foi muito tumultuada, [tinha] tendência ao marginalismo muito grande. Na minha época, não tinha nenhuma renda. Perspectiva de vida... socialmente, quase nenhuma também. Então, comecei a vender bombom na Beira Mar. Vendia bombom e ‘pastorava’ carro. Semanalmente, fazia a feira da minha casa. Fui sempre eu quem cuidei da minha família. Aliás, minha família se resumia a mim e minha mãe, que trabalhava como camelô”. Já adolescente, quando ainda trabalhava vendendo bombons e vigiando carros na rua, resolve estudar e procurar outro trabalho. Por indicação de amigos da escola, Renata consegue um emprego em uma cantina de um órgão público ligado à Polícia Civil, onde trabalhou lavando louças e limpando o chão. Lembra que foram três anos e oito meses muito difíceis, pois foi quando começou a enfrentar os primeiros preconceitos. “Trabalhar com a polícia civil, você adolescente, virando travesti. Não é fácil, viu?”. Ela concluiu o primeiro grau e participou da formatura. “Você sabia que eu sou a única travesti que foi para a colocação de grau vestida de mulher e a dançar valsa? Eu parei todo o bairro. Eu dancei valsa com todo mundo, e bati foto. E um dos professores, que era muito homofóbico, um cara velho, ele teve que me engolir. Porque toda a vida que ele chamava o meu nome na sala, eu fazia questão do nome Renata, porque eu dizia: ‘Eu matei o Jorge de Jesus!’”. Logo teve que se apresentar ao Exército para tirar a carteira de reservista. “E eu com o corpo quase todo formado com 17 anos”, recorda. Mas diz que não sofreu grandes constrangimentos. “Eles me olharam torto, claro. Eu estava inibida, um monte de homem e tal. Eu não me senti bem naquele papel, mas não sofri preconceito.” Depois, um colega conseguiu um emprego para ele em outro órgão público para trabalhar na faxina e em serviços gerais. “Aí, tive que camuflar todo o meu corpo pra poder entrar na empresa, porque, depois que eu tivesse dentro, não tinha problema. O problema seria entrar com aquela aparência de mulher. Entrei como faxineira, mas depois viram meu

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desempenho e fui promovida ao cargo de contínuo. Fui muito bem recebida, fiz amizade com todo mundo”, garante com alegria. Mas, com o tempo, a sua chefe começou a tomar atitudes homofóbicas, o que criou um clima de repressão no ambiente de trabalho. Acabou transferindo-se para uma indústria têxtil, onde também não conseguiu se livrar do preconceito. Apesar disso, Renata acredita que foi gratificante e engrandecedor ter tido tais experiências, ou melhor, que elas foram até necessárias. Sofreu um bocado, o que lhe serviu de incentivo para buscar uma vida melhor.

Renata sai do casulo

Renata sofreu preconceito da mãe e enfrentou diversas dificuldades para ser aceita como mulher

Jorge descobriu que era transsexual na adolescência. Aos 14 anos começou a transformar seu corpo. Ela mesma conta como tudo aconteceu. “Eu comecei com hormônios, e tomei muito. Uma injeção de anticoncepcional dura um mês, mas eu tomava duas por semana. Assim começou meu envenenamento. Vira um vício porque eu queria um corpo belíssimo, queria chamar a atenção. A sua voz afina. Na época eu tinha barba, então o pelo vai diminuindo. Até a sensibilidade feminina você adquire. É impressionante! Então eu coloquei silicone [líquido] no corpo. Hoje, vejo que foi uma ignorância enorme, porque isso ainda me prejudica. Minha mãe me colocou pra fora de casa várias vezes. Primeiro, veio o impacto de eu me aceitar como travesti. Ela via aquilo como uma brincadeira, que depois eu tirava aquela roupa e voltava a ser o Jorge. Então cheguei pra ela e disse: ‘Mamãe, sou travesti!’ A velha quis morrer. Pulou em cima de mim, foi aquela briga. Me deu alguns dias e eu fiquei de molho na água com sal mesmo, porque ela me quebrou de sola e disse que não me queria mais na casa dela. Eu disse: ‘mamãe, se eu for embora, vai morrer de fome nós duas, filhinha! A senhora morre de um lado e eu morro do outro, a senhora não entendeu ainda que somos uma só?! Tanto eu preciso da senhora como a senhora precisa de mim, independente da minha orientação sexual’. Posteriormente, consegui juntar um dinheiro, muito sofrido, e coloquei um litro de silicone no meu quadril. Minha recuperação foi péssima. Desceu pro meu pé e tudo. A sorte é que eu consegui tirar metade, porque eu não conseguia nem andar, já que tinha ficado entre as juntas do meu joelho. Então eu consegui desmanchar com medicação e voltei a andar numa boa. A partir disso, trabalhei em função de colocar minha prótese.


Tentei me prostituir duas vezes, até por conta da minha situação financeira, mas vi duas amigas minhas serem agredidas ao meu lado. Aquilo ali foi horrível. Eu sempre tive muito medo de morrer, apesar de ser muito atrevida. Isso é fato! Mas aí, caraca! Eu tinha que procurar outro meio de vida porque aquele não tinha futuro. E mesmo porque eu sempre fui de me envolver com as pessoas. Se alguma coisa me atraisse nelas, eu não conseguia ver só o lado profissional, entendeu? Alguma coisa tem que mexer comigo”.

Borboleta Já transformada, Renata fez um curso de cabeleireiro no Centro Social Urbano (CSU) do Conjunto Ceará e conseguiu realizar-se profissionalmente. Enquanto fazia o curso, conheceu seu atual marido. De acordo com ela, foi um começo de relação inusitado.“A gente morava no mesmo bairro e nunca tinha se cruzado. A gente se conheceu, saiu e de repente rolou um beijo, que jamais pensava que ia acontecer. Daí, então, eu pensava que era só uma noite, achei que ele nunca havia se relacionado com uma travesti. Pôxa! Eu me relacionar com uma pessoa que tem cabelo branco? Porque toda travesti pensa naquele homem espetacular pra ela. Eu sem noção nenhuma. Não vou mentir que eu tinha outra visão”, confessa.

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Sua mãe desenvolveu câncer de pulmão e ela teve de abandonar oportunidades de trabalho para cuidar dela. Nessa época, envolveu-se com o Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB), onde militou e atuou na assessoria jurídica, atendendo travestis que sofriam preconceito. Hoje, ela se descobre uma mulher mais madura. Não procura apenas beleza em um homem, mas busca companheirismo. Casada há nove anos, Renata descobriu a diferença entre o sexo e o amor. Mais tarde, quando sua mãe faleceu, ela ainda estava fazendo o curso de cabeleireiro, terminando o primeiro grau e trabalhando no GRAB. Quando concluiu os estudos, Renata abriu seu salão de beleza. Seu companheiro, motivo de dignidade pessoal, esteve e está sempre com ela, dando força e dividindo todo e qualquer momento típico da vida conjugal. “Me mantive de pé, com todas essas percas na minha estrada, e reconhecida profissionalmente, isso pra mim é fundamental. E, na sociedade em si, eu tenho meu espaço, consigo conviver bem, sem problemas. Consegui erguer minha vida direitinho, graças a Deus, e consegui cuidar da minha mãe até o dia que deu certo”, concluiu com ar de satisfeita.


lhos a b a r t seus e d n oa a n m a o o ã d N ta. To e v a g da e d a d i para a c ubli p e de e c d n a a r h t c s mo cê a o v a as d á i d c e r h o f n i Un eco r s a ç e p lhos s a a b u a s r t r te ores h l de e a m ç e s u o q o es entre ã N . e r st ara e p r m e o s s s do rofe p u e s as o pedir a u trabalho. Bo se er. c r e a r c i a d p n a i em c e r e m idéias AGO/SET 2010

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UM SOPRO DE AR Há coisas que não podem ser ditas; só podem ser mostradas. Ludwig Wittgenstein

A fotografia, no nosso universo jornalístico, está livre das cadeias que aprisionam o texto, tanto pelo império da objetividade elevada ao paroxismo quanto pelos cânones implacáveis herdados da ciência ocidental, o que se traduz na fórmula o quê, quem, quando, como, onde e o por quê. A fotografia é a válvula de escape dessa prisão e para o fotógrafo, livre da asfixia, os mundos objetivo e subjetivo são faces indissociáveis de uma mesma moeda. Ao fotógrafo é concedida toda sorte de recursos vedados aos redatores, e assim ele pode se valer dos equivalentes visuais da sinédoque, metonímia, hipérbole ou de qualquer outro tropo que se ajuste ao que pretende. O tema desta edição, a mulher, é o objeto perfeito que nos permite examinar a liberdade com que a fotografia transita acima da gramática e da sintaxe e se concentra nas ambigüidades subjetivas da semântica. Nas páginas que se seguem estão bons exemplos que não cabem nas amarras lógicas da maioria das construções jornalísticas escritas, mas que são claramente compreendidas pelos que as contemplam. Aqui estão as analogias, os pontos de exclamação, as condensações e deslocamentos, assim como a ironia, o sarcasmo, a admiração. Estão também os arquétipos platônicos contemporâneos e intercessões bem humoradas de ambições, desejos e fetiches. Júlio Alcântara Supervisor de fotojornalismo do Labjor

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Foto: PatrĂ­cia Mendes

Foto: Hannah Moreira

Foto: Fabiane de Paula


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45 Foto: Fabiane de Paula


Foto: Criselides Lima

Foto: Luiza Costa

Foto: Hyana Rocha


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Foto: Hyana Rocha

Foto: Luiza Costa

Foto: Lyzia Hanna

Foto: Lucas Dorini


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Foto: Waleska Santiago

Foto: Tais Monteiro


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51 Foto: Rebeca Marinho

Foto: Fabiane de Paula

Foto: Hannah Moreira

Foto: Waleska Santiago


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Foto: Larissa Andrade

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Foto: Rayla Vidal

Foto: Karen Oliveira


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53 Foto: Jรกder Santana

Foto: Aline Veraz

Foto: Erika Zaitune

Foto: Lia Fragoso


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Foto: Hannah Moreira

Foto: Camila Holanda

Foto: LĂ­via Marques


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55 Foto: Aline Veraz


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57 Foto: Lucas Dorini


atemporais

MULHERES

transgressoras · texto · fernanda vieira · renata maia · thamyres heros · fotos · rebeca marinho · waleska santiago ·

O que é ser trangressora? Combater os tabus impostos pela sociedade ou lutar por seus direitos? Antonieta Noronha e Maria da Penha são duas mulheres que vivenciaram esse dilema feminino. As histórias são diferentes, mas se igualam em um único motivo: viver o pleno direito de ser mulher, seja em que época estiver

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s mulheres trazem, desde muito tempo, a característica de conquistar aquilo que desejam por meio da quebra de padrões e regras. Basta recorremos à História para nos certificarmos disso. Segundo a mitologia grega e a tradição judeu-cristã, Pandora e Eva, respectivamente, foram as primeiras mulheres transgressoras. Enviada por Zeus para punir os homens devido ao roubo do fogo sagrado pelo titã Prometeu, Pandora, atiçada pela curiosidade, abre a caixa que contêm todos os males da humanidade. Já na perspectiva cristã é Eva que lança o mal sobre a Terra. Depois de comer o fruto proibido, ela condena todos a uma vida cheia de males e sofrimentos. A relação da mulher com o mal e com o caos foi dada a partir da transgressão da ordem estabelecida por aquele que impõe as regras. Geralmente essa pessoa é um homem representado na figura do pai de família, de um chefe ou até mesmo do Deus-Pai. A ideia de transgressão feminina veio se solidificar ao longo dos anos sob o matiz da desobediência

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às condutas sexuais e sociais. A luxúria, no imaginário masculino, seria uma forma de poder que as mulheres utilizam para subverter a ordem sexual vigente. Foi por esse motivo que, em épocas remotas, muitas mulheres eram acusadas de feiticeiras, assassinas, prostitutas, bruxas e vampiras. Mais recentemente, as mulheres conquistaram direitos que, na verdade, por uma visão machista, não foram reconhecidos como deveriam ser, desde o surgimento dos Direitos Humanos. Muitos sonhos femininos tiveram que ser esquecidos devido ao fato de não poderem ser realizados pelo preconceito. Na Biblioteca Pública Municipal Dolor Barreira, em Fortaleza, encontramos uma so-nhadora que conseguiu superar preconceitos e realizar seu projeto de vida em uma época em que a mulher deveria ser educada para casar ainda muito jovem, cuidar da casa, do marido e dos filhos. Ela é a atriz Antonieta Noronha e estava na recepção da biblioteca folheando um jornal do dia que trazia a vida de Raquel de


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Foto: Rebeca Marinho

Antonieta Noronha saiu de casa para ser cantora e atriz na década de 1960, quando ainda havia muito preconceito com a profissão

Queiroz. Entre os cabelos pretos e brancos destacavam-se os coloridos de suas presilhas. Brincos, colar, pulseira e relógio montavam o cenário corporal da atriz. Impossível não reconhecê-la devido a sua caracterização e vaidade. “Sempre fui vaidosa e hoje vim caracterizada por causa da entrevista ”, revela com um sorriso. A dama do Teatro Cearense, que veio de Manaus para o Ceará ainda pequena, emociona-se ao falar da família adotiva pela qual teve muito carinho. Na década de 1960, aos 25 anos, saiu de casa para realizar o desejo de ser cantora. “Minha família, principalmente minhas irmãs, não queriam que eu cantasse. Elas achavam que, por eu ser mais nova e não trabalhar, tinha que cuidar da minha mãe. Além disso, achavam que, seguindo esse caminho, eu me envolveria tanto a ponto de não terminar os estudos. Por isso respondi: Se vocês não querem me deixar cantar, então eu vou embora. Sofri por me separar da minha mãe, mas eu estava na idade de assumir minhas responsabilidades, então saí de casa”, revela a atriz . Foi nesse momento que a jovem Antonieta decidiu morar com sua professora de piano.

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Cantou música clássica em vários programas de rádios, como o de Augusto Borges e sempre era agraciada com os melhores prêmios, mas não conseguiu ser uma cantora famosa. Resolveu então partir para o teatro com o apoio de Dona Branca, amiga de Bento de Paiva, teatrólogo e diretor do Curso de Artes Dramáticas (CAD) por muitos anos. “Ela achava que eu tinha boa desenvoltura e interpretava a música. Foi nesse momento que me deu o cartão de Bento de Paiva. Fiz o teste e entrei para o teatro cômico cearense onde passei 28 anos”, conta Antonieta. Na carreira como atriz quebrou o tabu de que mulher não pode ser amiga de homem. Antonieta revela que todos seus amigos eram homens, mas nega veementemente ter se relacionado com algum deles. Ela casou-se aos 33 anos, oito anos mais velha que seu companheiro, que tinha 21 anos na época. Seu casamento durou 18 anos e tiveram três filhos. “Mas um já desencarnou”, conta. Perguntamos se ela é espírita, mas afirma ser católica, devota de Santa Edwiges.“Mas, Dona Antonieta, por que a senhora falou que seu filho desencarnou e não morreu?”, perguntamos. “É porque é muito triste falar ‘morreu’.


“Tudo Passa”

“Mulher Coragem 2010”. Com esse prêmio, Maria da Penha foi homenageada pela Embaixada dos Estados Unidos, tornando-se a primeira brasileira a receber o título. Todos os anos, a embaixada norte-americana prestigia mulheres por atos de coragem e superação. Enquanto a entrevistávamos, observamos que a tranquilidade de Maria da Penha refletia o sentimento de justiça de quem conseguiu mudar não só a própria realidade, mas também a de muitas mulheres brasileiras. Quando Maria chegou à sala de sua casa, repleta de fotos de seus familiares, onde estávamos aguardando-a para uma entrevista, pudemos notar o quanto é bem ligada à família. Sobre o seu peito havia mais uma foto, a dos seus três netos em um pingente em formato de coração. Parecia que seu pensamento estava a relembrar fatos da vida, em um breve momento de silêncio que se fez na sala de estar revestida também por pinturas da irmã, Elizabete Maia, artista plástica. Naquele momento ficou claro que seria quase impossível imaginar que uma mulher que valoriza as relações familiares pudesse tolerar ser vítima de violência do próprio marido. O destino de Maria foi surpreendente. O drama da vida de Maria da Penha começou na década de 1970, quando conheceu o professor universitário colombiano Marco Antônio Heredia Viveiros, com quem teve um romance e se casou. Tiveram três filhas. Após o nascimento da segunda filha, data em que foi

naturalizado brasileiro, Heredia Viveiros começou a apresentar mudanças de comportamento. “Me senti usada. Ele só queria estar comigo para receber o visto”, revela Maria. Depois de uma sequência de torturas psicológicas contra ela e as crianças, começaram os maus tratos físicos. “A pior tortura era ouvi-lo dizer que ia me trocar por uma mulher mais nova e bonita, e que nada que eu fazia prestava”, lembra Maria. Todos os indícios de agressão física estavam visíveis, mas Maria não esperava que isso acontecesse. Em 1983, após falar com suas amigas sobre divórcio e a vontade de viver para cuidar de seus filhos, Maria da Penha sofreu o primeiro atentado. Heredia Viveiros, por várias vezes, se recusou a dar o divórcio para evitar gastos com a separação. Foi então que ele simulou um assalto e atirou na mulher enquanto ela estava dormindo. O resultado foram quatro meses no hospital e a perda dos movimentos das pernas. Quando voltou para casa, os maus tratos continuaram. Maria ficou em cativeiro em sua própria casa. Nessa época, as investigações seguiam e surgiram indícios de que seu marido era o principal suspeito de ter atirado. Ela custou a acreditar. Foi então que Heredia planejou a segunda tentativa de homicídio. Maria seria eletrocutada no banho. A polícia concluiu que todas as provas apontavam para homicídio

Maria da Penha tornou-se conhecida internacionalmente por sua história de luta contra a violência doméstica

Foto: Waleska Santiago

Prefiro falar desencarnou como minha mãe falava”. Atualmente, têm cinco netos e deixa claro que o seu preferido é o mais velho. “Ele é o Varão”, revela entre risos. No casamento, ela disse que não sofreu nenhum preconceito do marido por ser atriz, porém a infidelidade dele foi o que atrapalhou o casamento. “Sempre fui muito eu. Independente dele aceitar ou não, eu continuaria na minha profissão.” Além do teatro, Antonieta atuou em filmes como Luzia Homem e Central do Brasil (no papel de Dona Violeta) e confessa que sua maior gratificação pelas dificuldades que superou foi receber a homenagem de ter um teatro com o seu nome.

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doloso, aquele com intenção de matar, e Heredia foi a julgamento. Condenado a 15 anos de prisão, recorreu e cumpriu apenas um sexto da pena, o equivalente a dois anos, em regime fechado. Sentindo-se injustiçada, Maria de Penha contou com o apoio de ONGs, já que na época não havia nenhuma instância que protegia especificamente os direitos das mulheres. Somente em 1985 foi criada a primeira Delegacia da Mulher no Brasil com sede apenas em São Paulo. Por não tratar o caso de Maria da Penha com a devida justiça, a OEA (Organização dos Estados Americanos) entendeu que o Brasil não estava cumprindo com a determinações que garantiam proteção à mulher. Então, o Brasil foi processado, e o caso de Maria da Penha teve alcance internacional. Pressionado, o governo brasileiro teve que tomar uma atitude. Foi então que, em 7 de

agosto de 2006, foi sancionada a Lei 11.340 que recebeu o nome da mulher que lutou não só pela sua vida, mas também pelo direito de todas mulheres violentadas ao dizer “Basta!”. “Já ajudei muitas mulheres e fico feliz por saber que elas conseguiram superar esse sofrimento”, afirma Maria da Penha. Foi criado um instituto que leva o seu nome e conta com o apoio da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), e já realizou muitos trabalhos em Recife. Por enquanto, Maria orienta pela Internet mulheres que foram violentadas, mas tem planos de expandir o auxílio por outros meios. A Lei Maria da Penha garante proteção às mulheres contra os mais diversos tipos de violência como a física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Direitos esses só conquistados devido à transgressão de Maria da Penha. O desejo de buscar na própria lei garantias dos direitos da mulher.

Mulheres que marcaram época FRIDA KAHLO Nasceu no México, em 1907. Começou a pintar quando se recuperava de um acidente de ônibus sofrido aos 18 anos. As fraturas por todo o corpo e a barra de ferro que atravessou a bacia e saiu pela vagina no acidente a marcaram pelo resto da vida, pois a impediram de ter filhos. Os quadros de Frida são uma autobiografia. “Eu pinto-me porque estou muitas vezes sozinha e sou o assunto que conheço melhor”. Além de sofrer por não ter filhos, Frida tentou superar as traições do marido Diego Riviera, famoso muralista. Ele teve muitas amantes, inclusive a irmã de Frida. Compensava as traições do marido com amantes de ambos os sexos. Ela morreu em 1954 de embolia pulmonar.

EMMA GOLDMAN Nasceu em 1869, em Kaunas, na Lituânia, em uma família judia. Em 1885, com 16 anos, emigrou para os Estados Unidos, fugindo dos pais que a submetiam a uma vida de opressão e puritanismo. Por meio de atividades políticas e literárias, particularmente da sua luta contra a opressão da mulher, tornou-se uma das mais importantes mulheres nos Estados Unidos. Seus pais, Abraham e Trauve Goldman, tratavam-na com frieza e ressentimento porque era considerada uma oportunidade financeira. O pai, um administrador teatral espancava-a e a agredia sexualmente. Emma utilizou a própria vida como um instrumento de denúncia da condição da mulher.

SIMONE DE BEAUVOIR Foi uma escritora francesa e feminista, esposa de Paul Sartre. Nasceu a 9 de janeiro de 1908, e faleceu a 14 de abril de 1986, em Paris. Participante do grupo de escritores filósofos que deram uma transcrição literária dos temas do Existencialismo. De suas obras, destaca-se o tratado Le Deuxième Sexe (1949 - O Segundo Sexo), uma análise do papel da mulher na sociedade. Esta notável obra tornou-se um clássico da literatura feminista. (Fontes: www.netsaber.com / www.pco.org.br / www.simonebeauvoir.kit.net )

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Dicas de filmes O SORRISO DE MONALISA: O filme, dirigido por Mike Newell, foi gravado em 2003, mas retrata a sociedade machista dos Estados Unidos da década de 1950. O enredo se passa em um colégio para garotas em que a professora de História da Arte, Catharine Watson (Julia Roberts), passa a questionar o conservadorismo da sociedade e do colégio onde trabalha. Catharine acaba influenciando suas alunas a enfrentar as normas e preconceitos da época. OLGA: Conta a história da alemã Olga Benário Prestes, mulher de Luís Carlos Prestes, comunista brasileiro que foi perseguido junto com Olga pelos nazistas. O filme retrata o lado “mulher guerreira” de Olga. Militante comunista desde muito jovem, defendeu seus ideais políticos em uma época de Guerras Mundiais. Perseguida pelo então presidente do Brasil, Getúlio Vargas, foi presa política e entregue à Gestapo (polícia secreta da Alemanha nazista), onde foi morta em um campo de concentração. ERIN BROCKOVICH: Conta a história real de uma transgressora contemporânea. Erin Brockovich é retratada como uma mulher que cria os filhos sozinha, a chamada “mãe solteira”, ainda hoje mal vista pela sociedade. Em um momento da sua vida passa a investigar um caso de poluição ambiental de uma grande empresa e se depara com situações perigosas.

As ruas que são delas Andamos pelas ruas muitas vezes sem saber o porquê de seus nomes e o que alguns personagens fizeram para merecer essa homenagem. Em Fortaleza, algumas dessas ruas escondem histórias surpreendentes e homenageiam a vida de mulheres transgressoras que por atos de coragem mudaram a realidade ao seu redor. Uma delas é Jovita Feitosa. Cearense de Tauá, região dos Inhamuns, aos 17 anos alistou-se no exército do Piauí passando-se por um homem, pois na época (1865) não era permitido a entrada de mulheres em instituições militares. Com uma roupa de vaqueiro e os cabelos cortados, queria a todo custo vingar a humilhação passada por seus compatriotas nas mãos dos paraguaios quando ocorreu a Guerra do Paraguai. Denunciada, Jovita foi desmascarada. Mas, mesmo assim, foi incorporada com patente de primeiro sargento. Teve uma vida precoce, perdeu a mãe aos 12 anos e por uma desilusão amorosa se suicidou

aos 19 anos. Com uma vida curta, mas intensa, deixou um legado importante. Sempre à frente do seu tempo, conseguiu superar o preconceito da época e lutar pelo que acreditava. Outro exemplo é Bárbara de Alencar, uma nordestina que em 1817 retomou a luta pela independência. No ápice da Confederação do Equador nos estados nordestinos, lá estava Bárbara de Alencar dedicando sua vida, perdendo parentes e bens. Foi a primeira mulher presa política do Brasil. Por ter liderado o movimento que proclamou a República no Crato, em 1817 (cinco anos antes da Independência do Brasil). Foi confinada no calabouço do Forte, em Fortaleza. Mesmo presa e órfã de tudo que lhe era sagrado, Bárbara nunca desistiu e lutou até a morte por causas que, para ela, eram indispensáveis.

A cearense Jovita Feitosa passouse por homem para se alistar no Exército, no Piauí. Hoje, tem uma rua em sua homenagem em Fortaleza

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Ap贸s os 60, muitas mulheres aproveitam a vida de uma forma mais atrativa e produtiva

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começa aos 60 ·

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· daniel alves · priscila farias · wolney batista ·

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· daniel alves · priscila farias ·

Há cada ano que passa, os idosos mostram que são uma parcela da população ainda em plena atividade. As vovós, em particular, se sobressaem em meio aos jovens e esbanjam saúde, coragem e muita vontade de viver como se estivessem no auge da mocidade

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essoas indo e vindo com passos apressados, luzes piscando, músicas da moda – e bem altas - para estimular o maior número possível de compras. Assim é um shopping. Conhecido como “império do consumo”, essa junção de lojas é ponto quase que obrigatório para diferentes grupos: adolescentes, donas de casa, empresários, mesmo que por motivos diferentes, passam pelo local. No meio dessa verdadeira torre de babel contemporânea, em um shopping da zona oeste de Fortaleza, encontramos uma senhora que, diariamente, realiza uma antiga paixão. Ao cair da noite, Myriam Meneses, 78 anos - que mora a menos de uma quadra do shopping, no bairro São Gerardo -, deixa de lado o papel de matriarca da família e assume o de cantora lírica. De aparência frágil – 40 kg em 1.45 m de altura – ela se preocupa com o visual: não sai de casa para se apresentar no shopping se não estiver de roupa bem alinhada, unhas pintadas e salto alto.

Para chegar ao local onde se realiza como cantora, dona Myriam atravessa a movimentada avenida Bezerra de Menezes, em pleno horário de pico, passa pela porta de vidro automática de uma loja que vende eletro-eletrônicos e cumprimenta a todos os que encontra no caminho com um “Boa noite”. “Eu venho aqui desde que o shopping abriu, há oito anos, conheço todo mundo: segurança, vendedor...”, comenta com um sorriso no rosto. Sobe em uma escada rolante, passa por dentro de uma loja de roupas, atravessa uma praça de alimentação, anda mais alguns metros e finalmente chega ao “palco”, uma área do playground do shopping localizado entre uma agência bancária e uma loja de roupas para surfistas. Para cantar, dona Myrian se utiliza de uma máquina de música de Karaokê. Ela leva seu próprio microfone e cabo. Pacientemente, com a ajuda de um

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Para Myriam Meneses cantar é mais que um hobby

funcionário do playground, desenrola o fio, acopla-o no microfone e abre uma agendinha onde se encontra separado o repertório de músicas que vai cantar no dia. A apresentação da noite é aberta com a música “Nem um toque”, grande sucesso da cantora Rosana. Enquanto canta, observa as pessoas que passam e avalia quantos espectadores param para ouvi-la. Em poucos minutos, dois jovens se aproximam e se escoram na porta do banco para escutar. Eles aplaudem animados cada vez que dona Myriam encerra uma canção.

“Sempre que eu passo por aqui, paro pra ver. Ela tá quase todo dia; sempre muito bem vestida e simpática”, comenta um deles. Depois de uns vinte minutos de apresentação, já é possível observar várias pessoas que pararam formando uma plateia. Uma jovem, que diz ter chegado há pouco de São Paulo, não esconde a sua admiração: “nesse sábado, ela deu um show. Juntou um monte de gente”. Enquanto isso, dona Myriam desfila sucessos como “Eu sei que vou te amar”, de Tom Jobim, “Como vai você”, de Roberto Carlos e o tema da peça “O fantasma da Ópera”, em italiano. Finda a apresentação, ela agradece aos espectadores com alegria no rosto.

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Foto: Priscila Farias

Realização Depois do show, sentou-se em uma mesa da praça de alimentação para conversar. Ela revela o porquê de só ter começado a cantar tão tarde na sua vida. “Eu perdi minha mãe quando tinha 12 anos. Morei boa parte da minha infância e da adolescência em um orfanato católico. Aos 22, conheci meu marido e, pouco tempo depois, casei. Tudo que eu sempre quis foi ter uma família”. O marido dela, Francisco Irapuan Bezerra – parente do médico Bezerra de Menezes – era militar quando a conheceu, em Minas Gerais. Alguns anos depois, Irapuan conseguiu a transferência de volta para o Ceará. “Tive cinco filhos desse casamento. Realizei meu sonho de ter uma família e por isso dediquei minha vida inteira a ela”, comenta orgulhosa. O dom para a música só foi descoberto quando uma amiga a incentivou a procurar um curso de canto. “Eu fazia o almoço cantando, cuidava da casa, dos filhos, tudo cantando, mas nunca tinha pensado em ser profissional”. Embora ela garanta que a família ainda vem em primeiro lugar, reconhece que a atual fase de sua vida é mais ativa. Hoje, possui uma carteira que comprova a sua profissão de cantora. “Eu me realizo por completo quando pego no microfone. Se não posso vir pela noite cantar, venho de manhã. Pra mim, isso é mais do que hobby. Não sei quanto tempo ainda vou ficar aqui na terra, mas sei que, enquanto estiver viva, eu vou tá aqui [no karaokê do shopping] cantando”, diz sorrindo.

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Navegar é preciso

Foto: Daniel Al

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Aquele estereótipo da vovó que senta na cadeira de balanço para fazer crochê ou que faz bolinho de arroz em dias de chuva para os netos passa longe da realidade de Valdelice Maciel Alves, 79 anos. Ao chegarmos em sua casa, cumprimentamo-la educadamente com um “Bom dia, Dona Valdelice”. Com ar de despachada, ela responde corrigindo-nos: “Dona não, que não sou dona de nada. Podem me chamar de Valdé”. Viúva e aposentada do Dnocs (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas), Valdé mora sozinha, em uma ampla casa no bairro Parquelândia. Logo constatamos que nem de longe aparenta a idade que tem. Acorda às cinco da manhã para fazer uma caminhada na praça. Depois, vai direto para a academia, onde fica até umas nove horas. Duas vezes por semana, é aluna assídua na hidroginástica do clube, assim como também em todos os eventos e projetos sociais desenvolvidos pela paróquia da igreja do bairro. A sua mais nova ocupação é uma dívida que diz ter com ela mesma há muito tempo: fazer um curso de informática. “Sempre tive uma vontade enorme de aprender a lidar com um computador. É um barato”. Apesar de ter usado máquina de datilografar quando trabalhava no Dnocs, a intimidade com o teclado já não é mais a mesma. “Sinto muita dificuldade pelo fato de já estar aposentada há um bom tempo. Isso acaba atrapalhando, a gente acaba caindo no esquecimento, sabe?”. Isso não a impediu de realizar um desejo: navegar na

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internet. “Quero falar com meus amigos e parentes que moram longe de mim. Já fiz um e-mail, uso o MSN [Rede de Serviços da Microsoft], agora estou querendo criar o meu Orkut e, quem sabe, até um Twiter ”, diz às gargalhadas. Em seus “passeios” pela web, Valdé conta com a ajuda de sua filha mais nova, que pacientemente descomplica as linguagens da rede. “Ah! Ela me ajuda muito. Tá sempre comigo, aliás, só teve uma vez que ela não me apoiou, e não gosto nem de lembrar”. Recorda da maior loucura que fez, segundo seus filhos, em busca da eterna juventude. “Há uns cinco anos, fiz uma plástica no rosto. Sempre fui muito vaidosa e independente. Acredito que toda mulher quando chega na terceira idade sente essa vontade”.

Determinada a apagar as marcas que o tempo gravou em sua face, a aposentada vendeu uma chácara que tinha no Eusébio para usar uma parte do dinheiro em uma cirurgia plástica. “Meus seis filhos ficaram contra mim, diziam que, por eu já ter uma idade avançada, a cirurgia era arriscada”. Apesar de constatar que a sua aparência melhorou significativamente, hoje ela se arrepende de ter passado pela mesa cirúrgica. “Menino, o pós-operatório foi muito doloroso. Sofri bastante. Fiquei hospedada no apartamento de uma filha, precisei de uma enfermeira particular durante dois meses para fa-zer o acompanhamento da minha recuperação. Não quero mais passar por isso”, garante.

“É emocionante, é lindo”

Foto: Priscila Farias

Não importa qual seja o ritmo, mas a aposentada Maria Ieda Farias Linhares sempre dança conforme a música. É com pensamentos positivos, boas energias e uma alegria contagiante que Ieda, viúva e sem filhos, leva a vida. Esbanjando uma excelente forma física, ela dá gargalhadas quando questiono sua idade. “Idade? Isso eu já parei de contar há muito tempo. Nem lembro quando comemorei o meu último aniversário”, brinca. Ieda faz questão de revelar como alegra sua vida e se mantém em forma. “Tenho o dia todo preenchido com coisas boas. Faço ginástica, aulas de relaxamento e, antes fazia até musculação, mas meu médico proibiu devido à um problema de saúde. Mas minha paixão mesmo está na dança. Adoro dançar”. Mas nem sempre foi assim. Dona Ieda conta que passou por momentos difíceis de solidão causados pela morte

A dança é fundamental para a vida de Maria Ieda. Ela acredita que praticá-la é uma importante fonte de saúde

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do marido. Após quase 50 anos de casados, pela primeira vez, depois de ter saído da casa dos pais, a aposentada se viu só. A superação da perda só veio depois de muito tempo, com a ajuda e carinho da família. “Minhas irmãs me viam muito triste. Me levavam pra sair e, devagar, eu fui conhecendo pessoas novas, frequentando lugares diferentes”, recorda. Foi assim que ela descobriu uma fonte de renovação e bem-estar que mudou a sua vida: a dança. “Para preencher mais o meu tempo, comecei a fazer aulas de salão três vezes por semana. Aos poucos, fui aprendendo a conviver com a ausência do meu marido, que sempre foi muito participativo na família”, conta emocionada. E foi assim, entre um passo e outro, que ela foi descarregando todo aquele sentimento de angústia e perda e, com a superação da dor, restou apenas a saudade. “A dança foi muito importante na minha vida: descobri o prazer de dançar, a felicidade de poder expressar com o corpo o que eu não consigo dizer com palavras. É emocionante, é lindo”, diz dona Ieda, balançando os braços com leveza, como se estivesse dançando uma valsa. “Ah, sem contar nos paqueras que arranjo por lá. Como sou muito bonita, chamo a atenção até dos rapazes que passam por perto da sala e ficam obser-vando de longe”, garante com um sorriso no rosto.


Fotos: Arquivo pessoal

A arte de ser mulher na terceira idade Devido aos avanços tecnológicos no campo da saúde e à diminuição da taxa de natalidade, a população idosa tem crescido sensivelmente, representando hoje cerca de 14,5 milhões de idosos, quase 10% da população total do país. Foi pensando nesse envelhecimento crescente da população brasileira que surgiram projetos direcionados a uma reestruturação social que atenda ao idoso nos dias de hoje. Interessada em estudar a relação entre comportamento e arte, Renata Rocha Giaxa, 31 anos, psicóloga e professora na área de saúde da Universidade de Fortaleza (Unifor), criou e coordenou a Oficina de Arte e Terapia na Terceira Idade. O grupo tinha como objetivo promover o resgate da auto-estima e viabilizar a socialização das histórias de vida dos idosos por meio da expressão artística. Entre 2003 e 2009, dez grupos foram formados. Os encontros eram semanais durante dois ou três meses. Em cada grupo havia 25 idosos, dentre eles, 95% eram mulheres. A partir de trechos de músicas, filmes, ou outras formas de arte, era pedido que os idosos materializassem em papel, ou qualquer outro meio, o que eles tinham sentido. Apesar de bem sucedida em seu projeto, a psicóloga teve que encerrar os encontros porque eles precisavam de um tempo significativo para montagem e execução. “Recebi trabalhos lindos dos participantes. Tenho um, de uma senhora de 67 anos, da primeira turma do grupo. A história dela era de dor nos relacionamentos conjugais, de abandono por parte dos filhos, e no final ela converteu isso numa imagem belíssima chamada ‘A moça de batom’. Ou seja, apesar de tudo, ela ainda conseguia ver força e beleza dentro dela, e isso tocou muito o grupo e a mim”, revela Renata, que pediu autorização do trabalho para usar como divulgação nos grupos posteriores. Essa força, segundo a psicóloga, é característica do universo feminino e da mulher atual, que passa pelo dilema de ter uma diversidade enorme de papéis. Porém, apesar dessa pesada responsabilidade que as mulheres carregam, elas têm uma vantagem sobre os homens: conseguem expressar mais facilmente seus sentimentos e angústias. “Esse despreendimento da mulher é uma questão cultural. Elas trocam mais informações, compartilham mais os sentimentos, são em geral, mais abertas. Não é que exista uma incapacidade masculina, mas há uma resistência deles em demonstrar seus sentimentos”, esclarece.

Acima, participantes do grupo expressam através da pintura suas vivências. Ao lado, a imagem “Moça de batom”.

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· texto · filipe dutra · ilustração · rafael gomes ·

De vulgares a ícones, as mulheres vêm se consolidando no universo literário. E as escritoras, que antes tinham que se esconder sob pseudônimos, hoje vendem milhões de livros e fazem escola

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lan e Barbara Pease, no livro Os homens fazem sexo, as mulheres fazem amor, mostram alguns estudos científicos comprovando que as mulheres possuem uma visão bem mais aguçada do que os homens, ou seja, conseguem perceber com mais clareza o que se passa ao redor. Isso se reflete, naturalmente, em todos os campos sensoriais e emotivos. Elas conseguem perceber com mais clareza o que se passa tanto nas suas mentes quanto nas mentes de seus (suas) parceiros (as), e isso é transferido para o papel. Escritoras como Clarice Lispector, Cecília Meireles, no plano nacional, e Anaïs Nin e Virginia Woolf, no âmbito internacional, entre outros nomes, transmitem toda a emoção de suas personagens, ou, por que não dizer, delas mesmas. Antes de começarmos, é bom esclarecer alguns fatores. O primeiro é de que há, no estudo da literatura, duas correntes: a que considera apenas a obra e a que a analisa, além da obra, levando em conta a vida do autor. Essa última não é bem aceita academicamente, tendo em vista que, para os críticos, tal linha de estudo minimiza a obra. Entretanto, há autoras que se envolveram com suas obras de uma maneira tão intrínseca, às vezes até se esquecendo quando termina a criadora e começa a criatura, tornando-se mais adequado e interessante trabalhar sob esse viés.

A segunda consideração a fazer é que estaríamos sendo levianos ao generalizar as escritoras, ao dizer que a mulher escreve emotivamente sempre. Se fosse assim, não teríamos, por exemplo, Agatha Christie, J.K. Rowling e Ana Maria Machado, que, sem desmerecer os méritos de seus trabalhos, encontram correspondentes no sexo masculino. Mas escrever com emoção, saber tirar os sentimentos do peito e colocá-los no papel é algo que as mulheres sabem fazer com maestria.

Obscuridade Em uma sociedade patriarcal, em que os homens detinham todos os direitos, a mulher possuía domínio apenas sobre seu lar. Era instruída a fazer apenas o básico: serviços domésticos, cuidar dos filhos e tocar piano. A educação intelectual feminina restringia-se ao que, hoje, equivaleria ao ensino fundamental, ou seja, a ler e a fazer cálculos matemáticos simples. Naturalmente, estamos nos referindo à mulher das classes média e alta brasileira, pois as de classes menos favorecidas eram treinadas para trabalhar. A leitura era uma das principais fontes de entretenimento do século dezenove. Então era comum ver mocinhas lendo avidamente as

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histórias de Shakespeare ou de José de Alencar. Portanto, nada mais natural que, motivadas pelas histórias comoventes de Julieta ou Ceci, elas quisessem escrever e publicar as suas próprias histórias. Mas isso já ultrapassava, e muito, o que uma mulher poderia fazer. Afinal, pensavam os moralistas maridos, como elas poderão cuidar dos afazeres do lar? Escrever um romance ou uma poesia foi, para a dama brasileira do século XIX, um ato grandioso de transgressão das regras morais da sociedade. A mulher que se atrevesse a se aventurar como autora era vista pelos homens e pelas outras mulheres com maus olhos. O escritor Viveiros de Castro possui um texto de 1895 que sintetiza bem o que acontecia com as escritoras: “Aquelas que, rompendo com um meio tão hostil, atrevem-se a cultivar as letras devem logo resignar-se aos sarcasmos mais pungentes e às chufas mais grosseiras. Contestam-lhes o talento e babam as mais vis calúnias sobre sua honra. Raramente recebem uma palavra de animação e, se alguém as saúda, é logo suspeito de ser seu amante”. Exatamente por isso, são raros os registros de escritoras brasileiras durante esse período. Muitas se escondiam sob pseudônimos, quase sempre masculinos, ou simplesmente permaneciam anônimas. Se, no Brasil, a mulher escritora era mal afamada, a situação não era tão ruim do outro lado do Atlântico. Na Inglaterra, graças à mentalidade progressista da Era Vitoriana, as mulheres começaram a ganhar espaço na literatura. Um grande exemplo é Emily Brontë (1818-1848), autora de O morro dos ventos uivantes, publicado em 1847. Ela era escritora, assim como suas irmãs Charlotte e Anne, mas, das três irmãs, foi Emily quem conseguiu maior notoriedade. O morro dos ventos uivantes foi adaptado para teatro, cinema e televisão diversas vezes, e até inspirou uma música, Wuthering

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Heights, que ficou conhecida na voz da cantora Kate Bush, também inglesa, quase um século e meio após a publicação do romance. Entretanto, para poder publicar qualquer escrito, as irmãs Brontë valiam-se também de pseudônimos: Emily era Ellis Bell, Charlotte era Currer Bell e Anne, Acton Bell. Essa era a realidade em todo o mundo ocidental. Só a partir do século XX é que as mulheres poderiam, enfim, livrar-se das amarras da obscuridade.

Tempos modernos Semana de Arte Moderna de 1922. O evento é registrado na História do Brasil como a entrada oficial do País no século XX. Estavam envolvidos no evento pessoas que seriam reconhecidas para sempre na história da arte: Oswald e Mário de Andrade, Di Cavalcanti, Manuel Bandeira, Anita Malfatti, dentre outros. Nessa época, a mulher tinha uma liberdade maior para escrever. Jovens moças já tinham uma profissão que exigia maior capacidade intelectual: serem professoras. Os cursos normais, preparatórios para o ensino, davam às mulheres uma autonomia maior de pensamento e, portanto, elas poderiam expressar-se mais facilmente. Foi nesse contexto - embora sem participar do movimento -, que despontou um grande nome da literatura: Cecília Meireles (19011964). A escritora possui traços que mesclam o modernismo e o simbolismo (que abordam a transcendência, o imaginário), e tem poemas imortalizados até hoje por uma legião de fãs. Esse simbolismo esteve presente na vida da autora, como ela mesma escreveria: “Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a


Morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno.” São exatamente essas “relações” que Cecília tem que tornam seus poemas interessantes e queridos. É essa questão do imaterial, do intangível, de dizer sentimentos geralmente intraduzíveis em palavras que a tornaram tão especial. Clarice Lispector (1920-1977) também se tornou notória por isso, embora sua escola literária e estilo fossem diferentes das de Cecília. Clarice, aliás, mereceria um artigo inteiro só para ela. Seu estilo introspectivo e subjetivo encanta milhares de pessoas e influencia outras tantas jovens escritoras em todo o País. Muito provavelmente porque ela traduz os sentimentos femininos, sendo, portanto, a geradora da tendência da literatura feminina até hoje. Clarice foi comparada, à época do lançamento de seu primeiro livro Perto do coração selvagem, de 1943, com a escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941), por conta da linguagem existencial presente em ambas. Virginia, autora de Mrs. Dallaway (1925), e cuja história é retratada no filme As Horas, de 2002, teve um fim dramático, digno de suas obras: depressiva, ela escreveu uma carta ao marido, vestiu um casaco, colocou pedras em seus bolsos e deixou-se afogar em um rio. Trilhando outro caminho, mas sendo igualmente reconhecida nacionalmente, há a cearense Rachel de Queiroz (1910-2003). Aos vinte anos, Rachel publicou O Quinze (1930), um clássico do romance nordestino. O Quinze descreve a batalha do nordestino contra a seca e a fome, e lança mão de análises psicológicas precisas em seus personagens. Rachel também foi cronista e publicou diversos outros romances e contos. Graças a seu sucesso, ela foi escolhida, em 1977, para ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, sendo a primeira mulher a se tornar imortal. Um reconhecimento da literatura feminina. A década de 1960 foi um período de efervescência cultural em todo o planeta. A França foi o país que mais se destacou nesse sentido, com a filosofia do “É proibido proibir”. E, naturalmente, as mulheres ganharam mais espaço em todos os campos.

E, quando juntamos França e mulheres a esse período, podemos citar uma única pessoa: Anaïs Nin (1903-1977). A escritora, de origem cubana, é conhecida por seus romances e relatos com altas doses de erotismo, dando a tônica liberal daquela época. O mais interessante, e outro fator que influencia bastante escritoras conhecidas e anônimas da atualidade, é que ela alterna entre personagens e ela própria, dando mais realidade às histórias.

Escritoras de hoje Com o advento da internet, encontrar autoras, sejam elas famosas, sejam anônimas, é uma tarefa bastante simples. Portanto, é comum dividir o gosto pessoal, junto de nomes reconhecidos pela crítica e pelo público, com escritoras que, às vezes, sequer se sabe o nome, mas que possuem bons textos e com os quais a pessoa se identifica. A estudante universitária cearense Camila Oliveira, 20, escreve desde pequena, e publicou alguns contos graças a um concurso realizado pela Universidade de Brasília (UnB). Camila escreve desde 2007 em seu blog (motsoumasques.blogspot.com), crônicas, contos e reflexões. Ela admite que, embora os frequentadores de seu blog não sejam muitos, os que o veem contribuem bastante, com críticas construtivas e sugestões. “Principalmente da minha mãe. Por ela ser professora de português, eu sempre tive muito o apoio dela nas correções de meus textos e na participação de concursos”, diz Camila. A nova geração está muito bem representada e viva com a escritora cearense Tércia Montenegro, 33. Doutora em Linguística pela Universidade Federal do Ceará (UFC), ela iniciou sua carreira com o livro O vendedor de Judas (1998), que ganhou um prêmio da Funarte (Fundação Nacional de Artes) em seu ano de lançamento. Tércia confessadamente bebeu das fontes das grandes escritoras, como Clarice, Rachel e Cecília, e vem ganhando, ano a ano, valorização nacional. Não devemos nos surpreender se, um dia, ela atingir o patamar de suas inspiradoras.

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artigo Metamorfoseando

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: Ha

nnah

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ira

· por · joão paulo de freitas · estudante de jornalismo da unifor · foto · luiza costa

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Elas já não são as mesmas, saíram do casulo e puseram-se a voar tão cheias de ânimo. Abandonaram o anonimato na história, que é escrita pelos homens, e partiram numa busca incessante de destaque. Foram xingadas de ingênuas e acusadas de bruxas, e as suas reputações continuam a sofrer alterações, sem haver corrosões em suas essências. As mulheres do século XXI estão eufóricas e necessitam de uma espécie de registro para depositar e armazenar suas alegrias, vitórias, sucessos e uma dose de fracasso para balancear o que, comumente, elas chamam de vida. Não haveria como colocar em discussão o que elas fizeram ou vão fazer. Elas, mais que ninguém, provaram que podem fazer acontecer. Várias conquistas foram alcançadas. Da calça jeans ao poder de voto. Buscam o inexistente e moldam o que já têm em mãos. São camaleoas de salto alto. Freud (1856-1939), considerado o pai da psicanálise, não estava enganado quando disse a seguinte frase: “Nunca fui capaz de responder a grande pergunta: o que uma mulher quer?” Partindo do pressuposto de que nessa época a mulher não possuía toda a autonomia que tem hoje, e apesar de todas as avançadas tecnologias do mundo contemporâneo, Freud indagou o que até hoje não conseguimos responder.

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Elas têm o poder de rir e chorar ao mesmo tempo, sabem dizer não com sutileza e até um sim com arrogância. Fazem malabarismos ao atender o telefone celular, passar um batonzinho e até procurar alguns assessórios dentro da bolsa. O príncipe já nem vem mais montado em um cavalo branco. Pretensiosas, revertem os papéis e vão à luta, numa busca máscula de conseguir o parceiro ideal. Já não estão (tão) preocupadas com a roupagem que terceiros vão lhe atribuir. E os homens transformam-se em meros observadores das conquistas feitas por elas. Nem mesmo Florbela Espanca (1894-1930), grande escritora portuguesa, conhecida pela vida melancólica e infeliz que tinha, escondia a sua admiração pela mulher. Na poesia “A Mulher”, Florbela expõe todo o seu sentimento referente às turbulências existentes na vida das mulheres, como as tristezas, as dores, as raivas, as paixões e, até mesmo, a força que têm para superar todas as adversidades que encontram no decorrer de suas vidas. Encontrar mulheres que saem de casa antes e retornam depois do marido, que se mostram mais responsáveis que os homens no trabalho, que possuem maior qualificação e até ganham mais que eles, não é de surpreender a nenhum de nós, pós-modernos. É claro que falta muito para que as mulheres tenham seus direitos respeitados, não só no mercado de trabalho, mas principalmente no âmbito social, onde possam ser respeitadas e admiradas. A violência contra mulher ainda é um dos alvos principais das feministas para a diminuição dos altos índices de assassinatos ocorridos diariamente no País. Pesquisa recente feita pelo Instituto Sangari, baseada no banco de dados do Sistema Único de Saúde, afirma que em dez anos, dez mulheres foram assassinadas por dia no Brasil, uma média de 4,2 assassinatos por 100 mil habitantes, isso mostra que há uma significativa desestrutura sócio-política, já que essa média está acima do padrão internacional de assassinatos contra a mulher que não ultrapassa 0,5 por 100 mil habitantes (situação da Europa). As mulheres não querem só deleitar-se sobre a nuvem de conquistas e gozar do muito que ainda está por vir. Elas sabem que a luta não é fácil e que as armaduras não são de aço. Avant, teimosas mulheres!


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Universidade de Fortaleza - UNIFOR Comunicação Social

Jornalismo

Av. Washington Soares, 1321, Edson Queiroz CEP 60.811-905 - Fortaleza-CE, Brasil Fone 55 (85) 3477.3105 equipelabjor@gmail.com

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