Um novo escritor em um mosaico judaico

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Melhor que navios, as memórias atravessam mares. Melhor que memórias, as histórias atravessam idades, vencem gerações. Em ‘Zeide’, Caco Ciocler estreia na literatura, cruza a nado as lembranças familiares e reescreve o que foi vivido, inclusive por ele p o r

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foto: Marcus Leoni / Folhapress

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uitas são as matérias-primas para se criar uma ficção. A memória – histórica, afetiva, familiar – está certamente entre as mais relevantes. Em uma jogatina de autoficção entre a prosa de olhares daqueles que empunham as cartas e daqueles que as leem, a coragem de exumar lembranças vale mais que um royal straight flush. Trapaça, diriam os mais formalistas. Trapaça, em literatura, é jogada de mestre, pequeno gafanhoto. E os melhores debutantes sabem muito bem disso. Caco Ciocler sabe muito bem disso: Zeide – A travessia de um judeu entre nações e gerações (Planeta) é sua primeira novela feita de papel (porque, vá lá, ele dispensa apresentações extensivas sobre seu celebrado trabalho na televisão, teatro e cinema). Zeide é uma palavra ídiche cuja tradução para o português é “avô”. É também o personagem original, chamado Sucher, que em 1921 embarcou em um navio no porto de Hamburgo, na Alemanha, e como muitos outros imigrantes – alemães, italianos, japoneses, ucranianos, etc. – foi dar com suas esperanças no Porto de Santos. Trazia consigo as memórias da gelada Bessarábia, na Romênia, e um sem-número de dúvidas a respeito daquele novo chão onde seus pés pisavam com um ineditismo assim alvissareiro e outrossim de-

sassossegado. É certo que aquele país misterioso chamado Brasil traria boas novas para o jovem Sucher: o amor de sua vida, dois filhos e muitos netos. O caçula deles, Carlos Alberto Ciocler, mais que o autor do livro, é o narrador das memórias coletivas e pessoais de um judeu que não atravessou somente nações e gerações, atravessou agora também realidade e ficção. Caco conta que, quando começou a pensar no livro, tinha consigo apenas alguns rabichos de histórias sobre seu avô que escutava quando era menino. Tinha também sua própria memória, tão implacável quanto o passar dos anos. Para aguçar ambos, rabichos e lembranças, conversou com seu pai, tios e alguns parentes. “O engraçado nessas conversas é que eles me contavam histórias de fracassos, como quando a gente é adolescente, volta de um acampamento e só conta e se diverte com o que deu errado, sabe? As confusões, os tropeços. E era meio isso que eles lembravam de suas vidas, pequenos fracassos, trapalhadas, a relação difícil com o pai, meu avô. Então o livro virou um pouco isso, essas histórias divididas em capítulos não cronológicos, dos pequenos fracassos desses filhos que se tornaram pais, formando um panorama singelo e judaicamente bem-humorado da vida. A memória dos homens da família não é lá grandes coisas e muitas das histórias eram realmente sem graça, então a ficção entrou aí, para juntar os pontos, para preencher as lacunas, para dar cor. A sensação que tenho é que nada do que está escrito tenha acontecido como está ali descrito, embora tudo tenha de fato acontecido exatamente como inventei.”

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| literatura | Uma ficção feita de memórias, memórias feitas de ficção (e qual não seria?), a mais pura verdade que construímos sob medida para nós mesmos. E, no caso de Zeide, também para leitores vorazes por ótimas histórias. “Poderia ter mudado os nomes, inventado uns outros, mas aí tudo ficaria frio. Era importante que eu tivesse uma relação afetiva com as personagens, para que o elo fosse emocional e eu pudesse me incluir, me expor também. As histórias nascem de pequenos dados reais, mas são muito mentirosas, então meus parentes estão protegidos. Toda narrativa é apenas uma dentre as possíveis.” Mas, se os entes queridos de Caco estão certamente protegidos por trás de sua bela habilidade de criar histórias, o autor, porém, não está e nem nunca esteve. Um livro assim, escavado dos afetos familiares, dos rascunhos imemoriais que estão eternamente entranhados nas células elementares da alma que escolhemos para nós, não pouparia escritor nenhum, quanto mais um estreante. Não é preciso nenhuma epifania para juntar os sintomas e encontrar o diagnóstico: “Um dia que quase morri. Tive um ataque, o coração acelerou, senti gosto de sangue na boca, o corpo formigando. Um acupunturista disse que atravessei a linha da reserva energética. Meu cardiologista disse que eu estava estressado e precisava emagrecer e fazer esporte. O analista disse que eu tive uma identificação, porque escrevia justo sobre a morte do meu avô no momento do pânico. Enfim, não tem como rever uma história dessa magnitude pessoal, ainda que em muito ficcionalizada, sem ataques de pânico, de amor, de tristeza, de compaixão, de raiva e de saudade”.

UM ENTRE MUITOS ZEIDES

O momento em que Sucher, o zeide de Caco, toma a decisão de migrar é crucial para a história das imigrações. Segundo Sydenham Lourenço Neto, historiador, cientista político e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mais de 50 mil judeus arribaram ao Brasil entre 1926 e 1942, a maioria vinda da Europa Oriental, como foi o caso de Sucher. Esse número corresponde a mais de 50% do total de imigrantes judeus que vieram para o Brasil desde 1872. “A decisão de migrar leva sempre em conta dois fatores, o que atrai no país de destino e o que afasta no país de origem. Nesse período, o fator de repulsão era

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mais importante do que o fator de atração e o fator de repulsão era claramente a ascensão do fascismo. Não devemos pensar apenas nos casos clássicos da Alemanha e da Itália. No início da década de 1930, vários outros países tinham governos que, no mínimo, simpatizavam com o fascismo, como a Hungria, a Áustria, a Polônia, a Espanha e Portugal. A ameaça era crescente, e isso provocou uma fuga da Europa.” Sydenham explica que o Brasil se tornou um destino atraente pois demorou a aprovar leis que restringiam a imigração de judeus, o que só aconteceu no Estado Novo, e ainda assim nossa legislação possuía muitas brechas que permitiram a manutenção de um certo fluxo migratório. “Para efeito de comparação, os EUA aprovaram a restrição da imigração já em 1924. Alguns anos depois, a Argentina também aprovou leis de restrição de imigração, especialmente voltadas para os judeus, porém, assim como no caso do Brasil, sua lei tinha muitas brechas. A realidade é que a Argentina foi o principal destino do povo judaico na América do Sul, mas, diante da ascensão do fascismo na Europa, muitos aceitaram o Brasil como uma razoável e acessível segunda opção.” Sydenham reitera que, diferentemente do que ditam o senso comum e os costumeiros preconceitos, os judeus não eram, em sua maioria, ricos. Especialmente no Leste Europeu, de onde Sucher saiu, era comum que fossem artesãos, operários e até camponeses. “Embora em menor número, eles constituíam o grupo mais vulnerável, porque em muitas regiões da Europa Oriental eles não tinham direito à propriedade da terra. Claro que a ascensão do fascismo piorou a situação deles na região, mas, mesmo antes disso, muitos se viam forçados a emigrar por conta de dificuldades econômicas e da esperança de uma vida melhor em outro lugar.”

ANTES DA PÁGINA EM BRANCO

A editora Planeta sabia muito bem desse potencial e há tempos buscava narrativas capazes de tratar com sensibilidade a questão judaica no Brasil, especialmente as histórias familiares, um tema caro à empresa. A profissional responsável por editar e acompanhar a obra, Raquel Cozer, conta que essa busca levou a editora a fazer o convite para que Caco escrevesse o livro. “O Caco é um ator e diretor com intenso contato com a literatura, é um


foto: Marcus Leoni / Folhapress

ótimo leitor. Ele já tinha a ideia de escrever sobre sua família, mas não tinha colocado em prática e, a princípio, pensou num roteiro, e não num livro. A editora Marcia Pereira, que iniciou o projeto do Zeide, resolveu arriscar ao convidar o Caco, que também arriscou ao mergulhar na literatura.” Uma aposta dupla que se revelou promissora logo no primeiro capítulo, lembra Raquel: “Fiquei muito impressionada com a cena de abertura do livro, porque é o olhar de uma criança, o capítulo inteiro narra os planos do neto para conseguir sair de onde está e chegar até o sofá simplesmente para dar um beijo na careca do avô. O Caco tinha até um esqueminha desenhado de como seria o trajeto”. Raquel reforça que Zeide não tem uma proposta de leitura fácil ou comercial, ao contrário, trata-se de um livro em que o autor se vê profundamente envolvido não apenas no labor da escritura, mas particularmente implicado em todos os âmbitos da narrativa. “Dá para sentir o Caco em cada palavra, é um livro em que queria colocar tudo o que ele tem de experiência literária.” A fim de ter em mãos uma maior riqueza narrativa, o autor entrevistou familiares, pesquisou com afinco seus registros, documentos e fotos. Havia evidentemente uma preocupação com a verossimilhança, ainda que completamente per-

meada de ficção: “Houve um episódio engraçado. Há uma parte no livro em que uma tia dele casa e então engravida. Eu o questionei argumentando que esse curto espaço de tempo narrado por ele não seria suficiente para que ela manifestasse sintomas de gravidez. Ele então contatou a tia e me enviou por WhatsApp um áudio dela confirmando a história. Eu brincava dizendo que ele mandava muitos áudios longos, mas ele respondia que era mais fácil assim, isso tudo porque o Caco estava muito consciente do que queria, estava concentrado em cada detalhe”. E ele ainda está consciente. E ele ainda está concentrado. Atualmente anda imerso em autores como Kafka e Gonçalo M. Tavares, por pura diversão e algum mapeamento literário. Mas a primeira experiência com a literatura foi muito positiva; apesar dos ataques de pânico, de raiva, apesar do gosto de sangue na boca e do corpo formigando, ou quem sabe justamente por tudo isso, Caco quer continuar. “Agora queria escrever uma ficção que não tivesse nenhum elemento biográfico. Poder vivenciar na totalidade essa experiência que experimentei de deixar as próprias personagens tomarem as rédeas. Mas vamos primeiro aguardar pela reação desse primeiro atrevimento que foi Zeide.” c

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