Fixe Malaike - o cotidiano de brasileiros em Angola

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Fixe Malaike

O cotidiano de brasileiros em Angola

Joana Neitsch | Juliana Passos

UFSC 2010


Univerdade Federal de Santa Catarina Centro de Comunicação e Expressão Departamento de Jornalismo Trabalho de Conclusão de Curso Fixe Malaike - O cotidiano de brasileiros em Angola Texto: Joana Neitsch e Juliana Passos Edição: Joana Neitsch, Juliana Passos Orientação: Gislene Silva

Créditos Capa Jonathas Mello Fotos capa: Joana Neitsch Fotos: Joana Neitsch e Juliana Passos (com exceção da página 17 de Paulino Damião e da página 53, de Felipe Burman) Tratamento das imagens: Luís Henrique Lindner Diagramação: Juliana Passos Revisão: Bruna Vieira de Paula, Fabiane de Souza, Fernando Côrrea Prado Período de realização do projeto: Ago/2009 - Dez/2010 Impressão Gráfica Expert - Papel Off set, 90g/m2, Capa Couché 300g/m2

Para Janina e Raina, meninas que nos proporcionaram o mais alegre encontro entre Angola e Brasil.


Agradecimentos Gostaríamos de agradecer, institucionalmente, à Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da Universidade Federal de Santa Catarina pelo auxílio financeiro que possibilitou nossa estadia em Luanda; e também à Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente de Angola que nos enviou um convite formal para que pudéssemos entrar no país. Somos gratas a Maria do Carmo Albuquerque pela colaboração durante nosso processo para tirar o visto, em São Paulo. Nossa imensa gratidão pelo acolhimento e atenção incondicional de Conceição dos Santos, Sebastião Lopes Delgado e sua família de amigos. Durante este um ano e meio de trabalho, encontramos muitas pessoas novas pelo caminho e que foram fundamentais na preparação da viagem por conta da sua experiência em Luanda. Agradecemos a Juliana Borges, Gabriela Forlin, Sara Manera, João Fellet, Felipe Burman e Paulino Damião pelas dicas preciosas. Para realização deste TCC foi preciso o apoio de muita gente e, por isso, somos muito gratas a Jonathas Mello pelas ideias e confecção da capa; Luis Henrique Lindner pelo tratamento das imagens e auxílio na diagramação; Bruna Vieira de Paula, Fabiane de Souza e Fernando Corrêa Prado pelas revisões. À nossa orientadora, Gislene Silva, que mais que a cobrança pelo resultado do trabalho, nos lembrou da importância dessa experiência e acreditou em nosso projeto. Agradecemos a nossos irmãos, amigos, marido e sogros pelo apoio moral e financeiro, pela constante presença e incentivo, assim como a nossos pais e mães, a quem também somos gratas, por nos ensinarem a olhar para o mundo com curiosidade e respeito às diferenças.


Índice Apresentação 1. Candongando 2. Vida entre muros

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3. Um império brasileiro

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4. Comunicação para a guerra

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5. Na terra do antigo irmão

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6. Empreendedorismo missionário

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7. Até a próxima transferência

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Referências bibliográficas

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Localização

Apresentação Em julho de 2009, quando decidíamos o tema de nosso trabalho de conclusão de curso, optamos por falar de uma realidade distante, mas que ao mesmo tempo tivesse ligação com a gente. Angola nos chamou atenção pela expressiva presença brasileira no país, de empresas e pessoas. Bem antes das atuais relações econômicas, Brasil e Angola têm relações históricas: ambos foram colonizados por Portugal e, portanto, se tornaram lusófonos. Os escravos que aqui trabalharam vieram de terras angolanas, foram mais de 4 milhões de pessoas. Hoje, os angolanos representam a maior parte de refugiados no Brasil, são 1.686 pessoas que representam 39% do total abrigados no país. Na década de 70, o diplomata brasileiro Ítalo Zappa visitava Angola para propor acordos comerciais e o governo brasileiro foi o primeiro a reconhecer a independência angolana em relação à Portugal, em 1975. O Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA) assumiu o poder, depois de 14 anos de luta armada em conjunto com outros dois movimentos União Nacional pela Independência Total de Angola (Unita) e Frente pela Libertação Nacional de Angola (FNLA). O MPLA adotou o socialismo como sistema de governo, mas ainda na época da ditadura, acordos comerciais e diplomáticos foram realizados, sem conflitos entre ideologias. Mesmo durante a guerra civil que durou 27 anos e se seguiu à luta pela independência e se prolongou até 2002, empresas brasileiras se instalaram em Angola e passaram a atuar em diversas áreas, da construção civil à comunicação. Angola é vista por muitos como um eldorado. O país é o segundo maior produtor de petróleo da África, também é rico em diamantes e desde que a guerra acabou se transformou num canteiro de obras. Entre as matérias que falam sobre o país nos jornais brasileiros, predominam as de enfoque econômico. Não seria novidade falarmos que o crescimento do PIB em Angola foi um dos maiores no mundo antes da crise de 2008 e a derruba-

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da do preço do petróleo, commoditie responsável por 90% das exportações do país afetou a economia, que em 2009 cresceu só 2,6%. Começamos a questionar e a imaginar os contrastes de como é a vida dos brasileiros que topam se mudar para um país que tem pouca infraestrutura, importa mão de obra para cargos de pedreiros a gerentes de multinacionais e tem uma democracia mais frágil. Alguns vão em busca de salários acima da média no Brasil, garantias e confortos que as empresas oferecem a seus funcionários, outros têm apenas a confiança de que a longo prazo o país os trará lucro. Quando os portugueses saíram de Angola, foi embora grande parte da mão de obra especializada, não havia indústrias e a primeira universidade angolana tinha sido criada há 13 anos. Nos primeiros anos de independência, o país contou principalmente com a ajuda de médicos e professores cubanos e soviéticos. Agora, o Brasil cruza o Atlântico com intenção de levar conhecimento, tecnologia, hábitos e cultura. Já não se compartilha a mesma metrópole, o discurso de que são países irmãos pelas raízes e pela história, mas o sentimento colonialista permanece. Muitos brasileiros, ao mesmo tempo em que estão lá para realizar projetos muitas vezes modestos, como a casa própria, a compra de um carro e viagens de família, mantêm o ar de superioridade e se orgulham ao dizer que estão prontos a ajudar e demonstrar todo seu talento. Além de dinheiro, acham que o país não tem mais nada para oferecer em troca. Tentam tomar a guerra como justificativa para o ambiente e alguns hábitos dos angolanos. Só que também encontram um espelho da realidade brasileira que simplesmente esqueceram ou ignoravam. A relação é mais complexa do que a de quem quer ajudar ou lucrar. Os brasileiros encontram as mazelas que mais querem esquecer: corrupção, desigualdade, desemprego e luta pela sobrevivência. Tudo ampliado. E quem ainda chega esperando ver uma Angola que é só necessitada, carente de tudo e tribal, se depara com uma capital de 6 milhões de habitantes, o que corresponde a um terço da população 16

do país, um dos maiores exôdos rurais contemporâneos. Mas se depara com uma Luanda cheia de personalidade, sincrética, que perturba e encanta. Os 28 dias que passamos lá foram intensos, mas jamais dariam conta de esgotar tantas questões sobre o envolvimento cultural e econômico dos dois países. As informações de estatísticas, relatórios e livros analisados antes e depois da viagem ajudam a entender a realidade, mas a essência dessa reportagem está nas histórias. Brasileiro e angolanos nos contaram suas aventuras e sonhos, alguns até permitiram que acompanhássemos suas vidas de perto. Fomos, pela primeira vez, fazer jornalismo bem longe de casa. Mais que de coragem, nos munimos de uma boa dose de crítica, não só com a realidade que encontramos, mas também com nosso trabalho, um grande ciclo de aprendizado. Provocamo-nos a olhar nosso país de longe. Brasileiros que olham para Angola para cantar e evocar suas raízes afros, mas que agora também prestam consultoria e exportam tecnologia. Questionamos a identidade do nosso país lá, em uma terra onde os enlatados da TV, a moda e os ídolos são importados de onde nascemos.

Joana Neitsch e Juliana Passos Novembro de 2010


1. Candongando

Na rua de terra batida, a poeira levanta fácil na estação do cacimbo, que faz os dias de julho ficarem secos. O calor não é tão intenso quanto no verão, de setembro a maio, e no fim da tarde há sempre uma brisa agradável. O pó tempera a carne de porco exposta, mas não tira o brilho dos talheres reluzentes no chão, sobre o pano colorido. No final da rua, perpendicular a uma avenida larga e bastante movimentada que dá acesso à região de Viana, algumas mulheres com suas bacias ainda vendem desodorante, xampú, cremes, frutas, água. O mercado a céu aberto dos Congolenses já foi bem mais movimentado, com a rua lotada de zungueiras expondo os produtos que compram nos armazéns, abastecidos diretamente com o que chega do porto. A quantidade de vendedoras nas calçadas diminuiu devido ao combate do governo ao comércio informal e as rondas da polícia são cada vez mais constantes. Ao mesmo tempo em que dão atenção para os poucos clientes que passam, as zungueiras estão prontas para agarrar suas mercadorias e sair correndo. Na mesma rua, no pátio de um conjunto de dois prédios de três andares, com a pintura que era branca já quase preta e um verde desbotado embaixo das sacadas, trabalha a quínguila (cambista) Lorença. Em seus 15 anos no ramo, foi presa uma vez. Pagou fiança no terceiro dia de cadeia e a liberaram junto com o dinheiro que lhe sobrou e cartões de saldo para celular. Ela já não fica na beirada da rua como as outras mulheres, mas logo atrás, protegida pelas grades do condomínio que a circunda, sem fechar completamente. Antes era ali que ficavam muitas comerciantes, mas o síndico colocou quase todo mundo para fora. Lorença resiste. A cada troca de kwanza para dólar e vice-versa, ela ganha o equivalente a três dólares, ou 300 kwanzas. Atravessa a cidade para vender quase nada, faz de duas a três trocas por dia e metade deste dinheiro é gasto com o transporte. Com a venda de recargas 13


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para telemóvel ganha um pouco mais, o cartão é vendido por 800 kwanzas. Ela sente saudades do comunismo e do tempo em que não havia tantos estrangeiros em Angola. “Os preços subiram muito desde que eles começaram a chegar”. Lorença gosta das roupas brasileiras que são sucesso no país e motivo das várias lojas do comércio popular terem placas para avisar que ali tem “Moda brasileira”, mas não pode pagar 3 mil kwanzas por uma blusa, então compra as de 300, que geralmente vêm da China. No mesmo pátio, dois garotos fazem as unhas das moças. Severino Benguela e João Batista usam a área como local fixo de trabalho e cobram 300 kwanzas. Severino tem 18 anos e desde os 12 trabalha como manicure. Faz todo o trabalho concentrado e em silêncio. Cola as unhas postiças, depois corta no tamanho adequado, lixa, passa um líquido para que fiquem transparentes e parecendo naturais e por último faz o detalhe que é a nova moda: pinta apenas um arco-íris com traços finos na extremidade de cada unha. De passagem pelo local, Gomes não estranha a atividade dos meninos, pois como eles há muito outros pela cidade, carregando seus banquinhos e um saco plástico resistente para guardar esmaltes, removedores, unhas postiças, lixas. O rapaz de 24 anos começa a imaginar um novo empreendimento. “Posso fazer uma produção em série, coloco eles debaixo do pé de manga lá de casa, em vários banquinhos enfileirados. Pelo menos é bem mais agradável, não ficam no barro e eu cobro um aluguel. Ainda chamo os moradores lá de perto e vai ser bom para mim e para eles”. O aspirante a empreendedor está desempregado desde o começo do ano, quando decidiu tirar férias, depois de anos trabalhando e estudando, dormindo cinco horas por dia. De vez em quando faz bicos para levantar algum dinheiro. Gomes, não perde a oportunidade de puxar papo com a cliente de um dos manicures; Vanda Pereira, de 23 anos, vai com frequência ao Congolenses e prefere fazer as unhas ali, não só por causa do preço, dez vezes menor do que nos salões de beleza. “Se a gente pede pra melhorar elas fazem cara feia. Aqui eles arrumam numa boa”. Gomes se despede de Vanda na tentativa, em vão, de con14

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Severino Benguela tem 18 anos, há seis trabalha como manicure no mercado Congolenses

seguir seu telefone e toma um carro de passeio para o bairro vizinho, São Paulo, onde vai visitar um amigo. O carro comum, sem nenhuma identificação, funciona como transporte público para pequenas distâncias e em geral o trajeto sai por 50 kwanzas. Pendurado no espelho sempre há um pequeno pinheiro de Natal feito em papelão, com estampa da bandeira dos Estados Unidos. É para exalar um perfume, mas o cheiro passa e o enfeite fica. Logo em frente ao condomínio há um cinema abandonado que dará lugar a um novo mercado. Atualmente, as únicas salas de cinema da capital angolana ficam no único shopping da cidade. Há carros abandonados e cobertos pela poeira da rua, são caminhonetes Toyota, Nissan, carros menores que vieram de países europeus, de Dubai ou da China, de terceira, quarta ou quinta mão. A quantidade de lojas com placas de artigos de importação é quase a mesma que a quantidade de lixo espalhado em cada 15


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metro do percurso. O motorista avisa que chegou ao seu ponto final e os três passageiros descem. A região do São Paulo, que leva parte do antigo nome da província São Paulo de Assumpção de Luanda, é vizinha aos Congolenses e tem a maioria das vias asfaltadas. O mercado de roupas populares que existe ali tem o mesmo nome do bairro e é o que faz a região famosa. “Isso tudo era muito, mas muito diferente há um ano, quando ainda não tinha nada asfaltado”, conta Gomes. Até 2008 as ruas de terra eram tomadas pelas zungueiras e pelo comércio informal, hoje as vendedoras ocupam somente as calçadas. Sentadas em banquinhos de plástico, bacias ou no chão, oferecem frutas frescas, enfeites para o cabelo, cremes, fraldas, calcinhas, meias. Seus panos coloridos envoltos no corpo servem como bolsa ou cadeirinha para seus filhos. Na mesma calçada uma placa avisa: Proibida a venda ambulante neste local, o não cumprimento será punido nos termos da lei 10/87. Sem qualificação profissional não é fácil arranjar um emprego e a informalidade é a alternativa de sobrevivência de 75% dos angolanos. Durante os 30 anos de guerra civil, os investimentos em educação foram quase nulos, um dos motivos para o desembarque de milhares de estrangeiros para trabalhar no país, de pedreiros e pintores a gerentes de multinacionais. Do outro lado da rua, outras mulheres expõem sapatos nigéria (falsificados) vindos da China ou usados. A grade de um prédio serve como apoio para os cabides de roupas. Nas bacias há pera e maçãs brilhosas, como não se encontram nos supermercados. Mais à frente, em uma churrasqueira de lata, uma senhora assa costelinhas e frango, frita ovos e vai amontoando o que está pronto no canto da grelha. Sua vizinha prepara mandioca e banana na brasa, o mufete, que se vê por todo lado e é um dos pratos mais populares. A variedade de produtos não acaba e livros são vendidos espalhados pelo chão, muitos deles para o ensino fundamental. Ao fundo, um outdoor da cerveja Cuca, fabricada no país, com os dizeres “Valorize o que é nosso”. O mesmo pode ser 16

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Zungueiras na calçada do São Paulo: trabalho informal é a alternativa de 75% dos angolanos

encontrado em outros produtos, como o leite, e em placas com mensagens de patriotismo que se espalham pela cidade, como as do Banco Popular de Angola: “Orgulho de ser angolano”, do Banco de Fomento de Angola: “Crescemos com Angola”. A avenida tem também muitos prédios residenciais construídos na época dos portugueses e, de lá para cá, a única coisa que parece ter modificado para quem olha de fora é a quantidade de aparelhos de ar condicionado e antenas parabólicas que ocupam quase todos os apartamentos. No andar térreo dos prédios ficam as lojas de libaneses, chineses, portugueses, brasileiros e alguns angolanos. As lojas Brazuka são as mais conhecidas de roupas brasileiras. Na mudança de estação, é lá que os jornalistas vão fazer matérias sobre a movimentação do comércio. A rede tem pelo menos três lojas no São Paulo, todas lembram o comércio popu17


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lar de centros de cidade no Brasil; vendem roupas de confecção de algodão ou tecidos sintéticos, dispostas em araras e balaios com várias peças iguais, em todos os tamanhos. Sempre tem bagunça, com pilhas de roupas provadas e jogadas nas mesas e algumas caixas pelo caminho. Os irmãos Paulo e Jorge têm cabelos claros e pele cor de leite, altos e gordos, mal cabem na sala da gerência de uma das suas várias lojas no centro. Com ar dissimulado, desconversam sobre como vieram parar no país. São de Pernambuco, e só. Não falam há quanto tempo estão em Angola, nem quantas lojas abriram. “Não queremos publicidade. O pessoal no Brasil vê que a gente tem negócios no exterior e acha que está rendendo muito, que estamos ricos”. As roupas da Brazuka não fazem o tipo de Gomes, quando pode, ele compra calças Levi`s e tênis Nike, muito populares entre os jovens angolanos. Ao andar pelas calçadas, Gomes toma cuidado para não pisar nas mercadorias das zungueiras, mas de repente é quase atropelado por elas, que correm do policial que apareceu por ali e exige satisfações. O caminho fica vazio por menos de um minuto e logo elas retomam seus lugares. Nem sempre é só um susto e mais à frente uma senhora tenta se desvencilhar de um policial para ficar com suas mercadorias. A cena traz ao rapaz um sentimento de indignação misturado com impotência. “Isso sempre acontece. Muitas vezes eles espancam essas senhoras na covardia, mas elas estão sempre a lutar contra eles”. Do outro lado da rua caminha um jovem com camisa Abercrombrie por fora da calça jeans e tênis All Star. Pelo passo firme, mas tranquilo, Gomes garante: “Esse é um angolano branco”. Hussein é brasileiro descendente de libanês e atravessa o mercado do São Paulo para chegar à sua loja. Ele mora no bairro ao lado, Miramar, onde está a maioria das embaixadas. Vem de carro quase todos os dias, mas às vezes, para fugir do engarrafamento e não precisar disputar vaga, prefere caminhar vinte minutos. No final da avenida ele vira à esquerda, a partir daí já não existe mais asfalto. Passa por uma vitrine com um aviso nas cores do arco íris,

impresso em papel A4, onde se lê: “És ajeitadinha? Cheirosinha? Estás bonita? Deixe seu currículo aqui”. A loja tem placa “Moda Brasileira”, mas o dono é italiano e as roupas, provavelmente, chinesas. Hussein anda mais duas quadras e ao lado do cartório fica sua loja de móveis voltada a pessoas de baixa renda. A frente foi toda envidraçada para que ali funcionasse apenas um show-room, mas depois foram avisados de que isso é proibido no país. “Aqui em Angola não se pode expor e fechar a porta, tem que vender”, conta o proprietário caminhando para sua sala no fundo da loja. Nos cantos, estão dispostos os armários e, no meio, apenas duas camas e um sofá. Os funcionários, sem ter muito que fazer, se apoiam na mobília e colocam a conversa em dia. Para Hussein, morar em Angola era um projeto antigo. No Brasil, sua família já está com a empresa de decoração natalina bem administrada e ali ele não vê possibilidade de crescimento. A escolha do profissional de marketing, formado na Inglaterra, foi expandir os negócios familiares em um país recém saído da guerra. Pisou pela primeira vez em Angola em 3 de fevereiro de 2007, impossível esquecer. Mal podia acreditar que estava aterrissando em uma pista de terra, na capital de um país. Demorou cinco horas para pegar sua bagagem. Seu pai já morava em Angola desde 2001. Veio animado pelo sucesso de dois amigos, os donos da rede de lojas Brazuka. No bairro onde mora não há água encanada e toda semana ele gasta US$ 200 para que o caminhão pipa abasteça a caixa d´água. Ter que ir até a Empresa de Distribuição de Eletrecidade (EDEL) para pedir a fatura e pagar a conta de luz é outra coisa que o irrita e ele tem um funcionário só para cuidar deste tipo de burocracia. Aos finais de semana vai para as baladas na Ilha de Luanda, nas casas noturnas onde a maioria é estrangeira. Mas isso não é suficiente para animar a vida. Ele não se sente feliz em Luanda. Está construindo sua carreira, ganha dinheiro, tem como pagar por todo o conforto que se pode conseguir no país, mas resume tudo em uma frase: “Falta mulher”. Hussein não se acha preconceituoso, tem grandes amigas que são de Angola, mas

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nunca teve interesse em namorar uma angolana. A maior parte de seus amigos que nasceram no país já morou no exterior e, na opinião dele, esses têm outra cabeça, “sabem dos seus direitos”. Voltou a fumar por causa do estresse da rotina e quando os maços de cigarro já não são suficientes recorre ao que chama de sistema de sobrevivência: pega um avião e viaja. Vai para Londres, São Paulo ou Dubai, onde trabalhou por seis meses na Porsche. Na sala da gerência, o empresário, de 26 anos, fala da possibilidade de ampliar o negócio para as classes mais altas. Uma alternativa mais rentável? Não necessariamente. Hussein está satisfeito com o rendimento porque no país pagar em dinheiro e à vista é praticamente a única opção. Poucos lugares aceitam cartão para pagamento das compras e quando aceitam é apenas em débito. Nada melhor para um comerciante como um mercado em que todos, independente de classe social, compram em dinheiro vivo, sem pedir desconto e sem a possibilidade de parcelamento. O jovem brasileiro orgulha-se de ter apenas funcionários angolanos. O país já não cresce tanto como no período de 2003 a 2008, quando teve uma média de 13% ao ano no aumento do Produto Interno Bruto (PIB), a quarta maior do mundo. Ele diz que não vale mais a pena trazer brasileiros para trabalhar na loja e nem há mais tanto interesse dos trabalhadores, porque do outro lado do Atlântico também se vive um ótimo momento da economia. Há funcionários com oito anos de empresa que trabalham com a família. Mudanças de emprego por abandono, demissão ou retorno dos patrões para o país de origem são recorrentes e o mais comum é encontrar funcionários que estão nas empresas há poucos meses. São 14 pessoas trabalhando em duas lojas, com salários que variam entre US$ 250, para a menina da limpeza, e US$ 1000, para os funcionários de confiança. Alguns foram enviados ao Brasil para fazer cursos, mas é preciso não comentar com os outros, cada qual com seu segredo. O empresário conta que a relação com todos é muito boa e de grande credibilidade. É convidado para as festas de noivado, casamento, nos quais sempre dá uma passada.

O envolvimento com os funcionários faz aparecerem situações peculiares. Certo dia, uma das esposas de um funcionário irrompeu na loja indignada. Ela queria cobrar do marido que estava dando mais dinheiro a uma família do que a outra. Ainda que a poligamia não seja legal no país, é muito tolerada e a esposa reclamava o que considerava serem seus direitos. Hussein não teve alternativa a não ser se meter no caso de família. A senhora só se acalmou quando o chefe adiantou o salário e o marido lhe deu dinheiro. Por volta das três e meia da tarde, Hussein vai para outro escritório, cuidar do transporte e liberação das cargas que chegam ao Porto de Luanda. A cada dia que o contêiner fica parado, paga-se US$ 150, por isso ele segue todos os passos, para que a liberação seja feita o mais rápido possível. Cada um dos três contêineres que a loja recebe por mês fica no pátio no máximo 10 dias. O congestionamento de até dois meses para receber a mercadoria nunca foi motivo de preocupação, o problema é resolvido com um acréscimo de porcentagem ao despachante. “Nós pagamos 2% do valor da carga, aí sai mais rápido. Tem gente que pensa que paga menos dando só 1% , mas acaba gastando mais, porque tem que pagar mais taxas e às vezes a mercadoria estraga, principalmente quando é comida e até móveis”, explica Hussein. Dos produtos consumidos em Angola, 98% é importado. Os produtos estrangeiros são distribuídos aos armazéns e redistribuídos rapidamente pelas zungueiras nas ruas e em mercados menores. A exportação do país se resume em petróleo bruto (90%) e diamantes (7%). Depois de serem negociadas por exportadores engravatados, em salas limpas e frescas de ar-condicionado, muitas mercadorias importadas vão para um dos principais locais de escoamento em Luanda. Na cidade está o maior mercado a céu aberto da África, o Roque Santeiro, com 50 hectares. As zungueiras compram em atacado os produtos para venderem nas calçadas. Muita gente esperta, que roda Luanda toda à procura de melhores preços, sabe que há produtos que só tem ali no Roque. Lá são vendidos ele-

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trodomésticos, roupas, alimentos, eletrônicos, tênis. Na chegada, avistam-se milhares de barracas com teto de lona ou do material que houver disponível. Do asfalto ao terreno onde fica o mercado, há um desnível de cerca de um metro e quando chove fica impossível de transitar pelo chão de barro. Tem gente que não viveria sem o Roque, outros acham totalmente dispensável e até desagradável. Para Gomes não vale a pena ir lá, “muita poeira, muitos gatunos, muito barulho, não se pode caminhar em paz”. Como em quase todo lugar de Luanda, a música não para e é impossível não notar a influência brasileira. Pelos corredores estreitos toca Chitãozinho e Chororó, Fagner, Roberto Carlos. Músicos que fizeram sucesso cantando nas trilhas sonoras de novelas da Globo têm grande audiência no país. Foi uma delas que deu origem ao nome do mercado. Tem também fato (como chamam os ternos) e gravatas, vestidos longos de festa. Toda a cor e cheiro das feiras com frutas e verduras. Congelados e enlatados, materiais de construção. Quem procura serviços sexuais e drogas também encontra. Tem muito ouro e bijuteria. Bacias coloridas. O chão é terra, tomate espatifado, prego, pilha, pegadas de Havaianas... Uma luta por sobrevivência. Nos cantos das barracas mulheres gordas cochilam. Em outros, mães fazem as tranças nas filhas. Nos botecos improvisados, jovens ficam azarando e se embebedam. As vendedoras e os vendedores se agacham ali mesmo pra comer peixe com funji - uma espécie de pirão com farinha de bombó (mandioca), só que muito mais espesso, quase não tem gosto e não se mastiga, tem que engolir direto. No livro Mamma Angola, Solival Menezes conta que os mercados paralelos, ou candongas, são muitas vezes a única opção para produtos e serviços, como reparos técnicos e costura, e tiveram início ainda em 1975, ano em que ocorreu a independência de Portugal. O Movimento pela Libertação de Angola (MPLA) implantou oficialmente o regime socialista, que durou até 1992, quando a constituição determinou a economia de mercado. Começaram sem local fixo e pequenos aglomerados se formavam 22

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Produtos industrializados, principalmente vindos da China, tomaram o lugar das frutas nas bacias

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até a polícia aparecer. Com o tempo, as próprias autoridades, comandantes militares passaram a se beneficiar dos produtos oferecidos e não foi mais preciso mudar de local. Alguns dos pequenos comerciantes, que trabalhavam nesses mercados, cresceram e passaram a contratar outras pessoas para trabalhar no seu lugar. A valorização das mercadorias chegava ponto de fazer o salário multiplicar em dez, ao mesmo tempo em que tornava os preços inacessíveis para muitos. Na década de 90, uma caixa de cerveja poderia ser trocada por uma passagem para Portugal ou Brasil. Em 2006 o governo criou o Presild, um programa para reestruturar a rede de armazenamento e distribuição de produtos essenciais e promete cursos para os comerciantes. Por meio desse programa, foi criado um novo espaço para os vendedores do Roque, em Panguila, um local coberto, com metade do tamanho e a 60 quilômetros do centro, quase na fronteira com a província do Bengo. Entre protestos pela distância e com a dúvida de como acomodar todos, a mudança teve início em setembro de 2010. Sem se importar em ser minoria no Roque Santeiro, uma moça branca, de cabelos castanhos cacheados e menos de um 1,60 cm, começou ali os negócios em Angola. Aline, 27 anos, veio com o irmão e o cunhado para vender as roupas que são produzidas na confecção da família em Recife. A ideia surgiu em 2002 quando Aline assistiu a uma matéria no Fantástico sobre os mercados da capital angolana. O dólar custava R$ 3,40. A moça, recém formada em Administração, recebeu dos pais a proposta para fazer um intercâmbio nos Estados Unidos e continuar os estudos na sua área, sem precisar trabalhar. Os planos dela eram outros: queria ampliar os negócios da família. Depois de dois anos trabalhando no Roque, Aline trocou as tendas de lona por uma loja no São Paulo e já tem seis unidades da Parangolê, todas na mesma região. Possui 47 funcionários angolanos e três brasileiros. “De vez em quando vêm uns chineses olhar minha loja para saber o que estou vendendo. Eu nem vou lá porque são eles que nos imitam”, conta a administradora. Aline está em Angola “exclusivamente para o trabalho”.

Diz que já não é tão rentável quanto antes e só não volta para o Brasil porque tem toda a infraestrutura montada. Ela acorda vinte para às cinco todos os dias, para estar às oito da manhã na loja. Leva até travesseiro para dormir um pouco no caminho de 17 quilômetros. Fecha o caixa por volta das 19 horas e novamente enfrenta filas no trânsito para chegar a sua casa, no Projeto Nova Vida. Lá o aluguel de uma casa custa em torno de US$ 5 mil mensais, uma pechincha para os padrões angolanos. Ao contrário da polícia, não tem problemas com a presença das zungueiras na calçada em frente à sua loja. Às vezes elas ficam muito próximo à entrada, mas é só pedir para que se afastem um pouco e é atendida. Com suas funcionárias, ela não tem a mesma paciência. Num fim de tarde, próximo ao horário de fechar a loja, Aline distribui tarefas: “como não tem nada para arrumar? Esse varal todo e depois tem que varrer o chão, vamos, vamos!” Para ela o sumiço das mercadorias é por conta das próprias funcionárias. Por isso, todas as peças têm sensores antifurto importados da Europa por dois euros cada, os que vêm da China são mais baratos, mas já viu que não funcionam. Aline desistiu de contratar segurança porque não era ela quem os escolhia e sim a empresa agenciadora, que muitas vezes enviava homens idosos. Uma vez quando tentavam roubar a loja, a moça tomou atitude na frente do segurança e deu um soco na cabeça do gatuno para evitar o furto. As lojas de Aline, parecidas com as Brazukas, também não são muito o estilo de Gomes e, mesmo que fossem, ele nem lembra a última vez que saiu para comprar roupas. Mas nem por isso deixa de andar sempre arrumado, cheio de perfume e com camisetas claras que realçam sua pele negra e brilhante. Mulherengo, reconhece de longe as moças que classifica como “vampiras”, aquelas que só querem dinheiro e as quais não hesita em procurar quando briga com a namorada. Ele sobe as escadas do prédio antigo, sem elevador, para visitar seu amigo Mauro, que mora com os pais e dois irmãos. Dentro do apartamento, os móveis simples e novos, não fazem lembrar que o prédio deve ter no

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mínimo 40 anos e passou por poucas reformas. O amigo estuda Direito e trabalha no Fórum de Justiça. Gomes também estudou um semestre na faculdade de Direito, mas o dinheiro acabou e ele teve que deixar o curso. Não tem muita vontade de voltar a estudar, mas sonha em ser juiz para colocar todos os políticos corruptos na cadeia. Angola ocupa a 168ª posição no ranking de corrupção no mundo, em uma lista de 178 países, divulgada em novembro pela Organização não-Governamental Transparência Internacional. O economista e diretor do Centro de Estudos e Investigação Científica da Universidade Católica de Angola, Manuel Alves da Rocha, estranha que nenhum angolano esteja na lista dos mais ricos do mundo, da revista Fortune. “Tirando os 20 anos de regime socialista, como é que em 15 anos as pessoas com o seu trabalho, ainda que seja com empreendimentos, conseguem juntar fortunas de US$ 600 milhões ou US$ 700 milhões?”, pergunta Alves da Rocha ao lembrar dos ministros e suas parcerias pessoais com empresas estrangeiras. “Não há um único ministro, absolutamente nenhum, que não tenha empreendimentos e sempre através do Estado”. As declarações foram dadas em entrevista ao jornalista Agnaldo Brito e publicada no jornal Folha de São Paulo, em maio de 2010. Depois disso o economista foi demitido do cargo de consultor do Ministério de Planejamento de Angola e se recusa a falar com jornalistas brasileiros. Em novembro do ano passado, o presidente José Eduardo dos Santos, do Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), pediu tolerância zero com a corrupção dentro do Estado. A nova Constituição, aprovada em 2010, também prevê essa política. O mesmo documento determina voto indireto para presidente, que deve ter cinco anos de mandato e direito a uma reeleição. A regra valerá a partir das eleições de 2012 e Santos, que está no poder desde 1979, poderá se canditar novamente e tentar permanecer na presidência até 2020. A Assembleia Nacional é formada por 210 deputados, 180 deles são do MPLA. Depois da visita rápida ao amigo, para ir pra casa, Gomes

vai tomar uma candonga. As vans Toyota Hiace, com as cores azul piscina e branco são responsáveis pela maior parte do transporte da população e podem ser encontradas em outras cidades do continente, como Addis Abeba na Etiópia, Maputo em Moçambique e Joanesburgo na África do Sul. Logo ouve o destino desejado: “Congolenses, Congolenses” e chama o cobrador do táxi (como os angolanos chamam as vans) que está com metade do corpo para fora, enquanto o motorista tenta driblar o engarrafamento nas ruas de Luanda. Motoristas de outras candongas tentam o mesmo. Uma senhora faz sinal com a mão e a van encosta. “Dá um toque”, pede o cobrador aos passageiros, para que a mulher possa sentar e se aperte com mais três pessoas num banco com estofado velho e com rasgos. Com o maço de notas de Kwanza na mão, o rapaz senta na janela e, junto com os cobradores de outras candongas, forma um amplo visual de bundas para quem está fora, nas vias engarrafadas da cidade. Para se diferenciar no mar de vans, quase todas têm adesivos que cobrem os vidros traseiros inteiros com nomes como “Os gostosões”, “Obama”, “Tá ligado?”. Pontos de ônibus são raros e não há placas, mas todos sabem onde esperar a condução e onde podem pedir para parar. Se o veículo não estiver cheio, eles param em qualquer lugar. Agilidade é fundamental. Não há tempo a perder e o passageiro pode ficar pelo caminho. Raramente os motoristas são donos dos carros, a maioria deles paga US$ 100 por dia ao proprietário da van e ainda tirar o seu para dividir com o cobrador. O preço da passagem, definido em conjunto com o Ministério da Finanças, é de 50 kwanzas para curtas distâncias, 100 (equivalentes a US$ 1) para médias e 200 para longas. No trajeto, para ajudar a distrair, pode ter TV com tela de LCD, DVD portátil, ou apenas caixas de som, que fazem as candongas vibrar. Se um telemóvel tocar, o candongueiro prontamente diminui o volume da música para que o passageiro possa atender. Assim que ele desliga, o som volta a toda: Aquele candengue que viste crescer , Agora é um rapaz fora da lei.

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Só pensa em matar e roubar e ferir, E estudar que é bom, mano, não sei. Assim como vamos fazer, então? Nossa juventude tá a ficar frustrada, Nós já não queremos mais trabalhar, É coisas dos outros, queremos aldabrar. [...] Você que é cantor, você que é pedreiro, Você marceneiro, você tá a sair bem. Você que estuda, você que é enfermeira, Você que é zungueira, você tá a sair bem. [Música: “Tá a sair male” - Puto Português] Gomes chega em casa e não há luz. A falta de energia é quase diária, mas no puxadinho alugado onde ele mora tem gerador. O proprietário da casa é policial e sempre traz combustível, armazenado em abundância no quartel. Só que nesse dia veio querosene ao invés de gasolina e será preciso esperar na escuridão. Uma hora depois, a criançada grita feliz, os vizinhos colocam a música Rebolation para tocar. É a luz que voltou.

2. Vida entre muros1 Tem brasileiro que não se acostuma com o cardápio dos restaurantes angolanos e considera a praça de alimentação do Belas Shopping o local onde podem encontrar algo mais próximo da comida de casa. Recorrem aos restaurantes das franquias brasileiras Pastelândia e o Bob`s. Já que ainda não existe Mc Donald`s em Angola, a influência de comer fast-food vem via rede de lanches do Brasil. Se alguns estrangeiros têm medo de ir aos mercados populares, no shopping eles encontram um refúgio. Considerado por muitos a única opção de lazer em Luanda, o Belas foi inaugurado em 2007 e construído pela Odebrecht, empresa brasileira e maior empregadora do setor privado em Angola. São oito salas de cinema e 76 lojas com alternativas de consumo para os que ganham muito acima de US$ 100, que é a média salarial da população de Angola. São grifes norte-americanas, europeias e brasileiras, como a loja de roupas infanto-juvenis Bixo Comeu, que é uma rede da apresentadora Xuxa. A decoração tem muito cor-de-rosa, fotos das modelos loiras e de Barbies negras. Xuxa esteve na Semana de Moda Luanda em 2009, acompanhada da filha Sacha e gerou um caos no shopping. A inauguração de uma loja de sapatos e acessórios causou frisson entre as abastadas de Luanda. As angolanas mais finas pararam de comprar sapatos só no exterior quando a griffe chegou ao shopping, em março de 2010. Entre as clientes mais ilustres estão ministras e a esposa do presidente da república, que recebe em casa sacolas com os calçados para escolher. Mulheres angolanas que têm dinheiro para comprar na loja aproveitam para levar vários modelos - pelo menos um salto alto, uma sandália rasteira e uma bolsa - e nunca reclamam do preço. Há clientes que ficam ofendidas se não forem avisadas sobre a chegada de uma nova 1 Neste capítulo usamos nomes fictícios a pedido dos entrevistados.

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coleção. Já as brasileiras são mais comedidas, compram um, dois pares e sempre pechincham. Percebem a diferença entre os preços do Brasil e de Angola e sentem falta de poder parcelar. A gerente da loja, Taiana, foi contratada por um casal de brasileiros. O sócio angolano não queria uma brasileira na gerência, mas foi convencido depois que aplicaram uma prova em que pediam uma redação e questões de matemática básica. A moça ficou com o cargo, mesmo sem nunca ter trabalhado em loja no Brasil. Ela resolveu vir para Angola para acompanhar o noivo, que trabalha em uma construtora. “Angola ou une ou separa”, a gerente demonstra firmeza no olhar fixo, com as pupilas castanhas realçadas pelo rímel e a pele branca. No caso deles está unindo, já que os dois se sentem bem mais dependentes um do outro e seu ciclo social se limita aos familiares do noivo, que também são brasileiros, trabalham e têm negócios em Luanda. A visão que a gerente tem dos angolanos, como muitos estrangeiros que se fecham em suas comunidades de compatriotas, se resume à convivência profissional na loja e ao que ouve falar dos outros. Para ela, angolano é ladrão. Já ouvia do noivo, antes de chegar a Angola, e concluiu isso depois que mercadorias da loja se extraviaram no aeroporto de Luanda e uma funcionária da loja foi embora com um par de sapatos na bolsa. E aquelas que trabalham e não roubam nada, a quem ela confia as contas quando não está? Para a brasileira, são exceção. Os noivos entram na loja, vestidos a caráter. Ela com um longo vestido branco bufante e ele de fraque. A noiva se encosta no puff em forma de sapato. Clic! Pega uma bolsa que está exposta para venda. Clic! A gerente vem cumprimentá-los, já sabe que não vão com¬prar nada. Os dois aproveitam e pedem para ela tirar uma foto com eles. Taiana posa prontamente e pede a uma das vendedoras que tire uma foto com o celular. O casal vai embora com os desejos de felicidade. A gerente vira para as vendedoras e diz: “meninas, quando vocês casarem, não façam isso. Por favor, é muito cafona!”

No pátio alugado, os parentes da noiva estão sentados em cadeiras de plástico, de frente para a família do noivo. É chegado o dia do pedido de casamento, semelhante a um noivado, chamado de alambamento. Na cerimônia, a família do noivo oferece presentes como dote. Hoje, 70% da população angolana é formada por cristãos e não dispensa o casamento no religioso nos moldes do cristianismo. Mas o alambamento não é menos importante e remete às antigas tradições. Nessa data, alguns vestem as roupas típicas e cantam as músicas nos antigos dialetos. Os homens vestem terno e gravata e as mulheres variam: as mais novas estão de roupas modernas, terninhos e vestidos, enquanto as mamás, usam roupas de pano colorido e a cabeça envolta em um tecido da mesma estampa. Entre as famílias, é feito um caminho de panos coloridos por onde seguirá o casal. Os dois ainda não chegaram e os convidados não sabem onde eles estão. - Estamos aqui reunidos para celebrar a união familiar entre Nseleka e Juliana. Antes de começarmos a festa, temos obrigações a cumprir. É importante que as meninas que ainda vão casar saibam que não devem aceitar qualquer pretendente e os homens saibam que para montar uma família é preciso antes provar que podem arcar com as responsabilidades - anuncia o orador, que é tio do noivo e dá início à leitura de uma lista: - Dez caixas de gasosas, cinco de Sprite, cinco de Coca-Cola, dez caixas de cerveja. Alguém lembra o orador que é preciso esperar as mercadorias chegarem para que os produtos, que foram pedidos com antecedência pela família da noiva, sejam conferidos. Chegam os refrigerantes, as cervejas, os tecidos e chinelos para as tias. Rum, Amarula e o fato completo, com sapato e gravata, vêm para o pai da moça. Para finalizar, faz-se a entrega de uma carta à família da noiva, na qual o noivo declara seu amor e coloca a quantia de US$ 700 conforme constava na lista. Terminada a entrega do dote, três casais de crianças começam a girar numa dança coreografada para preparar a entrada

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do noivo. Com roupas largas e bastante coloridas, o futuro marido desfila e dança na passarela feita pelos panos e vai soltando, como se estivesse deixando cair, notas de 200 Kwanzas, equivalente a US$ 2 rapidamente recolhidas por tias maternas. Só falta a noiva. Todos assustam o pretendente, dizem que ela está longe, que não sabem se chegará a tempo. Quando a moça entra, vem com outras amigas, todas com os rostos cobertos por panos, para testar se o noivo reconhece sua amada. O rosto de Juliana é descoberto e os dois enfim se encontram. O pedido está feito. As famílias se unem para dançar semba, kizomba e comer os quitutes e funji que as tias passaram o dia preparando.

da média do ranking do Banco Mundial para se abrir uma empresa no país: 263 dias é o mais demorado do mundo. O Brasil vem logo atrás, na quarta posição, com 166 dias. A espera parece compensar e Sílvia acredita que até 2011 o investimento de US$ 700 mil terá retornado, em uma velocidade duas vezes maior que no Brasil. Antes de abrir o negócio, a produtora e sua sócia já ajudavam outras mães a decorar as festas infantis no condomínio onde moram em Luanda. Mas o foco não é as outras brasileiras que moram próximo, e sim as angolanas. Nos finais de festa elas sempre recebem elogios pela decoração e pelo espaço. “Mas na festa do meu filho, quero que seja ainda maior”, diziam as convidadas angolanas. A principal procura é para comemorações de aniversários de um ano, equivalentes às festas de 15 anos no Brasil. O desespero de uma mãe foi tanto para fazer a festa do seu filho na data correta, 24 de dezembro, que ela sentenciou: “pago o quanto for”. Quem conta a história é o marido de Sílvia, Henrique, em uma mistura de espanto e felicidade pelo dinheiro extra, US$ 4 mil a mais. Ele é dois anos mais novo que ela. Durante os jogos da Copa do Mundo, o espaço foi local para festas, a US$ 50 dólares por pessoa, para brasileiros. Esse público não quer saber muito de gastar com festas, estão lá para poupar, como o casal. – Não vamos passar a pão com ovo, mas não podemos esbanjar. Senão, não vale a pena. Eu tenho sete irmãos, nenhum deles ganha o que a gente ganha, gasta o que a gente gasta e ainda economiza – diz Sílvia sentada no sofá da sala. A casa tem dois quartos, um banheiro, cozinha e sala conjugadas. O casal e os dois filhos estão em Luanda desde 2006 e não encaram a escolha como sacrifício, ao contrário do que observam em muitos brasileiros. Na vila onde moram, vivem outros parentes do marido, o que ajuda a diminuir a saudade. Um dos motivos pelos quais não querem voltar tão cedo ao Brasil é a tranquilidade da capital angolana. Em Luanda podem criar os meninos brincando no espaço da vila, em vez da clausura de um

- A gente não tem know-how pra fazer a decoração de alambamento, nem de casamento, porque é bem peculiar. Muito babado, plumas, nada simples. Aí só alugamos o salão por US$ 5 mil. Teve pedido aqui que foi na sexta e eles alugaram para sábado e domingo, que foi um pós-festa – conta a brasileira Sílvia de 34 anos. A produtora de festas montou uma empresa em 2009, junto com outra amiga, com quem alugou um espaço e faz decoração para festas infantis. Nada de isopor: os itens decorativos são todos feitos em madeira e a mãe pode escolher vários temas. Moranguinho, Hello Kity e Mickey são os mais pedidos e o espaço decorado está entre US$ 6 mil e US$ 8 mil. Todo o material necessário, que inclui cadeiras de alumínio, bonecas com uma textura que imita a pele humana – que custaram R$ 800 – e até mesmo a madeira para a decoração são importados do Brasil. Se fossem fazer a decoração para casamentos, seriam mais pedidosa quantidade de material seria muito maior, jarros, urnas, mesas de vidro, ou seja, mais importações. A Agência Nacional de Investimento Privado (ANIP) promete em 15 dias uma empresa está regularizada, após a entrega da documentação necessária. Mas foi preciso um ano para que a a empresa de Sílvia fosse registrada pela ANIP. O tempo está dentro 32

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apartamento no Recife. Sílvia tem trauma dos assaltos na cidade natal. Em 2007, esteve na capital pernambucana para o casamento da cunhada, chegou em uma terça-feira e voltou na segunda seguinte. Foi assaltada na quinta e no sábado. A sua casa de festas também foi roubada, mas ao contrário das experiências no Recife, tudo foi recuperado. O roubo foi armado por todos os funcionários. “Desde o motorista que ia ao supermercado comigo e levava meus filhos à escola até a cozinheira”. A polícia prendeu o segurança, que acabou dedurando todos os outros. Uma situação que encaram mais como cômica do que trágica. Além do trabalho na casa de festas, que lhe consome principalmente os sábados e domingos, Sílvia leciona três vezes por semana a disciplina de Introdução ao Direito, no curso de Relações Internacionais de uma universidade, em Talatona. Ela é formada em Direito, no Recife, e iniciou uma pós-graduação em Comércio Exterior, mas cursou apenas seis meses e teve que desistir para morar em Angola. Ao contrário das colegas brasileiras da área da saúde, não vê dificuldades de aprendizado nos estudantes. Diz que os alunos – 60 em uma turma e 120 em outra – são muito politizados por conta da história do país. “Não tive problemas para falar de lei, constituição”. A professora conta que o coordenador, que é angolano, conversou com ela antes de iniciar as aulas para que começasse de baixo e nivelasse os alunos. Os estudantes das turmas em que Sílvia leciona têm, em média, 17 anos, mas muitos angolanos mais velhos estão voltando aos estudos. Houve uma explosão de faculdades privadas e a qualidade delas é uma preocupação do Ministério da Educação e da Secretaria de Estado para o Ensino Superior (SEES) que chegou a propor a exclusividade para o Estado na criação de universidades e academias. Existem 17 universidades privadas na província de Luanda e há inúmeras outras querendo ingressar nesse mercado. A necessidade de formação se estende aos membros do governo: alguns estão cursando a graduação, há os que fazem mestrado e outros ainda, que completam o ensino fundamental. 34

2. Vida entre muros

Para comprar uma casa no bairro de Talatona é preciso desembolsar alguns milhões de dólares

O Brasil também está presente na educação, com destaque para o ensino técnico. O brasileiro Cláudio de Holanda, por exemplo, é diretor do Instituto Superior Profissional Politécnico de Angola, que também presta serviço de consultoria para o governo angolano. O instituto tem parceria com a Fundação Getúlio Vargas e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). Sílvia vai dar aulas para seus filhos em casa e pediu para a cunhada trazer livros de Geografia e História do Brasil. O futuro ingresso dos meninos de quatro e de sete anos, na universidade é a principal preocupação do casal. Hoje eles estudam na Escola Portuguesa, que fica a poucos minutos de carro de onde moram. Por enquanto, o futuro deles é o único fator que os faz pensar em voltar. A rotina em Luanda cansa e “depois de sete, oito meses só trabalhando, a gente precisa ver um pouco de civilização”, diz ela. Costumam ir para a Joanesburgo, na África do Sul, que fica a quatro horas de avião e dá para ir passar um final de semana. Também foram à Europa, algo que no Brasil ela nem sonhava. 35


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Trabalhava só para pagar as contas. Sílvia foi à terra natal com seus filhos em junho, mas o marido não visita o país desde 2008 e só pretende voltar na Copa de 2014. Henrique é o único responsável pela vendas de imóveis na construtora onde trabalha, seu salário varia: “Tem meses que não recebo, em outros, ganho mais que o diretor”. A maioria dos compradores que negociam com Henrique é angolana, mas empresas brasileiras também compram prédios inteiros para trazer seus funcionários e diminuir os custos de alugar casas em diversos pontos da cidade. O apartamento mais barato sai por US$ 600 mil, com uma área de 107 m². O valor mais alto é US$ 1,5 milhão, para apartamentos de 263 m². Uma casa com essa mesma área, em um terreno de 500 m² sai em torno de U$S 2,2 milhões. Ele foi chamado por um tio engenheiro que chegou a Angola nos anos 90. O tio foi diretor da Odebrechet Angola e depois, junto com outro colega brasileiro da empresa e se uniram a um general angolano e montaram um grupo de empresas, que além da construtora, reúne loja de decoração, de máquinas, fábrica de envasamento de água e uma fazenda. A crise interrompeu quatro projetos da construtora e Henrique está com quatro casas e 34 apartamentos encalhados. Nem por isso a rotina se limita ao escritório e ele circula pelas obras fazendo vistoria. Uma delas é um prédio de alto padrão, em que cada apartamento custa de US$ 2 milhões. Inclui cinema, sala de conferência com isolamento acústico, salão de festas mobiliado e salão de beleza, esse último pensado especialmente para mulher angolana. Na área externa, um chinês faz o acabamento da piscina. Henrique explica: “quando precisamos de uma mão de obra um pouco mais especializada que os angolanos, a nossa filial na China seleciona alguns trabalhadores e trazemos para cá”. Uma opção mais barata do que trazer brasileiros para funções de pedreiros, carpinteiros, algo que faziam até 2008. Os chineses são muito bem vistos pelo governo angolano. São inúmeras parcerias e um total de US$ 6 bilhões em emprés36

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Como os moradores do Congolenses, 91% da população angolana vive em moradias inapropriadas

timos. O primeiro ocorreu em 2004, quando o país foi o único que aceitou ajudar depois que o Fundo Monetário Internacional negou auxílio. A China empresta dinheiro em troca do petróleo e Angola é o segundo maior fornecedor do óleo para o país asiático. Os chineses são mão de obra barata, a maioria presidiários que cumprem pena de trabalho. Suas obras são conhecidas por serem de baixa qualidade, mas a rapidez parece compensar. Eles fazem divisão de três turnos e as construções são tocadas 24 horas por dia. Hoje, o número de trabalhadores brasileiros na construtora passou de 200 para os atuais 80. “A crise deixou preços dos imóveis mais realistas”, observa Henrique no caminho para outra obra, enquanto aponta para casas de piso térreo, um pouco maiores do que as casas construídas para moradia popular no Brasil. Nenhuma delas tem custo inferior a US$ 1 milhão. A próxima obra é voltada para a classe média, com apartamentos de US$ 600 mil. O prédio está praticamente pronto e 37


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2. Vida entre muros

quase todo vendido. O corretor veio acompanhar a esposa de um gerente administrativo da Odebrecht para fazer a vistoria. Como compraram na planta, economizaram US$ 1 mil. Ainda não sabem se irão alugar o imóvel ou vender quando estiver todo mobiliado. Quem também acompanha a vistoria de Delma, a nova proprietária, é o encarregado das obras, Rodrigo. Ele está há seis anos em Angola. Esse é o segundo país estrangeiro em que tenta a vida. Conheceu a Bélgica e trabalhou lá como operador de máquina industrial, encarava um frio de até 15°C negativos para ganhar € 1700. O frio e duas deportações o fizeram desistir da Europa e aceitar o convite de um amigo para trabalhar em Luanda, mesmo ganhando menos. Agora pode se comunicar na língua materna e está em uma posição de comando, como encarregado geral e ganha US$ 2 mil, mais acomodação e alimentação. “Na hora de chamar a atenção para alguma coisa, você tem que tomar todo cuidado para não ofender os angolanos, mostrar que você não se sente superior a eles porque é estrangeiro”. Também foi nessa terra que conheceu a esposa, uma angolana que está morando no Brasil com os cinco filhos, dois do primeiro casamento dela. Ela trabalha como cabeleireira em Uberlândia, Minas Gerais, para onde Rodrigo pretende retornar em seis meses. Se ele está mandando dinheiro para o Brasil? - Ela tá melhor que eu, uai. Na vistoria, as mudanças solicitadas pela senhora são simples: verificar algumas tomadas, uma abertura da porta do armário, detalhes pequenos. Nada comparado às indecisões de uma das filhas do presidente, que possui um spa na baía de Luanda, na Avenida 4 de Fevereiro. Foram quatro mudanças de cor da parede externa, que no fim saiu de um bege claro para um amarelo claro. Da sacada, Henrique mostra mais dois prédios que estão sendo levantados pela construtora e reclama que as vendas estão difíceis: “Comprar um apartamento de 600 mil [dólares] os angolanos não compram, mas gastam facilmente 200 mil com festas”. Logo pondera que obter um empréstimo é complicado, os juros

mínimos atingem 24% ao mês. Ao apontar para as novas construções, ele não deixa de destacar suas inúmeras qualidades, entre elas, a novidade dos medidores individuais de consumo de energia elétrica. A conta de luz ainda é algo recente em Luanda. A energia elétrica é acessível para 66,3% da população urbana do país e 8,6% no campo. Muitos que buscam o boleto na Edel, contestam o valor e acabam por não pagar. Mas a luz raramente é cortada e, caso seja, as pessoas já estão habituadas a utilizar geradores durante os apagões, esses sim, bastante frequentes. Henrique considera a cobrança justa e conta que tanto angolanos quanto estrangeiros abusam dos gastos com a luz. “Tem brasileiro que passa três meses fora, em férias, e deixa tudo ligado”. A vista no sexto andar alcança longe e não há morros como obstáculo. No primeiro plano, Talatona com ruas asfaltadas, vazias. A região é residencial, com casas novas, de um ou dois pisos, em formato quadrado, muito parecidas umas com as outras, que valem alguns milhões. Ao fundo, na linha do horizonte, estão os musseques, onde vive a maioria da população.

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3. Um império brasileiro

3. Um império brasileiro Talatona é um pedaço do Brasil em Luanda, onde moram muitos brasileiros em um padrão bem acima da realidade do país. Não há tumulto de pessoas andando a pé, nem gritaria de vendedores ambulantes. O bairro está localizado no município da Samba, na região de Luanda Sul e tem predominância de condomínios fechados de casas e prédios de classe média alta, cada um com seu sistema de segurança. A academia de ginástica e a piscina às vezes são coletivas, mas há também os que têm seu espaço fitness e de lazer exclusivos. É um oásis para quem não se acostuma à tradicional paisagem de Luanda. Nas festas, pagode e sertanejo embalam os churrascos nas amplas casas e áreas de lazer dos condomínios de Talatona e é raro ver um angolano. A maior comunidade de brasileiros é formada por funcionários da Odebrecht. Nesse mundo à parte, eles moram juntos ou são vizinhos, os filhos estudam nas mesmas escolas. As repúblicas em apartamentos ou sobrados amplos dos condomínios fechados incluem no pacote o direito a uma empregada, que limpa e cozinha para todos. Quem atua como engenheiro ou ocupa cargo de direção, se quiser, pode trazer a família junto na mudança. Eles moram em casas confortáveis com as mesmas garantias que os solteiros. Suas esposas não têm visto de trabalho e as alternativas de lazer são poucas, as distrações delas são encontros nas academias dos condomínios, no Belas Shopping e nas festinhas de aniversário dos filhos. Para ir além dessa rotina, 150 esposas de funcionários da Odebrecht formaram o grupo Kambas do Bem, que faz projetos sociais em regiões onde a multinacional realiza obras. No município de Viana, a Escola do Mussende foi construída por iniciativa das voluntárias. A empresa contribuiu com 50% e outra metade do dinheiro foi arrecadada em festas e eventos. Há festas de família e festas de solteiros. Para esses, existem casas noturnas que muitos angolanos classificam como “só

para pulas”, como chamam os brancos. Nessas festas, chegam aos montes grupos de homens de 20 a 50 anos, ávidos por companhia. Alguns atacam brasileiras com pinta de patricinha que trabalham nas empresas por lá. Outros se arriscam a dançar a tarrachinha com angolanas, dança em que os movimentos do quadril de um conduz o quadril do outro. E quando mocinhas solteiras aparecem nas festas de família, algumas esposas ficam irritadas, motivo de muitas resenhas, sinônimo de fofoca para os baianos, que são grande parte dos brasileiros em Angola. A redoma que protege e dá conforto aos funcionários, que vivem tão próximos, também faz com que muitos se conheçam e as notícias, mesmo as da vida pessoal, corram rapidamente. Fica difícil separar o trabalho das questões mais íntimas quando o ramal do escritório de alguns funcionários redireciona as ligações para a república onde moram. O engenheiro eletricista Waner mora em uma república, com mais dois colegas, na vila do Gamek. O condomínio foi construído nos anos 80 para receber os funcionários brasileiros que vinham trabalhar em Angola no primeiro projeto da Odebrecht, a Usina de Capanda. Mas as moradias deixaram de ser só para trabalhadores e já abrigam ilustres angolanos. Sua vizinha é a ministra de Energia e Águas, Emanuela Vieira Lopes. “Eu nunca tinha visto um ministro no Brasil, a não ser pela televisão. A ministra mora em uma casa simples de madeira, mas é dona de 18 carros”, conta o engenheiro. Para escapar da solidão, sai com os amigos nos finais de semana, mas prefere bares e restaurantes, lugares que julgue tranquilos para um pai de família de 30 anos, onde gasta em torno de US$ 100, considerado o mínimo em um restaurante frequentado por estrangeiros. As casas de amigos que moram com a família são outra opção para as horas de folga. Ele aceita os convites para comer churrascos, mas, quando a festa é para poucas pessoas, sente-se constrangido. Waner senta diante de um amigo, da esposa dele e dos filhos e parece que falta assunto. Sua mulher não está ali para conversar com a do amigo, nem sua filha para brincar com os filhos deles. Waner tem, como 41


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3. Um império brasileiro

engenheiro, direito a ter a família em Luanda, mas acha que não é o momento. Dos seus quatro anos de Odebrecht, os últimos dois e meio que passou em Angola elevaram seu padrão de vida. Com o salário que ganha, paga a faculdade de Nutrição da esposa e o Colégio Marista para a filha, na opinião dele o melhor de Patos de Minas, cidade onde as duas moram. Em Luanda os filhos de estrangeiros geralmente estudam na Escola Portuguesa ou na Escola Americana, que custam em média US$ 19 mil por ano. Com a economia de manter a família no Brasil, o que sobra dá para investir em imóveis em sua própria cidade e aplicar na bolsa de valores. Às vezes a esposa liga chorando e diz que estão perdendo momentos que nunca mais vão voltar, Waner não está vendo a filha de sete anos crescer e, no futuro, vão olhar para trás e se dar conta de que o dinheiro não compensou essa ausência. O engenheiro não discorda, mas acha que ainda não é hora de voltar, nem sabe quando vai ser. Evita dizer que o dinheiro é o fator preponderante e usa sempre o discurso do desafio, a importância disso na carreira. A gerência do Programa Águas de Luanda da Odebrecht, projeto no qual Waner trabalha, fica no município de Viana. Nas paredes há vários retratos de José Eduardo dos Santos. Negam o boato de que o presidente de Angola tenha ações dentro da empresa. Mas este parece só um detalhe, independente disso, foram obras da empreiteira brasileira quase tudo no bairro de Talatona, condomínios, pavimentação das ruas, rede de água de inteira responsabilidade deles. A gerência fica dentro da Zona Econômica Especial (ZEE), que está sendo construída pela empresa em uma área de oito mil hectares, destinada à instalação de pelo menos 80 indústrias que deverão contribuir para a independência econômica de Angola. Estão previstas empresas de alimentação e bebidas, manufatura de produtos agrícolas, vestuário e calçado, indústrias têxteis, químicas, farmacêuticas, metal-mecânicas. A montadora chinesa Nissan é a primeira a se instalar e terá um prazo de 28 anos para atuar no país, que podem ser prorrogados ou a fábrica passará para mãos do governo.

A entrada da ZEE é controlada de uma cabine amarela de metal, onde só cabe uma pessoa. Para entrar ou sair basta que baixem uma corrente, que fica atravessada a meio metro do chão. Quem cuida da portaria é um tropa, como são chamados popularmente os policiais angolanos, já que muitos faziam parte da tropa nos tempos de guerra. No fim do expediente de sábado, Waner repete o caminho de volta para casa de todo dia. Mas dessa vez, o tropa levanta a corrente e não o deixa passar. O engenheiro eletricista se irrita. Só quer ir para casa, por que o tropa tem que impedi-lo? Sua tentativa de argumentar é interpretada como desacato à autoridade. Situações como essa não são raras entre policiais e motoristas, principalmente quando estes são estrangeiros. Waner acha que o tropa só está à espera de alguns kwazas de gasosa (propina) para liberá-lo, mas ele insiste em ter razão e fica detido ali no posto de Viana. Minutos depois, com a troca de telefonemas entre superiores da Odebrecht e da polícia, ele vai embora. Em dezembro de 2010, Waner vai embarcar no voo da alegria - como é chamado o avião fretado para os funcionários da Odebrecht no final do ano. Ele chegou a Luanda em novembro de 2008, e não passou os últimos dois Natais com a família. A cada período de renovação de visto, ou ao fim de um projeto, as pessoas são mandadas de volta. A empresa também tem como política evitar que os funcionários fiquem mais de cinco anos em um país. Com a crise econômica houve um grande êxodo de brasileiros. A Odebrecht que chegou a ter 12 mil, em 2010 está só com 1200. A responsável pelas relações institucionais da Odebrecht em Angola, Letícia Korndorfer, diz que o principal motivo para muitos voltarem não foi a queda de preço do petróleo de US$ 147 em julho de 2008 para US$ 42 em janeiro de 2009 e a falta de pagamento por parte do governo angolano. Ela argumenta que Angola teve um boom com o fim da guerra e a empresa teve muitos projetos requisitados pelo governo e que agora já não são tantos e o número de brasileiros pode ser reduzido, até porque

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angolanos, 17 mil no total, têm sido treinados para substituí-los. A elaboração e a implementação de um plano de formação para os funcionários angolanos devem ser feitos por todas as empresas por determinação do Regulamento da Actividade de Empreiteiros de Obras Pública, Industriais de Construção Civil e Fornecedores de Obras, de março de 1991. O regulamento também exige que a mão de obra nacional deva ser de 85% entre operários, administração e serviços, metade entre os técnicos de nível médio e, no mínimo, 25% para técnicos superiores. O departamento de Inspecção Geral do Trabalho, do Ministério da Administração Pública, Emprego e Segurança Social (Mapess), responsável pela fiscalização, não tem sido muito rigoroso, por entender que o ritmo de crescimento do país é muito maior do que o número de trabalhadores nacionais capacitados. Os estrangeiros podem permaner até três anos no país, mas caso a empresa sinta necessidade, pode solicitar junto ao Mapess um tempo maior. Roberto está em Angola há 13 anos e aplica em todos os sentidos a doutrina que aprendeu na Odebrecht de que o trabalho é sequência do lar. Ele mora no dormitório que fica no mesmo terreno onde é a gerência do Programa Águas de Luanda e tem um carro da empresa que fica sob sua responsabilidade. A única vez que andou de candonga foi para voltar com os amigos de trabalho de uma boate perto do porto de Luanda. Só topou porque não tinham outro transporte, então lotaram a van e combinaram o destino com o motorista. O sistema de táxis individuais só começou a existir na cidade em dezembro de 2009, quando 150 carros começaram a operar a fim de dar suporte ao Campeonato Africano das Nações, que ocorreu em janeiro de 2010. A empresa disponibiliza transporte para as idas à praia nos finais de semana, organiza churrascos e incentiva a convivência entre os funcionários, para que não queiram voltar para casa tão cedo. Na Odebrecht desde 1975, Roberto trabalhou como encarregado de obras em projetos grandes no Brasil, como a usina de Angra dos Reis. Mas, quando chegou a hora de os filhos entra44

3. Um império brasileiro

Os angolanos só perdem para os brasileiros em número de funcionários da Odebrecht no mundo

rem na faculdade, não tinha como mantê-los. Ele se deu conta que “nas universidades públicas uns poucos filhinhos de papai têm a sorte de entrar” e o salário que recebia na época não daria para pagar a graduação de três. Foi aí que surgiu a ideia de se mudar para Angola. Em 1997, Roberto atravessou o Atlântico, a 6206 km de distância. Deixou a família no Rio de Janeiro e foi morar no sétimo maior país da África, com 1.246.700 km², extensão semelhante ao estado do Pará. Seus familiares ficaram abalados ao saber que Angola estava em guerra civil desde 1975, mas se conformaram por considerar mais que um emprego, um trabalho de solidariedade e por saber que muitos outros da empresa já estavam lá. Nas ruas de Luanda, as placas das obras de manutenção, os avisos de “Não pise na relva”, as indicações de desvio nas avenidas, tudo leva a logomarca da Odebrecht, parece que é a secretaria de obras da cidade. O projeto Vias de Luanda abrange pavimentação, instalação de calçadas, jardins, valas para drenagem, sinalização e rede subterrâneas (esgoto, água, energia elétrica e telefonia). 45


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3. Um império brasileiro

Uma equipe do escritório de Jaime Lerner, arquiteto brasileiro e ex-prefeito de Curitiba, foi contratada para fazer o projeto urbanístico que envolve paisagismo, quadras esportivas, calçadas e mosaicos de pedra, inspirados na tapeçaria de sisal típica do país. A Odebrecht entrou em Angola em 1980, como muitas empreiteiras, através da prestação de serviços à Petrobrás, que chegou um ano antes. A mineradora Vale do Rio Doce, que está no país, desempenhou o mesmo papel e abriu caminho para internacionalização de construtoras brasileiras no mundo. Outros grupos brasileiros da construção em Angola são a Camargo Côrrea e a Andrade Gutierrez, por meio da sua filial portuguesa Zagope. O primeiro projeto da Odebrecht no país, a Usina Hidrelétrica de Capanda, inicia em 1984, na região a 450 quilômetros de Luanda. Nesses 30 anos, mesmo nos momentos mais críticos da guerra, a empresa nunca se retirou do país. Em 1991, os negócios da multinacional foram expandidos para o ramo da mineração. O investimento no projeto Luzamba resultou na maior unidade de produção de diamantes do país daquela época. Em 1993, com a Sociedade Mineira de Catoca, a Odebrecht, a Empresa Nacional de Diamantes (Endiama), a Alrosa e a Lev Leviev passaram a prospectar, explorar, recuperar e comercializar diamantes na terceira maior reserva do mundo. O projeto da empresa para a região de Luanda Sul surgiu em 1994 e foi o primeiro programa de participação pública e privada no país. A Odebrecht apresenta o projeto como um plano de desenvolvimento urbano que deu origem a uma das regiões mais valorizadas de Luanda, onde está localizado o bairro Talatona. O consórcio Odebrecht-Raytheon prestou serviço de apoio logístico em todo o território angolano à terceira Missão de Verificação da Organização das Nações Unidas UNAVEM III (United Nations Angola Verification Mission), de 1995 a 1997. Assim como a primeira (1989-1991) e a segunda (1991-1995), essa Missão teve participação de tropas das Forças Armadas do Brasil. O objetivo era ajudar o governo de Angola a se reconciliar com a

União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita) e restabelecer a paz, que viria só em 2002. Nesse mesmo ano a empresa passa a explorar a principal fonte de riqueza do país e começa a fazer prospecção de petróleo no Bloco 16, em sociedade com a estatal angolana Sonangol, a norte-americana Devon e a dinamarquesa Maersk. O supermercado Nosso Super, com 29 lojas em 16 províncias, foi construído pela Odebrecht em 2006, a pedido do governo e dentro do Programa de Reestruturação do Sistema de Logística e de Distribuição (Presild). O objetivo é reduzir as compras no mercado informal com zungueiras e nos mercados populares e oferecer mais alternativas à população. A empresa está administrando o empreendimento, fazendo treinamento de funcionários e importação de produtos. A proposta é entregar o negócio em pleno funcionamento para o governo angolano até o final de 2010, mas os contratos ainda estão sendo avaliados. Além da abertura em novos nichos de mercado, em todos esses anos a Odebrecht continua fazendo em Angola o que mais tem tradição: construir. São estradas, rodovias, condomínios de alto padrão, casas populares e estações de tratamento de água. As palavras “reconstrução” e “revitalização” aparecem em muitas das placas da Odebrecht espalhadas pelo país. Em 2008, o bairro Mártires do Kifangondo, próximo ao Aeroporto 4 de Fevereiro, foi o escolhido para ser o primeiro a passar pela reestruturação completa. A escolha se deu porque “não fica bem os turistas chegarem e se depararem com um bairro feio” explica um funcionário. Moradores reclamam que a empresa tapou todos os bueiros e agora, quando chove, o bairro vira uma autêntica piscina. As opiniões dos angolanos sobre a empreiteira brasileira se dividem. Para alguns, se não fosse a Odebrecht, o país não estaria se reerguendo tão rápido. Para outros, tudo que a empresa faz sai caro para o governo e é feito de qualquer jeito. Principalmente nos bairros de periferia, muitos relatam que em uma semana passam uma malha de asfalto e, na semana seguinte, já está tudo esburacado e cheio de poeira. As obras de água encanada estão

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direcionadas para primeiro atender Luanda Sul, enquanto nos bairros mais populosos são instaladas torneiras de uso coletivo. Mas são poucos os que levam a público essas reclamações, apenas alguns blogs e jornais de oposição apontam defeitos nas obras da empreiteira. Nos principais jornais do país, de propriedade do governo, há apenas notícias de contratos e inauguração de obras. A relação de Angola com a Bahia, Estado de origem da empresa, é tanta que o presidente José Eduardo dos Santos se tornou cidadão baiano em 2005, por meio de um projeto de lei proposto pelo deputado petista Emiliano José. Na homenagem, em que estava presente o presidente do Grupo, Emílio Odebrecht, Santos também recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal da Bahia. A prosperidade da Odebrecht em Angola se estendeu à vida do encarregado de obras Roberto. Quando decidiu ir para lá, sua família morava em Madureira, bairro de classe média baixa no Rio de Janeiro. Agora, aos 60 anos, ele tem dois apartamentos na cidade, um no Recreio dos Bandeirantes e outro na Barra da Tijuca. O investimento na educação dos filhos está concluído. O filho tornou-se diretor de engenharia da própria Odebrecht, no Peru, e a filha é economista do setor de finanças de uma empresa de telefonia. Os funcionários brasileiros que Roberto supervisiona poderiam ser levados às obras por carros da empresa, mas ele faz questão de lhes dar carona até o trabalho todos os dias, porque é no bate-papo do carro que sente como as coisas estão, seja a vida pessoal dos colegas ou as questões técnicas do trabalho. O encarregado de obras se sente realizado, tem orgulho de dizer que “transmite tecnologia” porque está ajudando os angolanos não só ao trabalhar nas construções, mas ao ensiná-los como fazer o trabalho. Para ele, a vida em Luanda agora é muito fácil. Na época da guerra precisou atravessar regiões de conflito de carro para levar suprimentos aos trabalhadores da Odebrecht que estavam em outras províncias. Quando o carro era parado, ele nunca sabia 48

3. Um império brasileiro

Metade das casas não tem saneamento básico e um terço dos angolanos não tem água potável

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se estava sendo abordado por soldados da Unita ou do MPLA. A tática que teve foi levar sanduíches a mais para os soldados que, independente de qual lado fossem, estariam famintos. A única ocasião em que Roberto se questionou se estava valendo a pena foi quando o filho mais novo faleceu em um acidente de carro, há seis anos. Seria o último a entrar na faculdade. O pai lamentou por não estar presente quando tudo aconteceu, retornou imediatamente ao Brasil, mas depois preferiu continuar a vida em Angola. A família já se habituou a estar reunida só nas datas comemorativas. No início, como encarregado tinha o direito de visitar o Brasil a cada três meses, mas, pelo tempo de empresa, Roberto agora viaja de dois em dois meses. A esposa mora sozinha no apartamento da Barra da Tijuca.

4. Comunicação para a guerra Diante da câmera, o pai comunica que está à procura da sua filha. Ele fugiu da guerra concentrada no interior do país e espera que a filha também esteja em Luanda. A gravação é rápida e o homem se dirige à mesa para registrar seu nome e o número de seu depoimento. Uma moça recolhe a senha e pede os dados do senhor com a caneta pronta para o registro. Ao ouvir o nome, levanta a cabeça: “Paa-aai!”. O encontro havia sido planejado pela equipe de produção do Nação Coragem, sem que os dois soubessem. “Foi um negócio maravilhoso, de chorar”, lembra o idealizador do programa, Sérgio Guerra. Esse foi um dos raros encontros ocorridos na Praça da Família, que fica no Largo Primeiro de Maio. A equipe também produziu outros encontros, ao levar as famílias para o interior do país. O desfecho da história nem sempre era feliz. Em uma delas, uma senhora retorna à província de Huambo e ao chegar à propriedade da família pergunta às crianças da vizinhança sobre sua mãe e irmãos. Ninguém sobreviveu. Muitas pessoas também gravavam depoimentos para contar como os combatentes do partido de oposição invadiam e saqueavam as casas, estupravam mães e filhas.

Restos da guerra na província de Huambo, a mais afetada pelo conflito

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4. Comunicação para a guerra

A morte de Jonas Savimbi, líder da União Nacional pela Independência Total de Angola (Unita), em abril de 2002, colocou fim à guerra civil entre os dois maiores partidos do país, a Unita e o Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA). Grande parte da população ficou sem notícias de seus familiares por um longo período, mas muitos ainda tinham esperanças de reencontrá-los e, toda segunda-feira, a praça ficava lotada de pessoas que vinham gravar seus depoimentos para serem exibidos no quadro Ponto de Reencontro. A atração, criada para o programa Nação Coragem, ia ao ar no horário nobre da TV Pública de Angola - TPA e mais algumas vezes ao longo do dia. A empresa de publicidade Maianga, do brasileiro Sérgio Guerra, foi convidada para trabalhar para o Instituto Nacional de Pequenas e Médias Empresas em 1997 e levar ao ar um programa sobre fomento a esse tipo de empresa. No ano seguinte, a produtora que em Angola tem o nome de M’Link foi contratada pelo Ministério da Comunicação, para um projeto de comunicação institucional a fim de falar de cidadania, comportamento e cultura. Na mesma época, ataques da Unita voltaram a ocorrer com intensidade, como o massacre de 200 pessoas, em março de 1998, na província de Malanje. Era uma retomada da guerra oficial depois do acordo de Lusaka, feito quatro anos antes na tentativa de um armistício. O governo angolano encomendou, então, um projeto focado nos conflitos. “Montamos um plano de comunicação da guerra como justificativa para a paz e fomos para o interior das províncias fazer matérias”, conta Guerra. Foi a partir daí que a população teve mais notícias sobre a localização das tropas da Unita, o que estava acontecendo nas batalhas, principalmente aquelas em que as Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (exército do MPLA) saiam vitoriosas. A guerra começou logo após a independência, em 1975, depois de quatorze anos de luta armada em conjunto pela liberdade do país em relação a Portugal. Em janeiro daquele ano, o governo colonial formou um grupo de transição junto com os três maiores partidos angolanos, o MPLA, Unita e a Frente Na-

cional pela Libertação de Angola (FNLA). Ao final do processo, em novembro daquele ano, os partidos tinham rompido para tentar tomar o poder individualmente. O MPLA dominava 75% das províncias do país e expulsou os outros partidos de Luanda. A Frente Nacional saiu de cena e teve início a guerra civil polarizada entre Unita e MPLA. Os primeiros financiados pela produção de diamante no interior do país e por vários países ao longo da guerra, da China aos Estados Unidos. O MPLA, como até hoje, arrecadou recursos pelas reservas de petróleo e teve apoio da União Soviética e de Cuba, que enviou soldados, médicos, enfermeiros e professores. Com a assinatura do acordo de Bicesse, em 1992, os outros partidos foram legalizados pela constituição e realizaram-se as primeiras eleições presidenciais, com vitória de José Eduardo dos Santos. A Unita denunciou fraude no processo e houve uma nova retomada da guerra que só se encerraria dez anos depois. Em 1999, com as notícias de dois ataques a aviões, membros brasileiros da equipe do Nação Coragem começaram a se recusar a participar das expedições. “Eu não poderia obrigá-los a ir, então fui junto com o câmera e os funcionários angolanos. Isso resolveu parte do problema, porque eles começaram a comentar ‘se o cara vai, temos que ir também’. Mas essas coberturas eram sempre muito difíceis e não sabíamos o que encontraríamos pela frente”, conta Sérgio Guerra, hoje com 49 anos. Nessa época também contrataram uma professora de história angolana para ajudar a explicar, para os brasileiros, o contexto do que se passava. Enquanto acompanhava a equipe na produção de matérias, o publicitário aproveitava para exercer outra profissão: fotógrafo. Ele começou a fotografar no final da década de 70, mas logo interrompeu a atividade e voltou a fotografar em 1993, quando passou a fazer paraquedismo. Já lançou sete livros sobre Angola, um deles foi Nação Coragem, com fotografias feitas durante as filmagens do programa criado na metade de 99. A ideia do Ponto de Reencontro surgiu de um discurso do presidente José Eduardo dos Santos, em 2 de abril de 2002, um dia antes do acordo

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4. Comunicação para a guerra

de paz ser assinado entre MPLA e a Unita. Com voz calma e firme, como um pastor que aconselha os fiéis no culto, ele pediu paciência e cooperação a todos os angolanos porque aquele era o “momento de reencontro da família angolana”. No saldo da guerra, mais de um milhão e meio de pessoas morreram e 80 mil ficaram mutiladas. Na entrada de uma escola de Ensino Médio, que tem seu auditório usado como teatro, a professora de informática Brankaa Airesh aguarda a segunda sessão de uma peça. Essa mulher negra e magra, de 24 anos, cabelos curtos em cachinhos amarrados, sorriso fácil e debochado, prefere comédias e acha que é o gênero de que angolanos mais gostam, porque já sofreram demais com a guerra. Brankaa não mede mais que 1,65, mas a força com que se articula lhe faz mais alta. “Depressão nós chamamos de doença de branco. Na África não dá pra ter depressão. Ou você levanta e vai à luta ou vai morrer na cama. Não tem médico para ver o que você está sentindo, eles precisam tratar as crianças que estão com anemia, paludismo e febre tifóide”. E completa a comparação: “Hoje vejo na Oprah gente que fala que tem trauma do 11 de Setembro, que não passa mais por uma rua porque viu uma explosão ali. Imagine se os angolanos ficassem traumatizados e resolvessem chorar...”. Brankaa chegou a Luanda em 1992. O pai estava desesperado para enviar a família no primeiro avião que partisse da província de Malanje para a capital, onde não havia conflitos. Na primeira vez que foram à área onde os aviões pousavam não conseguiram embarcar, tentariam de novo na semana seguinte. Quem podia entrava. Em meio ao tumulto, as mães enfiavam os filhos nos aviões na esperança de encontrá-los vivos mais tarde, ou que, pelos menos, se salvassem. Muitas dessas crianças, depois da guerra, ficaram sozinhas nas ruas. “Elas estavam em todo o sítio, eram muitas crianças, algo de partir o coração”, conta Brankaa, que aos seis anos escapou de ser uma dessas. Embarcou com mais dois num avião cargueiro para a capital. Outras três irmãs ficaram na província com a mãe. “Ninguém podia andar

com seis crianças todas juntas, poderiam morrer todos. Então as mães distribuíam um para lá, outro para cá”. No desembarque ela não lembra quem os buscou, era para ser uma prima, mas ela tinha ido para o exterior junto com o marido que era diplomata. Na capital, passaram de casa em casa, porque logo os parentes não conseguiam dar conta de mais gente para sustentar e dividir o pouco espaço. Um tempo depois, a mãe e as irmãs também vieram para Luanda e Brankaa foi morar com elas e mais 24 pessoas numa casa pequena. Ao relembrar os tempos de conflito, a professora diz que é uma pessoa de sorte. Seus parentes que permaneceram na província passaram muita fome, comiam milho torrado, folhas e insetos. Também continuaram a enfrentar as filas para receber a comida lançada de aviões de ajuda humanitária. “Nossos dedos eram marcados para saberem que já tínhamos pegado os mantimentos, mas aí a gente raspava na pedra para pegar mais um quilo de arroz”. Ela também acredita que tantos anos de guerra após colonialismo português endureceram os angolanos. “Somos agressivos na fala e ainda estamos aprendendo a dialogar e resolver as coisas pela conversa”, avalia. O namorado, engenheiro de petróleo, pede a ela que pare de falar sobre guerra e depressão, concorda que o país está em situação difícil e que falta transparência do governo, mas a população já está cansada e não quer pegar em armas, nem partir para a agressão física. As brigas ficam só no bate-boca, que se vê pelas ruas; mesma energia para fazer festas, rir, conversar alto e na mesma disposição para se ajudar. Hernani Lemos, de 29 anos anos, trabalha na Sonangol, petrolífera estatal e responsável pela maior geração de empregos em Angola. Quando ainda era estudante de engenharia, viajava para a província do Bengo, vizinha a Luanda, toda semana. Em um dos retornos para casa houve um ataque da Unita. Viu vários carros pegando fogo e, de repente, um tiro atravessou o ônibus em que viajavam. O colega que estava ao seu lado foi atingido e morreu na hora. O fim da guerra foi um dos momentos em que a utilidade

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4. Comunicação para a guerra

da M´Link foi questionada no país, mas o publicitário argumentava o contrário, que o programa iria ajudar na reestruturação do país. A criação do quadro Ponto de Reencontro conseguiu alavancar a audiência do Nação Coragem e se tornou um compromisso para muitos angolanos. “Eu estava num restaurante e ouvi uma conversa em que um homem convidava o amigo para jantar e este recusou porque estava indo assistir ao programa. As crianças nas ruas repetiam os depoimentos”, relembra Sérgio Guerra orgulhoso. Logo que o programa estreou, Sebastião ouviu dizer que estavam precisando de gente e procurou Sérgio Guerra. O rapaz alto e magro tinha 20 anos e até então vivia de bicos. Trabalhou como segurança e diz que, felizmente, nunca precisou usar a arma. Quando tinha seis anos foi morar na Rússia, acompanhando o pai a trabalho; algum membro do partido havia se mudado para a União Soviética e precisava de motorista. Lá ele não fez nenhum amigo no primeiro ano e era o único negro da sala, motivo para muitas piadas e estranhamentos que o menino não costumava aceitar e, por isso, se metia em brigas com frequência. No segundo ano, mais um garoto negro entrou no colégio e as coisas ficaram um pouco melhores. Hoje Sebá, como lhe chamam os amigos, é fluente em russo e não tem saudades de lá. Voltou a morar no exterior seis anos depois, quando foi para Argélia e sofreu ainda mais com o racismo árabe. A volta para Angola foi, novamente, um misto de felicidade com desconforto, em um país com baixa infraestrutura e poucas perspectivas. Sebá não bebe Coca-Cola nem bebidas alcoólicas. A primeira é por motivo de saúde, sente dor de cabeça e fica muito ativo, o que atrapalha seu sono já escasso. Já com a cerveja e tudo que contém álcool, a decisão foi política. Logo que acabou a guerra, as taxas de importação desses produtos foram zeradas. “O governo abriu mão desses impostos e eu via a educação do país numa situação horrível, como até hoje. Eu via meus amigos jovens todos a beber e pensava: ‘O governo tá a embebedar o povo, mas não tá a lhe dar educação.’ E aí parei de beber”.

Apenas no terceiro dia de idas à Orion, órgão de publicidade do governo angolano, que cede espaço e equipamentos para a empresa brasileira, Sebá conseguiu falar com Guerra. Desistiu de usar o discurso que vinha ensaiando há dias e foi direto: - O senhor não me conhece, eu não conheço o senhor. Mas estou aqui para trabalhar. - O que você sabe fazer? – respondeu o publicitário. - Além de desenhar, nada. - Então faça um desenho para mim, por favor. Em poucos minutos o desenho estava pronto e o jovem iniciaria o trabalho na segunda-feira, com salário de US$ 100 dólares. Trabalharia na parte gráfica do programa. Nem sempre era possível mostrar as imagens dos combates e cabia a Sebastião produzir ilustrações para passar as informações. “Não falávamos o número de mortos nos massacres e usávamos palavras genéricas como ‘muitas/algumas pessoas morreram’, para não causar pânico na população”, conta. Ele também diz que deve tudo o que aprendeu de artes gráficas ao antigo emprego. Nunca pode cursar uma faculdade, pois não existe formação na sua área no país, mas pensa em fazer alguns cursos no Brasil. Em 2007, ele montou um escritório de publicidade junto com um amigo na Vila Alice, bairro de casas de classe média, muitas delas com dois pisos, muros altos e seguranças na entrada. As ruas estão asfaltadas e as casas têm água encanada. O bairro conserva as características da época em que os portugueses ainda dominavam o país e, após a conquista da independência, passou a ser local das reuniões do MPLA, que sairam do bairro popular Rangel. Um gerador barulhento, na entrada do escritório, garante que não ocorra falta de energia durante o trabalho; no interior, a sala é equipada com computadores Macintosh e tem TV a cabo. Os problemas que ele e o sócio enfrentam com os funcionários não são diferentes daqueles que os brasileiros que fazem negócios no país costumam reclamar: atrasos são frequentes, assim como ausência às sextas-feiras e no dia seguinte ao pagamento. Sebá costuma chegar ao escritório por volta das nove ou 10

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4. Comunicação para a guerra

horas da manhã, mas tudo depende da quantidade de trabalho. Às vezes vai mais cedo, em outras nem volta para casa, cochila por ali e continua trabalhando. A passos largos das pernas longas, vestindo uma camisa de pano congolês colorida, calça jeans e com fones de ouvido para falar ao telemóvel sem precisar mostrar o Iphone, o empresário leva 15 minutos para chegar ao trabalho. No caminho passa pelos corredores estreitos de terra batida do musseque, onde senhoras vendem roupas, frutas e verduras, assam frango, à espera de clientes e sempre cumprimentam os vizinhos com “Muito bom dia”, “Muito boa noite”. Na saída da rua, fica o quartel policial, motivo do nome “Bairro da Polícia” e do outro lado, o supermercado Jumbo. Sebá não esquece que durante muito tempo não podia entrar ali, era exclusivo para estrangeiros que não dependiam dos cartões de abastecimento do governo. Até hoje tem preços proibitivos para a maioria da população, que compra em outros mercados. Os preços variam diariamente, com inflação do país de 13% ao mês. Na saída do Jumbo, é preciso mostrar a nota para os fiscais que conferem se não há mercadorias a mais nas sacolas. Além dos carros – caminhonetes quase exclusivamente –, no pátio também estão os contêineres que chegam com as mercadorias. As realidades do Bairro da Polícia e da Vila Alice são separadas por uma avenida movimentada, onde os carros e principalmente as candongas passam em alta velocidade quando não há congestionamento, com manobras arriscadas. Na divisória das pistas fica o Largo Primeiro de Maio que termina em uma rótula, com um chafariz em volta da estátua de Agostinho Neto, que nem sempre funciona pela falta de água constante. Pior é quando só o chafariz jorra água e, nas casas, os baldes estão vazios. A meia água que Sebastião aluga por US$ 100 tem menos da metade do espaço de seu escritório, a televisão é ligada à parabólica e para tomar banho é preciso esquentar água no fogão e usar uma caneca. No mesmo terreno está a casa dos proprietários, um sobrado, da época colonial; quando os portugueses fugiram em 1975, moradias como esta e apartamentos foram distribuídos

ou simplesmente ocupados pelos angolanos. O proprietário é policial, assim como era seu pai, que por conta disso teve preferência na hora da distribuição das residências. A casa tem pintura nova e os vidros quebrados são tapados com papelão. Desde que seus pais se separaram, Sebá sente-se responsável por sustentar a mãe e as cinco irmãs. Seu único irmão já trabalha e se mantém. Para chegar à casa da família, basta tomar uma candonga com destino a “Zamba Doooois”, como gritam os candongueiros. Quando esteve em Salvador, na Bahia, a trabalho, em 2008, ele sonhava que ouvia o mesmo som das vans soteropolitanas para se sentir em casa. Depois de pagar o cobrador, é só descer na comunidade da Coréia, no bairro Kinanga, ou onde está o mausoléu de Agostinho Neto. Em uma área de mais de 20 mil m2 de chão batido e protegida por cercas está o monumento que parece um foguete espacial. A obra foi responsável por destruir todo encanamento da região e os moradores passaram a armazenar água em baldes. Na praia do Bispo, região ao lado, em uma rua pouco iluminada e decorada com palmeiras, está a central de abastecimento de água para casa do presidente. A guerra foi a desculpa para interromperem os investimentos na região, que é considerada por seus moradores como uma das melhores da cidade, conta Sebá. O que preocupa agora é se vão poder continuar ali, com tantos prédios luxuosos em projeto e a população sendo empurrada para áreas mais afastadas da cidade, situação que se repete em outras províncias do país. Como exemplo, a coordenadora do curso de arquitetura da Universidade Lusíadas e coordenadora do Núcleo de Estudos de Arte, Arquitectura, Urbanismo e Design, Ângela Mingas, cita o projeto Zango, da construtora Odebrecht. Ela, assim como Sebá que é secretário da Associação dos Titulares de Direito Abrangidos pelo Decreto nº 89/09, defende a requalificação das moradias para que os atuais moradores continuem onde estão e que se conserve o patrimônio histórico. O tal decreto prevê a desapropriação das casas de famílias da região do bairro Kinanga para instalar o Centro Administrativo do governo.

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No centro da cidade onde estão os casarões antigos, especialmente na orla da baía de Luanda, uma construção de 25 andares com os vidros espelhados destoa da arquitetura antiga. É o prédio da Sonangol. O que Ângela Mingas considera como um dos símbolos da falta de planejamento da cidade. “Não temos plano diretor e isso está a permitir a destruição de nossos patrimônios históricos.” A estátua da Rainha Ginga, que também ficava no centro, há quatro quadras da rua que leva seu nome foi derrubada para dar lugar a novas construções. A heroína do povo Mbundu, que habitava Luanda, é cultuada pelos movimentos nacionalistas modernos, mas comandou as primeiras resistências contra a escravização no início do século XVII e rejeitou a presença dos portugueses em Angola. Talvez nesses prédios a segregação entre ricos e pobres não seja tão evidente. Em visita à Luanda, o escritor José Eduardo Agualusa foi rever o prédio onde morava antes de se mudar para Portugal. Para sua surpresa, quando abriu a porta do elevador, encontrou um homem lendo. Em uma das paredes havia um retrato de Che Guevara e, na outra, da Virgem Maria. - Isso não é um ascensor? - Não, paizinho. Foi um elevador, agora é uma habitação. – respondeu o homem deitado em sua cama. O prédio de luxo foi ocupado pela população dos musseques depois da independência. Passado o socialismo, agora está em reforma e, embora conserve antigos moradores, há apartamentos vendidos por US$ 1 milhão. A passagem é contada com algumas modificações no livro Barroco Tropical, de Agualusa. A falta de infraestrutura, principalmente da água, faz Sebá desejar viver em outro lugar. Ele tem um terreno em Viana, só que é muito distante do centro e dos seus afazeres. Pretende construir lá um dia, mas o governo quer que seja imediatamente ou vai fazer desapropriação. Sebá ainda não tem dinheiro para isso. Pesquisou o financiamento de casas para classe média da construtora Build Brasil, que tem propagandas espalhadas por toda cidade estampando o rosto de Pelé e anúncios de prestações a 60

4. Comunicação para a guerra

Mausoléu de Agostinho Neto inclui o Centro Administrativo, projeto de uma empresa de consultoria brasileira

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partir de US$ 890, mas a casa mais barata que encontrou custa US$ 280 mil e o parcelamento, US$ 10 mil por mês. Quando passa por Talatona, lamenta: - Porque não podemos morar onde os brazukas moram? Para manter o local do escritório e pagar os funcionários, o escritório tem que arrecadar US$ 10 mil dólares por mês e isso nem sempre é fácil, considerando os atrasos e calotes nos pagamentos. Volta e meia, ao assistir televisão, Sebá aponta: “este gajo está a me dever”. Quando o serviço é prestado ao governo, a situação é mais onerosa. Seu sócio costuma cuidar desse assunto e gasta várias tardes nas repartições públicas para que o dinheiro seja liberado. Em algumas vezes em que é atendido e o funcionário faz uma expressão de lamento, olha para a pilha de papéis de pagamentos pendentes e diz. “Eu posso ajudar, mas o senhor terá que me ajudar também”. Lá se vão de 10% a 20% do pagamento que iria para empresa. O salário de Sebá fica próximo de US$ 2 mil, menos da metade do que chegou a ganhar na época que estava na M´Link. Quando parou de trabalhar para Sérgio Guerra estava ganhando US$ 3 mil e conseguia juntar mais US$ 2 mil com trabalhos de freela. Negaram-lhe várias vezes o aumento que pedia, mas quando anunciou sua saída para montar seu próprio negócio, ofereceram os US$ 5 mil. Tarde demais. Não foi só o salário que motivou sua saída, depois de oito anos não via mais perspectiva de crescimento para o programa, acha que a equipe tem capacidade para produzir mais conteúdo, até mesmo para preencher a programação toda de um canal de televisão – seu grande sonho é ter um canal de TV. Passado o calor da guerra, o Nação Coragem foi reformulado e a agora se chama Angola em Movimento, voltado para “cultura e comportamento”, nas palavras de Sérgio Guerra. Logo na abertura imagens de obras, salas de aula bem equipadas com computadores, plantações extensas e máquina de colheita moderna e estradas em construção mostram que as atividades realizadas pelo governo são o principal enfoque do programa. As matérias que são feitas hoje no Angola em Movimento 62

4. Comunicação para a guerra

Entre as novas construções no centro, prédios antigos continuam inacabados

são muito básicas, na opinião de Sebastião, ao tratar de temas como alcoolismo, acidentes de trânsito, doação de sangue. “Nós angolanos temos capacidade de produzir isso, pode ficar com uma qualidade técnica inferior, mas a mensagem será a mesma. Precisamos caminhar com nossas próprias pernas”. A equipe do programa é formada por 36 pessoas, um terço dela de brasileiros que fazem a produção. Cabe aos angolanos apresentá-lo e apenas um dos três jornalistas escreve suas próprias matérias. Mesmo 63


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sendo um programa de publicidade para o governo, nem sempre é fácil conseguir entrevistas com as autoridades. O programa semanal, com uma hora de duração, fica pronto com um mês de antecedência. O tempo é suficiente para que as entrevistas solicitadas com fontes oficiais, por meio de envio de carta formal explicando sua importância, sejam aceitas. Também há problemas com a censura de matérias aparentemente simples e uma que falava sobre o lixo foi vetada. O sistema de coleta iniciou há dois anos na capital com mapas dos locais feitos através do Google Earth, em uma cidade em que placas com nome das ruas se restringem ao centro. A M´Link tem como sócio o antigo apresentador do programa, Luís Domingos que ficou conhecido por ele e agora é deputado. Além da produtora, Sérgio Guerra possui uma empresa de assessoria de imprensa, a Capess e vende espaço publicitário para a Globo Internacional. No total são 150 funcionários angolanos e 35 brasileiros. Não é só a Globo que tem grande audiência em Angola. Na programação da Record, que está em TV aberta, os angolanos também procuram entretenimento e informação e desenvolvem sua visão sobre o Brasil. Muitos deles acham que todas as regiões do país são extremamente perigosas, por conta do enfoque dos programas policiais sensacionalistas. Em 2009, a emissora inaugurou uma sucursal angolana para produzir programação local. Junto com o canal de TV está a Igreja Universal. Só em setembro de 2010 foram inaugurados 20 novos templos da IURD em Luanda e a meta e abrir mais 30 em Angola até o fim do ano.

- Na Áfricaaaa - a congregação responde. O pastor pega uma mandioca, tão grande que parece cenográfica. Levanta acima de sua cabeça com as duas mãos e pergunta: - A raiz do mundo tá onde? - Na Áfricaaaaa. O bispo parte para outra comparação e adverte que a raiz dos problemas tem que ser curada, pode ser a esposa, o marido, um filho ou um irmão. Tem que curar alguém. Por isso, cada um ali deve trazer um membro da família no domingo. O líder religioso faz questão de enfatizar que pessoas de todos os credos podem ir à Universal, sem abandonar suas religiões. Mas com a quantidade de celebrações que realizam, fica difícil conciliar com outras crenças. São distribuídos à congregação pães de trigo embalados em um saco plástico transparente, um por pessoa. Não é para comer. Os fiéis devem levá-los para casa e trazê-los em outros cultos. Os homens na sexta seguinte e as mulheres no próximo sábado. Cada um deverá dormir com o pão, que vai absorver todos os seus males. O líder religioso explica: - Não precisa ser abraçado, mas pode ser embaixo do travesseiro, no cantinho. Depois das preces com gritos, choros e algumas pessoas que se debatem histéricas e são acudidas pelos obreiros, entra uma cantora gospel e muitos sacam celulares e câmeras para fotografá-la. Para finalizar, é servido o ponche da felicidade: - Quem quer ser feliz? – pergunta o bispo em tom de desafio. Todos levantam a mão e recebem um copinho com uma mistura de um suco com sabor de guaraná e umas maçãs picadas. A cantora continua sua apresentação, o bispo sai rapidamente e despista qualquer um que queira conversar com ele. Sentado em sua cadeira de couro estofado, com apoio até a cabeça, a mesma disponibilizada aos seus convidados, Sérgio

Próximo ao edifício do canal de televisão fica um dos maiores templos, no bairro Alvalade. Fiéis lotam o culto e quem não consegue chegar com antecedência acompanha pelo telão no subsolo. No palco, o bispo Robson não usa terno, nem gravata. Veste um conjunto de camisa e calças largas, feito de panos coloridos. Dirige-se à plateia formada praticamente só por negros: - Eu naisci no Brasil, mas minha raiz tá onde? 64

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4. Comunicação para a guerra

Guerra, fala da necessidade de trazer a mão de obra do Brasil. Seu rosto fino e comprido e olhar sério e desconfiado, contrastam com os óculos com armação de acetato rosa pink e seu cabelo cacheado, castanho claro, na altura dos ombros. As estantes estão cheias de livros e CD´s, alguns de brasileiros e angolanos em conjunto, boa parte deles editados pela Maianga Produções. - O ideal seria só contratar angolanos, seria o melhor dos mundos. Por outro lado, quem me contrata quer o serviço feito independente de quem seja e aí você acaba trazendo os expatriados. A mão de obra especializada é uma das principais dificuldades para a autonomia do país. Quando houve a independência, 300 mil portugueses saíram de Angola, o que correspondia a 80% dos responsáveis pela direção e funcionamento de empresas públicas e privadas. Junto com os colonizadores, saíram também um número indeterminado de angolanos com maior escolaridade. Da população que continuou no país, 70% eram analfabetos. O índice caiu pela metade, mas consequências refletem até hoje. - Não há uma mão de obra especializada aqui. É complicado. O que acontece normalmente é que um ou outro jovem que começa a despontar e, muito rapidamente, acaba guinado para um outro posto, porque tem muito pouca gente com capacidade. Funcionários públicos galgam cargos maiores sem ter vivido o tempo de amadurecimento necessário e acabam criando uma referência que não existe. - diz Guerra. Por outro lado, trazer brasileiros também gera dor de cabeça. O diretor da M´Link, o jornalista Paulo Alencar, reclama que os funcionários estão sempre conectados com o que acontece no Brasil e muitos acabam ficando três meses, um ano, o que considera muito pouco. Em 11 anos, passaram 1500 brasileiros pela empresa, o que dá uma média de mais de três renovações completas por ano. “Temos uma equipe de jovens muito talentosos aqui”, comenta Alencar, mas emenda: “não basta ter capacidade técnica, tem que saber se portar e se relacionar em um país muito mais formal e com senso de hierarquia muito maior”. Ele mora

há 10 anos em Luanda e estranha ter que usar terno todos os dias para atender aos principais clientes da agência, o governo angolano, Ministério da Comunicação, Banco de Desenvolvimento de Angola, Banco Africano de Desenvolvimento, Sonangol e Odebrecht. Sérgio Guerra concorda com Alencar, “se vier para assistir Globo, para conviver só com brasileiros, para ouvir música brasileira, para ler autores brasileiros, é melhor ficar no Brasil, melhor não vir. Essas são pessoas que vivem o tempo todo em conflito por estar em Angola, sonhando com o próximo avião para voltar ao Brasil, são pessoas que acima de tudo não entendem onde estão, a simbologia, o momento pelo qual o país passa”. O empresário diz que nunca esteve onde não gostaria de estar e aproveita as especificidades de cada lugar. Em Luanda é muito amigo do escritor José Mena Abrantes, assessor de imprensa do presidente angolano com quem produziu a coleção Literatura Angolana, lançada em 2005 em Salvador, por José Eduardo dos Santos. A coleção levantou polêmica em Angola por não convidar autores negros, apenas brancos e mulatos. Guerra garante que foi coincidência e levou seus argumentos para a Rádio Nacional. Disse que tais coisas não tinham cabimento, que a Associação de Escritores Angolanos deveria perder tempo com outras coisas, o que lhe rendeu uma foto capa no Semanário Angolense e a manchete: “Cala a boca, Sérgio Guerra”. Em Salvador, ele realizou a maior exposição fotográfica a céu aberto do mundo: Salvador NegroAmor, com 1.500 fotografias espalhadas pela cidade. O patrocínio foi da Petrobras, através da Lei Rouanet e entre os apoiadores estão a Prefeitura de Salvador, governo da Bahia, TV Rede Bahia, afiliada à Globo. O assessor da presidência também é o sócio angolano da primeira pizzaria com forno de lenha de Angola, montada em conjunto com a esposa de Guerra, Alessandra. Ela mora em Luanda desde 2004, depois de se casar no civil, em Salvador, em um terreiro de Pai de Santo, na Igreja Católica e em uma cerimônia com artistas na Quinta Portuguesa, no mesmo dia. Os dois se

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conheceram quando Alessandra estava numa situação delicada da sua vida, depois de um resultado médico que indicava que problemas no joelho a deixariam afastada das competições como tri-atleta. Durante oito anos ela se dedicou ao esporte, foi campeã brasileira duas vezes e fazia sua própria assessoria de imprensa. No seu primeiro ano na capital angolana, ficou encantada, depois cansou e aos poucos desenvolve seus projetos particulares: “Em Angola não dá para ficar parado, senão o mundo te engole”. A pizzaria levou dois anos para ficar pronta e houve várias falhas dos pedreiros brasileiros. Também teve novas incomodações com os conterrâneos na hora de selecionar currículos, muitos deles inflados com habilidades inexistentes no candidato. “Quando fui selecionar uma pessoa para o cargo de gerente, achei um currículo maravilhoso e quando o homem chegou aqui, mal sabia falar. E esses currículos são feitos por agências ainda no Brasil”, conta. A visão de Angola como um eldorado onde se faz dinheiro fácil lembra o Brasil na década de 50, ainda que continue atraindo muita mão de obra estrangeira especializada. Na época o país era a alternativa perfeita para Richard Hickock, que tem sua história contada por Truman Capote em A Sangue Frio e lamenta não poder ir por falta de documentos: “O Brasil! É lá que estão construindo uma nova capital. A partir do zero. Imagine só, chegar a um lugar numa altura dessas! Qualquer imbecil pode fazer fortuna”. Com os angolanos, Alessandra tomou medidas para limitar o número de faltas. Quem não tiver nenhuma falta ou atraso tem participação nos lucros da pizzaria, mas quem falhar uma única vez, perde o acréscimo no pagamento. A média dos salários dos 13 funcionários é de US$ 250, com o esquema de pontuação criado pela ex-atleta podem ganhar até US$ 500 a mais. Fora a pizzaria, Alessandra sonha em montar um estúdio de pilates e ioga nos próximos anos e implantar algum projeto para descobrir talentos esportivos. Ela considera que os angolanos têm um potencial fisiológico igual ou maior do que os brasileiros. Já tentou um começo desse projeto, trazendo dez profissio-

nais da área do esporte para Angola, mas não deu certo e resultou em prejuízo de US$ 10 mil dólares, porque seu patrocinador lhe deu o calote. Para manter a rotina de atividades físicas, ela corre na esteira e na baía de Luanda, muito próxima à sua casa. Mora na Maianga e, para nadar, frequenta a piscina pública no bairro de elite vizinho, o Alvalade. A proximidade dos seus afazeres de lazer e da pizzaria, facilitam sua rotina pela localização de onde mora, mas ela lembra que ficaram 25 dias dependendo da energia do gerador e 60 dias sem água, sem que os contatos com a Odebrecht surtissem efeito. Mas é no bairro desenvolvido pela empreiteira brasileira que ela gostaria de morar: “Luanda Sul é limpa e organizada”.

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5. Na terra do antigo irmão

5. Na terra do antigo irmão Às onze horas da noite o empresário Raimundo Lima está terminando a última reunião com dois funcionários no escritório de sua casa em Talatona. Na madrugada seguinte vai embarcar para a África do Sul a fim de assistir a um dos jogos da semifinal da Copa do Mundo, Gana X Uruguai; o Brasil já foi eliminado pela Holanda nas quartas de final. A sala é decorada com esculturas de madeira típicas de Angola, figuras de mulheres que carregam filhos nas costas e baldes na cabeça, um quadro com pintura de vasos fica atrás da mesa, sobre a qual um globo com o mapa-múndi, feito de pedras semipreciosas, disputa a atenção com o porta-retrato digital. As fotos vão mudando: a família em festas na piscina, com instrumentos musicais e roupas de praia; a filha do presidente da república, Isabel dos Santos, a quem o empresário chama de rainha, sendo apresentada ao presidente do Olodum e depois uma foto só dela em destaque; o escritor Pepetela aparece na próxima. Tem até uma foto com o presidente Lula ao fundo, em movimento, sem notar que era fotografado, saiu só do nariz para cima e, em primeiro plano, Raimundo faz pose sorridente. O homem negro, com bigode e cavanhaque, olheiras fundas e mais de 120 quilos, lembra Tim Maia. Conhecer Angola era um sonho antigo, queria saber melhor sobre a origem de seus antepassados. A maior contingência de escravos no Brasil teve origem nesse país africano. Segundo o historiador Edmundo Correia Lopes, até 1858 mais de 4,5 milhões de pessoas saíram de terras angolanas para o trabalho forçado. “Eu queria poder gastar para vir para Angola e acabei vindo para ganhar dinheiro”, conta o jornalista. Raimundo tem pós-graduação em Direito Eleitoral, trabalhou como diretor da sucursal do Jornal do Brasil em Salvador e, por dois anos, foi professor da Universidade Federal da Bahia. Em 2000, recebeu o convite para vir trabalhar em Angola e prestar consultoria na reforma do Jornal de Angola, pela em70

presa M’Link, de Sérgio Guerra. O resultado do que desenvolveu na redação deu origem ao livro Projeto Editorial do Jornal de Angola, que ele considera bem didático e diz não ter assinado porque foi um trabalho feito em equipe, que passou pela análise dos diretores, fotógrafos, editores e diagramadores. Ainda acha a linha editorial muito voltada para o governo, mas, agora, pelo menos tem cara de jornalismo. O jornal é o único diário do país e lembra um Diário Oficial do governo, não na forma que se conhece no Brasil, mas sua principal função é a anunciar atividades e projetos governamentais e também há muitas páginas dedicadas a editais. A quantidade de “pedidos de comparecência” chama atenção; são notas dirigidas a trabalhadores que abandonam o serviço sem fazer qualquer comunicado. Só depois dos anúncios publicados é possível demitir formalmente o funcionário. Raimundo chegou a Angola para passar 45 dias, prolongou para seis meses, acabou ficando. Resolveu ter seus próprios negócios e viver na ponte aérea. Suas empresas não se limitam à área de comunicação, ele tornou-se presidente do Grupo Empresarial Aldeia e investe de educação a construção civil. Em julho de 2010 empregava 300 pessoas, das quais 78 eram brasileiras. A prioridade é contratar angolanos. O empresário explica que não traz pedreiros do Brasil, só especialistas que não encontra em Angola e lhes oferece as melhores condições possíveis. Para trabalhar longe do país de origem, esses funcionários recebem salários entre US$ 1500 e US$ 23 mil e têm plano de saúde, seguro de vida, moradia, cozinheira, faxineira, internet, quarto exclusivo com ar-condicionado, celular e US$ 100 para ajudar na conta telefônica e, para custos com alimentação, cada um recebe uma quantia de US$ 500. A cada três meses, podem tirar folga de duas semanas, com passagens aéreas no valor de ida e volta para o Brasil, mas é possível escolher qualquer destino e pagar a diferença. Por todos esses custos, Raimundo explica que pretende ter cada vez menos brasileiros. A ideia é que se reduza a mão de obra que não seja especializada. Para ele, é uma questão de economia e também de relações políticas com o país: “Estão ocupando um espaço que 71


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poderia ser de angolanos, caso eles fossem treinados”, reconhece. Níria, aos 26 anos, se sente realizada por ser auxiliar administrativa no Grupo Aldeia, onde trabalha há um ano. Ela é a angolana que ocupa o cargo mais alto em um dos locais onde funcionam empresas do Grupo. Os outros são motoristas ou trabalham na limpeza. É a primeira vez que é funcionária em uma empresa brasileira. Já teve chefes portugueses e compara: “Brasileiros são mais simples, mais simpáticos. Portugueses são mais autocráticos”. Ela diz que nem se dá conta que um trabalho é pesado se o pedido vem de um brasileiro, porque são amáveis e falam “por favor”. Enquanto os portugueses dificilmente demonstram carinho pelo trabalhador. Níria tenta interpretar os comportamentos de maneira diplomática, acha que tudo depende dos hábitos de cada povo. Por fim, reconhece que chefe é chefe e não se incomoda em ser subordinada e acha que não pode ter choques. Ela chama de regalias os confortos que os brasileiros que trabalham na empresa têm, mas diz que as coisas dependem do entendimento de cada um: “Eles são meus superiores e também tem a adaptação a uma nova cultura. Eu não posso ficar vendo que tem uma diferença salarial. É um ambiente onde todos aprendem com todos. Aprendo com o motoboy, com a empregada de limpeza e o salário deles é diferente do meu”. Níria sabe que não pode falar pelos seus colegas porque ainda é solteira e mora na casa da mãe. “Quando um trabalhador que vive pressão financeira em casa e está em uma empresa onde há diferenças salariais e seu trabalho não é remunerado ao ponto que ele queria, é claro que vai se sentir triste. Isso depende muito das necessidades de cada funcionário, da vida deles”. Níria bem que tentou estudar em uma faculdade pública. Fez muito testes e não passou, então entrou em uma instituição privada. Durante todo o curso de Administração, seu pai pagou metade dos US$ 250 mensais e a estudante sempre trabalhou para completar o valor. Depois que se formou planejava fazer um mestrado e outros cursos, mas o pai saiu de casa e, sendo a mais

velha de cinco irmãos, automaticamente a responsabilidade caiu sobre ela. Níria sabe que a mãe conta com seu salário de US$ 490 por mês. Para os estudos não tem sobrado nada. “O que eu faço com esse salário? Nós aqui em Angola temos que ser solidários. Quando vais receber, sabes que não é pra ti. Até com um primo que vai casar, vais ter que dividir. Até com uma prima que tá doente, vais ter que dividir. Aqui há uma responsabilidade familiar muito grande”. Mesmo ainda sem saber como, no próximo ano a moça quer fazer um curso de pós-graduação. Ela tem ambição de crescer na empresa e acha que, como ela, todos querem chegar à cadeira de presidente. Se terá condições de ascensão? Para Níria, a partir do momento que conseguiu o emprego, estas já lhe foram dadas. A auxiliar administrativa conta que Raimundo não é muito autoritário e se comporta como uma pessoa qualquer. As decisões sempre são dele, mas sugestões podem ser feitas sem nenhum problema. Outros funcionários descrevem o chefe como alegre, de bom coração, sempre bem humorado. Ele gosta de fazer festas para “unir as culturas brasileira e angolana”. Um de seus atos que desperta admiração são as doações ao leprosário. A equipe do Grupo Aldeia leva alimentos, roupas e contribui com a reconstrução de casas para portadores de Hanseníase. Antes o trabalho era feito para deslocados de guerra, mas, na opinião do presidente do Grupo, esses já foram bastante atendidos. Algumas vezes Raimundo acompanha os funcionários. Seu discurso é: “Não basta você dar, precisa também conviver com essas pessoas que vivem isoladas”. Os trabalhos que começaram informalmente deram origem à Fundação Kianda, entidade sem fins lucrativos, criada pelo Grupo Aldeia para fortalecer as relações entre suas empresas e a sociedade. O Grupo Empresarial Aldeia foi criado no Brasil, mas é uma instituição de direito angolano que reúne seis empresas e a Fundação. Uma das empresas, a Ímpar - Comunicação Integrada presta serviços de assessoria de imprensa, relações públicas e

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publicidade. Entre os diferenciais destacados no site da empresa, estão o pioneirismo no país em fazer clipping multimídia e a relação harmoniosa com a imprensa que “assegura tranquilidade e a ausência de sobressaltos”, como informa o texto institucional. Na educação, a Aldeia Global e a OK Technology prestam serviços como consultoria e formação para profissionais da educação e elaboração de material didático. A Ginga Produções atua na área de audiovisual, com produções cinematográficas, campanhas publicitárias e coberturas de eventos. Para fomentar a distribuição desses produtos, a Quality Cultural é a empresa do grupo encarregada de promover a cultura angolana internacionalmente com planos de divulgação e comercialização de CDs, DVDs, livros e organização de eventos. O mercado da construção civil está no foco do Grupo Aldeia com a RLZ Empreendimentos, que tem projetos nessa área e também faz desminagem. Quando a empresa começou a retirada de minas em 2009, muito já havia sido feito e Raimundo diz que os angolanos já têm boa experiência na área. Há poucos brasileiros envolvidos no projeto e a maior parte da tecnologia é israelense. Mesmo considerando o investimento estratégico e sabendo de onde vem a tecnologia, Raimundo desconhece como ocorrem os procedimentos básicos da retirada de uma mina e não sabe as principais regiões onde o trabalho é feito: “Sinceramente não sei, porque não to lá de perto”. Angola é o terceiro país mais minado do mundo, atrás de Afeganistção e Camboja. O número de explosivos é uma incógnita, assim como os locais onde foram enterradas, porque não foram feitos mapas. O custo para montar uma mina é pouco mais que US$ 1 e para desarmá-la, mil vezes mais. Estima-se que 5 a 10 milhões de explosivos tenham sido instalados por suas províncias, o que afeta diariamente dois milhões de habitantes, pois não é possível transitar nem plantar nada. Com a P&D - Pesquisa e Desenvolvimento, Raimundo convida mais empreendedores a investirem em Angola. A empresa oferece um serviço de intermediação para quem quiser in-

vestir no país, com foco nos “aspectos mercadológicos, jurídicos e logísticos, formação de parcerias estratégicas, viabilização de financiamento e acesso às políticas de incentivo ao Investimento Externo Directo - IED”. Além disso, a P&D faz pesquisa aplicada e avaliação de desempenho. O governo angolano é um dos principais clientes. Entre os projetos concluídos estão o Programa de Desenvolvimento Integrado para Províncias, a Pesquisa Escolas Amigas da Criança, em parceria com a Unicef, e a Pesquisa sobre Disparidade de Gênero. O IPOP – Instituição de Pesquisa de Opinião Pública e de Mercado também foi criado pelo grupo empresarial para fazer pesquisa e prestar serviços ao governo. A agroindústria não escapou aos olhos do investidor, que criou a Vale Verde Agroindustrial, empresa parceira do Grupo Aldeia com investimento de US$ 10 milhões, projeto que associa as culturas de milho e feijão, gado bovino leiteiro e de corte e ainda faz extração de madeira da fazenda de 18 mil hectares, na província de Malanje. Da mesma maneira que se orgulha da lista de suas empresas e do crescimento de seu grupo, Raimundo gosta de ser reconhecido pela autoria do Canto à Alfabetização. Dez artistas angolanos renomados se reuniram para gravar a música que virou hino de uma campanha do Ministério da Educação de Angola, foi veiculada em rádios e TVs do país e apresentada na reunião da Unicef em Paris, com legendas em francês e inglês.

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Alfabetizar,alfabetizar, alfabetizar, alfabetizar Quem não sabe ler, Mal fala, mal ouve, mal vê. Se não sabe escrever, Um outro age por você. Alfabetizar pra ser mais gente. Alfabetizar para crescer. Alfabetizar pra ir em frente. Alfabetizar para vencer. Angola vai acelerar o nosso ensino escolar, 75


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Mas para isso vir a acontecer Depende de mim e de você. Toda gente está determinada, E agora é que eu quero ver, Angola bem alfabetizada pra gostar de ler e escrever.

Em 2009, a escola de samba Tom Maior, de São Paulo, levou para o Anhembi o samba-enredo Uma Nova Angola se Abre para o Mundo! Em Nome da Paz, Martinho da Vila Canta a Liberdade:

Um dos músicos que participou da gravação foi Filipe Mukenga. Sua relação com a música brasileira começou nos anos 80, quando Djavan gravou sua música Humbiumbi. De lá para cá, Mukenga fez parcerias e teve músicas gravadas por outros artistas brasileiros, desde o grupo Fundo de Quintal até Maurício Mattar. Participaram de seu último disco, Nós somos Nós, Martinho da Vila, Ivan Lins e Zeca Baleiro, produtor do álbum que leva o selo de sua gravadora Saravá Discos e da Ginga Produções, de Raimundo. Há quem ouça Filipe Mukenga e considere sua voz e sua maneira de cantar muito semelhantes às de Djavan ou Milton Nascimento. Ele conta que admira muito esses dois artistas brasileiros e que estão entre seus prediletos, mas seu estilo vem longe. Suas preferências também passam por Gilberto Gil, Emílio Santiago, Simone e Martinho da Vila, que esteve em Angola pela primeira vez nos anos 70. Numa época em que o país africano nem tinha embaixada no Brasil e as relações diplomáticas entre os dois países eram bem menores, Martinho da Vila passou a ser considerado Embaixador Cultural em Angola devido ao seu envolvimento na criação de eventos para fortalecer as relações culturais. No Projeto Kalunga, realizado nos anos 80, por exemplo, Dorival Caymmi, João Nogueira, Clara Nunes, Chico Buarque, Miúcha, Djavan e Dona Ivone Lara participaram de shows em várias províncias angolanas. E os brasileiros puderam conhecer a obra de artistas angolanos no Projeto Canto Livre de Angola que trouxe ao país vários artistas angolanos, como Elias Dia Kimuezo, considerado o rei da música em seu país. Shows no Rio, em São Paulo e em Salvador resultaram no LP ao vivo Canto Livre de Angola. 76

É nova Angola com mais amor Seus ideais, de independência e libertação Chega de guerra e opressão Buscando o caminho da paz Um povo que tanto sofreu... renasceu E brilha o sol da nova era Reconstruindo a sua história [...] O Brasil é negro, e hoje vem sambar Oi deixa a gira girar... Vamos girar A proteção “Zambi” nos dá Vem na ginga d’Angola E deixa o corpo balançar Mais tarde o filho volta, ao lugar que o concebeu Levando a sabedoria que aprendeu Axé para quem estendeu a mão Firmando aliança com nosso irmão [...] É Martinho, é José, Partideiro, Escritor É da Vila Isabel, que fez Kizomba lá no bairro de Noel Bate tambor batuqueiro O Canto do negro ecoou É tempo de liberdade, e felicidade Em Tom Maior é negra a cor! [Compositores: Maradona, Claudinei, Amós, Ferracini, Tinga e Ricardo] 77


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Mukenga lembra que a música brasileira está há séculos ligada à Angola, de onde vem sua matriz. Em suas recordações, canções do Brasil sempre fizeram sucesso. “Era miúdo e escutava Ângela Maria. Nós conhecemos Pixinguinha, Luiz Gonzaga”. Ainda que tenha feito parcerias com muitos brasileiros, o músico acha que o Brasil não deixa que outras culturas entrem. “Vocês conhecem muito pouco de Angola. Conhecem Liceu Vieira Dias, Elias Dia Kimuezo, Lurdes Van-Dúnen, N’gola Ritmos?”, cita grandes nomes da música angolana, que pouco se ouve falar no Brasil. “Há necessidade de um intercâmbio maior. Para que possamos nos conhecer mais. O Brasil tem tanto a ver com África, sobretudo com Angola, e se fecha. Mas a música americana entra sem pedir licença”. Zeca Baleiro concorda que os angolanos conhecem mais a música brasileira do que o povo brasileiro conhece a música de Angola. “É um público muito restrito ainda”. Para ele existe abertura para novidades, mas “a música brasileira é de uma riqueza e diversidade imensas, só comparável à americana. Talvez o brasileiro se sinta um pouco auto-suficiente nessa matéria”, tenta explicar o cantor. O primeiro contato com a música angolana que Baleiro teve foi ainda menino, por meio de um disco de música folclórica que seu irmão mais velho tinha. Mais tarde conheceria o trabalho de Bonga, Rui Mingas, Filipe Zau, Paulo Flores e Mukenga, a quem define como grande conhecedor da música brasileira, que compõe com harmonias simples, mas sofisticadas, próximas da MPB clássica. Mukenga define seu estilo como Nova Música d’Angola, rica não só no conteúdo, mas no ponto de vista da harmonia, com acordes invertidos, dissonâncias e características do jazz. Enquanto nas ruas de Luanda as candongas circulam vibrando ao som de kuduro, ritmo que lembra o funk brasileiro, pela batida e pelas letras com duplo sentido, o cantor e compositor tenta explicar: “As pessoas estão mais voltadas para músicas de balanço forte, que as põe a saltar e não transmite nada. Talvez o motivo seja

a vida agitada, o estresse. É um fenômeno em todo o mundo”. A ligação de Mukenga com o Brasil não é só na música. Quando estava à beira de um infarto, com 95% de obstrução em duas artérias, viajou para fazer uma angioplastia em Salvador. Posteriormente, ainda foi necessária mais uma cirurgia, realizada em Angola, mas com médicos brasileiros. “Temos que formar mais médicos aqui, porque estamos a gastar muito dinheiro com o vosso pessoal”, diz o músico.

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Raimundo também é vice-presidente da Associação de Empresários e Executivos Brasileiros em Angola (Aebran), criada em 2003 por empresários que sentiram necessidade de integrar os brasileiros que têm negócios em Angola e lutar pelos interesses coletivos. A ideia é promover um crescimento sustentável e estimular mais empresários do Brasil a investir no país e contribuir para seu desenvolvimento, e não atuarem somente com exportação ou prestação de serviços pontuais, o que é o mais comum. Angola é o principal parceiro comercial do Brasil na África e um dos países no foco da Agência Brasileira de Promoção de Exportação e Investimentos (Apex Brasil). Em 2010 foram organizadas duas missões empresariais no país e implantada uma sede para atender pequenas e médias empresas brasileiras e dar suporte aos angolanos que procuram parceiros para negócios. Para atrair investidores, diversos incentivos são oferecidos e isenções fiscais, em especial para o interior que foi mais atingido pela guerra. Quanto maior a dificuldade, maior a recompensa dada pelo governo angolano, o principal cliente no país. Em nome do investimento de risco, as empresas cobram preços exorbitantes, já negociadas as porcentagens para os intermediadores. Uma estrada pode render um lucro de 300% ao ano. A Apex recomenda que os contratos fechados com Angola prevejam pagamento antecipado em 80% do valor da negociação, o que na verdade é o preço real dos produtos. A primeira missão brasileira foi realizada durante a Feira Internacional de Luanda (FIL) e teve uma manhã reservada para a 79


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apresentação do Programa de Reestruturação do Sistema de Logística e de Distribuição (Presild) de Angola. Um membro da equipe técnica do programa, Rui Madureira, fez uma apresentação em power point, toda preenchida por textos com letras minúsculas. O palestrante falava baixo e o material não foi disponibilizado depois, por ser um programa estratégico do governo angolano. A sala de reuniões do Hotel Trópico, um dos principais da região central, estava lotada de empresários brasileiros para demonstrar sua disponibilidade em contribuir para o desenvolvimento do país, nas áreas de consultoria, agronegócio, logística portuária, banheiras de hidromassagem, fornecimento de alimentos para creches, escolas e “classes menos favorecidas”. Outros, já instalados no país, comentaram algumas dificuldades encontradas, como o fato de ser mais barato importar do que montar a infraestrutura de agronegócio. Diante das reclamações do congestionamento do porto de Luanda, o membro do gabinete técnico do Presild diz que a situação é um grande constrangimento para o país, mas que estão sendo feitas melhorias de estrutura. Outro plano do governo, já em curso, é a diminuição das importações por meio da taxação dos produtos. No fundo da sala, em uma conversa à parte, executivos comentavam sobre as possibilidades de vender mercadorias usadas no país, principalmente roupas e calçados. Um deles exemplificou: - Temos um cliente que compra todas essas roupas de campanha do agasalho e revende no Congo muito rápido. Como política de conquista de novos mercados, em 1975 o diplomata Ítalo Zapa convenceu o governo militar a se aproximar de países africanos e por conta disso o Brasil foi o primeiro a reconhecer a independência de Angola. Logo a adoção do regime socialista os afastou, embora empresas brasileiras já estivessem no país. A maior aproximação política se deu no governo de Luís Inácio Lula da Silva. Em 2010 os presidentes dos dois países assinaram um acordo de parceria estratégica que prevê reunião entre os chefes de Estado uma vez por ano e que o Brasil ofereça conhe-

cimento e tecnologia nas áreas de agricultura, saúde, educação e defesa. Segundo a Aebran, os financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para Angola somavam menos de U$ 200 milhões em 2003 e, em 2010, alcançaram US$ 3 bilhões, além de US$ 500 milhões para incentivar as exportações para Angola. Durante esse governo entrou em vigor a Lei que incorpora a história da África nos currículos escolares e foi aprovada a criação da Universidade Luso-Afro-Brasileira, no Ceará. Com a crise de 2008 e a queda do preço do petróleo (os valiosos petrodólares do governo angolano), houve uma grande retirada de brasileiros de Angola. A Aebran estima que naquele ano eram 35 mil e, em 2010, ficaram cerca de 20 mil. Algumas empresas reduziram em até 80% o pessoal estrangeiro. Raimundo não dá números, mas diz que a inadimplência do governo angolano foi elevadíssima. Pagamentos a empreiteiras e prestadores de serviços não foram feitos e muitas obras e projetos reduziram as atividades ou até pararam. Em entrevista ao Jornal Folha de S.Paulo, em maio de 2010, o economista angolano Alves da Rocha disse que a dívida do Estado com as construtoras passava dos US$ 4 bilhões e explicou: “O país está a andar a uma velocidade puxada pelo setor petrolífero que nós não temos capacidade de controlar e perceber o que está passando. E isso tem a ver com a fragilidade da administração pública, com a capacidade de adjudicar ou fiscalizar essas obras, com uma série de coisas. Isso pode ser um limite, um entrave importante no futuro para Angola entrar numa rota de desenvolvimento econômico sistemático. Faltam gente e capacidade do Estado para tocar tudo isso”. As empresas de Raimundo não tiveram problemas com falta de pagamento. Segundo o empresário, o motivo para isso é o fato de seus negócios serem em áreas estratégicas, que não podem parar. Entre as principais questões que preocupam os integrantes da Aebran está a concessão de vistos. O visto ordinário, que dá o direito de permanecer no país, mas não de trabalhar, é concedido por apenas um mês, com renovação por mais um mês. Os vistos

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de trabalho são de um ano e podem ser renovados por duas vezes. “É um pouco exagerado esse controle que eles fazem. Deveria ter mais liberdade de ir e vir entre os dois países irmãos”, reclama Raimundo. Mesmo que o visto ordinário não dê autorização para o trabalho, essa é a forma de entrada para muito trabalhadores em Angola. Eles chegam ao país, começam a trabalhar e mandam o passaporte para o Defa (Departamento de Imigração e Fronteiras de Angola) com solicitação de visto de trabalho. Em uma fábrica de alimentos de Luanda, quem cuida dos trâmites para a permanência dos funcionários estrangeiros é um brasileiro, engenheiro de alimentos. Ele construiu uma rede de contatos suficiente para resolver os problemas da empresa e de alguns amigos que trabalham em outros lugares e possam estar em apuros. Em toda empresa existe um funcionário para esse tipo de trabalho, não só para cuidar dos vistos, mas também agilizar os pagamentos de serviços prestados, entre outras atividades. Além das taxas consulares, ele entrega US$ 5 mil dólares para “facilitadores” a fim de conseguir o visto de trabalho “sem maiores constrangimentos”. Fica pronto em 15 dias. O engenheiro explica que, com o processo de “angolanização”, trazer estrangeiros sem formação para trabalhar é complicado, mas não é impossível. Uma de suas atribuições é escrever currículos para serem enviados junto com a documentação dos aspirantes a visto de trabalho. “Para um funcionário nosso que só tem o primário, eu coloco um curso técnico e está resolvido”. Ele conta, ainda, que muitas vezes o visto estaria perto do prazo para expirar e as pessoas teriam que voltar ao Brasil e renová-lo, mas sempre tem como dar um jeito. É só fazer o passaporte viajar, receber o carimbo de saída, enquanto o trabalhador continua ganhando dinheiro em Angola e não deixa o chefe na mão. Mas os “facilitadores” acham que esse processo já foi mais fácil, com essa história de “tolerância zero com a corrupção”, as propinas estão ficando mais altas e os documentos passam por mais mãos até que tudo se resolva. “Antigamente dava para fazer tudo por US$ 1500”, conta o engenheiro. O homem 82

5. Na terra do antigo irmão

A Apex reconhece a depêndencia do mercado informal para escoar mercadorias em Angola

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faz questão de frisar que, mesmo prestando esse serviço para os outros, seus próprios processos de renovação de visto são todos dentro da legalidade. “Sabe como é, eu me converti. Agora sou evangélico e esse tipo de coisa é desonestidade”.

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6. Empreendedorismo missionário A sirene da viatura abre espaço no trânsito caótico de Luanda, carros sobem na calçada, apertam-se onde parece não haver mais espaço sem que seja provocada uma batida. A bordo, um brasileiro é levado para o quartel da polícia. Roberto se sente uma celebridade sendo escoltada, nunca viu aquelas ruas se abrirem assim para ele passar. Tudo isso por um engano, tinha uma palestra marcada para policiais de Luanda e chegou pontualmente, mas foi ao Bairro da Polícia e deveria ter ido ao Benfica, distante 30 quilômetros. Já estava em cima da hora e, para atravessar o infindável congestionamento, a solução encontrada pelos tropas foi ligar a sirene. O tema do dia é “valores humanos”. Roberto não se considera um especialista para dar palestras, mas acha que no país o pouco que sabe pode valer muito. Os policiais ali só entendem de armas, trabalharam em um país em guerra e têm poucas noções de relacionamento interpessoal. Por isso, sua exposição mistura Direitos Humanos com preceitos cristãos: saber se colocar no lugar do outro, ser tolerante, respeitar as diferenças, saber perdoar e multiplicar o bem. Natural de Joinville, Santa Catarina, Roberto com pouco mais de 20 anos de idade sentia-se realizado financeira e profissionalmente. Trabalhou na área de vendas em algumas das principais rádios do Estado e, nos últimos seis anos, ocupava o cargo de gerente comercial. Orgulha-se ao dizer que começou como auxiliar administrativo e, sem ajuda dos pais, financiou seu apartamento aos 23 anos e um carro aos 24. A última rádio em que trabalhou, a Jovem Pan AM e FM de Joinville, era um paraíso, tinha flexibilidade no horário, podia sair para visitar a avó e tinha tempo para ir à academia todos os dias. Católico fiel, fez o caminho de Santiago de Compostela em 2007 e desde então vinha buscando um novo sentido para a vida, para ele já não bastava ter estabilidade e conforto. Até que chegou um momento 85


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6. Empreendedorismo missionário

em que percebeu que faltava algo. Decidiu passar um tempo na África. Angola sempre havia despertado seu interesse por conta das necessidades, dos conflitos, pela similaridade histórica e cultural com o Brasil, pela alegria do seu povo e por, após a guerra, atrair investimentos dos outros países. Roberto tinha, ainda, uma razão que considera mais forte: “Sempre tive uma ligação muito grande com o continente africano. É algo espiritual”. Com a decisão tomada, foi em busca de alguma organização na qual pudesse prestar serviço humanitário e também receber auxílio para estar no país. Tentou ONU, Cruz Vermelha, Serviço Voluntário Internacional, mas não tinha sucesso por conta da falta de experiência nesse tipo de trabalho, das exigências referentes ao domínio de idiomas, formação e disponibilidade de tempo. Até que descobriu a Congregação das Irmãs Catequistas Franciscanas e conseguiu carta-convite para tirar visto como missionário da Igreja Católica e hospedagem em uma casa de freis da Fundação Imaculada Mãe de Angola. Embarcou em outubro de 2009. A Fundação onde mora fica em Viana, na província de Luanda. Prestando serviços voluntários, Roberto conheceu as províncias de Malanje, Bié, Huíla e Kwanza-Sul, sempre querendo descobrir como poderia ajudar, ser útil ao país. Fez aulas de História de Angola e História da Evangelização em Angola no Instituto de Ciências Religiosas do país. Resolveu utilizar as habilidades desenvolvidas como gerente comercial e foi daí que surgiu a ideia das palestras, já que ele fazia muitas reuniões para motivar os funcionários do setor comercial da rádio. Começou na paróquia da Fundação, com ensinamento dos preceitos cristãos, dentro dos valores humanos e estrutura familiar, e foi recebendo convites para ir a escolas e até ao quartel de polícia. As palestras começaram a ter grande procura, com salas sempre lotadas, e ele passou a abordar liderança e emprego, perspectivas de futuro e sexualidade. Suas maiores fontes estão na internet, onde lê o máximo que pode sobre os temas que aborda e busca utilizar métodos de palestrantes que considera consagrados, como Professor Gretz, Leila Navarro, Cláudio Diogo e Arnaldo

Jabor. As lições de Roberto são complementadas com mensagens como Filtro Solar, com narração de Pedro Bial. O trecho de um espetáculo do grupo de sapateado irlandês River Dance serve de exemplo de perseverança e união. Roberto reconhece que esses vídeos são mais que manjados no Brasil, mas o público de suas palestras em Angola se impressiona e adora. Uma das questões que preocupa Roberto é a prevenção do HIV. Para falar da SIDA (em Angola a sigla é utilizada em português) ele procura ser sutil e faz as palestras sobre sexualidade, nas quais enfatiza a valorização do corpo e conduz a discussão em torno da pergunta: “se as pessoas não cuidam do que elas têm de mais precioso, o que esperar delas?”. Angola está na região do mundo em que há mais pessoas contaminadas pelo vírus HIV. De acordo com o Programa das Nações Unidas para a AIDS (UNAIDS), em 2008, a África Subsaariana representava 67% do total mundial de casos. O índice de 1,98%, na população angolana entre 15 e 49 anos, é alto se comparado ao do Brasil, de 0,6% . Mas essa é a menor porcentagem na região e parece pequena diante da realidade dos vizinhos Namíbia e Zâmbia. Os dois têm estatísticas semelhantes, com média de 15% de soropositivos na população adulta. O baixo índice de contaminação de Angola comparado com o restante da região é atribuído aos anos de guerra, quando a liberdade de ir e vir era muito menor. Mas as previsões do Instituto Nacional de Luta Contra a SIDA (INLS) do Ministério da Saúde de Angola (MINSA) são de que o número de portadores do HIV vai subir nos próximos anos. Os principais fatores para esse aumento seriam as características culturais e socioeconômicas da população angolana, como população jovem, grande movimentação, com pouco controle, entre as fronteiras, prática da poligamia, início precoce das relações sexuais e rejeição ao sexo com proteção. As mulheres são as mais infectadas no país, do total de 166.500 adultos com HIV, 100 mil são do sexo feminino. Entre as crianças de 0 a 14 anos o número chega a 29.642. Roberto se esforça para falar de sexo seguro, mas suas pa-

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lestras são articuladas ou acompanhadas por líderes católicos que não estimulam esse tipo de iniciativa e, pelo contrário, combatem. Em uma ocasião, uma irmã recolheu todas as camisinhas das pessoas que estavam na sala de aula, disse que elas não precisavam e que não era certo usar. Ao final das palestras, o missionário é muito procurado e as pessoas fazem perguntas como se ele fosse um médico, principalmente as meninas e mulheres “É sempre aquela velha história de uma amiga que tem tal problema”. Indicadores do UNGASS (United Nations Special Session on HIV/ AIDS) mostram que apenas 28,4% da população angolana entre 15 e 24 anos tem conhecimento das maneiras para prevenir doenças sexualmente transmissíveis. Outra palestra que tem grande audiência é a que trata de emprego. Roberto usa as tradicionais técnicas de motivação, ensina como se portar em uma entrevista e como fazer um currículo passo a passo. Ele considera as perguntas muito básicas, por exemplo, a importância de se informar a idade no currículo. O governo de Angola criou o Programa de Formação de Artes e Ofícios para áreas que considera indispensáveis à reconstrução do país, como construção civil, jardinagem, carpintaria e pintura. O projeto tem como público-alvo os jovens (faixa etária até 30 anos) que são 62% da população. Pessoas a partir dos 16 anos podem participar e são admitidas nos cursos mesmo que não saibam ler nem escrever. O analfabetismo atinge 33% da população angolana. A proposta é atrair jovens que abandonaram os estudos ou que nunca tenham frequentado a escola para adquirirem uma formação profissional e um emprego ou meio de subsistência. Em 2009, a taxa de desemprego em Angola ficou estimada em 26,3%, de acordo com Relatório Econômico elaborado pelo Centro de Estudos e Investigação Científica da Universidade Católica de Angola (CEIC), mas o coordenador da equipe, o economista Alves da Rocha, reconhece que está subestimada. Ainda assim, o país tem uma realidade classificada no relatório como de “relativa tranquilidade social”, que se deve a 88

6. Empreendedorismo missionário

Andar no principal meio transporte angolano é contra as normas de segurança da ONU

três fatores: a memória recente da instabilidade e insegurança dos tempos de guerra que leva a população a aceitar o desemprego como um “mal menor”; os atos de corrupção no Estado e nas empresas que aliviam de maneira paliativa as necessidades de pessoas desempregadas, com pequenos favorecimentos; e a economia informal, a maior alternativa no país diante da falta de estrutura e oportunidades. Roberto não tem gastos no local onde mora, que considera de uma simplicidade que combina com a religião, mas compara a um hotel duas estrelas: tem refeições, banheiro privativo, banho (algumas vezes quente), água potável, TV por assinatura e máquina de lavar roupas. Aprendeu a se locomover em Luanda, caminha com agilidade, em alguns lugares tem medo de ser assaltado, mas sempre tenta manter o ar simpático, com sorriso fácil e olhar cordial por trás dos óculos de armação quadrada. Já é calvo aos 30 anos, mas o corte de cabelo bem baixo ajuda a disfarçar. Não se incomoda se chamar atenção por ser branco, embarca nas candongas e vai a qualquer lugar, sabe os destinos, as baldeações, 89


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6. Empreendedorismo missionário

não vê grandes riscos e sua maior preocupação é sentar na janela para tomar um ar, principalmente nos horários de pico, quando cinco pessoas se espremem em bancos onde deveriam sentar três. Se tiver uma reunião que começa às nove horas, acorda às cinco e meia e sai de casa uma hora depois, para chegar 30 minutos antes ao compromisso. O que mais lamenta é não ter um carro com motorista à sua disposição, aí daria conta de mais reuniões por dia. Mas quer um motorista com experiência de candonga, porque só eles são capazes de cortar caminho, correr, ignorar qualquer lei, escapar dos guardas e fazer o tempo render muito no caos do trânsito da cidade. O missionário descobriu lugares que considera limpos, baratos e dá para comer bem (feijão, funji , salada e carnes) por US$ 12. Quando passa o dia no centro de Luanda, é impossível almoçar na congregação e ele recorre a esses restaurantes. As passagens de candonga, essas refeições e o que desembolsa na sua rotina em Luanda vêm das suas economias, fruto do apartamento que tinha em Joinville e vendeu antes da viagem. Por isso, ele busca uma maneira para se manter e, mais que isso, quer crescer no mundo dos negócios. Em seu blog pessoal Roberto explica:

Ele saiu em busca da resposta prática a essas perguntas e, ao mesmo tempo em que se dedica aos serviços voluntários, procura fazer contatos profissionais. Logo que chegou ao país, visitou a 7ª Edição da Feira Internacional de Materiais de Construção e Obras Públicas - Constrói Angola, realizada entre 15 e 18 de outubro. Seria seu primeiro passo para ser um missionário-empresário em Luanda. No evento, ele conheceu um dos donos da Lusoimpex - Consultoria em Comércio Exterior, de Blumenau, Santa Catarina, com quem faria uma sociedade. Passou a representar a empresa em Angola, tornou-se seu diretor comercial no país (em uma equipe composta somente por ele). Seu serviço como voluntário prosseguiu e, ainda em outubro de 2009, depois de trabalhar na Missão Católica do Katepa pintando paredes, puxando brita e moendo mandioca, Roberto sentiu dores de cabeça, enjôos, fraquezas e tonturas. No Laboratório de Análises Clínicas Sagrado Coração de Jesus, o exame indicou que ele havia sido batizado, como dizem os freis para quem pega malária pela primeira vez. Em 2009, a doença, conhecida popularmente como paludismo, deixou oito mil mortos em Angola e teve 3,1 milhões de casos registrados pelo Programa Nacional para a Luta contra a Malária. No ano anterior foram 3,45 milhões de casos. A meta do governo angolano é erradicar a doença até 2030. Em discurso na abertura de um fórum sobre a doença, a governadora da província de Luanda, Francisca do Espírito Santo, disse que este é um fardo para a economia do país, por causar muitas faltas ao trabalho e à escola. De acordo com a governadora, em média, cada cidadão angolano perde de 25 a 27 dias úteis por ano devido ao paludismo. O visto expirou e, em dezembro, ele teve que voltar ao Brasil. Passou o natal com a família, comprou livros para se preparar para suas palestras e se abasteceu de folders das empresas que representa. Conseguiu visto ordinário para retorna retornar a Angola em maio de 2010. Dessa vez, veio com o foco principal nos negócios. Roberto sabe que para fazer suas vendas e aumentar a rede de contatos não basta falar o mesmo idioma, é preciso

Ainda me perguntam por que investir em outro país, com tantas oportunidades em Joinville, em Santa Catarina e no Brasil. E esta é uma pergunta difícil de responder, pois é o tipo de coisa que transcende a razão. E é difícil às vezes explicar o que simplesmente sentimos. Mesmo assim, vou tentar usar a bendita razão em duas perguntas simples. Vamos lá: 1. Qual país do mundo saiu recentemente de uma guerra, tem dinheiro mais que suficiente para ser reconstruído, possui como idioma o português e as pessoas são totalmente apaixonadas pelos brasileiros? 2. Que mal pode existir quando se une oportunidades empreendedoras, desenvolvimento espiritual e trabalhos humanitários? 90

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6. Empreendedorismo missionário

aprender a maneira de conversar com os angolanos: - Muito boa tarde, senhor. Como está a vossa saúde? - Péssima. Estou com bronquite. - responde um cliente. O empresário brasileiro acha engraçado que as pessoas não consideram certas perguntas mera formalidade e têm prazer em responder. No escritório improvisado, a mesa de um restaurante no centro de Luanda, Roberto almoça, abre seu laptop e, se não tiver internet wireless, pelo menos organiza a agenda. Dali faz ligações para marcar ou confirmar compromissos e, se o interlocutor não perceber os ruídos do restaurante, poderá jurar que ele fala de uma sala confortável e bem decorada: - Muito boa tarde, senhor. Tudo bem? – Roberto telefona para mais um possível cliente. - Não. Minha esposa não está muito bem. Fui a Lisboa, para ela se tratar. – responde o homem do outro lado da linha, pronto para esmiuçar mais detalhes. Se o cliente vale a pena e há créditos no telemóvel, por que não ouvir suas mazelas? Roberto acha que essa necessidade de falar da saúde e da vida pessoal para outros que não são íntimos é uma marca do pós-guerra, a vida volta a ter atenção e há necessidade de se sentir importante. Na opinião dele, as pessoas passaram tanto tempo sem ter valor, em uma sociedade em que morrer era banal que, agora, quando alguém se importa é bom aproveitar. No fim das ligações não basta um “tchau” ou “até logo”: “Desejo que vossa semana seja ótima!”. Por mais que se diga que os angolanos têm muito em comum com os brasileiros, no sotaque e na maneira de falar cheia de formalidades e frases prolixas, eles prosseguem muito mais semelhantes aos portugueses. Roberto é totalmente submisso ao se dirigir aos possíveis clientes e não se incomoda, acha que é cultural. Na procura por novos negócios, o empresário virou até correspondente internacional e bancou o jornalista no Angola Fashion Week 2010 e escreveu uma reportagem para a revista MakeUp, de Joinville. Quando se apresentou a uma das organizadoras do evento, foi tratado como se fosse de revistas de circula-

ção nacional no Brasil, do nível de Nova ou Claudia: “Em determinado momento, me apresentei como jornalista da revista brasileira MakeUp. Uma das organizadoras me olhou e disse: ‘Jura? Vem comigo!’ Chegamos a um grupo de pessoas e ela berrou: ‘Gajos, aproveitem para conversar com o senhor Roberto da revista MakeUp Brasil, pois ele estará em Luanda somente hoje!’ Várias personalidades vieram falar comigo e, assim, tive meu momento de fama. Só faltou sair na Caras Angolana!”. Nos moldes da Caras brasileira, essa é a revista que ele costuma comprar em Angola para identificar quem está em evidência e quem são as personalidades que podem ser futuros clientes. De maio a julho, Roberto juntou 46 cartões de visita e se reuniu não só com angolanos e brasileiros, mas com indianos, chineses, portugueses, belgas e moçambicanos. Para conseguir seus contatos, telefona, se apresenta, marca visitas, pede a amigos e conhecidos que apresentem pessoas influentes e clientes em potencial e vai ampliando sua rede. Mas, em dois meses, só vendeu um equipamento de R$ 15 mil. Ele não diz qual o valor da comissão, mas considera uma mixaria. Como se tornou sócio da Lusoimpex, acaba por nem ver a cor do dinheiro, que fica para os investimentos nos negócios mesmo. Enquanto isso, vai gastando suas economias e calcula que, nesse ritmo, dariam para mais uns dois anos. Seu discurso é de paciência e perseverança, mas sua meta é começar a ganhar o quanto antes e parar de usar suas reservas. Mesmo assim, o empresário espera ansiosamente pela 27ª FIL (Feira Internacional de Luanda), a maior feira multissetorial de Angola. Nos dias da Feira o trânsito de Luanda fica ainda mais caótico, piora muito na região de Viana. A polícia se empenha para tornar o acesso dos visitantes melhor, abrir alas para comitivas de chefes de estado e faz os carros, que já andam devagar no engarrafamento, pararem de vez. Os candongueiros, que são tratados a vistas grossas a maior parte do ano, não têm perdão nesses dias, pois seus locais de parada são irregulares e aumentam o congestionamento. As pessoas ficam nos pontos, mas os motoristas pas-

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6. Empreendedorismo missionário

sam direto se perceberem que tem polícia por perto. O povo vai correndo atrás, comendo poeira, até um lugar que pareça seguro. O fluxo lembra uma procissão, vão caminhando entre a calçada e a estrada, que não têm limites muito bem definidos. A van para, entram quantos puderem o mais rápido possível, antes que um tropa apareça. Na correria e empurra-empurra, alguns ainda se preocupam em dar lugar para as senhoras mais velhas. Quem não couber vai correr atrás da próxima van. Mesmo com os contratempos no transporte, as pessoas de Luanda gostam muito da FIL. Os angolanos consideram uma ótima alternativa de lazer, para passear, tomar uma gasosa e ver coisas bonitas. Das duas às seis da tarde, horário considerado nobre por ser quando os homens de negócios fazem mais contatos, os ingressos custam US$ 25, depois disso, a entrada sai por US$ 20. A feira ocorre em um parque de exposições que ocupa uma área de 3,4 hectares, com cinco pavilhões de dimensões entre mil e cinco mil metros quadrados, divididos por países. Nos estandes: folders e amostras dos produtos dos mais variados tipos, de alimentação a construção, empresários engravatados, executivas de tailleur e algumas expositoras charmosas na tentativa de ajudar a chamar atenção. Este ano, o lema do evento é: “Indústria Transformadora como factor imprescindível para o desenvolvimento económico de Angola” No estacionamento de chão batido ao redor do centro de exposições, há uma faixa a 100 metros da entrada, dali quem não tiver convite não passa. Atrás dessa faixa ficam os vendedores ambulantes, as crianças que pedem esmola, os gatunos prontos para abordar um gringo desprevenido, os que pedem convite e os que pedem emprego. Mas quem vai conseguir trabalhar na feira sem treinamento ou seleção prévia? Roberto treinou três moças angolanas para fazer o atendimento no estande da Lusoimpex, mas no primeiro dia de feira apenas uma apareceu, às quatro da tarde, cinco horas depois do combinado. Para completar a equipe, ele chamou uma entre as várias moças e moços que estavam no estacionamento à espera

de um emprego. “Era bonitinha, ajeitadinha e cheirava bem. Fui a um estande de construção civil, arrumei um capacete de obra e uma roupa de operária e pedi para ela vestir. Estou admirado com a minha capacidade criativa”, conta o orgulhoso empreendedor. A promotora vestida com roupas da construção civil distribuiu flyers, enquanto a outra andou pelo Pavilhão Brasil com uma bandeja pendurada no pescoço para oferecer a degustação de produtos da de uma das empresas representadas. Pelas contas de Roberto, foram abordadas mais de 500 pessoas. As estimativas de negócios das 40 empresas brasileiras que participaram da Feira totalizam US$ 50 milhões, entre negócios imediatos e previstos para os próximos doze meses. Cerca de 20 mil visitantes passaram pelo pavilhão do Brasil, o segundo espaço mais movimentado da Feira, atrás apenas de Portugal. Depois da FIL, Roberto teve que passar mais uma temporada em Joinville por causa do visto. Mas de volta a Luanda, em setembro de 2010, tem o projeto de colaborar com a construção de uma escola em Viana e conseguiu novas parcerias, como a da Univille (Universidade da Região de Joinville), a fim de que joinvilenses visitem Angola para fazer trabalho voluntário. Ele também planeja criar sua própria ONG e já pensou em abrir uma agência de comunicação com amigos, que fariam os trabalhos do Brasil, com valor abaixo do que é cobrado no mercado. Onde isso tudo vai parar? Nem ele sabe. A longo prazo, o sonho do empresário-missionário é ter uma casa de frente para o mar na parte mais nobre da praia de Ubatuba, no litoral norte do Santa Catarina, e trazer os pais, que já têm um camping em uma praia mais popular, para curtirem ali, sem qualquer preocupação. Mas, antes disso, planeja participar de conferências humanitárias em Genebra, fazer negócios em outros países e pretende se tornar uma referência: “Quero que quando alguém pensar em Angola, pense em Roberto. Quero que quando falarem em negócios na África, lembrem de mim”.

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7. Até a próxima transferência

7. Até a próxima transferência Em uma rua asfaltada de Talatona, a banca de frutas é improvisada num terreno baldio. Três mães usam duas mesas feitas com restos de madeira para expor bananas, tomates, pimentões, cenouras e ainda resta um abacaxi no canto. Uma faz as tranças na filha de sete anos, a outra carrega o filho adormecido nas costas, preso por um pano colorido que fica amarrado à sua cintura, e a terceira traz o filho no barrigão de quase nove meses. Quando Renata chega, as três se agilizam para atendê-la. Com a lista dos alimentos para levar para a creche, a loira de cabelos curtos, 1,80 metro e bermuda estilo surfista escolhe o que quer com objetividade. Pega os tomates, pimentões e batatas. Dessa vez não tem nem cenouras, nem repolho, terá que comprá-los em outro mercado. Renata pede para tirar uma foto, a grávida desenrola o típico pano colorido do corpo e revela um vestidinho jeans, frente única, com comprimento acima da metade da coxa. A mulher com o bebê nas costas se junta para posar, a outra se recusa porque não está arrumada – usa chinelo de dedo, bermuda jeans, blusa laranja e marrom e uma toca de banho rosa na cabeça. - Essa menina já não tem idade para ir pra escola? – Renata pergunta apontando a menina com as tranças pela metade. - Sim, ela vai. Mas hoje não foi porque tinha que fazer o cabelo. – responde a mãe. Talvez essa seja só uma desculpa, mas as angolanas realmente dão prioridade aos cabelos. As meninas, desde bem pequenas, usam tranças com penduricalhos coloridos nas pontas. As adultas fazem rastafari, mas também gostam de mudar o penteado com apliques lisos ou cacheados. Se o dinheiro não der, usam perucas mesmo. Mas se vier um aumento no salário ou renda acima da média na zunga, um dos destino do dinheiro é a compra de um cabelo novo. Em 2010, enquanto a novela Viver a Vida, da rede Globo, estava no ar, entre as madeixas mais requisitadas estavam

as que tivessem cachos parecidos com os da brasileira Taís Araújo. A atriz foi a primeira negra a interpretar uma Helena do autor Manoel Carlos, que sempre dá esse nome a suas protagonistas. - Tá bom. Mas tem que ir para a escola, viu? - a brasileira adverte às mulheres e se vira para a menina: - Você quer ganhar um presente? A miúda só faz que sim com a cabeça e Renata a toma pela mão e leva até o carro. Entrega um kit com objetos para brincar com água e lembra mais uma vez: - Ó! Mas precisa ir pra escola, hein? O dia está só começando e ela ainda tem que ir a outros mercados comprar o que as vendedoras da beira da rua não tinham. No Shoprite, maior mercado da região também não há cenouras. Melhor não perder tempo ali, o motorista toca para o mercadinho Mundo Verde, sofisticado e caro. Ali tem arroz, alho e cebola, mas não tem carne moída. Renata tolera muitas coisas da vida em Luanda, mas se irrita por ter que ir a dois, três supermercados para comprar o básico e nem sempre encontra tudo. Na fila do caixa faltaram cinco kwanzas de troco (o equivalente a cinco centavos de dólar), como sempre, mas a caixa logo se prontificou para pedir o valor à colega ao lado. - Ela já me conhece – diz Renata, enquanto espera o troco. Não suporta troco errado, atrasos nem gente que fura a fila e convive com isso todo dia. Não deixa de reclamar e tem o cuidado de lembrar que no Brasil age da mesma forma. Sempre que comprava no local era um problema conseguir o troco certo. Então disse para uma caixa: - Esse troco que fica vai para o bolso da senhora? Se fosse, eu pagaria com o maior prazer, mas tenho quase certeza que não vai. - É, não vai. - confessou a caixa. E desde então não houve mais problemas com troco. As compras são para as crianças da creche Pequena Chama, na Ilha do Mussulo. Renata e um grupo de amigas vão até lá uma 97


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vez por semana para levar os alimentos e um cardápio, elaborado por uma delas que é nutricionista. A creche existe desde 2005 e foi fundada por integrantes do movimento italiano Focolares, de de caráter ecumênico. Esse mês, todas as amigas estão viajando de férias e só sobrou Renata para fazer as compras que saem cerca de US$ 100 por semana. Nessa segunda-feira deu para ir, nas próximas ela já não sabe se vai dar conta dos custos. Os barqueiros tocam na areia para que os passageiros se molhem o mínimo possível no cais improvisado. Por Akz 200 (US$ 2), a voluntária da creche toma uma lancha que, em cinco minutos, faz a travessia para a Ilha. Para quem vai a turismo, o valor da passagem cobrada é quatro vezes maior. O lugar é daqueles paradisíacos, com coqueiros, muita areia e possui seis mil habitantes. De um lado, milionários têm mansões. Do outro, vive uma comunidade de pescadores e é por ali que Renata segue. São menos de dez minutos até a creche, mas o sol quente e a areia fofa são cansativos para quem está cheio de sacolas. Antes que ela chegue ao portão, as crianças que estão cantando em roda, junto com a professora no pátio, saem correndo. - Madrinhaaaa! – gritam e se penduram no pescoço dela. Renata trouxe também a filha de um dos diretores da empresa onde o marido dela trabalha, Camila, uma garota boliviana de 13 anos que está passando férias em Luanda. Mesmo sem conhecê-la, as crianças também se penduram no seu pescoço, nas mãos e querem saber o que há nas sacolas que carregam. Elas entregam os alimentos à merendeira Madalena, de 17 anos, e passam o cardápio da semana. Hoje, uma das professoras faltou e Renata assume a turma dela. No Rio de Janeiro, trabalhava como professora de educação infantil numa escola bilingue de alemão. Às segundas-feiras, quando vai à Ilha, tenta estimular as crianças que considera muito limitadas para idade que têm, não conhecem letras, algumas mal sabem dizer o próprio nome. A carioca de 27 anos começou a se envolver em trabalho voluntário ainda no Brasil, como integrante do Greenpeace. Em Angola, quer contribuir com o país onde está vivendo e também fica 98

A Ilha Mussulo é o destino dos estrangeiros aos finais de semana e possui 6 mil habitantes

entediada com a rotina academia, shopping e encontro de amigas, o que geralmente fazem as esposas que vêm acompanhando o marido. Foi então que se juntou a amigas e amigas de amigas para fazerem projetos por iniciativa e com recursos próprios. Em um mês de visitas semanais à creche, ela percebeu a diferença da nova dieta nas crianças, que antes eram mais apáticas durante as aulas e muitas tinham feridas no rosto. Agora todas melhoraram tanto na atenção, quanto na aparência. Tem nome russo uma das meninas que se destaca na folia da turma. Os olhos úmidos e fundos de Irina trazem uma força incompatível com seus cinco anos. Encaram com firmeza, mas logo baixam e se perdem na observação e no rostinho negro tão cansado. Durante a aula, a menina não responde aos estímulos da professora, não interage com qualquer coleguinha, não pede água como todos os outros, só espera sua vez. Difícil saber se ela é assim ou está assim. Talvez seja paludismo, talvez desnutrição. Irina não traz trancinhas com penduricalhos coloridos nas pontas, como as outras meninas, seu cabelo é curto, com os cachinhos 99


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começando a nascer. A cabecinha esmorece para trás e se apoia no encosto da cadeira feita para o tamanho do seu corpinho. Mais um movimento e, em silêncio, a menina se inclina para frente e se debruça na mesa. Vai ficar ali, dentro do seu vestido rosa claro frouxo até a hora do almoço. Na hora de comer, as 63 crianças fazem fila para lavar as mãos nos baldes com água e sabão. A creche, assim como toda a comunidade, não tem água encanada. Enquanto as professoras trazem as mesinhas, as crianças ajudam a trazer as cadeiras das salas e depois a estender as toalhas. Só uma menina resiste em comer a sopa, todos os outros devoram. De acordo com a Food Agriculture and Organization (FAO), quase metade da população infantil angolana (crianças menores de cinco anos) sofre de desnutrição, que está associada a dois de cada três casos de morte nessa faixa etária. Crianças mais velhas, que não são da creche e já frequentam a escola primária, chegam e pedem comida, mas são lembradas que é primeiro para os miúdos da creche, se sobrar aí sim podem comer. Elas ficam olhando de fora, algumas encostam a cabeça na porta e assistem fixa e silenciosamente ao almoço. Não sobra nada. Rapidamente o barulho das colheres batendo nos pratos de plástico se desfaz. As crianças formam fila para ir embora e quase todas vão sozinhas, correndo pelas areias do Mussulo. Fica só o menino Luciano no meio do pátio, está com sede. Mas o garrafão de água mineral já acabou antes da hora do almoço. Agora só tem a água salobra que usam no banheiro. O menino fica ali até todos irem embora, sai conduzido pela mão da professora Cecília. No caminho, Renata conversa com a professora sobre possibilidade de trabalhar o dia inteiro na creche caso o salário aumente. - Você sabe que é a única com quem podemos contar e confiar. Você ajuda em tudo e é ótima professora. - Acho muito difícil eu continuar. Fui ao médico e ele disse que minha aparência mudou muito, estou muito mais magra e 100

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Crianças lavam as mãos antes de comer, talvez, a única refeição do dia

cansada. É complicado cuidar sozinha de mais de 60 crianças, organizar a fila para lavar as mãos. Eu nem posso falar muito da outra professora. Ela dá ótimas aulas, mas sai 11h30 e tenho que juntar meus alunos com as outras turmas. Continuam a caminhar para pegar o barco quando Cecília se dá conta que Luciano, que bate na sua cintura, está pendurado em seu dedo. - Jesus! Estou a roubar uma criança! Luciano vá para casa. 101


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O menino corre para uma das casinhas quadradas, com uma janela e uma porta, feitas de bloco de concreto sem reboco. Cecília veio da província de Uíge por causa da guerra. Tinha que se refugiar nas matas e sua casa ficou totalmente destruída. Em Luanda, chegou a cursar três anos de Medicina, no Instituto Piaget, mas não pode mais pagar a mensalidade de US$ 350. Agora, ela ganha US$ 200 dólares por mês para trabalhar na creche, mas pensa em deixar o emprego assim que conseguir outro melhor. Só para pegar a barca ela sai do seu bairro, Golf, toma uma candonga e caminha mais de 2 quilômetros até o cais. Gasta Akz 600 por dia com transporte, o que equivale a US$ 120 dólares mensais. Do outro lado do mar Cecília vai para sua casa, na periferia de Luanda, ao lado de Talatona, bairro onde Renata mora com o marido que trabalha na companhia prestadora de serviços para petrolíferas, Baker Hughes. O apartamento de três quartos já estava mobiliado quando Marcelo e Renata chegaram. Tudo pago pela empresa, assim como o aluguel de US$ 9 mil por mês. No Brasil eles moraram um bom tempo com os pais de Renata e depois alugaram um apartamento quarto e sala. Cada um tinha sua moto, mas ainda não tinham carro, muito menos uma caminhonete Hyunday 4x4, com motorista, como tem agora. Não se consideram deslumbrados, mas confessam que quando chegaram a Luanda, em janeiro de 2010, se sentiram como pinto no lixo. O estilo de vida que demorariam anos para ter no Brasil, passaram a ter da noite para o dia. O casal não tem ideia de quanto tempo ficará no país. Quando voltarem para a terra natal o que vão levar do apartamento são os itens de decoração: panos africanos, esculturas e quadros que estão comprando na feira de artesanato que fica no caminho das praias. Todo final de semana eles enchem o isopor com refrigerante, água, alguns sanduíches, bolachas e chocolates. Viajam para conhecer outras províncias de Angola e foram para o Egito de férias. Estão fazendo um pé de meia e se colocam à disposição da empresa se quiserem mandá-los para outros países.

A filha de alemães, que chegaram ao Brasil nos anos 70, não teve medo de imigrar. Quando conversa com o pai pelo telefone sobre as dificuldades do país, ele lembra – sempre em alemão – que ao chegar no Brasil, as coisas eram iguais. Renata não esquece, nem se arrepende do dia em que Marcelo falou que a empresa estava abrindo vagas para trabalhar em Angola: - Você acha que devo mandar meu currículo? - Porque não mandou ainda? Três meses depois embarcavam para Angola, onde, sem ter emprego fixo, Renata teve sua primeira experiência como dona de casa em tempo integral. Ela dá algumas aulas de alemão por meio do Skype. Foi pela internet que descobriu uma pequena rede de cooperação em Angola e conheceu Eliane, brasileira esposa de um funcionário da Schlumberger, outra gigante prestadora de serviços no setor de petróleo. Em uma sala de aula do centro de Acolhimento Arnaldo Janssen alunos jogam uma bolinha para outro: - Ich heisse Felipe. Woher kommst du? – diz o menino em pronúncia perfeita. - Ich...ich... – o professor voluntário do Acolhimento já não tem tanta facilidade com a língua. Renata aponta para o quadro e assopra a resposta. – Ich komme aus Luanda. – completa finalmente. A dinâmica que Renata utiliza é igual a que usava nas aulas de alemão no Brasil. Mesmo sabendo a dificuldade na alfabetização que muitos deles têm no próprio português, ela acredita que podem aprender porque estão começando do zero no novo idioma. Fluente desde criança, quando terminou a faculdade de Administração, resolveu cursar Letras Alemão. Trancou a matrícula na Universidade Federal do Rio de Janeiro quando veio para Angola. Ela não demonstra nenhum constrangimento ou incômodo ao transitar pelo ambiente, onde vivem 130 meninos de até 18 anos. Os corredores têm cheiro de xixi e suor. Os quartos são escuros e vazios, com paredes encardidas e camas de ferro. A área

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de lazer é um campinho de futebol de areia, com traves enferrujadas. A professora abraça e beija os meninos, pergunta como estão se saindo na escola e procura conhecer a história de cada um. Irmã Rosa, a responsável pelo Centro de Acolhimento não sabe dizer quantos, mas afirma que a maioria foi parar ali por serem acusados de feitiço. Em Angola, meninos muito agitados, temperamentais, ou até mesmo inteligentes acima da média são, muitas vezes, chamados de feiticeiros. Essas crianças chegam a ser espancadas e ameaçadas de morte a ponto de fugirem de casa. Muitos dos que não conseguem escapar, morrem queimados ou a pauladas, sob acusação de terem causado a alguém perda do emprego, doenças e até mortes. Alguns são acusados de se transformar em adultos e adquirir poderes sobrenaturais. Assistentes sociais do Centro de Acolhimento vão às ruas de Luanda em busca desses meninos. Alguns chegam a se convencer que são feiticeiros e não merecem estar junto da família. Outros querem voltar, mas são renegados nas tentativas de reaproximação. Quando o Centro foi criado, em 1995, principal foco era atender órfãos de guerra. No início não havia galpões e eles chegaram a ter 600 crianças alojadas em barracas. A paz veio em 2002 e o número de órfãos diminuiu, ao contrário da quantidade de vítimas das mazelas sociais camufladas em certas tradições. A ação a que Renata mais se dedica está no estúdio de pintura, improvisado em um dos galpões do Centro de Acolhimento, onde fica o projeto dos Meninos Pintores. Participa quem quiser, mas é preciso levar a sério. Oito garotos passam a maior parte do tempo ali, orientados por Christian Miller, nome artístico de Carlos, 17 anos. Ele já morou no Centro e hoje vive com a tia. O jovem transmite aos meninos as técnicas que aprendeu sozinho e em um curso de desenho que não pôde concluir, porque o professor foi embora. Com ajuda de Eliane e Renata e o apoio da rede cooperação da internet, os Meninos Pintores fizeram exposição shopping Belas. Christian recebeu encomenda de vários retratos e está ensinando a técnica para os garotos mais novos.

Isaac João, de 13 anos, é um dos meninos do Centro acusados de feitiçaria. Seus olhos grandes não assustam, seus lábios grossos se movem mais para sorrir do que para falar. e se sente à vontade no meio dos quadros, de camisa social, bermuda e pés descalços. Na contracapa de um caderno escolar está escrito “O Libertador” e tem uma imagem do presidente José Eduardo dos Santos, sobre a qual Isaac Isaac João passa todas suas horas de lazer no estúdio se debruça para copiá-la ampliada. Seu sonho é ser artista plástico. Criou um de seus quadros com significados detalhados e explica sua obra:

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Um corpo carrega uma bola, que é o mundo e Angola está ali dentro. Angola está em paz. Se ele deixar a bola cair, acaba a paz. A bola está pesada e o corpo está cansado, por isso está curvado. Mas não quer deixar a bola cair. As gotas que saem da sua cabeça são lágrimas. Do dinheiro que recebem, metade fica para cada pintor e a outra parte é para a compra de materiais. Os próprios meninos saem para comprar e negociar as tintas e papéis. As voluntárias não querem criar um vínculo de dependência com eles, porque sabem que um dia vão embora e o os meninos vão ter que se virar. 105


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