Alameda dos Pesadelos - Capítulo 1 - O acidente

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Alameda dos Pesadelos


Alameda dos Pesadelos KAREN ALVARES

1ª edição Cata-vento 2014


Grafia revisada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Alvares, Karen Alameda dos Pesadelos / Karen Alvares -- Uberlândia, MG : Cata-vento Editora, 2014. 1. Ficção brasileira 2. Ficção de fantasia I. Título. 14-07185 CDD-869.93037 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção fantástica : Literatura brasileira 869.93037

Os editores agradecem a todos os amigos e colaboradores — pessoas jurídicas e físicas — que fizeram com que a publicação deste livro fosse possível. Todos os direitos reservados. Este é um trabalho de ficção. Nomes, lugares, personagens e acontecimentos são produtos da imaginação do autor ou são usados ficcionalmente, e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou locais é total coincidência. Impresso no Brasil.


Para minha m茫e, que ouviu primeiro essa hist贸ria, quando ainda era apenas um sonho.


“Intervenção divina? Se você acredita que Deus faz milagres, tem que considerar se o Diabo não tem alguns na manga também. Mas quando não se acredita em nada, em quem você pensa numa hora dessas?” Dexter Morgan, Criado por Jeff Lindsay.


O acidente CAPÍTULO 1

A vida é um círculo. Na verdade, acho que tenho uma definição melhor. A vida é um jogo de tabuleiro; daqueles que você joga o dado e anda uma, duas, cinco casas. Se você não aprender o que tem que ser aprendido na vida, vai ser obrigado a voltar ao início e tentar de novo até conseguir. Se você teimar nos mesmos erros, vai ter que voltar ao início do tabuleiro. A vida é só um jogo, afinal. Essa eu aprendi com um menino de apenas oito anos. Aliás, idade nem sempre quer dizer sabedoria... Isso eu demorei bastante para entender. Eu não imaginava que tinha tantas coisas para aprender. Naquele fim de tarde, o céu escurecia. As primeiras gotas, tímidas, começaram a bater no vidro da janela do escritório. Mais uma chuva. Meu pai costumava dizer que a chuva era uma nova chance que a natureza nos dava. Ela chegava e lavava tudo, limpava a nossa alma, para depois começarmos tudo de novo. De repente, essas mesmas gotas pareciam enfurecidas e batiam no vidro com energia, como se estivessem decididas a invadi-lo. Assim é em São Paulo, a “Terra da Garoa”, como a chamam. Mas, para mim, isso está parecendo mais uma tempestade. E das bravas. Aposto que amanhã, no jornal da tarde, as manchetes serão as novas enchentes, e como as pessoas perderam novamente seus pertences, seus únicos bens, com a enxurrada da vez. Limpar a alma? Uma ova. Aquilo era um desastre, não um recomeço. Às vezes me pergunto de quantas pessoas a chuva leva, toda vez que ela aparece, além das mesas, cadeiras e aparelhos eletrodomésticos, também a esperança. Você vê aquelas pessoas chorando na televisão e então se lembra de como a vida é difícil. Parece que não é pra todo mundo, que alguns têm a vida privilegiada, mas eu não acredito nessa bobagem. Todos sofrem. Alguns mais que os outros, mas ainda sofrem. Alguns choram, outros lamentam, outros passam por cima dos problemas, enfrentando-os e seguindo em frente. Mas a vida continua sendo complicada. É assim pra todo mundo. Eu nunca imaginei que a minha enxurrada estivesse passando exatamente naquele dia, naquela noite, levando o pouco que restava da minha vida miserável, quase patética. Engraçado como a gente nunca percebe como essas coisas acontecem. Já passava das seis e meia daquela sexta-feira chuvosa. Eu estava aliviada por ter conseguido escapar do trabalho antes que o cretino do meu chefe me impedisse de sair, mandando que eu resolvesse mais um milhão de problemas antes do final de semana finalmente começar. Mas, sorrateira, consegui fugir antes que ele percebesse o que estava acontecendo, e agora estava me molhando a caminho do ponto de ônibus. Deveria ter escutado meu pai antes de sair de casa pela manhã, quando ele preveniu que


eu deveria levar um guarda-chuva na bolsa. Mas eu nunca escutei meu pai. Trinta e quatro anos, e eu nunca escutei meu pai. Odeio pegar ônibus na hora do rush, ainda por cima com uma chuva desgraçada para melhorar a situação. Atire a primeira pedra quem não odeia isso. O ponto estava abarrotado de gente suada e mal humorada, assim como eu; cerca de vinte pessoas apertadas debaixo de uma cobertura ridícula, onde não deveria caber decentemente nem cinco pessoas, esperando um ônibus lotado que parecia não chegar nunca. Àquela altura, eu já estava encharcada, e nem adiantava mais tentar me espremer debaixo da marquise da loja de departamentos. Resignei-me com minha natural falta de sorte e suportei a chuva forte que batia contra meu rosto. Pior que com aquela chuva, eu nem podia acender um cigarro. E mais tarde, no ônibus, nem pensar também. E em casa, meu pai não gostava que eu fumasse. E eu também não gostava de fumar perto do meu filho. Maravilhoso. Ficaria em crise de abstinência até o dia seguinte. O falatório e o barulho dos carros estava me deixando com dor de cabeça. Queria sumir dali, deitar na minha cama e dormir horas e horas, apenas ouvindo o barulho da chuva – que era a única coisa boa dela. O relógio marcava cinco minutos para as sete da noite, e o maldito ônibus não aparecia. Pior, chegaram mais pessoas no ponto nesse meio tempo, e a impressão que eu tinha era de que todas elas pegariam o mesmo ônibus. O meu, claro. A clássica Lei de Murphy. Era uma tortura só imaginar como seria a viagem de volta para casa, quase do outro lado da cidade. Quando o ônibus chegou, já passava das sete há muito tempo. Lotado, para variar. Claro que não havia lugar para sentar. Fiz o possível para encontrar um canto onde pudesse, ao menos, segurar no cano para não cair quando o ônibus partisse. Porém, de qualquer maneira, acabei me sentindo como uma sardinha em lata. Algo rijo apertou minha bunda; quando eu olhei para trás, vi um office-boy mal encarado, sorrindo para mim com apenas metade dos dentes. Oh, por favor, eu quero ir pra casa! — Filha? — Anh? Perdão, a senhora está falando comigo? — Sim, moça. – abaixei os olhos e notei que uma velhinha de olhos lacrimejantes falava comigo. Ela indicou o banco ao seu lado, perto da janela, miraculosamente vazio. — Esse lugar acabou de vagar, por que não se senta aqui? — Oh, obrigada, senhora. – eu me esforcei para contornar as várias sacolas de supermercado que ela carregava e, depois de algum tempo, consegui me jogar no assento vago, aproveitando minha sorte inesperada. Aposto que outra daquelas só dali a uns dois meses, no mínimo. A chuva batia forte no vidro da janela, já bastante embaçado; esfreguei-o um pouco e consegui enxergar vagamente o meu reflexo cansado; estava pálida, e meus olhos pareciam um pouco inchados e vermelhos. — Você está bem, moça? – a velhinha perguntou ao meu lado, percebendo meu suspiro. Virei-me para ela impaciente, não gostava quando as pessoas ficavam puxando conversa no ônibus, ainda mais quando eu não estava de bom humor, como naquele dia. Porém, engoli minhas grosserias quando reparei bem naquela mulher. Seus cabelos –


brancos em alguns fios, cinza em outros – eram curtos e ralos, e ela era tão magra que dava medo de tocá-la, pois dava a impressão que poderia desmontar. Seus braços eram tão finos, que se poderia fechar a mão ao redor deles e ainda deveriam sobrar dedos. Ao redor dos seus olhos claros e enrugados, havia óculos arredondados e, apesar de aparentar cansaço, ela não parava de sorrir, tranquilamente. — Ah, sim, estou bem, sim. – respondi lentamente, sorrindo pelo que deveria ser a primeira vez naquele dia. — Obrigada, senhora. Ela sorriu com os olhos fechados, cruzou as mãos no colo e virou-se para frente, desviando a atenção de mim. Por alguns instantes, eu ainda a observei, até que virei para a janela e encostei a cabeça no vidro gelado, deixando minha cabeça se perder em pensamentos enquanto o ônibus balançava a caminho de casa. — Merda de cidade, eu ainda me mudo daqui um dia! – alguém exclamou no banco de trás, e então eu despertei de meus devaneios, assustada. O ônibus tinha parado de andar, o que significava mais um congestionamento em São Paulo, algo que não era nada incomum. — O que será que aconteceu dessa vez? — Aconteceu esse nosso prefeito incompetente, isso sim! — Será que foi algum acidente? – a velhinha do meu lado perguntou num sussurro preocupado, que só eu parecia ter ouvido. — Tomara que não. – respondi devagar, sentindo um arrepio, tentando não pensar naquilo. Lentamente, o ônibus voltou a andar. Cinco quilômetros e muito tempo depois, a resposta da velhinha foi respondida. Quase todo o ônibus se debruçou no lado direito do carro para ver o que tinha acontecido; eu tive uma visão privilegiada, já que estava sentada perto da janela do lado direito. Era um acidente mesmo, e parecia bem sério. Dois carros tinham batido, um deles tinha virado do avesso; uma moto estava estraçalhada. A chuva batia no corpo de um homem caído ao lado da moto; não dava para ver se vivo ou morto. A sirene do resgate batucava em meus ouvidos. Pessoas ao redor se amontoavam para ter uma boa visão da tragédia; os carros passavam lentamente, atrapalhando o trânsito. — Oh, que Deus os guarde! – a velhinha ao lado suspirou, fechando os olhos e fazendo o sinal da cruz, desviando o rosto para não olhar mais o acidente. Para mim aquilo era inútil; se Deus os tivesse “guardado”, aquele homem não estaria ali, jogado no chão... Continuei a observar o que tinha acontecido; quando o ônibus estava se distanciando e quase não dava mais para enxergar, consegui ver que estavam transportando o homem acidentado para dentro do carro do resgate. Senti um arrepio na espinha, e passou pela minha cabeça o estranho pensamento de que aquilo não adiantava, ele já estava morto. O congestionamento se desfez no quilômetro seguinte, e quando faltavam apenas dois pontos para eu descer, eu já tinha me esquecido do acidente. Levantei-me, tentando me equilibrar no balanço forte do ônibus, e pedi licença para a senhora ao meu lado para passar. Ela sorriu, ficando de lado no banco, e me desejou boa noite e um fraco “Deus te abençoe”. Eu agradeci, mesmo sabendo que aquilo era desnecessário. Então comecei a abrir caminho entre as pessoas até a porta de trás. Não era tarefa fácil. Puxei a cordinha


um pouco antes de alcançar a porta, e um minuto depois o ônibus parou. Quase não acreditei quando me vi livre daquele lugar sufocante; até mesmo pegar chuva era melhor do que aquilo. Tive que caminhar uns dez minutos na chuva fria e grossa até alcançar, finalmente, a porta escura de ferro que dava acesso ao pequeno prédio de três andares onde ficava meu apartamento. Estava aberta, para variar. Ninguém nunca fechava aquela maldita porta, um dia ainda seríamos assaltados. Entrei o mais rapidamente que pude, fechando a porta pesada atrás de mim, abafando ligeiramente o barulho da chuva. Sacudi-me um pouco, inutilmente tentando me secar, mas estava encharcada. Meus sapatos estavam me matando e tudo que eu conseguia pensar era em tomar um banho e uma generosa xícara de café bem quente. Já tinha perdido há horas minha vontade de jantar. — Cheguei! – gritei à guisa de boa noite, mal vendo direito minha casa, preocupada que estava em fechar todos os trincos da porta. Ouvi o barulho da televisão, uma voz masculina dizendo que o jornal já estava terminando, anunciando a novela. Olhei para o relógio. Eram quase nove horas. — Você demorou, filha. – veio a voz cansada de meu pai. Virei-me, olhando para ele, ao mesmo tempo em que largava as chaves na mesinha do telefone. Meu pai desviou os olhos da tevê, sorrindo carinhosamente. – Parece cansada, Vívian. Eu ri ironicamente. — Estou exausta, pai. – murmurei, largando na cadeira o casaco encharcado, tentando afastar do rosto uma mecha dos cabelos molhados. – Hoje o dia não foi fácil. Meu pai arregalou os olhos. — Você está toda molhada, Vívian! Eu falei para levar o guarda-chuva! Eu o fitei longamente, rindo mais uma vez. Meu pai, Caetano, tinha mais de setenta anos. Seus cabelos, que um dia tinham sido tão negros, estavam agora todos brancos. Ele era mais baixo do que um dia fora, e ainda magro, mas estava longe de ter aquela vitalidade que tinha quando eu era uma menina. Meu pai foi o homem mais ativo que eu conheci. Ele nunca dizia que estava cansado demais para fazer qualquer coisa – fosse trabalhar, sair, se divertir, conversar. Ele sempre estava disposto. Sempre. Se ele dissesse que estava cansado, você devia se preocupar, porque ele estava doente. Era de certa maneira triste saber que as únicas atividades dele agora se resumiam a ir à padaria ou ao supermercado, ou buscar Lucas na escola. — Você parece a mãe quando fala assim. – eu comentei distraída. — Era ela quem dizia quando nós devíamos levar o guarda-chuva para trabalhar. E você nunca levava. Eu não devia ter dito isso. Os olhos do meu pai se tornaram distantes e opacos, e seu tom de voz, ligeiramente mais frio. — As coisas sempre mudam um dia, não é? – ele completou de um jeito seco, voltando a fitar a televisão. Caminhei até atrás dele no sofá e, sem que ele percebesse, dei-lhe um beijo na bochecha, murmurando desculpas. Ele sorriu. Sabia que ouvir aquilo dos meus lábios era quase impossível, e eu não diria duas vezes. — Lucas já foi dormir?


Ele foi para o quarto. – meu pai respondeu, enquanto procurava o controle remoto para tirar da novela. — Deu boa noite e tudo, mas aposto que está naquele maldito computador. — Ah, ele querendo ficar lá, e eu desesperada para ficar longe de computadores. – suspirei cansada. — Bem, eu vou vê-lo antes de tomar banho e falar para ele ir dormir... Porém, eu não cheguei nem a me virar direito. Meu pai tinha finalmente encontrado o controle e mudado de canal para outro jornal. Olhei para a televisão direito pela primeira vez àquela noite. — Você viu sobre esse acidente, Vívian? — Vi, pai... – eu respondi distraída. — Meu ônibus passa nessa avenida... Meu pai comentou alguma coisa sobre o perigo de dirigir naqueles dias, mas eu não estava prestando atenção. As imagens do acidente estavam sendo mostradas, os carros, a moto, aquele homem estendido no asfalto... O jornalista disse algo sobre a pista escorregadia e o motorista de um dos carros estar embriagado, mas eu novamente não prestei atenção. Só conseguia observar as imagens de pessoas vestidas de branco resgatando o homem da moto. Aquela mesma cena que eu tinha visto a caminho de casa. E novamente me veio o pensamento de que não adiantava; ele estava morto. — Vívian? Vívian? – foi só depois de muito tempo que percebi que meu pai estava falando comigo. Olhei para ele distraída e perguntei o que ele queria. — Você não vai tomar um banho? – ele perguntou. — Vai ficar resfriada desse jeito, e depois vai ser ruim para ir trabalhar. — Ah, pai, não me fale em trabalhar, hoje é sexta-feira! — E você não vai dar uma volta esse final de semana? Eu sabia o que ele queria dizer. Mas fingi que não entendi. — Vou, vou sair com o Lucas, tem um filme que ele quer assistir no cinema... Não sei se você vai gostar, então pode fazer outra coisa... — Não estou falando de sair com o Lucas, filha... – ele disse num tom diferente, confirmando minhas suspeitas. Eu já sabia que aquela conversa não estava tomando um rumo bom. — Filha, você nunca mais saiu com ninguém desde... — Pai, já chega. – eu o cortei, e ele fez aquela cara de “você não sabe mesmo conversar”. — Estou cansada, vou ver o Lucas e ir tomar um banho, tá bem? — É você quem sabe. – ele finalizou emburrado, e continuou vendo tevê. Preferi não argumentar. Aquela discussão não tinha fim e era tolice bater na mesma tecla. Meu pai nunca entenderia o quanto foi difícil passar por tudo o que passei, e como ainda doía. Para ele, não passava de orgulho, mas para mim era muito mais que isso. Era algo profundo, que deixou feridas que o tempo jamais apagaria. Ele dizia que me fazia mal guardar aquilo, e até certo ponto eu sabia que era verdade, mas não conseguia mudar. Era como eu me sentia e pronto. E isso não ia passar assim, apenas saindo com um cara qualquer. Não era assim que eu funcionava. No caminho, apanhei no varal da área de serviço uma toalha, com a qual já aproveitei para me enroscar e secar um pouco os cabelos. A porta do quarto de Lucas estava encostada, mas eu conseguia ver a luz tênue que o computador emitia. Respirei fundo e bati com os nós dos dedos na porta. Ouvi uma movimentação nervosa lá dentro —


e abri a porta o suficiente para ver meu filho se atrapalhando para esconder o que estava fazendo. Ele me viu à porta e sorriu sem graça. — Oi, mãe... A voz dele ainda era fininha e doce, como devia ser a voz de um menininho de apenas oito anos. Olhei para o computador ligado, a cama desarrumada e as coisas da escola espalhadas sobre a escrivaninha. Voltei a fitar meu filho; ele tinha aqueles mesmos cabelos finos e claros, os olhos verdes e um sorriso sincero que sempre me encantaram. Eu não sabia de onde ele tinha puxado aqueles olhos, aqueles cabelos claros. Não tinha sido de mim, muito menos... do pai dele. Aliás, ainda bem que do pai dele, meu filho não tinha puxado nada. Eu não suportaria olhar para uma cópia daquele homem. Já meu pai costumava dizer que a sogra dele, minha avó materna, tinha aqueles olhos e a cor clara dos cabelos. Dizia que aquelas coisas às vezes pulavam algumas gerações. O engraçado é que Lucas era parecido com uma pessoa que passou pela minha vida muito tempo antes do pai dele. Alguém que se foi muito antes do meu filho nascer. Acabei sorrindo de volta para Lucas, e os olhos dele brilharam de alívio. Estava esperando uma sonora bronca. Caminhei até a cama e sentei-me na beirada dela, perto da cadeira onde ele estava. Olhei para o computador; toda movimentação que eu ouvi era para provavelmente esconder o que ele estava jogando no computador. O que Lucas às vezes esquecia era que eu entendia muito bem de tudo aquilo, e que, pelo menos isso, ele não conseguia esconder de mim. Meu filho me olhou com os olhos arregalados de inocência. — Mãe, você está toda molhada! — É, eu sei, está caindo maior toró lá fora. – e enxuguei mais um pouco os cabelos após o comentário. — Mas não pense que vai conseguir me enganar mudando de assunto. O que você estava jogando, garotinho? – perguntei meio curiosa, meio firme. Ele suspirou e mexeu no teclado. Comecei a rir. — Não acredito que você pegou isso no meu computador, Lucas... Sabia que isso é muito, muito velho? Ele sorriu aliviado de novo. — Mas eu gosto, mãe... Só que não consigo passar dessa fase, você... — Eu passo para você, bobinho. Só que o preço é você ir depois direto para a cama! Aliás... onde você deveria estar... — Ah, mãe... mas amanhã não tem aula! — Mas você é meu menininho que precisa dormir e acordar cedo, porque amanhã vamos sair, lembra? Ele se animou com a lembrança e me deu lugar na cadeira. Passei muito mais que uma fase no jogo para ele. Depois ele ainda me dobrou e jogamos uma partida de um jogo de tabuleiro, daqueles que se rolam os dados para andar casas. Lucas adorava jogar aquele tipo de jogo, porque ele sempre ganhava de mim (coisa que não acontecia no videogame ou no computador). Eu era péssima com dados. Acabava sempre caindo


nas casas que tinham aquela mensagem irritante “Volte seis casas” ou “Volte para o início!”. Lucas se dobrava de rir. Muito, muito engraçado. Quando caí de novo em uma dessas, decidi que era hora daquele menino ir para a cama. Tinha sido uma hora muito bem aproveitada, foi o que eu pensei, ao ajeitar os lençóis de super herói da cama dele. Já fazia algum tempo que eu não sentava assim com meu filho para brincar, sem preocupações. Coloquei-o para dormir e beijei sua testa. Ele sorriu para mim e se virou de lado, fechando os olhinhos. Era tudo o que eu precisava ver para valer meu dia. Tomei um banho quente e longo, tentando não pensar em nada, mas não deu muito certo. Eu observava o vapor subindo pelo banheiro e embaçando o boxe, os azulejos, e só conseguia pensar no que meu pai tinha dito ainda pouco na sala. Não era só orgulho... Ainda doía. Era certo que aquilo não era amor, mas... estava ali, ao menos. E só havia mágoa e revolta agora no lugar. E eu não conseguia me livrar disso. Como da outra vez... Não queria pensar naquilo, por que estava pensando naquilo, droga?! Essas duas lembranças doíam, e eu não sabia dizer se ainda era a primeira que doía mais. Só que doíam de um jeito diferente. A primeira era saudade, a segunda era raiva... O chão estava gelado quando eu apoiei meus pés descalços ali. Meus chinelos... Droga, eles estavam no quarto! Corri até lá, enrolada na toalha, e apanhei minha escova de cabelos na penteadeira. Foi quando me virei distraída para pentear meus cabelos que vi meu reflexo no espelho grande e oval do canto do quarto. Ele era antigo e cheio de desenhos na borda. Caminhei lentamente até ele, fitando meu rosto cansado. Há quanto tempo eu não cuidava de mim mesma? Meus cabelos escuros estavam na altura do ombro, sem corte, cada vez mais secos. Havia olheiras ao redor dos meus olhos castanhos. Estava magra, mas não tinha um corpo bonito; estava magra daquele jeito de quem parece doente. Minha pele, que sempre tinha sido clara demais, estava ressecada. Começavam a aparecer marcas de expressão em meu rosto, e elas me faziam parecer mais velha do que eu era, e davam a impressão de que eu estava sempre deprimida. Talvez fosse verdade. Eu estava um trapo... Meu pai poderia estar certo, afinal. Talvez eu simplesmente tivesse que riscar tudo aquilo que aconteceu da minha cabeça e mergulhar em algo novo. Mas tudo parecia tão difícil... ...mas da outra vez também tinha sido. Aliás, tinha sido pior. Muito pior. Talvez nem tivesse passado ainda. Talvez eu estivesse remoendo as dores daquela época e não do último fracasso. Talvez eu tivesse que admitir que ainda o amava... — Mentirosa. O grito saiu da minha boca sem que me desse conta. A escova de cabelos voou da minha mão e eu caí, tropeçando nos próprios pés. Minhas costas bateram com força e dor no estrado da cama. Cobri depressa meu rosto com as mãos, os olhos fechados com muita força. Meu corpo inteiro tremia. Eu não queria abrir os olhos. Estava tonta e meus ouvidos zuniam. Aquela voz... Tinha sido tão rápido. Num minuto havia apenas o meu reflexo, e no outro... Era coisa da minha cabeça, eu estava cansada só. Tinha que ser. Se eu abrisse os olhos agora


e olhasse aquele maldito espelho, só haveria o meu reflexo. Mas eu não queria abrir os olhos. Eu não podia. E se ele ainda estivesse ali? O que tinha sido aquilo, afinal? Meus dedos tremiam loucamente. Era besteira, era porque eu tinha pensado tanto nisso que estava vendo coisas... Tinha sido só uma sombra atrás de mim, sim, foi isso que aconteceu. Se eu abrisse os olhos, estaria tudo bem. Tudo bem. Muito devagar, eu abri os olhos, apavorada. A respiração estava curta e rápida. Não olhei para o espelho num primeiro momento. Com o canto dos olhos, chequei ao meu redor, e óbvio que eu estava sozinha. Ainda trêmula, levantei, apoiando meus braços frouxos na borda da cama. O que tinha de mau olhar? Olhe, olhe. Era só um espelho idiota. Novamente, eu vi meu reflexo apavorado. Estava branca como cera. E sozinha. Suspirei aliviada. Claro, era coisa da minha cabeça. Tudo coisa da minha cabeça. Eu até ri de nervoso e alívio. Eu estava sozinha. Maravilhosamente sozinha. Como sempre... — Filha, tudo bem? – meu pai abriu a porta do quarto, e o me virei para encarálo tentando disfarçar como estava assustada. — Ah, você está se arrumando, desculpe, só queria saber se estava bem... – ele voltou a encostar a porta, todo envergonhado. — Tudo bem, pai. – senti minha voz sair ainda tremida após o susto. — Eu ouvi um barulho. — Eu... Eu chutei o pé da cama. Anh... Gritei porque doeu como o inferno. Houve uma pausa e acho que ouvi um suspiro. Meu pai não gostava quando eu fazia pouco caso de coisas como “o inferno”, por exemplo. Mas ele preferia não discutir, na maioria das vezes. Eu também. Quando discutíamos sobre isso, eu sempre me sentia idiota, apesar de saber que estava certa. — Filha, melhor dormir, descansar... — Eu vou sim, pai. — Vá me dar boa noite quando for dormir, então. — Pode deixar... Ele fechou a porta e me deixou sozinha novamente. Sentei na beirada da cama, exausta. Talvez fosse isso que eu precisasse mesmo: uma boa noite de sono. Todo aquele estresse no trabalho, eu estava começando a imaginar coisas... Mas a imagem do homem morto na rua veio de novo à minha cabeça. E eu o conhecia. Eu o conhecia muito bem.


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