Jornal Lampião - edição 23

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Julho de 2016

ARTE: MARIANA FERRAZ

EDUCAÇÃO

África em segundo plano Ensino de história e cultura africana e afro-brasileira estão previstos em lei, mas medida tem aplicação limitada flexo da sociedade do século XVIII, quando aproximadamente 80% da população eram de pessoas não brancas, alforriadas ou não. “O número de escravos, no início do século XVIII, aproxima-se a 50% da população. Já no final do século, quando a mineração entrou em decadência, estima-se que eram cerca de 35%. Contudo, o número de pessoas não brancas continua por volta dos 80%”. Ele reforça que a escravidão em Minas Gerais funcionou em um sistema de proximidade. Com isso, a possibilidade de as pessoas escravizadas saírem dessa situação era maior. Para o historiador, “essa proximidade se dá, também, porque as pessoas viviam em cidades. Além disso, há o fator do ouro. Isso fez com que as pessoas buscassem, pela riqueza, transitar entre esses estamentos sociais de forma mais fluida”. Nos registros cadastrais da Câmara Municipal de Mariana, datados de 1752, das 917 propriedades cadastradas, apenas uma é referida como senzala. Segundo Tercio, há alguns registros de ex-escravos que se tornaram proprietários de terras e de terras pertencentes a mulheres forras, que usavam da liberdade para proteger outros negros. Esses são casos que as escolas podem explorar para planejar ações que dialoguem com as diretrizes. O Plano Curricular da Secretaria Municipal de Educação (SME) de Mariana para a rede municipal foi pensado obedecendo os Parâmetros Curriculares Nacionais, documento do Ministério da Educação com orientações para a construção do plano curricular. Para a disciplina de História dos anos finais do ensino fundamental, 6º a 9º ano, o planejamento contempla a LDB, pois orienta a aplicação de

André Nascimento

No Brasil, a escravidão é um passado não muito distante que ainda deixa marcas visíveis de desigualdades nas relações sociais. Por isso, as ações afirmativas, políticas focadas em grupos que foram vitimados por algum processo de exclusão, têm por finalidade reparar danos causados a essas pessoas. A lei 10.639, de 2003, é uma ação afirmativa que acrescenta na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) para a educação a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afrobrasileira nas escolas de ensino fundamental e médio. O objetivo é valorizar e reconhecer a atuação e o pensamento negro no processo histórico de formação do Brasil. Em Mariana, palco da escravidão, após 13 anos da lei em vigor, os conteúdos voltados para a história europeia prevalecem nos planos curriculares e pouco se vê das propostas afirmativas das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs). As DCNs para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana, de 2004, são um plano político com orientações de como funcionam as alterações na LDB. Além de reparar desigualdades, a proposta objetiva maior autonomia na expressão e manifestação das visões de mundo dos afro-brasileiros. Em Mariana, especificamente, a adoção dessa política toca no processo de formação da cidade. O Censo Demográfico de 2010 aponta que 67,2% da população marianense se autodeclaram preta. Segundo o historiador Tercio Veloso, que estuda a formação urbana de Ouro Preto e Mariana, esse número pode ser entendido como um re-

conteúdos que permitem um aprofundamento nas questões das relações étnico-raciais, principalmente quando se fala da história de Minas e das culturas brasileiras. Mas aprofundar nesse assunto fica a cargo do professor, pois o plano curricular é usado para guiar a elaboração do plano de aula. Afro-educação Como muitos professores ainda não têm formação pensada nos conteúdos exigidos pela lei 10.639/03, uma alternativa é a troca com grupos que trabalham com as questões raciais. Na Ufop, o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid) “História, Cultura e Literatura Africana e Afro-brasileira” – Pibid Afro – é uma opção para as escolas de Mariana e Ouro Preto se adequarem às mudanças na LDB. A iniciativa tem a missão de valorizar a formação de alunos de licenciatura das universidades, permitindo uma experiência real nas escolas. O programa funciona sob tutela da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), e os alunos participantes ganham bolsa para desenvolver projetos nas escolas e oferecer cursos de formação para professores. O Pibid Afro envolve bolsistas dos cursos de Letras, História, Pedagogia, Música e Artes Cênicas. Ele funciona desde 2012 em escolas da região promovendo ações que buscam uma mudança nas relações educacionais, apresentando metodologias criativas e trabalhando com as múltiplas habilidades dos alunos. A professora do Departamento de Letras e coordenadora do Pibid Afro, Kassandra Muniz, defende que mudar a forma de olhar para os alunos e levar em consideração as particu-

Debate sobre a BNCC O Plano Nacional de Educação (PNE) entrou em vigor em 2014 e estabelece a criação da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), documento que determina conteúdos mínimos a serem desenvolvidos nas escolas do Brasil, além de guiar professores e coordenadores na hora de construir os planos curriculares. A primeira versão do documento gerou polêmica devido à retirada de temas, como Revolução Francesa e Literatura Portuguesa, para incluir conteúdos históricos e literários afro-brasileiros e latino-americanos. A segunda versão, apresentada para consulta pública no dia 3 maio deste ano, foi reformulada com os conteúdos de maneira equilibrada. A BNCC foi pensada por 116 especialistas de 37 universidades do Brasil. A proposta foi apresentada em 16 de setembro de 2015. O documento recebeu mais de 12 milhões de sugestões e contribuições on-line. O prazo para entrega do texto final da base, que seria dia 24 de junho, foi estendido para novembro deste ano. De 23 de junho a 4 de agosto, o Conselho Nacional de Secretários da Educação (Consed) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) realizarão seminários para discutir a segunda versão do texto para determinar as ações que constarão na versão final. Em Minas Gerais, os seminários acontecerão nos dias 2 e 3 de agosto.

laridades é importante na relação em sala de aula. “Obviamente, isso gera uma melhora no nível de letramento, na leitura, escrita e na formação das práticas orais. Além disso, a gente trabalha com temáticas voltadas para o continente africano e para a Diáspora, ou seja, trabalha em um contexto do que é ser negro no Brasil, na América afro-caribenha e por aí vai”. Ela salienta que os planos curriculares atendem a lei, no sentido de uma adequação à norma. O que não quer dizer que os conteúdos são aplicados obedecendo as orientações das DCNs. Atualmente, apenas a escola municipal Monsenhor José Cota é atendida pelo programa em Mariana. Além dela, o Pibid está pre-

sente em mais duas escolas de Ouro Preto, estrategicamente escolhidas, levando em consideração a localização e o perfil dos alunos. A intenção é atingir principalmente as periferias e a população negra. Devido aos cortes na educação, o projeto reduziu as suas atividades e pode encerrar os trabalhos em julho deste ano. O Pibid já havia sofrido uma ameaça de corte de 50% dos projetos no antigo governo. Há um debate para mudar o programa para um formato que foi rejeitado pela Ufop e por outras universidades. “É uma discussão feita por burocratas da educação e políticos. Eles querem transformar o Pibid em um reforço escolar.” afirma a coordenadora Kassandra Muniz.

CULTURA

Eles vivem da arte circense Cores, formas e elementos. O local é ocupado por crianças correndo, rindo e se exercitando. Quem vê de longe logo imagina uma lona de circo que remete à infância. Quem vê de perto percebe o empenho na realização de mais uma aula. Junto aos alunos, que mesclam diversão, aprendizado e empenho, está toda a dedicação de um jovem professor. Rodrigo Júnior Ferreira, 23 anos, morador de Ouro Preto, ex-aluno LUCCAS GABRIEL

Rodrigo. Talento com arcos

e atual professor do projeto Circo da Gente, é apaixonado pelo ofício. Teve contato com o universo que hoje faz parte da sua vida em 2006. Na época, com 14 anos, era o típico perfil do adolescente rebelde que dava trabalho na escola e em casa. Quando os alunos superam as dificuldades é gratificante, você sente a felicidade deles.” Rodrigo Ferreira

Quando ingressou no projeto era estudante da escola Bom Senhor, de Ouro Preto, e soube dele pelo colégio. Rodrigo, sem saber o porquê, aceitou o convite para ingressar no projeto, que selecionava alunos para ocupar o tempo deles com as atividades oferecidas pelo circo. Em um espaço totalmente diferente de todos em que já havia convivido, seu primeiro contato com o circo foi marcante: acostumado a frequentar aulas de futebol e de cantarias (escultura de pedras), identificou-se com o malabarismo, o equilíbrio, o espetáculo e com a plateia que compõem o mundo circense. Como aluno, participou do projeto de 2006 a 2008 e cultivou um amor que o levou a se especializar no tema. Participou de oficinas de capacitação oferecidas pelo projeto com o intuito de se tornar pro-

fessor algum dia. Em 2008, após um período turbulento, Rodrigo se dedicou com mais empenho para não deixar a iniciativa acabar, pois segundo ele, “nessa época o programa estava numa fase muito boa, em que era importante para a sociedade de Ouro Preto manter uma proposta como essa”. Rodrigo, junto com outros alunos e o coordenador do projeto na época, Eduardo, se mobilizou e conseguiu vale-transporte e o empréstimo do ginásio do Ouro Preto Tênis Clube, o OPTC, que fez com que as coisas caminhassem. Depois disso, o envolvimento só aumentou e o sonho de se tornar professor do projeto tornou-se realidade. Exigente, porém amigo, Rodrigo acredita que a boa relação entre professor e aluno é essencial. “Quando os alunos superam as dificuldades é gratificante, você sente a felicidade deles”, diz. A proximidade dos bairros Morro Santana e Piedade faz com que eles mantenham boa convivência fora do ambiente circense e isso os integra. Casado com uma bailarina e pedagoga, Rodrigo divide os acontecimentos diários das aulas com a companheira. Muitas vezes, instruído por ela, tenta manter uma relação próxima com os alunos e acaba por sentir as emoções deles. O circo também mudou a vida de Wallisson, paixão que hoje faz parte do cotidiano de sua vida. A rotina é a mesma, o ato de dar aula

JÚLIA ROCHA

Iara Campos

Dimdim. Acrobacias no ar

e os exercícios se repetem a cada semana. As cores e objetos circenses dão forma e vida ao lugar, pensado para outra coisa. Uma simples quadra do OPTC, quando cheia de alunos, professores, saltos e diversão, torna-se quase uma tenda circense. Fechando os olhos dá para imaginar um espetáculo digno de aplausos. O professor de tudo isso? Um homem simpático, humilde e apaixonado pelo que faz. Wallison da Silva Celino, 24 anos, morador de Ouro Preto, pertence ao mundo do circo des-

de 2006. No início era apenas um aluno deslumbrado com tudo o que conhecia. Influenciado por um amigo, nunca imaginou que a inofensiva visita a uma aula de circo despertaria uma paixão que perduraria por tanto tempo. Dedicação e empenho fizeram com que “Dimdim”, apelido carinhoso dado pelos amigos, se interessasse cada vez mais pelo assunto. Atuante como aluno de 2006 a 2010, tornou-se monitor. Porém, por não conseguir conciliar estudos em período integral e cursinho à noite com o projeto, ficou dois anos afastado, mas o apego fez com que ele, depois de formado, se aprofundasse mais em tudo o que envolve circo. Voltou decidido a ser professor, para de alguma maneira oferecer às crianças o que já havia vivenciado como aluno. A paciência e o carinho com que realiza as atividades e a amizade que mantém na relação com as crianças tornou Wallison um espelho para os alunos. Desde os pequenos detalhes como corte de cabelo até atitudes, modo de falar e agir são tomados como base para os jovens e refletem as suas posturas. Professor de acrobacia aérea, Wallison acredita que o projeto, criado em 2009, tem poder transformador: “possui a missão de mostrar para os jovens que existe uma outra opção além da que eles estão acostumados a vivenciar”.


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