Revista Literatas

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Comissão Nacional de Moçambique Director: Nelson Lineu | Editor: Eduardo Quive | Maputo, 15 de Junho de 2012 | Ano II | N°34 | E-mail: r.literatas@gmail.com

“Eu acredito que este problema é cultural. Se passarmos o hábito aos jovens de ler, eles irão aderir. Não esqueça que temos um adversário feroz contra nós, que se chama governo,” Nilton Pavin

Poemografias da crítica: a poesia de Augusto de Campos, pag. 6, 13 e 14. Por Susanna Busato

Em vez de lágrimas Só um choro em seco põe no vértice da minha dor o mais intenso auge do luto (José Craveirinha)


SEXTA-FEIRA, 15 DE JUNHO DE 2012

Editori@l FICHA TÉCNICA

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Um ano de Literatas, uma tristeza nos Literatas. Neste ano completaremos um ano, como é do conhecimento de todos, todos os que lêem a revista; um ano de existência é realmente indício e prenúncio de coragem, pois para nós este um ano foi e continua a ser, um ano de

Propriedade do Movimento Literário Kuphaluxa Direcção e Redacção Centro Cultural Brasil - Moçambique

Av. 25 de Setembro, N°1728, C. Postal: 1167, Maputo Tel: +258 82 27 17 645 / +258 84 57 78 Tel: +258 82 27 17 645 / +258 84 57 78 117 117 Fax: +258 21 02 05 84 Fax: +258 21 02 05 84 E-mail: r.literatas@gmail.com E-mail: r.literatas@gmail.comz Blogue: literatas.blogs.sapo.mz Blogue: literatas.blogs.sapo.mz

telefonemas anónimos; um ano de elogios e críticas; um ano de amigos, inimigos e amizades; um ano de artes e letras; um ano de palavras à palavrões; acima de tudo um ano de literacia; motivo mais do que suficiente para comemorar, aliás, este último enquadra-se bem nos objectivos primordiais da criação e da permanecia cada vez mais qualitativa e criativa da Literatas; mas a natureza, esta que os gregos um dia chamarão

DIRECTOR GERAL Nelson Lineu (nelsonlineu@gmail.com) Cel: +258 82 27 61 184 DIRECTOR COMERCIAL Japone Arijuane (jarijuane@gmail.com) Cel: +258 82 35 63 201

de phisys (física); empunhada de suas ordens e leis, decidiu por a prova a nossa alegria, tirando-nos a paternidade do editor da revista. Mau, muito mau! Morreu pai do Eduardo Quive. Por outras, ou mesmo por todas, estamos de luto, a Literatas está de luto. Mas nem por essa tamanha tristeza, que decidiu vertiginosamente embalar nossos sem-

EDITOR Eduardo Quive (eduardoquive@gmail.com) Cel: +258 82 27 17 645

blantes a partir do dia 13 do mês corrente; privamo-nos de fazer a Literatas, aliás, é ela

CHEFE DA REDACÇÃO Amosse Mucavele (amosse1987@yahoo.com.br) Cel: +258 82 57 03 750

conteúdo literário os comentários feitos alusivo ao primeiro aniversário, e passa obriga-

REPRESENTANTES PROVINCIAIS Dany Wambire - Sofala Lino Sousa Mucuruza - Niassa

nossa única motivação; nossa e vossa Revista que hoje, não por acaso, traz no seu ébrio

toriamente da reflexão intitulada “Poemografias da crítica: a poesia de Augusto de Campos” ; de Susanna Busatonos que nos convida a uma reflexão minuciosa sobre a poesia visual; e vai também por um lado a apreciar as paisagens poéticas da Conceição Lima, a

COLABORADORES FIXOS Pedro Do Bois (Brasil), João Tala - Angola Mauro Brito (Maputo) Izidro Dimande

personalidade da edição. Duma forma geral, o passeio leva-nos até a entrevista com Nilton Pavin, mas todo esse itinerário , lembrem-se, é feito sobre uma procissão fúnebre,

COLABORAM NESTA EDIÇÃO Samuel da Costa - Brasil Fernando Aguiar - Portugal Frederico Ningi - Angola José dos Remédios

pois, é hoje que motivos do género caracterizam-nos espiritualmente; é hoje que vão a

COLUNISTA Marcelo Soriano (Brasil) Nelson Lineu - Maputo

amargos, que nos vem a vontade de vencer, mas não a morte, ela por si só se vence, aliás

FOTOGRAFIA Arquivo — Kuphaluxa Eduardo Quive ARTE E DESIGN Eduardo Quive

enterrar os restos do já perecido homem que nos deixou um poeta. Não nos faltam lágrimas para chorar, mas são nestes momentos de presságios mais do que tristes, sombrios e

como disse nosso confrade, António Lobo Antunes: A morte é uma puta, e hoje resolveu prostituir-se na paternidade do Quive. Restamo-nos dizer a nós mesmos, concretamente ao Eduardo Quive: nossos pêsames, aliás que desfaça, de maneira merecedora, com cio equivalente, essa puta; que resolveu dançar striptease ao cúmulo das regras do além.

PARCEIRO Centro Cultural Brasil—Moçambique

Bem-haja literatas!

Japone Arijuane jarijuane@gmail.com


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Eles leram e disseram sammy, en passant li o segundo texto sobre o casamento interessante a história de casamentos com crianças--pois é diferente de outro povo (árabe,sírio,sei lá, me mandaram em pps, fiquei horrorizada)em que crianças são pintadas e arrumadas como adultas e se casam com homens de mais de 20 anos gostei da formatação da revista---há bastante coisa para ler e aprender sobre a literatura dos nossos irmãos africanos vou repassar para minha irmã que é professora de artes no colégio catarinense e eles estão trabalhando a arte africana guardarei para ler com mais calma há matérias que lerei para aprender mais sobre os poemas e escritores d´além mar obrigada por compartilhar bjs Maura Soares

Faça como eles, por ocasião da passagem dos primeiros 365 (1 ano) dias de existência da Revista Literatas, abrimos este espaço para a recolha de reacções sobre a mesma. Seja leitor assíduo ou ocasional, ajude-nos com as suas opiniões a medir o pulsar do nosso trabalho. Envie as suas críticas, sugestões e opiniões para o nosso correio electrónico: r.literatas@gmail.com .

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ano

Boa noite mano, meu grande poeta. Estou muito feliz pelo vosso empenho, dedicação. Estou certo que se em Angola ainda não há sinais do surgimento da nova geração volvidos mais de 30 anos, talvez em Moçambique, vocês são a aposta certa. Revestidos de disciplina, comprometimento, rigor e coerência, vocês vão muito longe, estou certo. Forte abraço mano e, desde já mais uma vez, o meu muito obrigado. DC

Gostei, embora ter lido um pouco, mas tem conteúdo...plausível

E a primeira vez que tenho acesso a revista. Numa primeira intervenção, parabenizo a iniciativa e desejo muita forca. E espero nos próximos tempo contribuir para o crescimento da revista.

Lino

Saudações Alone Celso

AJUDE-NOS A MELHORAR

COMPASSO DO RITMO NA NONA BRISA David Capelenguela - Angola

fazem o seu quotidiano. Se ontem via o m Angola, o período pós mar pela varanda independência produziu da “zona libertaimportantes nomes, que da” e à distância, com o andar do tempo, hoje, sente a foram sendo classificados de divernona brisa a consas formas. Há quem os tenha chavidar-lhe para a mado de geração de 80, geração conversa com as pós - independência por quanto o calemas, com o crítico literário Luís Kandjimbo os gesto singelo do apelidou de geração das incertezas, pescador passane vários outros nomes. te ou mesmo com a imersão do sol É neste conjunto de talentosos traquando o dia, já balhadores da palavra poética, que pede passagem à emerge nomes como o de Lopito noite. Vive pratiFeijóo. De vocação experimental, camente com e paródica discursiva, hermetismo, no mar. Sente as humor a desconstrutividade ou ludisondas a tocar os mo, dos signos, é muitas vezes refealicerces do muro renciado como “rebelde” quiçá, dada a sua forma telúrica, irreverência de vedação, ao ponto de dar-lhe a sensação de se deixar levar pela aderência do e boémia. instante, efeito do “kalunga”. Mas este simples homem, na nossa (i) modesta opinião, gente de trato fácil, atento e de sensibilidade apurada para pormenores culturais, é Enquanto significado de transmissão colectiva, kalunga, é mar em muitas línguas um artista de grande alcance e significado, se buscado na sua exigên- nacionais do nosso país, embora à este se tem adicionado ao de “deus da divincia e rigor no âmbito do labor estico e poético. O contacto directo com dade da morte”. Mas aqui questionamos, a morte de que ou de quem? Lendo o uma dada peça de artesanato, a tela e a banda desenhada, o instru- livro “Véu do Vento”, de um poeta angolano, editado ela União dos Escritores mento musical, a fotografia e o som do vai e vem das ondas do mar, Angolanos em 2011, na página em que dedica aos seus pais, o poeta diz:

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Destaque “ À memória de meus pais (...), porque a terra é apenas tapete por um lado e cobertor pelo outro, apenas uma fronteira estreita entre aqueles que a pisam e aqueles que são cobertos por ela, entre o exército do movimento e os do repouso, duas multidões unidas por um esquecimento mútuo”.

Em transparência do acto Perde-se a noção do adeus Que o sol adensa Sob olhar atento da nona brisa

Remetendo-nos o conceito de morte, para uma tentativa de análise perfunctória, diríamos que a natureza da objectividade com que se nos apresenta a morte, enquanto viventes, por vezes leva-nos a embalar à percepção de que os mortos não têm direito de viver, por quanto este mito não passa da mera crença, considerada como um processo paralelo ao da passagem do sagrado para o profano. Mas para os produtores de arte Lopito Feijóo e Aminata Goubel, a casa que desde o primeiro ao terceiro andar, aliás ao terraço, é uma verdadeira transmissão de vida, pois para este casal, viver a arte é uma perfeita combinação entre o imaginário concreto e a transferência da vida para uma dimensão além-morte e, consequência, para eternidade enquanto concepcionalidade do crer, ser, estar e ser, assim mesmo como dizia este poeta:

Um ninge na tradição umbundu Magno devastador Aqui transformado em gesto estimulante Medita a gravitação da entrega Enquanto à dois passos do alicerce As ondas estendem-se, batem E vão E em vão Soberbas cobrem os corpos na água Ao som do batuque na praia

Ao Filimone Meigos, Luis Cezerilo e Eduardo Quive, poetas Moçambicanos…e a Aminata, Palú, Lina e Melita também poetas por transmitirem sensibilidades

“O som do batuque da leba Lembra o canto otyitalukilo Todos cantam Dançam daqui à ondas do mar Passa um recital de poesia Passa outro E todos amparam o rasgo do Índico Temperam a afeição e canto do sul E vem conferir a urgência do kimbundu Na voz do poeta de africalema

As vezes uma (lo)pitadela no petisco E se a golada do marufo Aguarda a vendedora passante A the famous grouse faz a vez”. Na “ nona brisa”, cada dia de domingo é dia de reflexão, tertúlia, recital, debate, teatro e dança com “batuque na praia”, onde todos vibram e vivem, vão e com veemência regressam do mar e mergulham na dança, sentem o pulsar do canto e revestem-se do gesto e da força da arte dos antepassados, já que absorvidos pela espiritualidade do som do batuque. Estas pequenas manifestações, revestidas de grande essencialidade e significado estético e artístico, que se somam e revigoram sob a reinvenção do momento, não se rendem “ a configuração simplicista fruto de uma intuição que vagueia”, mas pelo contrário, quando feitas com virtude e talento, precisão e concisão sob a orientação do querer e contribuir para o engrandecimento cultural, “realizam a solenidade” das artes e “os seus cultores se podem orgulhar de lhe terem rendido a excelência”.

EVENTOS

Serão lançados na próxima terça-feira, dia 19 do corrente mês, as obras Ndekeni, de Alexandre Chaúque, e Nau Nyau e Outras Sinas, de Domi Chirongo. O acto terá lugar pelas 16 horas, no Átrio do Conselho Municipal da Cidade de Maputo. Nau Nyau e Outras Sinas e Ndekeni foram vencedores do Prémio Municipal 10 de Novembro, em 2010 e 2011 respectivamente.


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Ensaio I

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Susanna Busato| Brasil

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cont.(p.13)

Poemografias da crítica: a poesia de Augusto de Campos

niciar qualquer discurso sobre a poesia de Augusto de Campos é tarefa que requer um gesto de recusa. Como aproximar-se de sua obra sem despojar-se do ranço acadêmico? Inútil qualquer movimento. Como aproximar-se de uma obra que tem no lúdico da linguagem seu roteiro sólido de invenção? Frustrante qualquer tentativa que não recuse ela também a ossatura de um discurso crítico acostumado ao tom histórico-descritivo que margeia a poesia no universo dos preguiçosos na sua geografia, cujo discurso é situado naquilo que pouca importância tem na compreensão do que realmente interessa, ou seja, a linguagem. Não à toa, Augusto de Campos na sua tradução do poema de William Blake, “The Tiger”, revela para nós, na sua escolha, o que sentimos diante do que insistimos em seguir aqui: a tessitura de sua linguagem em estado felino, revelada no símbolo do animal, no poema, na força de suas linhas e de suas formas transmutadas para o espaço do verso, na sonoridade e no brilho da natureza de que se reveste toda linguagem que se deseja abalo da existência. O “tigre” é essa figura demoníaca que entranha a linguagem e que provoca o olhar daquele que se projeta nessa imagem, numa busca por desvendar o mistério das coisas. O “tigre” é a alegoria do próprio mistério, que se indaga e que se traduz, apenas parcialmente, em linguagem, cujas escolhas revelam o modo como o sujeito lírico emerge como olho e como crítica. Como perceber a dimensão humana da poesia de Augusto de Campos no seu exercício de ler criticamente o mundo e a linguagem? Encontraremos num gesto de recusa ao já feito, a procura por extrair do universo das formas o que de mais humano e demoníaco a linguagem e a paisagem, ou seja, o mundo como um todo pode ainda ocultar. No contexto da poesia de Augusto de Campos, procuro pensar o processo de leitura do mundo como inscrição de um olhar de descoberta da poesia a partir desse mundo. O suposto “algo mais” que se busca é o estranho que habita o mundo contemporâneo do poeta, e é, também, a possibilidade de revelar para a poesia o tom da recusa de um mundo que se autodevora na miséria que adensa, em termos de um mesmo que se perpetua e não mais equaliza as diferenças, tão necessárias para a produção de informação nova nas consciências. É assim que a série “tvgrama”, por exemplo, performatiza o diálogo com a tradição poética e o mundo contemporâneo, promovendo um olhar crítico sobre os produtos culturais do tempo presente e sobre o abalo de que se ressente a poesia hoje. Na série de poemas, os canais e aparatos de comunicação como TV, antenas, youtube e os familiares bem-te-vis articulam-se ironicamente com Mallarmé e Bernart de Ventadorn, e com as poéticas cotovias. Em “tvgrama 2”, a ironia se amplia na projeção percebida e construída entre o passado (bernart de ventadorn) e o presente (bem-tevi), ou seja, entre as letras do nome do poeta provençal e as letras do nome do pássaro (palavra na qual também se vêem projetadas as letras de TV). A repetição das letras T e V nos versos do poema visualmente se tocam, formando um conjunto desdiferenciado nos versos pares que imita com

os demais versos, visualmente, os telhados pontuados de telhas com antenas de tv, como se pode documentar nos centros urbanos, desde que a tv invadiu totalmente as casas e a vida das pessoas.

Ler este poema requer um olhar que não submerja à imagem do mar de antenas de tv, mas consiga navegar na sua matéria plástica, assim como Volpi procedeu ao abstrair do cenário urbano de casas, telhados, portas, janelas, mastros e bandeirinhas os traços geométricos, e a projetar relações visuais em sua pintura, para deflagrar outros sentidos à mera pintura de paisagem. Dificultar, estranhar a paisagem, enfim, está num dos planos desta poesia que se deseja singular no trajeto de si mesma, exigindo de nós o mesmo despojamento para ler e descobrir. Os traços repetidos das letras “T” e “V” inserem-se na linha dos versos dificultando a leitura, numa atitude deliberada de construção visual do espaço urbano e do espaço cultural contemporâneo, levando o leitor a fazer algumas descobertas em suas hipóteses de leitura. No verso 1, SOBREASTVTELHASTVELHAS”, as letras “T” e “V”, de “TV”, (con)fundem-se com as demais palavras do verso. Novamente, elas se repetem em linha nos versos pares, levando a leitura que fazemos do poema a depreender, nessa repetição, a marca de um ruído, como a mimetizar o chuvisco característico da tela da tv, quando está dessintonizada do canal. O traço da letra “T” emerge na sua repetição, também, como visualmente aproximado das figuras estilizadas das antenas de TV. O enunciado “sobre as telhas velhas”, que se percebe no verso 1 (“SOBREASTVTELHASTVELHAS”), tem sua continuidade no verso 3, “BERNARTVDETVENTADORNTV”, em que o nome do poeta provençal é evocado para olhar (“ENTREVESTVENTRETVIDEOS”, verso 9) e ouvir (“ENTREOUVTVVIDASTVAPENAS”), na paisagem das antenas, “ T V E M T V E Z D E T V C O T O V I A S T V ” ( v e r s o 3 ) , “BENTEVISTVNASTVANTENAS” (verso 11). Em outras palavras, sobre as telhas velhas, numa referência talvez ao passado, o poema chama a atenção do poeta Bernart de Ventadorn, situando-o num hoje, que, em vez de cotovias (metáfora de poesia aqui, em termos gerais, e do poeta, especificamente), “entre ouvidas apenas” (eis a poesia como um eco a ser ouvido no “ruído” visual das antenas, que sugere o ruído sonoro também), ele apenas entrevê “entre vídeos”, numa referência sinedóquica das antenas de tv, os bentevis nas antenas.

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E aqui, a palavra “bentevis” no poema pode revelar o traço enunciativo da própria poesia, como resposta que emerge das antenas: a voz do pássaro onomatopaicamente representada por um “bentevi!”, que acena para o passado, para as cotovias, como eco, ressonância. (Haveria um traço de ironia nesse gesto?). “Ver” e “ouvir” são verbos que se percebem semântica ou metonimicamente no interior dos substantivos “TV”, “vídeos”, “cotovias” e “bentevis”, e do verbo “entrevês”. A projeção desses traços perfazem plasticamente, no âmbito visual e sonoro do poema, um cenário. A repetição do “entre”, em posições diferentes nos versos (“entre ouvidas”, “entrevês”, “entre vídeos”), sugere uma leitura que se diagonaliza na teia armada do poema, de modo a perfazer no ruído plástico das letras sobrepostas e repetidas a presença de um olhar também ruidoso, o do poeta, que no “entre” mundos, no entre-espaços, de um lá (o do passado, o da poesia) e de um cá (o do presente, o do cotidiano), flagra o presente, mimetizado na forma da imagem do cenário urbano e moderno das antenas (estas como símbolo da informação difundida em rede), cujo signo da cidade, sua beleza artificial, grotesca e feia em certo sentido, em oposição à beleza da natureza, ligada ao Belo e ao Sublime, legados pela tradição poética, desafia o poeta a buscar na paisagem contemporânea o poético, levando a reler as possibilidades da linguagem de seu tempo. E este fator tem ligação com a cultura de que faz parte, contaminando grafo-sonora-visualmente a linguagem. Charles Baudelaire, em seu texto memorável sobre a modernidade, “O pintor da vida moderna”, afirma que a natureza em si foi tomada no século 18 como modelo do belo e fonte do bem. Entretanto, o poeta revela que nela, igualmente, habitam duas dimensões: uma delas “compele o homem a dormir, a beber, a comer e a se proteger, bem ou mal, contra as hostilidades da atmosfera”. (BAUDELAIRE, 2010, p. 71) A outra dimensão leva o homem, posteriormente, à satisfação das necessidade básicas, “a matar o seu semelhante, a devorá-lo, a sequestrá-lo, a torturá-lo”. (p. 71) Essas duas perspectivas parecem se impor no poema de Augusto de Campos. Se levarmos em conta em nosso horizonte de referência o cenário de natureza idealizado de uma paisagem de casas, teremos de abandonar a atmosfera bucólica que nos acompanha para entrever nos telhados das palavras o ruído das antenas de tv. Eis a barbárie invadindo o território poético da natureza idealizada pela poesia legada pela tradição provençal e romântica, com a qual tem ligações. Eis o eco da modernidade já presente no contemporâneo da poesia de Augusto de Campos. Apenas um eco, pois o que se presenta para nós é um olhar que, subjetiva e objetivamente, flagra na paisagem um dado de ironia, que realiza o encontro crítico entre um passado e um presente. Puro flagrante que se transforma em poesia.

Para concorrer com o processo tradutório e transformador, pela linguagem, a que Augusto de Campos se lança em seu ―tvgrama 2‖, a projeção sonora e aliterativa dos sons linguodentais surdos e sonoros, representados pelas letras ―t‖ e ―v‖, e dos sons vocálicos em posição prepalatal, como é o caso da assonância da vogal oral e nasal ―e‖, surge como um conteúdo a adensar o plano visual do poema ao promover um tom que equaliza (ou seja, não dota de euforia as imagens e também não lhes dá colorido disfórico), ou melhor, que promove um olhar que situa no mesmo plano visual os semas do passado e do presente. Por exemplo, temos: TV – entrevês – entre - videos – bentevis – telhas – velhas – ventadorn – vez – cotovias. A escolha lúcida do poeta no arranjo fonossemântico incorpora o dado cultural flagrado: extrair do cotidiano o poético, perceber na paisagem urbana e cultural de seu presente um passado que o olha. Eis o gesto crítico que a poesia aqui revela no procedimento formal da linguagem, trazendo para o presente um olhar questionador, que percebe no fenômeno da mudança, não apenas a passagem do tempo, mas uma relação crítica entre o que era e o que está sendo, ou ainda, entre um passado e um presente que, num momento, se espantam e percebem como tempo e contratempo, na aparente desdiferenciação de formas da difusão da informação também desdiferenciada da paisagem: antenas captam tudo, e onde a poesia nesse tudo? Ou ela se situa nessa paisagem como olho e radar para flagrar o choque pelo dispositivo da memória, ao aludir ao poeta provençal como ícone do olhar assombrado frente a tudo, como construtor da linguagem do poema? Do passado e do presente, a reflexão sobre dois mundos cujas antenas captam os ecos de seu tempo. Em ―tvgrama 3‖, a poesia de Augusto de Campos atinge pela ironia das formas o patético de tudo e nos coloca frente ao caos em que estamos mergulhados. A informação monossilábica da gíria, a falta de densidade na vida, o discurso pretensamente jovem como símbolo do vazio e da precariedade da informação. Um mundo que o já conhecido BBB da tv revela como samba-de-uma-nota-só da inteligência rarefeita de que a tv se revestiu há décadas, infelizmente. O poema está escrito em formato flash, para o computador, numa fonte de letra que traz um elemento de juventude, alegre e irônico no clichê da gíria televisiva que é citada na antesala dessa alegria vazia, à espera de que o mundo acabe sem escape: ―entre um zap e outro zap∕ shit fuck trash crap∕ todo dia ele espera∕ hip rock hop rap∕ que o mundo acabe∕ tudo já era ∕não há quem escape∕ oi galera‖. O gesto irônico do poema toma ares de humor ao trazer para seus versos, em letras fantasiadas de juventude (algo que lembra os anos 60, com os grandes pingos nos ―is‖ e coraçõezinhos como acentos), signos que tecem pela enumeração o paradigma do escatológico nas gírias em língua inglesa, todas oxítonas, ―shit, fuck, trash, crap‖, inseridas no contexto da tv – ―entre um zap e outro zap‖ (―zap‖ aparece como gíria também, no sen-


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Poesia A SOGRA DO DIVINO Zeferino Masingue - Malawi

Não Mais Sob a Árvore de Bô

Jorge Lauten-Timor Leste Vodu em Port-au-Prince Amin Nordine-Moçambique E tremeu vodu de xicuembo a morte

Tremeu a pena de Aimé Cesaire na agonia da dor Cai chuva sevícia profunda da poesia A morte veio traiçoeira em cada esquina Em forma de diamante dessolvida Subiu as escadas, os céus e esgrimiu verde De alegria…e nas folhas das palmeiras O feitiço de piranhas espalhando o de Port-au-Prince veneno Espezinhou pisar o coração dos Haitianos que dormem morte Rãs saciadas são bodes NOSSOS respiram morte Vão descendo as pragas aos nossos Oh morte maldita pulsando no peito do Haiti OLHOS Ah morte, olha que o povo do Haiti já ganhou coragem de morrer Vão sorrindo a LIBERDADE Oh Jean-Claude Duvalier venha com o que E nós? Frustrados, sorrimos a chuva de gotas espoliaste reparar devolver a vida dos haitianos escassas na vala comum de eternos abraços A morte estava escondida na terra que tremia SOMOS homens de caixas vazias dança Propalando, vão deixando destino de xicuembo vodu Povo de SALAMANDRAS diambulando Jogava bola e ria-se do futuro dos meninos de Port-au-Prince pelos… Se não te escondesses no vento Esgotos a cidade terrena O povo do Haiti faria justiça com as próprias mãos Vão criando bois da raça ratazana Desavergonhada morte gozando na cara de E eu? toda gente Deixaram-me a sorte da sogra do Maldita morte com sede de viver à custa dos devino outros Recolhendo o lixo na baixa da CIDADE Milhentas vezes, desapareça da face da terra O povo do Haiti já morreu o suficiente e EU? Presidente de moscas Ah, o povo do Haiti é superior do que a morte No meu mandato pastei mosquitos… Oh, quem morreu aquela morte foram os vivos Ela apertou o peito e a garganta da tristeza Oh Aimé, como o poeta pode engolir tamanha sacanagem? Oh sangue revolto dos mares das Caraíbas Oh Cesaire, levanta-te firme e vem comigo Combater a morte Oh dor, dor vou fazer-te arma José Luís Tavares-Cabo Verde Oh morte, um dia te iremos pegar com a mão na botija O rio explode. Quando as mãos Morte tenha cuidado dos anjos vêm varrer a névoa. Não torne mais a fazer tais besteiras Ungido primeiro da tristeza, Cobarde, apanhaste o povo do Haiti distraído escurece-lhe a voz nas locas onde canta o pez.

O rio quando antilira

VIAGEM DE SONHO

Escuto-lhe os decibéis da ira quando por uma tarde navegável solta seu manancial de gritos: já não é essa mansidão que ronronam os líricos, mas um aguilhão saltando às têmporas.

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Lopito Feijoó-Angola

Não mais a pureza de Ramahyana o incenso e o sândalo os pés nus nas pedras do templo eles comerem na minha mesa na velha casa de Dili não mais me sentarei sob a árvore de Bô

Um homem nunca chora José Craveirinha -Moçambique

Acreditava naquela história Do homem que nunca chora. Eu julgava-me um homem. Na adolescência meus filmes de aventuras punham-me muito longe de ser cobarde na arrogante criancice do herói de ferro. Agora tremo. E agora choro.

Mar e margem amparam o fragor que leva o desalinho às vísceras. Na máquina do poema é lenta a combustão que devolve o tejo ao afago que tantas metáforas sussurrou aos zelosos funcionários da musa.

Sou inocente bolinha de sabão viajo contente rolando bem no ar contemplo amiguinhas querendo conversar com um solitário e perdido balão incolor

Não há, porém, métrica que cinja a voz de um rio quando suspira nas entranhas avivando um passado que é cisco na memória.

Voo e vou em primeiro lugar tentar o sol tocar depois a lua beijar e com sonhos ao mundo dos homens regressar!

Como um homem treme. Como chora um homem!


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Entrevista

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| Por Amosse Mucavele

“Um dos erros que ocorrem no Brasil é que a literatura é elitista. Acho que o mesmo fato deve acontecer com nossos irmãos africanos.” Eis a difícil missão de conversar com um homem que alberga mil homens no seu imaginário e na sua visão do mundo, este dividese na âncora do poeta, nas cores inatingíveis da beleza das paisagens deste mundo que se chama viagens sem fim onde o fotógrafo que se aconchega nos seus tempos livres e percorre nelas, na retórica do docente universitário, e nas constantes reportagens do jornalista, nas publicações do editor, e no empresário que não treme a odisseia da crise mundial para investir na divulgação da literatura do seu país e dos outros além-mar e fronteiras. Sentado na esteira debaixo de uma acácia em Maputo dialogo com o Nilton Pavin em São Paulo. Assim iniciamos:

Na infância qual foi o seu primeiro contacto marcante com com a escrita? R.: O primeiro livro que li foi Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach. Foi no final da década de 1970 e o que mais despertou minha atenção foi como o autor, Bach, trabalhou as outras maneiras da ave se movimentar sem a necessidade de voar. Ele chega à conclusão de que voar não é o único recurso que a ave tem de se movimentar. No decorrer da história, Bach se apaixona pelas “acrobacias” das aves.É uma obra que descreve intuições sobre liberdade, aprendizagem e amor. Marcas presentes em quase todas as minhas obras. Além de Fernão Capelo, li Machado de Assis, Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles, Pablo Neruda – que me influenciou com relação ao amor, à solidão e à depressão. Também li Ceci e Peri, romance de José de Alencar e vários livros sobre a Ásia, especialmente o Tibete, a Índia, o Nepal e os Himalaias. Não posso esquecer que Vinícius de Moraes sempre está ao meu lado. Que espaço os livros ocupam no seu dia-a-dia? A leitura de alguma forma influência no seu trabalho e no seu quotidiano? R.: Sim, a leitura influencia – e muito – meu dia a dia. Pois, como jornalista, professor universitário, fotógrafo e escritor, preciso saber o que acontece no mundo a cada segundo. E muitas vezes já utilizei alguns casos para ilustrar meu trabalho de escritor. O escritor peruano Mario Vargas Llosa certa vez disse o seguinte ”a minha passagem pelo jornalismo foi fundamental como escritor” Como porta-voz da sociedade você percebe na literatura ou no jornalismo uma função definida ou mesmo pràctica? R.: Eu concordo com ele, e não sou ninguém para discordar deste mestre. O jornalismo influencia e muito no meu trabalho, ora colaborando com a escrita, ora com histórias e personagens.

- Quais são os autores imprecindiveis nas sua leituras como escri-

tor e leitor? E quais nunca o abandonam? R.: Eu procuro ler autores antigos e atuais. O mundo mudou, as pessoas mudaram, a maneira de se comunicar mudou e a linguagem também passou por várias transformações. Por isso, recomendo aos jovens hoje, que leiam autores antigos e atuais, principalmente os africanos, os portugueses e os brasileiros. Temos muita gente boa: Cecília Meirelles, Gregório de Mattos, Florisvaldo Mattos, Nizardo, Sepulvida, Helena Verdugi Afonso, Amosse, que pertence à nova geração. Há vários outros que prefiro não citar porque a lista vai ficar enorme. A única observação que faço questão de lembrar é que ainda oiço Vinícius e Bossa Nova até hoje. Sou fã. Neste mundo cada vez mais globalizado, tão afeito ao imagético, com um nível elevado de analfabetismo, e com uma diversidade cultural abragente. a) O que te leva a dedicar-se a arte de escrever numa era onde ler um livro não é a palavra de ordem? R.: Eu acho que cabe a nós, escritores, poetas, jornalistas e demais amantes das palavras, rimas e histórias incentivarem os jovens a ler. Sei que é uma tarefa difícil, mas não impossível. Por exemplo, eu dou aulas para a pós-graduação nas universidades e é raro encontrar “alunos” que têm o hábito da leitura. Em contrapartida, meu filho Lucas, com apenas 18 anos, já leu mais de cem obras. Minha esposa lê, pelo menos, dois livros por mês.


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Eu acredito que este problema é cultural. Se passarmos o hábito aos jovens de ler, eles irão aderir. Não esqueça que temos um adversário feroz contra nós, que se chama governo, pois para eles, é melhor que a população seja cada vez mais ignorante para eles permanecerem no poder. Essa é uma luta desleal entre nós, amantes das letras e das palavras e quem manda no povo. Páreo duro. O escritor angolano José Agualusa disse certa vez que ”o escritor africano deve sair do gheto”, sendo o escritor a voz dos que não tem voz, a sua intervenção social não só deve cingir-se a escrita num país com baixos niveis de leitura, o escritor deve se expor na sociedade, comunga da mesma ideia? o ser escritor compensa? E qual é o papel do escritor? R.: Um dos erros que ocorrem no Brasil é que a literatura é elitista. Acho que o mesmo fato deve acontecer com nossos irmãos africanos. Eu luto diariamente para levar a poesia e a literatura para o povo. Estou a desenvolver dois projetos para disseminar a poesia e a literatura portuguesa, africana e brasileira para todos os países de língua poetuguesa. Precisamos valorizar nossos autores e nossa lingual

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Que obra de um escritor de qualquer quadrante do mundo que os moçambicanos deviam ler urgentemente? E como formar leitores? R.: Eu recomendo “Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século”, seleção de Italo Moriconi. Com relação a formar leitores é o que citei na questão anterior, ou seja, cabe a nós poetas e escritores difunfirmos a literatura e as poesias nas classes escolares municipais, estaduais, realizar saraus culturais para o povo, promover encontros de poetas – novos e antigos – africanos, brasileiros e portugueses. Depende de nós e, claro, da boa vontade dos nossos governos, que permencem inertes em relação à esta situação.

Cartas & Comentários Revista Literatas: Uma pedra no charco Isaquiel Cori*-Angola Com o voluntarismo, a generosidade e o espírito de partilha que lhe são próprios, o poeta e amigo Frederico Ningi colocou-me na rota de distribuição da versão online da revista Literatas. Da literatura moçambicana conhecia os velhos escritores revelados e consagrados no período anterior ou imediatamente posterior à independência do país, com realce para Noémia de Sousa, José Craveirinha, Luis Bernardo Honwana. A antologia panorâmica do conto moçambicano “As Mãos dos Pretos”, de Nelson Saúte, editada pela Publicações Dom Quixote, permitiu-me alargar e actualizar esse conhecimento aos autores que desabrocharam nos anos posteriores à independência, até à década de 1990. Nomes como Ungulani Ba Ka Khossa, Albino Magaia, Paulina Chiziane, Marcelo Panguana, Suleimane Cassamo, e outros, passaram a integrar o meu imaginário com os seus contos escolhidos por Nelson Saúte. Ora, de 2000 para cá havia um vácuo no conhecimento do que se passava em Moçambique em termos literários. O que se estava a fazer? Para lá do grande vulto de Mia Couto, que novos autores emergiram? Quais eram as suas preocupações temáticas? Como enquadravam, literariamente, a nova sociedade moçambicana, emergida no pós-guerra? Aparentemente tão próximos, pela história e pela língua, Angola e Moçambique parecem culturalmente distantes: não existe um intercâmbio directo de obras culturais. O que se conhece de um lado e do outro é o que é publicado em Portugal. A revista Literatas surgiu precisamente como uma pedra no charco, uma iniciativa de jovens moçambicanos que aproveitam as facilidades proporcionadas pelas novas tecnologias para quebrar barreiras e ligar criadores da língua portuguesa espalhados pelo mundo. Com a Literatas Moçambique está mais junto a nós: na revista sentimos o pulsar e as inquietações dos novos autores e vislumbramos um pouco da dinâmica criativa e espiritual do país. Mas também nos vemos ao espelho, pois, volta e meia, lá está um autor angolano nas suas páginas, alguns dos quais em autêntica revelação, a fazer jus ao ditado de que “nenhum profeta faz milagres na sua própria terra”. Parabéns a Nelson Lineu, Eduardo Quive, Amosse Mucavele e a toda a equipa da Literatas! Que o vosso exemplo de empreendedorismo frutifique por muitos e longos anos. _________________________________________________________

A língua nos une, mas continuamos muito distantes um do outro, em termos globais qual é o estado cliníco da literatura de expressão portuguêsa? e o que a literatura do seu país recebe dos outros quadrantes lusófonos,concretamente os africanos, refirome a literatura moçambicana,angolana,guineense,cabo-verdiana, etc. R.: O que posso dizer é que pouca gente conhece a literatura africana, por isso estou desenvolvendo este outro projeto para levar a literatura africana para o Brasil e Portugal; levar a de Portugal para o Brasil e a *Escritor e Editor de Letras do jornal angolano Cultura África e levar a brasileira para a África e Portugal. O que quero dizer, é que deve haver um intercâmcio cultural entre os países de língua portuguesa. Temos que valorizar nossos autores, nossa cultura e nosso povo. Por isso escrevo para todos, não só para a classe elitizada e costumo doar boa parte da minha edição. Olá, Se em Moçambique, Angola, Cabo-Verde, São-Tomé, Timor Leste, Boa tarde. etc., o grande problema que cruza o caminho do escritor é encoConheci essa revista através de um amigo aí de Moçambique. Recetrar uma Editora onde possa publicar o seu trabalho, e em seguida alguém que compre, e lê a mesma, creio que em Portugal e no bi um número dele e alguns , aleatórios , de amigos daqui do Brasil . Brasil acontece o inverso, a tanta facilidade de publicar.e com Mas , como disse , foram números aleatórios. E como fiquei encantaisso não corre-se o risco de ser ter muita obra imatura nas prate- da com o trabalho gostaria de receber os outros números e continuar leiras? Ou mesmo por parte dos escritores consagrados publica- recebendo os futuros. Acho o trabalho de vocês maravilhoso rem livros de auto ajuda? e gostaria de poder continuar a degustá-lo. É possível?

Dora Rosa-Brasil

Aguardo resposta e mais uma vez: Parabéns pela belíssima e impor-

R.: Acredito que você tem razão, mas a vida de escritor no Brasil também não é fácil. A editora tem a sua parte, o distribuidor tem a sua par- tante obra para a literatura !!! te, a livraria também. Pergunto: o que sobra para o escritor? É possível Abraços viver de literatura no Brasil? Infelizmente, não. Dôra


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Conto contigo Uma estória do impossível

Lenha que faz muito fumo não arde. (Provérbio zambeziano)

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espanto foi tremendo, todos e todas abalaram-se, cabisbaixos, admirados, melancolias mistas povoaram os sentidos, mas ninguém, ninguém teve a ousadia de usar da palavra, o silêncio ia putrificando-se no abismo da contemplação. Todos, de olhos abertos olhavam na mesma direcção, aliás, na mesma emoção. A mulher não era bela, era, sim, realmente, muito bela, perfeição sublime, eloquentes superfícies carnudas. M‟zua, como era seu nome, pela forma que conseguia despropositadamente derreter os machos corações alheios, ficou conhecida por Japone Arijuane-Maputo M‟zua. Nome este, que na língua local designava sol, M‟zua era realmente uma fonte na vida daqueles que nela se exponham; de motivação, disposição e todos outros adjectivos que perpetuam o bom estar. M‟zua era por excelência pertença de Nibondhé, ou por outras, Nibondhé era o dono do sol, dono, sem propósito machista, mas sim, dono! Como que tem uma propriedade, assim era a relação do casal. Pela forma tímida que o caracteriza, e um passado isolado de convívios, tornava o mais meigo e amoroso; ela era esbelta, alegre, com cabelos a pousarem-lhe a cintura, pele clara e macia, algo inédito no povoado. Nitidamente altiva do que ele, posição essa, que parecia ser ela à autoridade, mas isto não passava do efeito que a sua formosura causava nos outros. Não tenho precisão exacta do ano, mas provavelmente, sucedera a muito, muito tempo, se provavelmente questionasse-se o próprio tempo, nem ele diria exactamente, mas o certo é que isto deu-se no interior de Moçambique, concretamente na actual província da Zambézia. Numa dada povoação, onde morava um jovem, pelas aparências, forte, mas fraco moralmente, Nibondhe, esteira, na usual língua do povoado; um apelido que colou por este muitas das vezes, em vez de estar a brincar com outros meninos, pregar-se na varanda, sentado na esteira que a dona Palmira, sua mãe, fazia questão de sempre lá estender. Nibondhe ficava horas ali, a fitar um grupo de meninos entretidos nos afazeres típicos da idade, ali, bem perto da sua casa, onde localizava-se uma frondosa mangueira, que servia de um verdadeiro parque de diversão. A pequenada adorava passar horas e horas naquele parque, usufruindo a boa vegetação da natureza. Nibo, como era o seu diminutivo, nunca foi de partilhar diversões, sempre metido na sua agudeza timidez, limitava-se só e sozinho na varanda; esbugalhado na contemplação do vaivém doutros meninos, em autêntico festival de diversões. Mal ou bem que o galo entoasse o hino, o despertador fiel do povoado; os mwanamwana, como se chamavam as crianças por lá; faziam-se presentes na mangueira; a mangueira, uma espécie de creche natural. Na época das mangas, os meninos fazia dela um verdadeiro internato, quase que por nada retiravam-se do local, a não ser por uma coerção paternal. Mas, este espectáculo todo; era realmente um espectáculo para o Nibo; sua varanda autêntica plateia, onde manhãs e tardes assistia o desenrolar de infâncias alheias. Nem a sombra, muito menos as mangas, o atraiam para o local, fitava somente; há quem dizia que as comia com os olhos. A dona Palmira, a sua única amiga e mãe, sempre o incentivou, para com outros meninos brincar, mas o esforço era muita das vezes feito, água abaixo, por vezes ela subia o tom, disparavam um punhado de palavrões, mas sempre as balas saiam da culatra. Os tempos foram passando, o sozinho Nibo, nunca tentara por maneira alguma ter ou mesmo fazer, no mínimo, um amigo. A infância correu-lhe sem lembranças amigáveis, mas já na adolescência, com à curiosidade a sair-lhe por tudo e todo lado que é corpo. Viu-se na imanente obrigação ter um amigo, um pelo menos; mas, como sabem, a agudeza da timidez o repelia, mas o atrevimento alheio o acudiu, como diz o velho ditado: “se Maomé não vai a montanha, a montanha vai ao Maomé”. Veio o Medho, um dos que fez à infância nas vistas do Nibo; fizeram-se dedo e unha, inseparáveis, Medho quase que reviveu o sozinho na varanda, apresentou-o, já na adolescência, a todos que seriam seus amigos de infância, se ele tivesse uma; mas, como não há pior perda que a do tempo, o Nibo dificilmente socializou-se, os recém-amigos, ensinaram-lhe a caçar, a pescar, a brincar, as tais obrigações do povoado; mas nitidamente a infância carente sempre rompeu o presente. Devagar se vai longe, nunca é tarde, o tempo atarefou-se de o recompensar o tempo perdido. A mangueira: o jardim-de-infância, fez-se o dos namorados, quando todos regressavam duma labuta, ali ficavam, pedindo carinho, água e outros mantimentos de harmonia espiritual há suas companheiras, logo a tarde juntavam-se todos em convívios amoroso, mas para o Nibo, só e só, e sempre vinha a dona Palmira para acarinhá-lo, os amigos o zombavam, zumbavam tanto, que ele começou andar foragido do convívio, que na sua maneira de ver, já começara à não ser amigável o companheirismo. O zombado exilou-se na seu característica infantil. Agora mais sozinho do que antes, executava as praticas colectivas individualmente só. Um desses dias quando o Nibo vinha da pesca, a inimizade já em extremos contornos, irmão mais novo de um dos ex-comparsas, o agrediu e arrancaram-lhe toda faina. Levou muito tempo para voltar a casa, quando chegou ficou tempo esperando o regresso da mãe, quando a dona Palmira fez-se nos aposentos, contemplou o rosto choramingante do filho tombou na mesma condição de vítima.

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Feitos os queixatórios, dois vultos seguirão de braços dados, ao atalho que dava à casa do Medho, o guião que daria acesso a um dos protagonistas do vandalismo. Quando lá chegaram, já com o discurso de esclarecimento do Medho concluído, a dona Palmira, que nunca levantara mão para o seu Nibondhe, fê-lo pela primeira vez, toda irritada, puxou as orelhas do filho, enquanto os presentes zombavam, engraçadíssimos, atirando piadas de masculinidade. A mãe irritadamente rematou, que deixou os presentes mais cómicos. Quem é aquele miúdo para você dar-se por vencido…? Com voz trémula. Devido o suor, a cara mostrava-se mais húmida que nas manhas que acorda para lavá-la. Realmente o tal protagonista era cinco anos mais novo do que o seu filho, mas, mais activo e esperto. Com a mesma irritação, a mulher desapontada, disparou olhando nos olhos do filho: da próxima vez que alguém afrontar-te, devolve-o! Nunca levar desaforos contigo, muito menos para casa. Mas a idade que se ensina essas coisas não era aquela, o Bondhe já se fazia homem, os 18 anos já brilhavam no rosto; e a ideia de não conseguir, mesmo por força maior, construir uma relação, seja ela de ambos sexos ou opostos, era aqui realmente o afligia e tornava-o cada vez mais aborrecido quando dava de frente com outros, já jovem da sua idade, acasalados. Acredita-se que ideia partira de um sonho que este tivera depois de muita solidão, horas e minutos; dias e noites; só e sozinho, isolado no destino da sua condição. Fechou-se, quase que por completo, no seu mundo, onde as coisas eram assim como elas aparentavam ser; até do convívio com a sua mãe absteve-se. Dedicouse, arduamente, dia e noite em afazeres pessoais. Primeiro começara por fazer-se na floresta, e lá escolheu a árvore mais frondosa, que apresentava os troncos mais firmes e aprumados, abateu e levou o tronco para um lugar mais próximo da sua casa. Ali ficava horas e horas, esculpindo o tronco da melhor forma possível. Ninguém na aldeia sabia e poderia saber do seu trabalhoso ofício, era assim que mandavam as regras da profecia obtida dos sonhos, tinha de ser trabalhosa e oculto. Quando dava-se tempo de descansar, sentado na esteira da sua habitual varanda contemplava os seus ex-efémeros amigos, já não crianças em namoricos; quando os contemplados o viam, atiravam-se logo aos berros, berros e mais berros. Era assim, todos os dias mesmos berros, a dona Palmira já sem formas de intervenção, só lamentava a adversidade do seu único filho. Mas Nibo, andava optimista, realmente a labuta com o tronco o distraia bastante, era, verdadeiramente, o seu amigo e amiga. Um desses dias, pela fadiga que apresentava ultimamente, a mãe o inqueriu, no sentido de saber no quê ocupava-se tanto, para tal fadiga? A resposta foi nada, nada! Pois ninguém podia, nem por milagre, saber o que ele fazia tempo todo. Num dia, lindo com o chilrar dos pássaros a embalar a harmonia, o sol quente, as nuvens em total desaparecimento. Em época de mangas, todos jovens do povoado estavam sentados ali na mangueira frondosa, cada um com o seu pare, como de hábito. Deslumbraram-se de repente com Nibo abraçado com uma tal mulher que o silêncio logo habitou o lugar, ela, firme, linda para o além da beleza, com um sorriso já mais visto. Ficaram ali parados de beijos e carícias com o Nibo todo bem activo e perfumado. Ninguém entendeu como tal coisa podia suceder, pensarão todos que estivesse de sonho profundo, mas, mesmo se fosse, não queria despertar por nada. A contemplação era objectivamente verídica, o Nibo, estava sim, ali e acompanhado com a mais e das mais bonitas mulheres, que nem pelos sonhos ninguém, mas ninguém, almejava chegar a perfeição semelhante. A notícia correu em mares de admirações, em curto tempo o povoado todo ficou avisado. Feitas as indagações a mulher viera simplesmente de uma madeira, na qual foi a ocupação dos últimos tempo do Nibo. Os outros rapazes a ver a tal mulher desfizeram-se das suas, e seguiram logo a floresta, mas quem, primeiro não teve o sonho, dificilmente concretiza alguma coisa.

Poemar Odete Semedo-Guiné Bissau Poemar é amar o mar Poemar é revestir o ser Com o próprio pensamento É trazer à superfície O subconsciente É ser vidente É ser viandante É amar a dor E dar calor Ao frio da noite. Poemar é dar prazer ao ser É estar contente Por poder amar E poemar é amor Poemar é amar Quando ao luar O mar e a mente se entrelaçam Quando a dor e o calor se confundem… Poemar é amor

É amar É mar E é dor também


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O passo certo no caminho errado

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Africanidades

Os nomes e os feitos Das literaturas identitárias à identidade da literatura Nelson Lineu - Maputo

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que nos identifica são os nomes ou os feitos? Vemos nas placas de identificação das ruas, avenidas, praças entre outros empreendimentos nomes e os feitos. Não obstante o nome estar mais visível pelo destaque a que nesses casos é dado. O nome possui significado pela convenção, em nenhuma parte dele tem significado se considerado separadamente de todo, como escreveu Aristóteles.Esse significado, quando a pessoa, já perecida acaba existindo também convencionalmente chamamos de obra. Após a morte, falam mais dos nomes ou feitos? O que acontece é que temos que fazer algo em vida notório para sermos lembrados, infelizmente nem sempre tem sido coisas boas. É só falar “Só sei que nada sei” para sabermos que estamos a falar do Sócrates e , basta vir-nos a mente a terrível imagem do 11 do Setembro para nos lembrar -mos do Bin Laden. Essa Obra (feito) na sua lista também entram os filhos, descendentes a eternizar. Outro factor não menos importante a tirar dos escombros são as mães que seguindo o critério passam na maior parte dos casos despercebidas, já que com acordos sócias os apelidos são masculinos, pessoalmente duvido se estava uma mulher na hora do acordo se estava é porque o machismo já estava implantado á muito. “ E tudo o quanto pedirdes em meu nome eu farei, para o pai seja glorificado no filho” João 14:13-14. Falando do nome também já estamos falando dos factos. O que os parentes dão continuidade o nome ou os feitos? Sem querer falar dos artistas que as suas obras muitas vezes têm a ver com o dom, mas podem muito bem dar continuidade divulgando a obra e o nome. O que os liga são os nomes ou feitos? Sendo o nome ou feito uma causa “ não basta que seja pura e justa a nossa causa é preciso que a pureza e a justiça exista em nós” como em versos escreveu jorge Rebelo Creio que antes da escrita os seres humanos já se faziam valer da imagem e dos sons para denominar as coisas e seres. Nascemos sem nome e encontramos um cá na terra que nos fazem abraçar sem a possibilidade de escolha, mas os feitos (actos), independentemente de ser ou não nossa vontade respondemos por nós seja qual for a consequência.

Garrafas Claudio Daniel-Brasil Juntar as garrafas na prateleira entre aranhas e arames, novelos de barbante e martelos. Empurrar as caixas de pregos, os vidros e latas de tinta para colocar os olhos. É preciso esquecer os mapas, cadarços, jornais velhos. Queimar fotografias, lembranças, almanaques farmacêuticos. Afastar um pouco as caixas de papelão, para depositar o nojo. Empilhar, junto às revistas, os ossos, palavras e ódios. Deslocar toda sombra, que fere como um ácido. Acender o cigarro no maçarico, cuspir catarro com alcatrão e soletrar, com a voz ainda trêmula, as sílabas abertas da navalha.

Victor Eustáquio– Portugal

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ão subscrevo a ideia de que exista literatura africana. Como não subscrevo a ideia de que existam outras literaturas sitiadas por fronteiras geográficas. É certo que as narrativas constroem -se como representações do Mundo que olhamos e vemos. Mas as afectividades culturais, sociais e porventura políticas que cada autor expressa, mesmo as de militância, devem aspirar à universalidade. É que catalogar essas representações como manifestações de um determinado espaço circunscrito mais não é do que tornar a literatura refém de muralhas, fazendo o elogio de uma política cultural identitária, a mesma que dividiu o Mundo e em que se fundaram tragédias como o eurocentrismo ou a conflitualidade NorteSul. A literatura é património comum da Humanidade e deve ser vista como africana enquanto e apenas indicador da representação cultural que faz, o que a enriquece, pela sua particularidade, como deve suceder igualmente com qualquer obra de qualquer outra parte do mundo, sempre sem perder de vista o princípio de que a criação artística tem de ter uma vocação universal. Só assim é possível entender e aceitar a diferença, só é assim é possível combater a intolerância para que também, na literatura, não se repita a história.

O Viajante 100 Sono Amosse Mucavele-Moçambique

Ao Eduardo Quive

Há gritos que o tempo e as suas garras não conseguem calar, muito menos apagar o fogo que branda no universo deste medo que se chama morte. Desordenado, num espaço descalço de construções verticais da felicidade que mantém a metáfora das asas coladas na estrada cicatrizada de buracos de sangue, empoeirada de lágrimas costuradas por uma agulha com linhas de tristezas no corpo do destino incerto. Onde o medo invade a vida privada dos passageiros ensardinhados no machibombo. A viagem continua profunda e longa, com vozes a apedrejar a chuva em pleno florescimento agreste do nevoeiro que desafia a consternação do chicote das abelhas ensurdecedoras. E para melhor içar esta viagem no limbo enxertado ao modus vivendi das árvores do bosque e da toponímia da estação que se segue. O último suspiro de alívio ampara a alegre dissertação do viajante arquitectado pelo náufrago do cansaço.


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Conceição Lima Versão de Deserto

Zálima Gabon Falo destes mortos como da casa, o pôr do sol, o curso d‟água. São tangíveis com suas pupilas de cadáveres sem cova a patética sombra, seus ossos sem rumo e sem abrigo e uma longa, centenária, resignada fúria. Por isso não os confundo com outros mortos. Porque eles vêm e vão mas não partem Elês vêm e vão mas não morrem . Permanecem e passeiam com passos tristes que assombram o barro dos quintais e arrastam a indignidade da sua vida e sua morte pelo ermo dos caminhos com um peso de grilhões. Às vezes, sentados sob as árvores, vergam a cabeça e choram. Erguem-se depois e marcham com passos de guerrilha Não abafem o choro das crianças, não fujam Não incensem as casas, não ocultem a face Urgente é o apelo que arde por onde passam Seus corações deambulam à sombra nas plantações. Por isso não os confundo com outros mortos apaparicados com missas, nozados, padresnossos. Por remorso, temor, agreste memória Por ambígua caridade, expiação de culpa aos mortos-vios ofertamos a mesa do candjumbi feijão-preto, mussambê, puíta, ndjambi. Para aplacar sua sede de terra e de morada Para acalmar a revolta, a espera demorada. Eles porém marcharão sempre, não dormirão recusarão a tardia paz da sepultura, o olvido acesa sua cólera antiga, seu grito fundo ardente a aflição do silêncio, a infâmia crua. Eis porque vigiam estes mortos a nossa praça seu é o aviso que ressoa no umbral da porta na folhagem percutem audíveis clamores a atormentada ternura do sangue insepulto.

Trazido não sei por que apelos, urgências Vieste impugnar o momento que me cerca. Demora – conclamas – a clara voz em minha boca. Peço-te porém que repares: não agonizam dunas nestes campos. Aqui não jazem ossadas sem registo nem apodrecem espectros de perdidas caravanas. Nenhum trilho foi abandonado e não reneguei Não, não reneguei o nome do pai do meu pai. O meu deserto é a vertical semente de um barco. O areal (seu brilho de nada e de lago) não é senão a metáfora de uma horta talvez uma projectada cisterna. Esta claridade nos olhos do griot cego este reflexo que obscurece a luz do dia não irradia de um céu empedernido – a minha fome não é a maldição do velho deus inclemente. E todavia devora-me a cicatriz da penúltima batalha e tenho por estigma a memória de um longo fratricídio. Mas estou aqui sob este sol que alucina a savana ao meio-dia. Aqui sob este toldo rasgado onde envergo a sede dos meus ossos e perduro sem jardim nem chuva sem tambores nem flauta sem espelhos, companheira do tempo que amarra as minhas veias ao umbigo do poço. Não, nenhum trilho foi esquecido e venero o profano nome do pai do meu pai.

Lenta a vertigem vai esculpindo os murmúrios de um rio incerto – planto estacas em redor da vigília dos meus mortos. Não anuncio. Tardo e não prenuncio reino ou abismo. Não sou mensageira de vãos sacrifícios, épicas derrotas, novos caminhos. Aqui onde o inferno acontece neste lugar onde me derramo e permaneço inauguro a véspera da minha casa. O meu silêncio franqueia o umbral de qualquer coisa.

Inegável Por dote recebi-te à nascença E conheço em minha voz a tua fala. No teu âmago, como a semente na fruta o verso no poema, existo. Casa marinha, fonte não eleita! A ti pertenço e chamo-te minha como à mãe que não escolhi e contudo amo.

Maputo, Cidade Índica A Ungulani Ba Ka Kossa A geométrica harmonia que em ti se alonga projecta a atlântica viuvez da minha casa.

Nascida em Santana, ilha de São Tomé, São Tomé e Príncipe, em 8 de Dezembro de 1961, Conceição Lima aí cresceu e fez os estudos primários e secundários. Estudou jornalismo em Portugal. Em São Tomé e Príncipe trabalhou e exerceu cargos de direcção na rádio, na televisão e na imprensa escrita. Depois da abertura multipartidária no seu país, fundou, em 1993, o já extinto semanário O País Hoje, do qual foi directora. É licenciada em Estudos Africanos, Portugueses e Brasileiros pelo King's College de Londres e possui o grau de mestre em Estudos Africanos, com especialização em Governos e Políticas em África, pela School of Oriental and African Studies (SOAS) de Londres. Foi durante vários anos jornalista e produtora dos Serviços de Língua Portuguesa da BBC, em Londres. De regresso ao seu país, foi produtora e, mais tarde, directora da TVS, Televisão SãoTomense. Presentemente é jornalista freelancer e colaboradora de vários periódicos. Pela Editorial Caminho, de Lisboa, publicou em 2004, O Útero da Casa, em 2006 A Dolorosa Raiz do Micondó e em 2011 O País de Akendenguê.


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Ensaio

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Susanna Busato| Brasil

Os termos que seguem, ―hip rock hop rap‖, situam-se no âmbito da cultura urbana, de rua, e têm uma natureza de rebeldia em suas letras, ecoando o verso 2 na forma sintética, monossilábica, das palavras. O sujeito está inserido nesse universo sem esperança, e no poema os versos 2 e 4 mimetizam o grito de revolta de quem não tem mais esperança: ―ele espera que o mundo acabe‖, ―tudo já era‖ (outra giria), ―não há mais escape‖. Para finalizar o poema, o terrível e mordaz: ―oi galera‖, com o espaço em branco a criar uma expectativa que encontra novamente um termo de gíria, que ironicamente se refere a todos nós, a galera, a chamada ―a da geral‖, numa analogia com a galera dos estádios de futebol, que anda unida nessa imagem da mesmice do comportamento primitivo de que se faz toda torcida. Nós somos essa galera que habita este mundo percebido pelo poema como um lugar de desencanto. ―Tvgrama 3‖ traz de forma mais evidente a temática da negação de um mundo em diluição, da banalização e homogeneização da informação (a repetição sonora desse ―ão‖ desagradável, aqui, é proposital e inerente ao tema que pontuo), elementos que vão de encontro com a situação da poesia nesse tempo de ―amorfonia‖. Ou como um gesto de recusa a que se volta a poesia, segundo informa Augusto de Campos, em resposta à pergunta de Carlos Adriano sobre por que é preciso ―recusar‖. Responde o poeta: Em meu entender, o pior erro que pode cometer um poeta é ceder à chantagem sentimental ou sucumbir a códigos ou convenções, escrever deliberadamente ―para o público‖. O verdadeiro artista deve fazer o que sente que tem que fazer, a qualquer preço. Recusar o sucesso fácil. (ADRIANO, Carlos. ―A arte da recusa‖. http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2822,1.shl acessado em 15 de janeiro de 2011.)O que Augusto de Campos quer dizer não tem nada a ver com um elitismo de produção, uma redução do alcance receptivo do público. O que vem a significar com “ceder à chantagem sentimental ou sucumbir a códigos ou convenções” é justamente evitar modismos, e seguir insistindo na busca do poético da linguagem, como construção crítica. Em “tvgrama 3”, o discurso poético insere-se no âmbito da linguagem e das culturas contemporâneas para deflagrar ali o caos. A ironia e a recusa como elementos semânticos no poema se tecem na relação entre o dado cultural e o dado formal. Poema como imagem plástica da revolta. Como uma poética da recusa, a obra de Augusto de Campos tem se projetado, como os próprios títulos de seus livros mostram: “Não”, “Despoesia”, “Expoemas”, “Viva Vaia”, “Poetamenos”. Títulos e poemas concorrem para um olhar que flagra no trabalho com o signo a dimensão de humanidade de que se forma a cultura, estabelecendo com ela um diálogo intenso, provocador, e ciente de que, para sobreviver, a poesia tem de ser uma “pedra no meio do caminho”, um “vivavaia”, um contra a corrente do mesmo, tentacular, inteligente e irônica: crítica com a linguagem. Uma poesia que, desde o movimento da Poesia Concreta, tem procurado se colocar consciente de seu tempo. É o próprio Augusto de Campos que declara na entrevista concedida a Carlos Adriano, já mencionada anteriormente, que, na relação entre “recusa poética e recusa política”, sua posição não se assume especialmente política, pois ele sente o mal-estar que todo mundo sente diante da insanidade de governos, potentados econômico-financeiros e sectários raciais ou religiosos, que desanimam as nossas utopias de humanidade e nos fazem encarar a sombra de um retrocesso inimaginável em pleno século XXI. John Cage, que se declarava um otimista nato, interrompeu o seu “Diário: Como Melhorar o Mundo, Você Só Tornará as Coisas Piores” por volta de 1982, declarando que a leitura dos jornais o tinha deixado emudecido. (ADRIANO,

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cont.(p.14)

Projeta-se na imagem de um “eu” que fala a partir da dimensão humana de um outro “eu”, carregado de muitos “nós”. Nesse processo de tradução, articula-se a linguagem num outro nível de construção, alimentando-se dos produtos culturais, da interação entre eles, de suas formas, de seus sentidos vários. Cria-se aí um olhar que percebe de modo crítico a linguagem, cuja plasticidade é trabalhada em vários níveis. Na busca por esse traçado, a poesia de Augusto de Campos surge neste contexto e se impõe como um lugar de descobertas dessa matéria plástica de que a poesia é feita. A natureza concreta de sua poesia comunica-se de forma direta com o universo contemporâneo, no sentido de, ludicamente, trabalhar com a matéria, ou seja, a palavra em sua natureza gráfica, e em sua dimensão proxêmica e cinésica. De outro modo: palavra construída a partir de seu material gráfico, de sua posição e relação com outros elementos verbais e não-verbais no espaço da página ou da tela, de seu traçado móvel, cinético, como sugestão, nos poemas impressos, e como dimensão concreta do movimento nos poemas construídos no computador, espaço em que a palavra dinamiza suas possibilidades de sentido e de interação com o leitor. Augusto de Campos, na orelha de seu “Despoesia”, afirma que os poetas (e eu diria também os artistas) insistem “em querer falar ali onde a razão lógica incitaria a calar ante a impossibilidade do dizer”. Uma outra lógica incita e enceta a participação do poeta e do leitor no universo plástico de sua poesia. A palavra insiste, na poesia de Augusto de Campos, em emancipar-se de seu caráter semântico e pragmático para dar-lhe concretude dinâmica e lírica. E talvez eu veja por aí o roteiro para começar a ler aquilo do que a linguagem é capaz. Imaginemos uma escola em que as palavras são ensinadas na sua natureza pura, imagética, em termos de grafia e de som. Revelar-se-á para nós como lugar da troca, da experimentação, um verdadeiro laboratório de criação, como Haroldo de Campos, outro poeta de “campos e espaços”, já idealizara em seus textos e em suas aulas. Promover o diálogo do texto poético com o contexto que habita o homem hoje, evocar seu sentido movente de que se faz o tecido de um dizer as coisas, é viver a dimensão lúdica que envolve um olhar “pós-tudo”, reflexivo e consciente de que a poesia é um “vivavaia” colossal aos aprendimentos fleumáticos difundidos pelos que nenhum apreço têm à natureza artística do mundo, tomado em seu aspecto formal. Ser aluno na escola da poesia de Augusto de Campos é estar disposto ao debate, à reflexão e à criação. É estar disposto a rever os conceitos, pois nada é estanque nesse universo. Ser mutante é o único modo de seguir as lições da pedra de sua poesia, esse símbolo poético que habita conscientemente o universo das coisas, por dentro, e que nessa escola é a mestra que ensina a dizer o mundo. Uma das lições da pedra, via João Cabral de Melo Neto, é a de nomear a realidade por dentro, naquilo que de mais humano seja como matéria incômoda. Não importa. Tudo é matéria para ser ensinada. A realidade aqui tem na poesia de Augusto de Campos o movimento mais crítico, aquele que constrói o ritmo das pulsões humanas. Suas lições são as de recusa a tudo o que for fiel ao controle do “politicamente correto”. Suas lições são as da ousadia e as da experimentação. E assim tem sido desde os tempos do movimento da Poesia Concreta, da qual foi um dos criadores. E assim tem deixado até hoje para nós um legado de consciência da forma poética que vai além dos limites impostos pela linguagem escrita. Assim traço o meu roteiro de leitura da poesia de Augusto de Campos, que me leva, basicamente, para três dimensões: a humana, a lírica e a lúdica. Todas concorrendo para a construção poética. Evidentemente, as três dimensões não estão separadas, uma vez que é a linguagem que as tece. Percebê-las, porém, pode ajudar a compreender os modos como sua poesia pode atuar em nosso roteiro de leitura. Percebê-las pode, também, ajudar a compreender os mecanismos de sua linguagem, sua prática poética, condição necessária para um roteiro de leitura de um aprendimento da poesia a partir de dentro. Ensinar essa poesia é ensinar o caos do princípio, e a descoberta de tudo, do mundo, de nós mesmos e da linguagem.

Carlos. “A arte da recusa”. http://pphp.uol.com.br/ “SOS” é um desses poemas que literalmente “mexem” com a gente e trazem uma tropico/html/textos/2822,1.shl acessado em 15 de dimensão lúdica, humana e lírica, na linguagem e nos elementos imagéticos que pontua. Datado de 1983, foi publicado no livro Despoesia, em 1994 e depois publicado no livro janeiro de 2011.) “Não”, em 2008, no formato digital (CD-rom). Pergunto-me o que me atrai em “SOS”, desde a primeira vez que vi e li e ouvi. Na versão impressa, no fundo negro da página, os versos escritos em letras brancas e em formato circular estabelecem um contraste que se impõe como cenário de um labirinto, que se adensa a partir do verso primeiro, formado Não há guarda-chuva que nos faça ignorar os deploráveis pelos pronomes pessoais em primeira pessoa, em oito línguas. O olho, no entanto, é eventos sociais e políticos que nos acometem diariamente sob a projetado para o centro da imagem circular, num movimento de contração e expansão. Na forma de tragédia. Os jornais de notícias viraram páginas versão para o CD-rom, a tela se pontua pelas letras, que aleatoriamente, se projetam funerárias, histórias de assassinatos coletivos e individuais. A sobre o fundo negro e depois se apagam, para dar início à projeção do primeiro verso em globalização, antevista com olhos favoráveis por McLuhan e que os pronomes aparecem, lidos por uma voz (a do próprio Augusto de Campos), que, Buckminster Fuller (“global village”,“spaceship called earth”), desaceleradamente vai enunciando cada um dos oito, para, novamente, repetir a confirmou o seu lado positivo com a inclusão universal da sequência enquanto o círculo do verso começa a se mover e a rodar no espaço da tela informática e da internet. Mas quando exibiu a sua armação- sobre o seu próprio eixo. armadura econômica, foi mais uma decepção: só universalizou a ganância e a ideologia do lucro, aprofundando o fosso da pobreza entre o Primeiro Mundo e… o resto. (ADRIANO,

E continua:

Carlos. “A arte da recusa”. http://pphp.uol.com.br/ tropico/html/textos/2822,1.shl acessado em 15 de janeiro de 2011.)

Não há para Augusto de Campos, segundo ele próprio declara, “soluções a curto prazo”. Exemplifica ele que nos anos 60 fizera poemas ou “sátiras „políticas‟, segundo ele próprio declara, inclusive depois de instalada a ditadura militar (por exemplo, os “popcretos” e “luxo”, 1964-1965). Em setembro de 1964, no número dedicado à poesia concreta pelo “Times Literary Supplement”, publiquei um epigrama em que denunciava as perseguições que ocorriam no Brasil, jogando com as palavras “goal” e "gaol" (= jail/prisão). Era assim: BRAZILIAN „FOOTBALL‟ 1958-GOAL!GOAL!GOAL! 1962-GOAL!GOAL!GOAL! 1964 - GAOL! GAOL! GAOL! (ADRIANO, Carlos. “A arte da recusa”. http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2822,1.shl acessado em 15 de janeiro de 2011.) Sobre o que ele teria feito de obra “participante”, cita o poema “Mercado”: um ideograma de protesto, um globopoema “em greve”. A arte “política”, “engajada”, etc. é talvez a mais duvidosa das formas de fazer arte. Facilmente desliza para a demagogia sentimental, para os estilemas da retórica de palanque. Arte não é sociedade Primeiramente, o título me levou para o sentido do trigrama internacional, beneficente. (ADRIANO, Carlos. “A arte da recusa”. http:// conhecido como um sinal de perigo ou socorro, usado nas transmissões sem fio pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2822,1.shl acessado em 15 (telegráficas). Posteriormente, meu olhar caminhou para a analogia formal que no poema de janeiro de 2011.) se constrói entre o sinal internacional do “SOS” com as demais palavras do poema, no verso 2, “sós pós após”, e no verso 3, “que faremos após?” , reverberando ou se E continua na sua reflexão sobre o que consideraria obra “participante” em fundindo, já preparando o leitor, já construindo o labirinto da imagem do vazio, na termos dos poetas que exerceram influência sobre sua prática poética: atmosfera hipnótica e centrípeta dos versos que giram na versão em CD-rom e que, na versão impressa, promovem a sensação de movimento na sugestão da forma. O sentido Os melhores poemas de Maiakóvski são os que mostram o seu do isolamento do sujeito vai-se processando visualmente, por via da representação da amor explosivo, o seu alento antiburocrático, o seu anseio de letra “O” ladeada pelos “esses”, e o do pedido de socorro, convencionalmente idealizado renovação não apenas social, mas também implacavelmente pela sequência rítmica das letras, absolutamente ímpares no sistema de comunicação de artística: “sem forma revolucionária não há arte revolucionária”; transmissão sem fio, cuja representação telegráfia (... --- ...) promove a diferenciação os menos interessantes são os cívico-partidários. Os momentos acústica do sinal. O poema dá ênfase ao sentido da expressão “SOS” ao situá-la no menos felizes dos “Cantos”, de Pound, são aqueles em que se centro do poema. A formatação do signo linguístico gera uma imagem cujo centro, um círinfiltram resíduos de preconceitos anti-semitas ou em que se culo ele mesmo, vai-se reverberando no desenho dos versos que, em círculos concênvislumbra sua equivocada (embora bem-intencionada) simpatia tricos, expandem-se ou contraem-se no movimento que faço na leitura. É importante pelo fascismo. E os dois são os maiores poetas do nosso tempo observar que, na realização do poema no CD-Rom, a leitura é guiada por outra ordem de que incorporam diretamente mensagens ideológicas em seus movimento, de contração, de fora pra dentro, na seqüência das imagens dos círculos textos. (ADRIANO, Carlos. “A arte da recusa”. http:// concêntricos, ou seja, sempre do exterior para o interior do círculo, no centro do qual pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2822,1.shl acessado em 15 emerge, tomando dimensões maiores, num zoom in, a sigla SOS, girando em círculos. No de janeiro de 2011.) poema escrito, porém, o movimento implicado na formatação dos versos guia a leitura de modo um pouco mais livre, uma vez que o olho tem diante de si todos os versos, escritos A natureza lúdica da linguagem da poesia de Augusto de Campos transmuta-se por via em círculos concêntricos. de um modo particular de conceber o discurso como desvio.


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Ensaio

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O leitor, portanto, promove, na liberdade formal dada pela configuração do texto do poema, uma leitura alinear, ou seja, que não obedece necessariamente a uma direção única. Provavelmente, a direção mais comum da leitura seja a que tem início no círculo externo, em que os pronomes em primeira pessoa aparecem em várias línguas, a saber: “ego” (latim), “eu” (português), “ᴙ” (russo), “ich” (alemão), “io” (italiano), “je” (francês), “yo” (espanhol), “I” (inglês). A ordem em que enumero as palavras nesse verso primeiro é dada a partir do primeiro elemento que vejo no alto da página, seguindo meus olhos os demais elementos no sentido horário. Evidentemente, esta ordem de leitura é arbitrária e segue uma convenção. Iniciar a leitura por outro pronome não faria diferença aqui. Antecipo, porém, que nem sempre essa liberdade é possível, pois o sentido da leitura vai ser dado em outros momentos por meio da primeira palavra com que o verso se inicia, não sendo possível outro sentido para a leitura, nesse caso. Entretanto, verifico que os movimentos circulares podem dar-se no sentido horário e anti-horário, movimentando-se os círculos-versos em direções diferentes. O efeito de sentido gerado por esse movimento é o do labirinto, imagem que se tece pelo questionamento sobre a incerteza do futuro, sobre um “após”, que ressoa como um dado em aberto, representado pela assonância das vogais tônicas abertas acentadas, como vozes internas do sujeito lírico, em: “sós”, “pós”, “nós”, “após”, “pai”, “sol”, “na”, “anoitece”, “voz”. A imagem do labirinto emerge como o lugar do desencanto, evocado pela ideia de solidão, “sem pai sem mãe sem sol”, da não-saída, “na noite que anoitece”, e da mudez, “vagaremos sem voz”. A imagem de um grito se tece ao final, “silencioso” ∕ “sos”. Minha leitura dos círculos concêntricos de que são formados os versos deste poema promove uma imagem que eu traduzo como “cosmoagônica” do sujeito, cuja voz se percebe sem rumo, sem roteiro possível, antecipando o silêncio final, um grito contido, como aquele que Edvard Munch representou expressivamente em seu quadro “O Grito”, de 1893. Não seria sem propósito lembrarmo-nos aqui do poema “póstudo”, de 1984, de Augusto de Campos (“quis ∕ mudar tudo ∕ mudei tudo ∕ agorapóstudo ∕ extudo ∕ mudo”. Este poema enumera ações do sujeito já realizadas no âmbito do desejo e da realização e anuncia no presente “agorapóstudo” do poema, no seu “extudo” (e também no “estudo”, na aprendizagem contínua), duas saídas: a mudança ou a mudez, o silêncio final.

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Minha leitura dos poemas me situam no âmbito daquilo que traduzo aqui, no espaço do poema “SOS”, como o lugar onde o sujeito se projeta numa ideia “cosmoagônica” de si mesmo. A enumeração dos pronomes de primeira pessoa fragmenta a ideia de unidade humana, pelo procedimento de acumulação do sentido (o “eu”) por meio de vários significantes, estabelecendo uma ordem artificial no verso, e concorrendo para a intensificação do drama do homem frente ao futuro incerto, frente à “noite que anoitece”, ao caos e ao nada, mudo, sem pensamento que o guie (“vagaremos sem voz”). No poema em CD-Rom, cada palavra do primeiro verso é dita lentamente, desacelerando a leitura, construindo uma atmosfera de “silêncio”, que, em outras palavras, seria uma atmosfera de mistério, ao criar uma expectativa sobre o que se vai declarar a respeito desse “eu”, com o qual o leitor se identifica. A experiência da recusa na poesia é um exercício que remete à utopia, no sentido de que na palavra se expõe o desejo de ser uma singularidade, de marcar uma diferença, de promover a crítica pela exposição da crise, e de colocar em crise o sujeito e a palavra. É evidente que o exercício poético neste caso deve seguir um rigor de construção para promoverse como elemento de impacto. É assim que ludicamente a linguagem da poesia de Augusto de Campos promove um olhar que, sem ser meramente subjetivo e nem estritamente objetivo, constrói um sujeito lírico capaz de perceber pela linguagem o tom de humanidade de que se reveste o olhar de sua poesia. Nem cerebral demais pela forma, nem subjetivo demais pelo tom humano: a poesia de Augusto de Campos se situa no tom de um olhar que se deposita no seu tempo e constrói nesse gesto um espaço particular, responsável por situar o leitor no centro de um questionamento vital: a morte como recusa ao já feito; o diálogo necessário com a tradição, que invade o espaço do agora e age no sentido de desentranhar a poesia da paisagem de um mundo em crise. Em outras palavras, a palavra é encarnadora do gesto de recusa ao já dito. Finalizo com as palavras de João Alexandre Barbosa, professor e importante critico literário, que afirma numa de suas obras que o exercício de leitura que se faz do mundo “é subtrair da experiência a ilusão da permanência, impondo ao vivido o transitório das imagens capazes de retornar, já transformadas por aquela experiência, como uma outra ilusão: a possibilidade de retorno.” (BARBOSA, 1980, p. 47) Assim é que a poesia de Augusto de Campos retorna: como um exercício de morte, necessário como um procedimento vital para a poesia. Referências bibliográficas: ADRIANO, Carlos. “A arte da recusa”. http://pphp.uol.com.br/ tropico/html/textos/2822,1.shl acessado em 15 de janeiro de 2011.)

Dizer”, de 1983, e “Inestante”, de 1983, de Augusto de Campos, por exemplo, são poemas que também nos oferecem a manifestação de um “eu” que já duvida da vida e da morte, do escrever e do tempo que já não existe (“estellllllinstantelllllljállllllélllllloutrollllllins”, de “Inestante”; “criar ∕ sem ∕ crer”, de “Dizer”).

BARBOSA, João Alexandre. As ilusões da modernidade. São Paulo: Perspectiva, 2005. BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. CAMPOS, Augusto de. Despoesia. São Paulo: Perspectiva, 1994.

Susanna Busato, é poeta e professora de Poesia Brasileira na UNESP (São José do Rio Preto/SP) susanna.busato@gmail.com


SEXTA-FEIRA, 15 DE JUNHO DE 2012

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LITERATAS

Croniconto

Eduardo Quive-Maputo

Dany Wambire - Beira

Éramos crianças Apadrinhados pela fome, Isolados do banquete. De camisetas de umbigo fora Jeans rasgados Mas não era moda, Era a desgraça debuxada Em nosso seminu corpo. Pálidos, desnutridos Enterrados no areal Na roda de matacuzana Em equipas para jogar xingufo Sorridentes brincávamos. Éramos crianças.

e há debate, com que, ultimamente, não desperdiço inteligência nem palavras, é o debate sobre a escassez de mulheres e homens para casamento. Digo, mulheres e homens sérios, pois os contrários existem copiosamente. Para quê depositar argumentos nos factos? Apesar de

mudos, os factos explicam melhor que os argumentos. Entretanto, serão os próprios jovens a pagar a factura, as consequências das suas nefandas caçoadas, da falta de seriedade. E a primeira consequência, eu mesmo o conheço e reconheço, tem a ver com o tempo. Ele será escasso, à medida que estivermos a correr atrás do prejuízo. Aliás, já o meu avô sabiamente me ensinava: quem faz uma vida de rascunho, levará muito ou infinito tempo a passá-la a limpo. E para isso tenho convincentes provas. Ora vejamos. A estória que vou cronicontar. Injustino Mafilhoso era um jovem de muita beleza, livre da feiura comum nos homens de Fim-de-Mundo, mas suprida pelo dinheiro. Era bastante mulherengo, cumprindo as hodiernas e tortas ordens. Diz-se em Fim-de-Mundo que homem que é homem deve ser infiel, ter tanta mulher e nunca ficar com nenhuma delas. Entretanto, na senda dessas nefandas brincadeiras, o meu Injustino conheceu uma moça bonita, apenas comparável à maçã. Mas a miúda tinha a cabeça abarrotada de malcriadez, produto da má educação que recebeu em impropícios cantos, distantes de casa. Porque a malvada jamais apreciara a educação de casa. De resto, Injustino Mafilhoso meteu-se com a moça, corpos encostando-se frequentemente, nu-a-nu. Faziam amor? Sei lá, essa é pergunta de escassa resposta. Sei, contudo, dizer que fazer sexo distingue-se de fazer amor. O acto de fazer sexo é egoísta, virado só para nós. Enquanto o acto de fazer amor é sempre para o outro, o nosso parceiro. Preocupamo-nos com a sua plena satisfação. Então posso dizer, de resto, que Injustino só fazia sexo, ao trocar mulheres frequentemente. Nunca amou a ninguém. E com a supracitada moça, de nome Amarida Sofrimento, Injustino assistiu a contrariedades, antes jamais vistas. A moça nunca aceitou praticar relações sexuais com protecção ou uso de preservativos. Depois, lá ela estava a justificar-se, penosamente: ― O preservativo aleija-me. Verdade ou não, ela acabou admitindo feto a crescer no seu ventre. Aliás, esta era a forma fácil de ela se casar com Injustino. Mas gravidez seria pretexto para convencer Injustino Mafilhoso? Não. Esse pretexto, quase a chegar a motivo, não o convencia a ele. Pois, nos dias que corriam, engravidar não impedia divórcio ou rotura de namoro, aliás, muitas gravidezes surgiam onde não havia nem casamento nem namoro. Sim, parece-me que os homens de Fim-de-Mundo imitavam o canino comportamento: nenhum cão tem a sua cadela certa para sempre, e vice-versa. Não tivesse a família da Amarida remanescente da feitiçaria, única prática de ordenamento social outrora válida em Fim-de-Mundo, e Injustino abandonaria aquela gestante. Pois da polícia não tinha ele medo. E acabou casando com a moça, para o brotar de infortúnios. Injustino passou a receber da esposa pesados insultos. Como quando um médico prescreve fármacos a um doente: uma dose, de manhã; uma à tarde; e outra à noite. Sim, às vezes, Amarida pendurava-se no cimo da casa de aluguer para o insultar: ― Quem é você?! Faz filho você?! Esse filho não é seu, seu ngómua. Certa vez, quando o marido começou, frustrado, a traí-la com Marieva, mulher igualmente casada, ela chegou a ir contar o sucedido ao marido da rival: ― Estás relaxado, não vês que a tua mulher anda com o meu marido?! Incrível! A vítima , que recebia tal informação, mais do que estupefacto, ficou estúpidofacto, pronto para alimentar com o prevaricador violências. Virilências, poder-se-ia dizer, pois aquela violência seria de dois protagonistas com viris características. Sim, eram ambos do sexo forte. Mais do que do sexo masculino, eram do sexo maiusculino.

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Éramos Crianças

A-traidora

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Francisco Júnior

E

éramos crianças, nas pétalas do jardim da vida, açoitados de espectro do futuro em plena mocidade, fecundos na incerteza dos dias, despreocupados com a duração dos tempos, apaziguados de doces canções melódicas do mbalele mbalele, o tana uta lhomela nkata, o banana e outras escondidas onde escondíamos no tempo as memórias do hoje adulto que vivemos, na cabra-cega da vida em que só o dilúvio reina. E éramos crianças, eu e Marcinha, antes do abandono dos inhas, de mãos dadas para o horizonte, de mãos dadas para o além, de mãos dadas no ntumbeleluana atrás da casa de caniço do Mulato, o Miguel, como não gostava ser tratado, escondidos da vergonha do mundo, apossados pela paixão da idade, no coito da paixão miúda. Quem diria que hoje essa menina seria Márcia! E as lindas noites de lua cheia, errantes pelas horas que não as víamos passar, crianças que éramos empoeirados depois do banho forçado às 17 horas, agrupados na rua em pleno 10 da noite e por vezes, duas da manhã nas noites de Dezembro. E éramos crianças, meninos pobres do pacato Patrice que o vimos a ser apossado de gente e de epidemias: sarnas, diarreias, matequenhas, gravidezes e loucuras. Ah! Nostalgia sinto quando nesses tempos navego, quando desses momentos me lembro. O Henrique, filho do velho Fúndjua, o rebelde e reguila que torturava e atormentava a todos com sua porrada, feiura e agiotagem já aos 15/17 anos; das dívidas que cobrava à gente mais nova sem que o devessem; da tareia que deu ao Netinho, este por sua vez, queixava à sua mãe, tia Lalate, que saía à rua com fúria de cão, o Dox da minha casa, morto por vayives da zona, e lutava com o Henrique diante dos aplausos de toda a rua, crianças e adultos arruaceiros, ao estilo do nosso suburbano modo de viver no Patrice. E era um caminho, esse que o Henrique escolhia, das pedradas que deu ao Lopes quando o xingondo se recusava pagar o habitual imposto de circulação pela rua. Um dia, tirou com uma garrafa partida, olho da sua cunhada e afugentou-se para África do Sul, onde se encontra até hoje, supostamente com seu irmão Mathumana, outro conhecido cobrador de tributos. Ah! Lembro-me do dia que ele nos encontrou nos derradeiros momentos do madjokodjoko entre eu e a Helena, sua irmã que, cansada depois de reprovar mais de 3 vezes na sétima classe, optou também pelo jone, voltou depois de um tempo e engravidou do primo com a idade ainda por explorar. Lembro-me do Pala que no madjokodjoko na barraca de chapas de zinco soldado por seu pai, tio Zefanias, já falecido, em que estavam também, o Simone e Netinho, negou de fazer com Helena, a vizinha, queria fazer com sua irmã, Nina, esta que hoje já conta filhos ainda na flor da idade. Nem se quer era problema fazer madjokodjoko com própria irmã, éramos crianças e só entre nós ficou o segredo, no entanto, reféns ao agiota Henrique, que por muito tempo nos chantageava. Lembro-me também, por causa dessa sessão, da má fama que tive na altura por não ter feito a circuncisão. Aliás, lembro-me do quão, Simone, Pala e outras crianças sofreram na tesoura do vovó Banze, enfermeiro que vive na zona quem se responsabilizou por cortar os bichos do pessoal. Simone passou os dias de capulana e andando de pernas abertas saltitando de dor em cada tocadinha que dava no seu bicho. Todos nos ríamos. Não do sofrimento dele, mas da graça que tinha vê-lo naquele embaraço. Mas éramos crianças, na hegemonia dos tempos, vendo tudo a acontecer com a nostalgia que tais factos mereciam na nossa inocência, quando pulávamos de casa em casa pedindo assistir, entre sins e nãos da minoria vizinhança que tinha condições. Quanto a mim, o televisor preto e branco da minha casa, tão pequenininho, mas cabendo a gente de quase toda rua, já tinha avariado. Lembro-me das laranjas da casa da tia Artmisa, a casa que com muito carinho deixavanos assistir as tão amadas por nós, novelas brasileiras, furtávamo-las enquanto saíamos. E éramos apenas crianças! Lembro-me de quando jogávamos a bola defronte a casa do tio Pedro, pai do meu sobrinho mais velho Luís, do Francisco, Rosinha, Amélia, Florêncio, Guilherme, Ngelina, Ngeli, Ngeu, Pedó, Miloca e Mevasse, a chará da tia Vitória esposa do tio Manhiça, o polícia. Mateu 7, a vovó Rosalina pegava na bola improvisada de trapos, quando entrava no quintal da casa, para depois incendiá-la e em jeito de proclamar a sua vitória, chamava-nos e reunia-nos em volta daquela fogueira e repetia o seu sermão que lhe fez merecer o evangélico nome de Mateu 7 “é proibido jogar em frente da casa”. E mesmo doutro lado do seu quintal reside o tio Luís, o que bebia e insultava por toda a rua e algures. Este também nos impedia de jogar ali, embora estivessem connosco os seus filhos, Paíto, Genito, Lulu e Djossefa, filhos das suas esposas, a tia Palmira e Laurinda, esta última já nos cuidados divinos.


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