Somos animais poéticos Pt - Michèle Petit

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ANIMAIS

MICHÈLE PETIT SOMOS

Prefácio de Daniel Goldin

Tradução de José Alfaro

POÉTICOS

1. O inferno, a arte, os livros e a beleza

O mundo é belo antes de ser verdadeiro. É admirado antes de ser verificado.12

Gaston Bachelard

Leio para preencher a minha vida, para a completar e para compensar os vazios deixados pelos sonhos não cumpridos, para viver outras vidas. Leio porque estou convencido de que um livro talvez não mude a minha vida, mas pode preenchê-la de novos sonhos e de beleza, e porque me faz escutar o som e as vozes do silêncio.13

Cuauhtémoc López Guzmán

Depois de me ter proposto falar sobre a beleza, fiquei a pensar que mosca me teria mordido para escolher um assunto tão vasto, sobre o qual, desde tempos imemoriais, filósofos, artistas e cientistas tinham reflectido e escrito tanto. Um enigma de uma complexidade infinita que eu nunca tinha estudado. Quando muito, havia pensado um pouco sobre os usos que os meus contemporâneos faziam da literatura, e por vezes da arte, em particular quando expostos à adversidade. Ora, nem tudo o que

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é belo é arte, e nem tudo o que é arte tem por fito o belo – a arte contemporânea encarregou-se de no-lo lembrar. Não me aventurarei por esses caminhos, tal como não proporei uma definição de beleza, sobre a qual nunca ninguém conseguiu chegar a acordo. Vou falar de dois ou três temas que me chamaram a atenção ao ouvir crianças, adolescentes e adultos contarem-me as suas experiências culturais, ou ao ler textos de artistas, escritores ou promotores da leitura que com sensibilidade transcreveram essas experiências.

Falarei primeiro da forma como muitas crianças, mas também adultos, transfiguraram o horror, a tristeza ou a ansiedade em beleza, reencontrando assim «o reino da possibilidade»14. Evocarei depois a necessidade fundamental que os seres humanos têm de beleza para estarem em sintonia com o que os rodeia, e o direito de cada um de nós de aceder a ela. Por fim, e dado que a escola é o lugar onde supostamente todas as crianças vão, proporei alguns elementos sobre a beleza na sala de aula. São materiais que os meus leitores talvez venham a aproveitar para fazer algo completamente diferente.

A técnica da Fénix

Em jeito de introdução, vamos… ao inferno, numa das múltiplas formas que ele assume nesta terra. Estamos em 1943, em Nantes, que então se encontra sob as bombas aliadas. A cidade é sujeita a dezenas de ataques

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aéreos que acabarão por causar milhares de mortos e feridos, por destruir uma parte do porto, do centro da cidade e vários bairros. Os habitantes protegem-se como podem; entre eles, está um rapazinho de doze anos, escondido num abrigo antiaéreo. Chama-se Jacques, Jacques Demy. É filho do dono de uma oficina e de uma cabeleireira que gosta de cantar e de ouvir operetas. O pequeno Jacques, por seu lado, adora o teatro de marionetas, aonde às vezes o levavam antes da guerra. Quando fez quatro anos, os pais ofereceram-lhe um. E não tardou a que Jacques construísse outro maior, onde representa contos de fadas.

Em 1943, durante os ataques, encontra-se então nesse abrigo, aterrorizado. Passado muito tempo, haverá de contar: «Foi algo de terrível. […] Tem-se a impressão de que nada mais atroz pode suceder. E, a partir daí, sonha-se uma existência ideal. Fiquei marcado por aquela catástrofe, e talvez os sonhos tenham vindo desse período.» 15 Depois dos bombardeamentos, mergulha pequenos filmes de Chaplin em água quente, para dissolver a gelatina, e, na película transparente, desenha, imagem por imagem, com tintas a cores e uma lupa, o bombardeamento da Ponte de Mauves, o seu primeiro filme (Le Pont de Mauves). Muito mais tarde, há-de realizar aquelas belas comédias musicais que quase todos conhecem, As Donzelas de Rochefort ou Os Chapéus-de-Chuva de Cherburgo, em que as pessoas dançam e a cor triunfa sobre o pó, e a canção sobre o caos. Talvez Demy tenha lutado toda a vida contra

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o seu terror de criança. Como tantos outros artistas, libertou-se de um drama criando algo de maravilhosamente vivo.

Muitos escritores deram testemunho desta capacidade para transfigurar o horror em beleza, lembrando-se das crianças que haviam sido. Por exemplo, Hélène Cixous. Tem onze anos quando o seu pai morre de repente. Conta-nos: «Partiu de um momento para o outro, levando consigo o mundo. Tive a sensação de que, no lugar do mundo, havia um abismo. Tentei fazer uma jangada para sobreviver, e construí uma jangada de papel. […] Não se reage à morte com a morte, tenta-se fazer dela vida. É a técnica da Fénix. E as artes existem para isso, a música, a literatura.»16 É também uma época em que o país onde vive, a Argélia, agoniza; assusta-a a crueldade que vê ou sente por todo o lado. Atira-se aos livros para aí encontrar um refúgio, a liberdade e a beleza que já não existem no mundo que a rodeia. Desde então, ler e viver são para ela sinónimos; ler e escrever também. Com mais de oitenta anos, Hélène Cixous aspira a uma revolução jovem e artística. Diz que precisamos de criar círculos iluminados.

Citarei ainda Yannis Kiourtsakis, recordando o «sentimento de profundo equilíbrio e serenidade» que o invadiu uma noite, depois de uma perda importante, quando tinha quinze anos, ao ler certas cenas de Guerra e Paz : «Aquela leitura proporcionava-me uma rara plenitude […], sabia agora com absoluta certeza que, pelo menos, existia a beleza: comprovavam-no aqueles

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livros e aquela música que não paravam de suscitar em mim, no meio da minha infelicidade, uma inconcebível serenidade – e isso bastava para justificar a vida.» 17 A beleza era «aparentemente capaz de resistir à morte», observa ainda. E pergunta-se até «se, afinal, Deus não seria essa beleza».

Mas isto não é exclusivo das pessoas que se tornaram escritores ou grandes artistas. Esta maravilhosa capacidade humana para transfigurar o inferno é bem conhecida daquelas e daqueles que propõem o desenho a crianças que passaram por uma situação traumática, seja na América Latina ou no Médio Oriente, na Índia ou na Europa, com crianças refugiadas. E, ao longo das sessões, observam o apaziguamento e o orgulho que essas crianças sentem ao domar a pior realidade, trabalhando, cinzelando a forma dada.

Pensemos também na exposição Déflagrations. Dessins d’enfants, guerres d’adultes18, que reúne desenhos em que crianças representaram cenas de guerra, da Primeira Guerra Mundial à Síria contemporânea, do Vietname ao Darfur. Cada desenho conta uma história terrível, vista pelos olhos de uma criança, de forma muitas vezes incrivelmente minuciosa. No entanto, de vários desses desenhos, muito inventivos, com um traço deveras expressivo, emana uma beleza grandiosa. Como a que nos invade quando uma comoção estética nos permite tomar consciência do horror e continuarmos de pé.

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Um antídoto para o horror

Darei um último exemplo que permite compreender um pouco melhor alguns dos processos através dos quais a beleza, não só criada, mas também contemplada, permite sair do inferno, seja em que idade for. Diz respeito a uma mulher, Catherine Meurisse, cuja história muitos conhecem. Recorde-se que era responsável pelas páginas culturais do jornal satírico Charlie Hebdo. Na manhã de 7 de Janeiro de 2015, deprimida por um desgosto amoroso, tem dificuldade em se levantar. Por fim, lá acaba por sair para o trabalho, muito atrasada. Ao chegar diante do jornal, encontra o cartoonista Luz, que havia perdido o comboio e lhe diz que nem pense em entrar, pois dois homens armados acabam de se introduzir no edifício. Escondem-se, ouvem as rajadas das kalashnikovs. O resto é história: um massacre que será notícia em todo o mundo.

Passados alguns dias, Catherine Meurisse encontra-se num estado de «dissociação»: já não sente nada, perdeu completamente a coerência e as memórias. Uma parte de si morreu. Mistura palavras, esquece-se de como começou as frases, do fio dos pensamentos. «O terrorismo não aniquila só as pessoas, destrói também a linguagem e a memória», dirá mais tarde19. Está rodeada de amigos, tem um psicanalista que a ouve e apoia, mas rapidamente sente que também precisa de outra coisa: de beleza. «Mais do que arte, beleza», especifica. «Lancei-me então na busca de uma

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beleza absoluta, na esperança de que fosse reparadora.» A das paisagens e das obras. Vai até à beira-mar, tem a impressão de ver o oceano pela primeira vez. Algumas semanas depois, visita uma exposição. Nada lhe diz nada, ela não vê nada, não está lá. No entanto, na última sala, depara com O Grito, de Munch: «Era o urro que eu não consegui dar a seguir a 7 de Janeiro.» Apetecia-lhe, literalmente, entrar na obra. Não o podendo fazer, vai representar a cena que está a viver.

Esforça-se por recomeçar a escrever, a desenhar, por recuperar emoções, memórias, a palavra e o pensamento que a tinham abandonado. E observa: «Não conseguia desenhar em folhas soltas, como antes; era preciso que tudo estivesse junto, colado. Que nada mais se dispersasse, pois eu própria estava feita em pedaços, em desordem.»

No entanto, Paris está demasiado marcada pelo horror, com novos massacres a ocorrerem a 13 de Novembro de 2015. É a cidade do sangue. Catherine consegue então alugar um pequeno quarto na Villa Medici, em Roma. «Precisava de fazer uma pausa, de uma cidade afável, aparentemente adormecida: Roma é apelidada de “cidade eterna”, é o arquétipo da beleza. Tinha necessidade desse género de símbolos para me recompor.»

Nos jardins da Villa Medici, um conjunto de estátuas chama a sua atenção: representa os filhos de Níobe mortos pelas flechas de Apolo e Artemisa. Há corpos caídos por todo o lado. Como os dos seus amigos, que

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ela não viu mas há meses não pára de imaginar. Ou os de todos aqueles jovens que acabam de ser massacrados em Paris, no Bataclan e nas esplanadas dos cafés.

Perante aquela cena mitológica, fui transportada para a sala do Bataclan e para a redacção do Charlie a 7 de Janeiro – onde eu não estava. Através da simbolização, a arte permitiu uma mediação entre a violência e eu. Tive assim a sensação de me acercar da morte, dos corpos dos meus amigos, serenamente e sem medo. Aqueles corpos, sublimados pela escultura, não eram mórbidos, o seu mármore branco, luzente, era de uma beleza estonteante.

A minha viagem a Roma, o contacto com estátuas e vestígios antigos, sinal de imutabilidade, sinal da violência da História suspensa no tempo, permitiu-me reencontrar um pouco de eternidade.

Deambula pelas ruas levando no bolso Promenades dans Rome, de Stendhal, ela que nunca separou as artes da literatura. Reaprende a dizer «eu». O seu pensamento começa a reconstituir-se. Nos museus, repara também nas Marias Madalenas ou nas Santas Teresas em êxtase, em plena volúpia. Compreende que um pouco de libido, de desejo, de vontade de viver está a voltar. Viu na beleza uma «antítese do caos», um «antídoto ideal para o horror», e a sua procura tornou-se o tema de um livro, La Légèreté 20, em que desenhou todo esse processo para «reordenar as coisas», «reunir os fragmentos», «abafar o horror», «ressuscitar os mortos durante o tempo de um livro». Todo um percurso em que

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confiou na intuição: «Estive extremamente atenta, receptiva a tudo o que me pudesse indicar que não estava morta. Encontrei esses sinais na palavra dos outros, na natureza, na cultura, onde quer que fosse possível.»

Alguns anos volvidos, ao tempo da actualidade política prefere aqueloutro, lento, da literatura. Volta a ouvir Bach e Haendel depois de um longo período de silêncio. E desenha. Publica outro álbum, Les Grands espaces, que dá continuidade ao que acabei de mencionar. Um regresso à infância em que se representa rodeada pelos pais e pela irmã, mas onde também figura a casa que os pais tinham reconstruído, a natureza e as paisagens. E vemos como a beleza já estava presente nessa infância. Por exemplo, naquelas estacas de roseira que a mãe surripiava nos jardins de grandes escritores para depois poder cheirar os perfumes que eles tinham respirado – haverá mais bela transmissão ou iniciação?

Ou naquelas conchas fossilizadas, naqueles pregos ferrugentos que a pequena Catherine descobria na terra e de que fazia peças de um museu, no sótão. Ou ainda naquela visita ao Louvre, onde ficou fascinada com as paisagens de Corot, Fragonard ou Poussin. Ali, a beleza estava por todo o lado.

Pensemos ainda no livro Le Lambeau, de Philippe Lançon, sobrevivente do mesmo atentado, que tinha ficado gravemente ferido. Diz ter saído do inferno graças à cirurgia de guerra, às mulheres, à música e à literatura. Foi submetido a dezassete operações e, sempre que ia para o bloco, levava consigo um CD para

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adormecer a ouvi-lo: «A música de Bach, como a morfina, aliviava-me. Fazia mais do que aliviar: eliminava qualquer sentimento de queixa, qualquer sensação de injustiça, qualquer estranheza do corpo. Bach descia sobre o quarto e a cama e a minha vida, sobre as enfermeiras e o seu carrinho. Envolvia-nos a todos.»21 Lançon leu muito, lentamente, páginas de Kafka, de Proust, poemas, ou ainda a Noite de Reis que vira representada na véspera do atentado: «Shakespeare é sempre um excelente guia quando se trata de avançar no meio de um nevoeiro ambíguo e sangrento. Dá forma ao que não tem qualquer sentido, conferindo assim sentido ao que se sofreu, ao que se viveu.»22

Quando finalmente pôde voltar para casa, mandou refazer a biblioteca: ela era o símbolo da sua reconstrução. «Tinha de ser bonita, e ficou.» «A arte não repara nada, mas serve-nos de escolta até nos infernos.»23 E acrescenta que a arte é a vida transfigurada, que impede a dissolução do ser.

Vemos quanto a evolução destes processos é complexa e imbricada, como o testemunham os que os vivenciaram: a beleza traz serenidade, apaziguamento, envolve-nos, permite recuperar a fantasia, mas também dar forma e sentido a acontecimentos insanos, e pensar no impensável em vez de ficarmos para sempre prisioneiros dele. Permite reunir os fragmentos, reordenar num todo. Reaprender a dizer «eu». E mesmo abordar a morte sem demasiado medo, reencontrar a eternidade – creio que Lacan dizia que a beleza era o último reduto antes do horror.

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Arquitectura equilibrada, condensada, inesperada, ela é mais uma transfiguração que uma reparação. Oferece harmonia e uma inteligibilidade até onde reinava o pior caos. Criar obras, mas também apropriar-se das que outros conceberam, contemplá-las, ouvi-las, lê-las, permite-nos reencontrar um pouco de paz, de sentido e de desejo. Através de todo este processo, é o reino da possibilidade que é restabelecido.

Citei franceses, um grego e referi crianças de diferentes continentes. Em contraponto, evoco um chinês, François Cheng: «É pouco dizer que o homem tem uma relação com a beleza. Nas suas condições trágicas, é de facto à beleza que ele vai buscar sentido e prazer.»24

Um enigma escandaloso

No entanto, não é apenas em condições trágicas que a beleza, criada ou contemplada, desempenha um papel muito importante no equilíbrio dos nossos afectos e na nossa relação com o mundo. Desde a mais tenra idade, as crianças têm necessidade de uma língua melodiosa, de cantigas, de histórias e de imagens dotadas de qualidades estéticas que lhes permitam experienciar um bem-estar físico e psíquico muito especial. De sentir uma harmonia, de estar em sintonia com o que as rodeia e com o seu mundo interior. É uma sensação momentânea, mas que se inscreve no corpo e no espírito, e deixa marcas.

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Uma reflexão cativante e imprescindível sobre a importância da arte e da literatura, da beleza como feito fundamental e da necessidade do ‘inútil’ em tempos críticos.

A partir de testemunhos e de textos inicialmente escritos para intervenções em jornadas que reuniam professores, bibliotecários, promotores de leitura, entre outros, Michèle Petit analisa, neste ensaio pleno de sensibilidade, o papel que a literatura (oral e escrita) e a arte, em todas as suas formas, podem ter hoje como instrumento de alento, de superação de traumas e de transmissão cultural em contextos difíceis, e que nos últimos anos se têm desdobrado em guerras, migrações de refugiados, alterações climáticas, atentados terroristas, ou emergências globais como a pandemia de covid-19.

Por diferentes vias, a antropóloga francesa relembra que o utilitário nunca nos basta e que não podemos ser reduzidos a variáveis económicas, nem mesmo aos nossos papéis sociais, pois somos também, e talvez acima de tudo, verdadeiros animais poéticos.

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