Tudo & etc- 1ª edição

Page 1



[ÍNDICE]

Distrito Federal

pág. 5

MAIO 2 1 0 2

São Paulo

pág. 9 pág. 25 Pará

Paraná

São Borja em fotos

pág. 12

Rio de Janeiro

Sessão MusiCult

pág. 17 pág. 20

pág. 28


[AO LEITOR]

4

V

ivemos num país todo cultura. Culturas, aliás, porque somos a mescla de inúmeras influências étnicas, linguísticas, religiosas. Somos mais de 192 milhões de pessoas que compartilham a sensação inigualável de viver ao sul da linha do equador, no coração gigante que pulsa em quase metade do território da América do Sul. Somos brasileiros. Somos índios, portugueses, espanhóis, negros, alemães, italianos, poloneses, ucranianos, japoneses, sírios, libaneses, palestinos, etc. Falamos português e um sem-número de dialetos indígenas; arriscamos em alemão, italiano, japonês e árabe. Somos o Brasil da mistura de tudo: cores, sabores, aromas, histórias, lendas, causos e simpatias. Somos a apologia antropológica à diversidade humana. Temos encantos próprios, nossa magia de viver o cotidiano neste lugar indescritível e indefinível. Vivemos num país que é, ao mesmo tempo, tropical, subtropical, semiárido; possui a maior bacia hidrográfica de água doce do mundo, a maior floresta com a maior biodiversidade, o litoral mais extenso, o único pentacampeão de futebol. Também pagamos mais imposto e isso nos tira do sério, mas nada que nos impeça de rir da vida e de ter uma boa noite de sono: esse é o nosso jeito de ser. Somos da terra da feijoada, do acarajé, do vatapá; do risoto, da polenta e do churrasco; do mocotó, do pirão e da carne de sol. Bebericamos caipira, vinho, graspa e licor de butiá; sorvemos um bom chimarrão no

inverno e água de coco no verão. Dançamos ao som do baião, do frevo, do maracatu e do chamamé. Somos todos do feijão com arroz, da cachaça, do café e também do samba. Por mais que estejamos no exterior o “ser brasileiro” fala mais alto e a saudade do chão verde e amarelo sempre nos traz de volta, “graças a Deus”! Em meio a tanta diferença, o que realmente nos une? Tudo. O Brasil é essa metamorfose ambulante que tem a cara de cada um de nós. É um pedacinho desse país que a Revista Tudo & Etc se propõe a mostrar nesta sua segunda edição, que desde a capa (baseada na obra Operários, de Tarsila do Amaral) evidencia essa mescla colorida. Nossa viagem inicia no nordeste, com uma pitada alegre do Maranhão seguida pelo cosmopolitismo nortista de Belém; ao som do rock da capital federal descemos até o interior paulista para conhecer o caipira; no Rio de Janeiro nos encantamos com a arte de rua para, em seguida, ver o arco-íris nos respingos d’água em Foz do Iguaçu; no extremo sul, lembramos da infância no oeste catarinense e depois fomos em busca do gaúcho campeiro, para acabar onde iniciamos: a Terra dos Presidentes. Na jornada cobrimos mais de 10 mil quilômetros desse país continental. Esperamos que você aprecie essa amostra de brasilidade, afinal, o Brasil e nós também somos Tudo & Etc.

CAPA FOTO: Nycolas Ribeiro EDIÇÃO: Ariel Barcelos

Ano 2 | n. 2

TUDO & ETC EDIÇÃO: Phillipp Gripp REVISÃO: Joseline Pippi - MTb 12.164 REPORTAGEM: Aline Sant Ana, Caroline Rossasi, Manuella Sampaio, Pâmela Faustino, Renan Guerra, Tamara Finardi DIAGRAMAÇÃO: Beatriz Wardzinski ILUSTRAÇÃO: João Ricardo Ribeiro PRODUÇÃO: Julianne Lopes, Liziane Wolfart, Nycolas Ribeiro, Rafael Junckes, Sofia Silva, Tatiane Bernardo

brasilete

APOIO TÉCNICO: Ariel Barcelos Eu adoro a cultura brasileira! A música, a arte, o cinema...

E quais são os seus preferidos?

The Beatles, Jackie Chan, Tim Burton, Laranja Mecânica, Meryl Streep... Eu sou muito eclético!

PARA ANUNCIAR revistatudoeetc@gmail.com Curta nossa página no FACEBOOK www.facebook.com/RevistaTudoeEtc Siga-nos no TWITTER @RevistaTudoeEtc Revista Tudo & Etc Cultura em Movimento Produção Independente Tiragem: 500 exemplares Distribuição gratuita Contato, pautas e sugestões: revistatudoeetc@gmail.com IMPRESSÃO Kunde Artes Gráficas Santa Rosa - RS


[REPORTAGEM | DISTRITO FEDERAL]

5

foto | THAÍS MALLON

O ROCK TEM A NOSSA CAPITAL O gênero se reinventa e ganha apoio no Distrito Federal.

“B

rasília: a capital do rock”, quem nunca ouviu essa frase? A história começa no início da década de 80, quando, após deixar a banda Aborto Elétrico, Renato Russo e alguns companheiros persistiam na ideia de fazer um som diferente. O boom aconteceu em 1982 e marcaria para sempre a história do rock brasiliense e brasileiro. Estava formada a Legião Urbana, banda que passou por diversas fases, mas sempre soube fazer bom uso poético da cena de contestação juvenil do período. Prova disso: quem não conhece a música “Que país é esse”? Legião brilhou, influenciou toda uma geração, deixou saudades e ainda

é lembrada quando falamos no cenário roqueiro do país. Além do Aborto Elétrico, grupos como Capital Inicial, Plebe Rude e Raimundos – todos da “turma da colina”, moradia de muitos estudantes da Universidade de Brasília (UnB) – construíram uma história e fizeram com que, à época, os holofotes da mídia se voltassem para aquele lugar, caracterizando-o através das novas bandas e novo cenário musical que se formava. Brasília começou a ser chamada, então, de capital do rock. O título, criado para comercializar a música no resto do país, foi de início uma jogada de marketing, mas acabou se cristalizando na identidade dos brasilienses. Com o passar dos anos, a

marca, que tinha como único propósito vender o rock produzido no planalto central, perdeu espaço na mídia ao mesmo tempo em que ganhava a memória coletiva da cidade. Quem viveu no período quando surgiu o título, não tem dúvidas de que há uma diferença na abertura do cenário musical roqueiro por diversos motivos. Um deles seria a própria descentralização do ritmo, notada por Reinaldo Freitas, dono de uma das mais tradicionais lojas de discos da cidade. Ele acredita que não existe mais capital para esse gênero de música, pois de uma ponta a outra do país o ritmo é presente. “Eu acho que o rock daquela época era mais centralizado, eram algumas cidades que produziam,


reportagem | MANUELLA SAMPAIO

vimento em 4 de No lançamento do mo antes reivindicavam fevereiro, os particip local. a valorização do rock

foto | PAULO JOEY FREITAS

Mas como o cenário musical mudou em todo mundo, precisamos encontrar uma forma de levarmos nosso trabalho para roqueiros de todos os cantos do Brasil”, afirma Noblat. Uma dessas 500 bandas é a Plus Ultra. A banda é formada por quatro integrantes que afirmam, sim, há muito Brasília perdeu o posto de celeiro do rock nacional, por desvalorizar suas próprias criações, mas hoje, diante do espaço que está sendo dado para que se discuta e produza músicas do estilo, é difícil falar que esse tempo ainda esteja vigorando. Até mesmo o resgate da história que Brasília tem - e do título que constituiu como capital do rock - vem sendo relembrado com documentários como “Rock Brasília: Era de Ouro” lançado em 2011, dirigido por Vladimir Carvalho e “Somos tão jovens” dirigido por Antonio Carlos da Fontoura, com previsão de lançamento para julho deste ano. “Mesmo com todo esse tempo parado, onde o que aconteceu na verdade foi uma desvalorização, falta de crédito com as novas bandas e com som que se fazia aqui, ainda existe essa questão de expectativa com o rock do Distrito Federal, quando nós tocamos em Goiânia, por exemplo, o pessoal já ficou: Opa, é rock de Brasília!”, contam os garotos da Plus Ultra. Se Brasília é a capital do rock? Bom, o ritmo existe e é produzido em várias cidades do Brasil, não se constitui como estilo único de um lugar. O título é algo que continua vivo na capital, no entanto, para o resto do país talvez não seja mais. Há quem diga que o lugar nunca o obteve, entendendo que o ritmo nunca pertenceu a um único local, ainda que Brasília se destacasse. Todavia, os movimentos que surgem atualmente, na tentativa de retomar o status para os próprios brasilienses, são legítimos, pois tentam recuperar mais uma identidade na capital federal. No entanto, é preciso atentar que comparações das bandas atuais com as já consagradas estão fora do contexto, na medida em que a música se modificou muito desde os anos 1980. Os tempos são outros, a política, a economia e inúmeras coisas mudaram no Brasil, inclusive o rock, que continua pulsante em todo lugar. Brasília que o diga.

a de Taguatinga complet Plus Ultra – a banda em fin de tes an egr Os int três anos em outubro. experimental. o próprio som como

foto | DIVULGAÇÃO

como Brasília e Porto Alegre, hoje todo mundo faz. Eu não sei se hoje existe uma capital do rock”, afirma. Já na opinião da banda Upgrade, formada em 2006, com estilo que os próprios integrantes dizem ir do Pop ao Hard, o cenário roqueiro de Brasília é o mais produtivo possível. Para a banda, o momento não poderia ser melhor. Hoje, os garotos são produzidos por Patrick de Jongh, que já trabalhou com Natiruts e outras bandas da cidade. A obra rendeu uma música na trilha sonora do filme Meu País, estrelado por Rodrigo Santoro, Cauã Reymond e Débora Falabella. Prova disso é o lançamento, em 04 de fevereiro desse ano, do Movimento Brasília Capital do Rock. Apesar de ser uma novidade, os preparativos não são de agora. Um de seus idealizadores, André Noblat, conta que essa ideia vem sendo posta em prática desde 2011, justamente porque se percebia a desvalorização do rock de hoje no Distrito Federal. No lançamento aconteceram ciclos de palestras, shows e debates com o público – participaram até deputados e o governador do Distrito Federal. Isso caracteriza, segundo discurso dos próprios deputados, uma possível frente parlamentar pró-rock. Noblat conta que a ideia surgiu quando se passou a observar como Recife explora o potencial do frevo, Bahia com o axé e o Rio com o samba e o funk, pois eles transformaram músicas regionais em produtos culturais fortíssimos, que trazem riquezas para o Estado, incluem socialmente milhares de jovens e valorizam centenas de artistas. Nesse sentido o “Movimento Brasília Capital do Rock” tem não só o propósito de resgatar o título de capital desse gênero, como transformar o estilo em um patrimônio imaterial da cidade. Os próximos passos, segundo o organizador, serão enraizar o movimento em todas as regiões de Brasília, já que o mesmo engloba não só o plano piloto como todas as cidades satélites, criar intercâmbio cultural entre essas regiões e continuar discutindo parcerias com o governo. “Hoje temos mais de 500 bandas fazendo rock na cidade, por isso posso afirmar que ainda somos a capital dele.

foto | THAÍS MALLON

6

is m registros autora Banda Upgrade – co o eir im pr o ça lan a desde 2008, a band o. an mestre desse CD no segundo se


[CRÔNICA | SANTA CATARINA]

7

QUANDO SE PERDE A MAGIA*

O

uço o ranger leve no assoalho de madeira, uma sensação de angústia faz com que eu levante de sobressalto da cama e me encaminhe ligeira para o roupeiro. Os rotineiros passos de minha mãe ficam mais barulhentos à medida que sobem a escada que leva até meu quarto no sótão, indicando que são seis e meia da manhã. Com um gesto automático, abro a veneziana do quarto e inspiro o ar úmido de cheiro adocicado do jasmim, que faz despertar uma sensação nostálgica: cheiro de infância. Observo a paisagem lá fora: o dourado da plantação de milho do meu pai se mescla com o tom ensolarado que se espicha conforme o nascer do dia; as copas de árvores que pipocam nos morros estão espremidas entre pequenas plantações; casinhas acanhadas aqui e ali, rodeadas de galinheiro, galpão e estrebaria feitos de madeira bruta. O céu limpo indica que o dia vai ser bonito. Ainda bem, afinal é domingo, dia 5 de fevereiro de 2012, dia da festa na Linha Alto Navegantes. Depois de oito quilômetros de morro e pedra solta em meio à poeira da estrada, chegamos à festa. Dentro da antiga escolinha, a voz da freira ecoa tecendo as orações da missa em honra à Nossa Senhora de Navegantes. Quando o culto acaba, as pessoas se dirigem ao pavilhão ao lado. O seu fundo é dividido em três alas: na esquerda estão algumas mulheres de aventais e toucas na cabeça, concentradas nos movimentos repetitivos das facas picando a salada; ao lado, risadas masculinas são entrecortadas pelo baque macio das borrachas da porta do freezer, que abre e fecha sempre que alguém compra bebida; no canto direito fica a churrasqueira onde homens, que lidam com espetos e pedaços de lenha, se afugentam do calor ingerindo grandes goles de cerveja gelada. Perto da entrada que leva à churrasqueira pode-se ver o campo de bocha, uma cancha de areia que atravessa o salão de um extremo ao outro. O restante da área do pavilhão é preenchida por bancos e mesas compridas de madeira de pinheiro, sustentadas por inúmeros cavaletes. Enquanto duas mulheres arremessam o rolo de papel de embrulho num tom cinza-fosco, de uma ponta à outra da mesa, outras três ferem as pontas dos dedos alfinetando a madeira com percevejos, para prender bem o papel. Tudo muito limpo e organizado, sem preocupação nenhuma com o luxo, pois o “chique” é considerado algo supérfluo. E é a simplicidade dessas pessoas que as torna incríveis. As mulheres se reúnem com as amigas nos bancos e começam as discussões sobre os mais diversos assuntos, mas sempre iniciados com uma oração na terceira pessoa do singular: “Diz que fulana...” Cinco ou seis crianças brincam de pega-pega ao redor das mesas, até

levarem um xingão dos homens que estão concentrados no jogo de baralho. Todos estão reunidos em seus grupos, e eu preciso achar o meu. Afinal, depois do churrasco tem matinê, momento propício para dançar com os amigos e se tiver sorte arrumar um namorado. Começo a procurar meus colegas de escola entre as 150 pessoas que se encontravam no salão. Fico frustrada ao perceber que da minha turma não havia ninguém. Então, percebo que nem tudo está igual. Muitos bancos onde o pessoal precisava se amontoar na hora do almoço hoje se encontram vazios. Sento-me ao lado de dona Dulce Lawisch, mãe de minha amiga Inês. “A Inês foi pra São Paulo trabalhar. Fez alisamento e pintou o cabelo de vermelho, ficou bem diferente. Tá gostando de

lá!”, conta empolgada, mas o olhar vacila, e deixa transparecer que o coração sente o contrário. É a primeira vez que Inês não está presente na festa, justo ela que não perdia uma, sempre alegre dançando do início ao fim. E a cada mãe que cumprimento a história se repete, só muda o nome do filho e a cidade de destino. São poucos os que ficam com os pais para continuar trabalhando na agricultura familiar. Dou-me conta que as coisas nunca mais serão como quando eu vivi ali. Além disso, se a situação continuar nesse ritmo, a famosa “festa na Navegantes” não vai passar de lembranças - boas lembranças - de filhos que, como eu, deixaram aquele lugar mágico, transformando-se, com o passar do tempo, num amontoado de bancos vazios.

* Tamara Finardi é graduanda de Jornalismo pela Universidade Federal do Pampa (São Borja).


[OPINIÃO | RIO GRANDE DO SUL]

8

QUEM É O GAÚCHO CAMP EIRO?*

A

compreensão da diversidade do país está calcada no contexto de vida de cada indivíduo. Quem vive no “interior do interior” pode pensar que o Brasil é bem diferente daquele vivido pelos indivíduos que residem nos grandes centros urbanos. A perspectiva através da qual se desenrola a vida do homem interiorano, tanto no contexto das relações cotidianas quanto daquelas geradas por dispositivos mediadores (como celular, rádio e TV), pode levar a uma compreensão mais consistente do que a da casa, rua, jeitinho e malandragem que se faz o Brasil. A vida do gaúcho campeiro é um exemplo de como é possível estabelecer conexões entre o rural e o urbano. É comum a contradição entre urbanoXrural, sociedadeXcomunidade, tradiçãoXmodernidade, modernoXarcaico. Todas, à sua maneira, contrapondo pensamentos e, muitas vezes, considerando o sucesso de uma e a sujeição de outra. A discussão não é original e essa dicotomia encontra suas raízes em concepções e análises econômicas, sociais e culturais há muito esboçadas por pesquisadores e também leigos. Nesse sentido, o Rio Grande do Sul é palco de acaloradas discussões científicas. Inicialmente, correlacionando território com o modelo de desenvolvimento econômico, sugere-se que a formação histórica do Estado é decorrente de uma dinâmica peculiar. A própria região da Campanha é vista como sendo “pobre” economicamente e “rica” culturalmente. A Campanha é o interior que se torna a base de uma identidade cultural representada como homogênea, sendo apropriada no ambiente urbano e nos demais espaços rurais. Devido à institucionalização das fazendas e do tipo de atividade econômica presente, a região manteve o gaúcho campeiro, tipo de trabalha-

dor rural. A imagem desse indivíduo não é mera coincidência ao “tipo” de gaúcho mitificado pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho e pela mídia, são semelhanças de um modelo cultuado que encontra no homem do campo um espelho ou, quem sabe, um reflexo. Aspectos como a indumentária, os hábitos, os costumes e as técnicas de trabalho apresentam

principalmente representada pela chegada da aparelhagem tecnológica e midiática, pois ampliam a rede de relações destes indivíduos, provendo contato com o universo além Campanha. Exemplo típico é o uso do telefone celular. O aparelho pode não ter funcionalidade em certos locais e circunstâncias de trabalho, mas ele sabe que pode ser “alcançável” por quem por ele procure. Essa sensação

manifestações de uma cultura própria do modo de viver deste segmento social. Todavia, o modo típico de vida não se perdeu, mas adequou seus artefatos e comportamentos em meio ao contexto contemporâneo. O uso do celular é um exemplo representativo. A vida no campo tem uma característica peculiar: pífia mobilidade espacial por parte dos indivíduos, dado que são regiões longe centros urbanos e, cada moradia rural é distante uma da outra. Então, este ator social se vê isolado da interação que não seja a com indivíduos do seu próprio meio. Desta premissa tem-se o aspecto de que a modernidade pode ser

de onipresença que o celular oferece “quebra” o isolamento do campeiro. Desta forma, a suposta formação de dualismos é reflexiva na vida do gaúcho campeiro sendo dela parte constitutiva. A modernidade, refletida principalmente pelos dispositivos tecnológicos e midiáticos, não inibe a tradicionalidade ou práticas reconhecidas de vivência na Campanha. Não há oposição, mas sim interação: o arcaico e o moderno se relacionam. Este processo não é nem transplante alienado, nem desajuste com a própria realidade, mas uma forma de entender uma continuidade m conflitos entre tradição e modernidade.

* Tiago Martins é professor de Relações Públicas da Universidade Federal do Pampa (São Borja).


K [REPORTAGEM | SÃO PAULO]

TAL PAI, TAL FILHO A história do menino que se tornou um conhecido caipira.

S

obre o palco, ao olhar atento da plateia, se apresenta um homem de camisa xadrez, calça caqui, botas surradas e chapéu de palha, um típico caipira, que através da fala simples e bom humor faz todos gargalharem. Alguns o chamavam de Mazzaropi outros mais precisamente de André Luiz Mazzaropi – o filho do Jeca. Neste cenário tive o primeiro contato com ele e foi quando logo percebi que qualquer semelhança entre pai e filho não era mera coincidência. Mazzaropi - o eterno Jeca - foi um exímio empreendedor: ao longo de sua vida exerceu as funções de ator, produtor, roteirista, dono de trupe e também de uma produtora. Ele iniciou sua carreira profissional com o sonho de ser um ator

circense - mal poderia imaginar que o lugar onde alcançaria a sua consagração seria no cinema nacional. O percurso dessa conquista não foi fácil e alguns desafios foram aparecendo no decorrer do tempo. O primeiro foi convencer os pais de que a vida atuando poderia render-lhe um bom futuro; depois, ingressar numa famosa Companhia de Teatro, que não demorou a usar o seu nome e ele, consequentemente, a assumir todas as responsabilidades; e ainda ser o comediante pioneiro na apresentação de um programa de rádio e também de televisão. Contudo, o grande desafio veio mesmo quando ele aceitou o convite para fazer um teste na Companhia Cinematográfica Vera Cruz, momento divisor de águas em sua carreira.

9


[REPORTAGEM | SÃO PAULO]

foto | DIVULGAÇÃO

foto | PAMELA FAUSTINO

10

audio-visual, Exposição interativa e Mazzaropi. de ia que conta a histór

foto | PAMELA FAUSTINO

Quando André Luiz nasceu, Mazzaropi já era artista renomado no teatro, no rádio, na televisão e também no cinema. Com 11 anos, André carregava consigo o sonho de ser artista, então não perdeu a oportunidade de acompanhar, de perto, as gravações do filme “O Paraíso das Solteiras”, que era filmado no Convento de Santa Clara, em Taubaté - SP -, sua cidade natal. Para o menino “ali nascia uma amizade que duraria por toda a vida, ali nascia ‘O Filho do Jeca’”, imagem construída devido à grande aproximação entre o menino e o artista. Foi no cinema, portanto, que eles se conheceram, durante as gravações do vigésimo primeiro filme do cineasta. Naquele período, Mazzaropi já havia vendido tudo o que tinha para alugar os equipamentos da falida companhia Vera Cruz e, assim, iniciou a Produtora Amácio Mazzaropi (PAM Filmes). Com investimentos próprios e sem nenhum auxílio do governo, foi para Taubaté e começou a fazer um “cinema nacional e independente, que falava a língua do povo”, como ele mesmo dizia. No entanto, como já era esperado, sua decisão não agradou a todo mundo. No período em que o Brasil era apenas visto através de ícones heroicos, ele trouxe à tona uma grande valorização de imagens marginais, através da construção da identidade do interiorano: o caipira. Wesley Castro, um apaixonado por cinema, relevou que, para ele “sem dúvida, o melhor [filme] foi ‘Nadando em Dinheiro’. Por causa da produção firme da Vera Cruz, da boa co-direção do Abílio Pereira de Almeida e da constituição de um personagem que vai além de seus clichês de caipira.” Opinião que era compartilhada por outros espectadores que preferiam a fase em que o comediante apenas atuava, sem grandes pretensões. Contudo, as críticas não o abalaram. O cineasta, ainda assim, assumiu a produção, a direção, a roteirização e a atuação de seus próprios filmes. Porém, ficou muito doente e passou a ser cuidado pelo jovem André, que o auxiliou até sua recuperação. Depois de restabelecido, Mazzaropi resolveu dar uma oportunidade ao jovem que crescera o observando nos sets de filmagem.

foto | PAMELA FAUSTINO

Destino

a feParte da exposição “Mazzaropi para . licidade do Brasil”, inaugurada em 2011


reportagem | PÂMELA FAUSTINO

foto | ACERVO PESSOAL ANDRE LUIZ

No auge do sucesso Quando a oportunidade apareceu, André estreou no cinema. Seu papel era interpretar ninguém menos que o filho do Jeca, sendo que seu pai era um caipira de sotaque carregado e ingenuidade duvidosa, personagem criado por Monteiro Lobato e que ganhou vida nos cinemas através da atuação de Mazzaropi. Dali em diante André Luiz passou a acompanhar o cineasta em todos os seus shows, como apresentador, e fazendo parte de seus quatro últimos filmes. Mazzaropi produziu nove filmes intitulados “Jeca” e em cada uma das estreias ele atraía cerca de três milhões de pessoas ao cinema, sempre com salas lotadas. Mas, ainda assim, era alvejado pela crítica e pela elite da época. Fãs, como Lia Bussolim, acreditam que o trabalho do cineasta incomodava muitas pessoas “por seus filmes retratarem a dura realidade social brasileira: a miséria, o desemprego e a corrupção”, aspectos que não eram evidenciados no cenário cultural cinematográfico. Ainda que Mazzaropi tenha sido criticado por alguns, André Luiz declara que “o povo brasileiro ama o Mazzaropi, por quem eles têm uma identidade”, palavras ditas pelo homem que vivenciou, ao lado do comediante, 901 shows, por todo o Brasil, e a gravação de cinco filmes no Hotel Studio PAM Filmes, em Taubaté - local adquirido por Mazzaropi com o propósito de aprimorar as locações dos filmes e melhor abrigar toda sua equipe. O cineasta era mais do que um amigo para André, os dois mantinham uma relação praticamente familiar, Mazzaropi era como seu verdadeiro pai. Juntos eles compartilharam histórias até o dia 13 de junho de 1981, quando Mazzaropi faleceu vítima de um câncer de medula. Do pai o filho leva “marcas profundas, de saudade e gratidão, de lembranças, das filmagens, das viagens pelo Brasil e o mundo, dos grandes navios transatlânticos, dos shows [...], dos conselhos e das severas repreensões, além do nome Mazzaropi”.

Reconhecimento Após a morte do ícone nacional, amigos e fãs resolveram preservar, cada um a seu modo, a mémoria do artista. João Romam, um fã potencial, conseguiu adquirir o Hotel Studio PAM Filmes, mas faleceu pouco tempo depois. Em homenagem ao pai, seus filhos criaram o Instituto Mazzaropi e transformaram o Hotel no melhor Hotel Fazenda do Brasil, prêmio que foi cedido pelos leitores da Revista Viagem&Turismo por quatro anos consecutivos . Mas, ainda não satisfeitos, construíram, igualmente em Taubaté, o Museu Mazzaropi “criado para divulgar e difundir a cultura popular e a história do Mazzaropi, para que elas não fossem perdidas”, como relata Pamela Botelho, coordenadora cultural do Museu. ”Ao longo do ano acontecem especiais Brasil afora, então os outros estados sempre entram em contato conosco, além de pessoas que estão fazendo trabalhos, teses e os próprios pesquisadores. Este ano em especial por ser o centenário”. Como todo grande ícone, Mazzaropi só passou a ser verdadeiramente reconhecido pela crítica após sua morte. Já o taubateano André Luiz, que sempre viu o potencial do pai, assumiu verdadeiramente o papel do “filho do Jeca” e o sobrenome Mazzaropi. A fim de homenageá-lo, percorre o Brasil com o monólogo “Um Jeca na Cidade”, no qual ele usa a camisa xadrez, o chapéu de palha, a fala simples e o bom humor do pai para interpretar o seu filho.

foto | DIVULGAÇÃO

foto | DIVULGAÇÃO

foto | PAMELA FAUSTINO foto | DIVULGAÇÃO

11


[REPORTAGEM | PARÁ]

12

BELEM: UMA FLORESTA DE CONCRETO /

Um pouco da história de Belém contada através de sua arquitetura única.

C

hegaram em Belém numa tarde chuvosa após quatro dias de viagem de carro, contudo, para surpresa do garoto de 16 anos, a cidade era cercada por uma grande quantidade de casas e prédios construídos em terra firme, com ruas asfaltadas cheias de carros e tudo contrastado com o verde de uma arborização na medida certa. Era quente, mas já enfrentara verões piores que aquele. Ali o sol não parecia queimar tanto e o ar parecia ser mais leve, era úmido. Não

avistou nenhum animal selvagem nas ruas ou nas árvores, o que lhe tranquilizou, mas estremeceu ao descobrir uma placa em que se lia “Bem vindo a Belém, a cidade das mangueiras!”. Desde que nasceu lhe diziam que seu Estado era o melhor do mundo e, por confiança nessas palavras, nunca dali havia saído, pois “gostaria apenas de conhecer as coisas boas da vida”. Gostava de desenhar e sonhava ser arquiteto, o que o fazia sempre perceber os traços de prédios, casas e paisagens e pensar sobre a história

deles. Sua mãe havia sido transferida, na fábrica onde trabalhava, para ser gerente numa filial na capital paraense. Ele lutou contra: dissera que sempre fazia calor naquela cidade, apesar de chover todos os dias, que precisariam morar em uma casa na árvore com macacos ou numa oca na companhia de índios de uma tribo local, que ele precisaria ir de canoa para a escola e que corria um sério risco de ser morto a qualquer momento com uma manga caindo em sua cabeça. Tudo em vão. Após algumas semanas o desconten-


reportagem e foto | PHILLIPP GRIPP tamento com a mudança de cenário ainda persistia, mas algo na cidade lhe chamava atenção, talvez sua arquitetura um tanto eclética. Havia lugares que pareciam ter criado vida a partir de gravuras de algum livro de história do século passado, em Paris, Bélgica, Portugal ou Itália. O lugar era tão diferente que despertou sua curiosidade em querer saber mais a respeito. Encontrou um blog sobre a memória arquitetônica belenense da professora de arquitetura e urbanismo da Universidade Federal do Pará (UFPA), Cybelle Miranda. Descobriu que a doutora coordena o Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural e contatou-a. Apaixonada pela arquitetura local, explicou que a cidade “tem uma matriz colonial portuguesa, mas que se diferencia pela presença do arquiteto Antonio Landi [italiano] na segunda metade do século XVIII, o qual reveste a cidade com edificações classicistas de alto valor artístico [...] a arquitetura de Belém é um amálgama de influências externas adaptadas as condições sócio-culturais locais”. Vários prédios e casas são restaurados mantendo fachadas e estrutura originais, como a boate Café com Arte, que funciona numa casa construída em 1923 e mantêm a arquitetura e alguns aspectos da decoração original. Decidiu conhecer o lugar e se viu em frente a uma casa de dois andares com influência da arquitetura francesa e paredes pintadas em tons de branco e roxo, subdividida em cinco ambientes. Logo na entrada viu o bar, e na parede marrom,

13

acima dele, reparou oito adesivos de cabeças de cantores em volta do símbolo da boate, que mostrava o quão eclético era o local – assim como seu slogan “simplesmente diferente”. Ele olhava admirado os desenhos, quando Roberto Figueiredo, 38 anos, dono do lugar e também DJ, apareceu ao seu lado dizendo “Houve uma épo-

“As pessoas de fora do estado julgam a cidade sem nem conhecer [...] eles pensam pequeno e quando chegam aqui não querem mais sair.” ca que o Café ficou muito conhecido pelo rock e eu queria mostrar para as pessoas que no Café não tocava só rock, porque não toca só isso, então eu decidi colocar eles ali para mostrar que não é só rock [...] todo mundo está em torno do Café com Arte, ou seja, tudo isso rola aqui”, disse ele, apontando para os rostos de Amy Winehouse, Chico Buarque e Cazuza. Em frente ao bar estava a danceteria e ao fundo, atrás da cabine do DJ, uma

o símbolo do Café com Os oito cantores circulam ismo musical da boate. Arte, mostrando o ecletic

grande janela. Ao lado do bar havia um longo corredor com capas de discos de vinil pendurados no teto, percebeu a do Michael Jackson e da Cyndi Lauper. O corredor dava acesso a um salão, com mesas e cadeiras encostadas na parede e um palco com caixas verdes de ovos coladas na parede em sua volta para melhorar a acústica da sala onde alguns músicos se apresentavam. Constatou que toda a estrutura da casa era a original, o piso, as grandes portas e janelas. Os dois foram ao andar de baixo pelas escadas, que levavam ao porão - a danceteria para fumantes – e uma sala com vídeo-game, sinuca e poltronas. Em frente às escadas, após um corredor, via-se uma área descoberta com mesas e cadeiras. “Todo mundo fala que aqui era um cemitério, porque aqueles dois bancos ali atrás ficavam enterrados até os braços e pareciam duas lápides”, contou Roberto, que o acompanhava. Os dois se sentaram e os olhos do DJ brilhavam ao falar “quando falam mal do Café, eu pergunto ‘tu já fostes lá?’ e respondem ‘não!’ e, quando a pessoa vem, ela se apaixona, porque vê que não é o que pintaram pra ela [...] o Café é uma casa underground, ele rema contra a maré, ele não quer ser igual, igual todo mundo é, ele quer sempre ser o diferente”. O garoto ficou pensando sobre essas palavras durante a noite, ao voltar para a casa depois de uma festa incrível, enquanto ele relembrava o preconceito que nutria em relação a Belém. No dia seguinte, decidiu conhecer

com azulejos origiOs dois bancos pintados de roxo e boate, o Cemitério. da iente nais, ao fundo do último amb


14

A antiga residência dos governadores do Pará agora é a sede da Secretaria de Cultura do Estado.

Pavilhão Frederico Rhossard construíd o em estrutura metálica e com vidros belg as.

Estrutura do antigo gasômetro, onde funcionam tanto o teatro do Parque como a lanchonete da foto acima.

[REPORTAGEM | PARÁ] Belém e sua história através de outras construções antigas. Lembrou que a Drª Cybelle havia falado de alguns locais: “A casa das 11 janelas foi Hospital Militar, depois Quartel do Exército, e hoje é Centro Cultural e abriga o Boteco das 11, um bar com cara de pub inglês [...] o Parque da Residência alia a ideia de reciclagem, mas abre o espaço antes restrito ao público” e “o Pólo Joalheiro fora construído para abrigar um convento e nos anos 2000 tornou-se mais um pólo turístico”. Pediu ajuda a uma amiga e se encontraram. Camila Nobushige – 26 – era formada em Design pela Universidade Estadual do Pará (UEPA) e morava em Belém há nove anos. Precavida, levava um guarda-chuva grande e colorido para protegê-los da “chuva de todos os dias” (pelo Pará ter clima equatorial), como falavam. Almoçariam no restaurante do Parque da Residência primeiro, depois iriam ao Pólo Joalheiro e terminariam o dia no Boteco das 11. No caminho, ela explicou que Belém é eclética devido à influência arquitetônica e artística de portugueses, franceses, italianos – entre outros – desde o século XVIII, passando pelo comércio da borracha e a Belle Époque, até o fim do século XX com o trabalho de arquitetos locais. Todos os prédios do Parque da Residência eram cercados de grandes e belos jardins. Na entrada, a atual sede da Secretaria de Cultura do Estado (SECULT) – uma casa clássica de três andares do início do século XX, pintada em tons claros – e um orquidário. Além, destacavase o Pavilhão Frederico Rhossard com seus magníficos e coloridos vidros de origem belga. Adiante, o poeta Ruy Barata, imortalizado em bronze, guarda a passagem dos visitantes que pretendem chegar ao restaurante do Parque. À distância, um vagão de trem no qual funcionava uma sorveteria, e, finalizando o cenário, um antigo gasômetro inglês do século XIX, onde funcionava um teatro de 400 lugares e uma lanchonete. Os pratos típicos que pediram no restaurante (vatapá para ele e maniçoba para ela) acrescentaram um sabor apimentado ao local. Na saída, encontraram Rosário Lima – 49 -, arquiteta e Diretora de Patrimônio da SECULT. Ela

havia participado do projeto de restauro do Parque e de outros lugares na cidade. O garoto lhe disse que era apaixonado por arquitetura, que o lugar era lindo e lhe perguntou se poderia contar um pouco da sua história. Ela sorriu, simpática, e explicou que o Parque da Residência funcionou durante décadas, como residência oficial dos governadores do Pará e por isso recebe este nome. As obras de reestruturação do local iniciaram em 1996 e em 1998 o local foi aberto ao público. A secretaria, na entrada, era onde eles moravam durante o mandato e o restaurante foi construído para sediar o casamento da filha de um deles. Disse, empolgada, que o atual teatro do Parque era uma estrutura que desmontava e pertencia à antiga Companhia de Gás Paraense, que foi passada a uma vendedora de automóveis, mas eles achavam que a estrutura atrapalhava e a doaram para a SECULT: “fizemos uma reciclagem dessa estrutura inglesa e eles ficaram surpresos quando viram o que foi feito”. O garoto estava começando a se entusiasmar percebendo que Belém se preocupava e tentava preservar a arquitetura antiga até Rosário se lamentar: “quando a gente começou as obras aqui, já não funcionava mais como a Residência dos Governadores, o lugar estava abandona-

Vagão de trem onde funciona a sorveteria do Parqu


ue.

15

do [...] e é difícil porque essas obras de restauro nem sempre são consideradas [pelo governo] como uma prioridade”. Ela apontou o vagão de trem e disse “ele fazia parte da Estrada de Ferro que ligava a estação de São Brás, em Belém, a Bragança e estava já aqui dentro quando começaram as reformas, e a gente decidiu dar um uso a ele e o transformou em uma sorveteria”. Rosário olhou para seu relógio e percebeu que estava atrasada. Despediu-se e voltou ao trabalho. Os dois andaram um pouco pelo parque fotografando-o, mas decidiram ir logo ao Pólo Joalheiro, pois uma chuva ameaçava cair. No caminho encontraram Raimunda Soares – 75 - e a acompanharam por alguns minutos. Disse que conheceu o próximo destino da dupla quando ainda era um presídio. Contou que frequentou “várias vezes a sapataria onde alguns presos trabalhavam e os corredores por onde andei eram claros e arejados [...] nem parecia um presídio”, mas, apesar disso, disse que o lugar tinha deixado de funcionar porque “era pequeno e não tinha mais espaço [para os presos] e ficava no centro da cidade, um lugar onde não podia mais funcionar um presídio”. Despediram-se e seguiram caminho até se depararem com o grande prédio quadrado e amarelo, com várias janelas gradeadas, do século XVIII.

Patrícia Barbosa – 28 – aguardava na entrada, ela era gestora em turismo e monitora do museu de gemas – que funcionava no local, além da Casa do Artesão e das joalherias. Não disfarçava o sotaque paraense explicando que o prédio “foi construído para ser um convento de frades, passando a hospital, ourivesaria, depósito de pólvoras, quartel, delegacia pública, presídio – até o ano de 2000 – e atualmente o Pólo Joalheiro”. Ela os acompanhou até a Capela, à direita da entrado, dizendo: “a estrutura toda do prédio é original, é a mesma desde o século XVIII, vocês podem perceber as paredes bem largas”, mostrando-as. Patrícia explicou que eles não poderiam tirar fotos do Museu das Gemas por ordens da SECULT. Assim, eles seguiram para fotografar o antigo presídio. Passaram pela recepção, e atravessaram uma porta que dava para o Jardim da Liberdade, com sua fonte cercada por milhares de Quartzos Rosa e envolvida por plantas. Em cima dela havia três cristais gigantes banhados pela água que jorrava. As antigas celas rodeavam o jardim, em algumas a entrada era proibida, em outras funcionavam algumas joalherias e apenas uma foi mantida como cela e abriga algumas ferramentas usadas pelos presos. Adiante, passaram pelas oficinas de jóias, onde vários ourives trabalhavam fabricando joias. Charles Duart – 36 – estava fazendo um anel de formatura quando o garoto tirava uma foto e puxava assunto: “eu não sou daqui e estou me apaixonando pela cidade”. O homem sorriu e simplesmente lhe disse: “as pessoas de fora do estado julgam a cidade sem nem conhecer [...] eles pensam pequeno e quando chegam aqui não querem mais sair”. Chegaram, finalmente, ao anfiteatro, que acomodava uma lanchonete e a venda de artesanato regional - lindas peças de argila e diferentes tipos de madeira. Estava ficando tarde quando os dois decidiram que seria melhor irem logo ao Boteco das 11 para lanchar. No meio do caminho uma forte chuva começou a cair e Camila abriu o seu guarda-chuva e os dois foram debaixo dele durante 15 minutos até chegar à Casa das 11 janelas – prédio que abriga o Boteco e um Museu de arte

gas alheiro matém as lar A Capela do Pólo Jo ões taç en res ap u já sedio paredes originais e lém Cultura de Be . culturais para a TV

e é A paisagem do Jardim da Liberdad Rosa s rtzo Qua de ares milh por a post com e cercada pelas antigas celas do presídio.

mo das na parede compõe Nove canoas pendura nco em iro no Pólo Joalhe cenário do anfiteatro . ica tál me ura rut est to de traponto com o teto fei


[REPORTAGEM | PARÁ]

16

a o das Onze, num A entrada do Botec tem o, sic lás oc ne ilo construção em est 0 pessoas. capacidade para 35

contemporânea. Lia-se em um documento enquadrado que o prédio amarelo e branco de estilo neoclássico português foi construído em meados do século XVIII como casa particular e no mesmo século foi reformado e passou a funcionar como hospital militar. Anos depois abrigou a 5ª Companhia de Guarda e um depósito de suprimentos do exército e em 1997 se iniciou o projeto para transformá-lo em museu e restaurante. Entraram no Boteco e parecia que tinham sido transportados para séculos atrás. O lugar tinha um clima agradável à meia-luz e embalado por uma música quase inaudível. O piso era feito em pedra Cariri e as paredes eram construídas com barro e sustentadas por barrotes de madeira - que faziam o restaurante parecer uma taverna medieval -, eram decoradas com alguns instrumentos musicais e várias obras de arte, que davam

um ar requintado ao local. José Santos – 43 -, ou Santos como gostava de ser chamado, era gerente do Boteco das 11 e contou que, ao chegar a Belém para trabalhar ali, achou o lugar incrível: “é impossível não se apaixonar pelo Boteco”. Santos disse que não se preocupassem, pois “o restaurante abre às 11:30 da manhã e fecha apenas quando o último cliente ir embora”. O restaurante tinha uma área ao ar livre em frente e ao lado a um jardim que fazia limite com a Baía do Guajará, onde um navio ficava permanentemente ancorado. O garoto desceu as escadas, indo até o jardim. Descobriu, encantado, uma área descoberta com mesas e cadeiras onde, nas paredes, obras de arte pintadas em azul sobre azulejos brancos decoravam o espaço. Foram doadas por instituições portuguesas e identificou as figuras de Bocage, Fernando Pessoa, Camões e Almada

área do Guajará na Visão da Baía . co aberta do Bote

Negreiros. Sentou-se um pouco ali e ficou admirando a paisagem pensativo. Depois, voltaram para suas casas conversando sobre o dia. O garoto admitia a ela o preconceito que tinha por Belém, mas tinha percebido que a cidade era linda e única. Em determinado momento os dois se despediram e seguiram caminhos diferentes. O garoto estava aguardando ao semáforo para atravessar a BR que cortava a cidade, quando percebeu, ao seu lado, uma senhora de cabelos grisalhos sentada numa cadeira de rodas. Perguntou se podia ajudá-la e ela aceitou. Ele a empurrava e dizia que estava apaixonado por Belém e sua arquitetura, mas ainda sentia receio de apenas uma coisa: que uma manga lhe caísse na cabeça. A senhora lhe olhou nos olhos, ao chegar do outro lado, e com uma voz arrastada lhe disse: “Eu tenho 87 anos de histórias em Belém, meu filho, e nunca uma manga caiu sobre minha cabeça”.


[REPORTAGEM | RIO DE JANEIRO]

foto | DIVULGAÇÃO

17

A ARTE DO ENCONTRO

No coração da classe média carioca, bairro com cara de reduto cultural, a rtistas circenses se reúnem para, simplesmente, trabalhar.

Q

uem para e pensa, vendo a atmosfera artificialmente alegre dos circos, que ali há trabalho? Digo trabalho, trabalho mesmo. Carga horária, férias, décimo terceiro, são componentes variáveis, mas, ainda assim, presentes no mercado de trabalho circense. Eu, que nunca gostei de circo, principalmente por temer a cara do palhaço, deparei-me com uma situação interessante ao topar com um grupo de artistas de rua que se encontram regularmente na praça São Salvador, no bairro das Laranjeiras, Rio de Janeiro – lugar que mais parece uma praça típica dos anos 20 esquecida pelo tempo, mas regularmente lembrada por ser o reduto de atividades culturais que animam os

finais de semana das famílias médioburguesas do clássico bairro fluminense. Há quem diga que a praça nem faz parte das Laranjeiras, mas do Largo do Machado, outro bairro que sinceramente nem sei discriminar, de tão comum que é. Para quem está passando na São Salvador, a definição da localidade é indiferente, assim como a definição das atividades que estão acontecendo por lá. O barulho e a movimentação constante das pessoas que transitam na praça em direção à saída do Metrô, transforma o eixo central das apresentações artísticas em atividades corriqueiras, comuns. Coisas do cotidiano. Talvez por isso, o grupo de artistas circenses, sem nome batizado, se reúna todas as segundas-feiras, às 18h, 19h ou

20h, para realizarem seus ensaios, que, apesar de lúdicos e aleatórios, contribuem para o caráter rotineiro daquele lugar. Esses rapazes e meninas, que se juntam frequentemente na praça (depende da disposição de cada um), são pessoas que possuem ou possuíram alguma relação de trabalho em algum circo, mas que hoje vivem de mostrar sua arte nas ruas e em programações culturais realizadas pela prefeitura do Rio de Janeiro. São perfeitos artistas marginais. O Fabuloso*, 34, é um dos que mais impressiona aqueles que passam apressados cortando caminho pela praça. Malabarista experiente, o artista frequenta o Encontro há um ano e revela que o seu trabalho é mais verdadeiro nas ruas do

* O nome das personagens foi alterado com o intuito de proteger as fontes, conforme o pedido das mesmas.


18

que no circo, pois “ali ninguém está pagando e a apreciação é natural”. Para ele, o artista tem que ser livre, tem que ser independente de formalidade e da condição social que o mercado dá ao trabalhador. Por se considerar um artista, Fabuloso acredita que arte não é um produto de troca e que, ao contrário do que é formalizado, o seu valor está nas sensações que ela pode proporcionar. “O negoço é saber se a sua arte toca as pessoas”, explica. Com uma história de vida muito comum aos artistas em geral, o malabarista conta que desde que saiu do seu país natal, Peru, há 12 anos, sua busca pelo “ideal fantasioso” de viver da arte ainda não condiz com sua realidade. Apesar de ter um discurso demasiado crítico, esclarecido e posicionado sobre as relações de trabalho no circo, Fabuloso não romantiza a ideia de viver da arte: “Não sou hipócrita em dizer que fico feliz pela minha arte ser apreciada, se isso não me der sustento.

[REPORTAGEM | RIO DE JANEIRO] Infelizmente eu vivo no mundo real. No mesmo mundo que você. E por isso preciso comer. Então, preciso vender, preciso colocar um preço naquilo que sei fazer”, explica seu ponto de vista. Mesmo ficando surpresa com o

“Ser artista é, acima de tudo, ser livre.” rumo de contradições da conversa, a inquietação no olhar contornado de guache do artista me faz lembrar o caminho que leva o personagem de Selton Melo, em “O palhaço” (foto), a abandonar o circo. No filme, Benjamim (Selton) é atordoado pelo desejo de largar o circo por causa do fardo e da instabilidade da vida circense. Mesmo sendo filho do dono do circo e, portanto, obrigado a administrar o “negó-

cio”, o personagem revela um certo incômodo nas relações de trabalho e arte. Fabuloso, que também havia assistido o filme, contrargumentou minhas interpretações que aproximaram a vida dele à história do filme. Segundo o malabarista, o artista circense interpretado por Selton, demonstrava mais a inquietação pessoal de não ter uma identidade (no sentido material, isto é, o documento) do que a preocupação com a comercialização da arte em si. “Ele não se via como um artista. Se via como um trabalhador, até por que, aquilo era a única coisa que ele sabia fazer”, argumenta. Entre uma acrobacia e outra, Fabuloso tentava me convencer que aquela vida de artista marginal era apenas uma opção de vida e não uma condição. Insisti na comparação com o filme. Disselhe que o personagem abandona o circo para tentar uma vida em que ele pudesse ser alguém. De certa forma, todos os artistas reunidos ali na São Salvador queriam o reconhecimento de suas artes. Uma maneira de buscar ser alguém. “Você conhece esse pessoal?”, ele pergunta. “Nem eu”, responde em seguida à minha negativa. Se contorcendo com a bola de contato (um objeto de malabar), Fabuloso interage com os outros malabaristas como se me mostrasse que identidade (algo que lhes permita serem reconhecidos) é o que menos importa para eles. Ainda assim, me deixa na dúvida: se a condição do anonimato é algo irrelevante para estes artistas e se a vida nas ruas é tão instável quanto a do circo (e ainda menos rentável), o que, afinal, os afastou do ambiente circense? Pipoca, 21, estudante de artes cênicas da UFRJ e também integrante do Encontro na São Salvador, conversa comigo na condição de não aparecer nas fotos para a reportagem. A colega de Fabuloso conta que “ser artista é, acima de tudo, ser livre”. Pipoca, que nunca trabalhou formalmente em circos, diz que as condições de trabalho que envolvem o artista marginal e o artista de uma empresa são muito parecidas. Para ela, que irá concluir o curso este ano, as projeções da arte no tocante às pessoas é o argumento irrefutável à escolha de cada um. Pergunto pelas suas expectativas


reportagem | ALINE SANT ANA em relação ao reconhecimento do seu trabalho e ela só se preocupa em pegar uma bola de malabar que fugiu do seu controle. Fico observando. Na insistência por uma entrevista formal, a moça se esquiva pelos malabares, fazendome acreditar que o reconhecimento a incomoda. Uma contradição. Pipoca não sabe da história de Fabuloso. Ela só o conhece pela sua técnica. “Ele tem os ombros muitos rijos e o quadril bem encaixado. Sinceramente, não sei como consegue tanta mobilidade. Mas essa rigidez na postura, embeleza sua apresentação”. É tudo o que sabe. Vendo aqueles artistas contracenando, no contexto daquela praça tradicional, entre dois bairros subjacentes, me instiga: se são livres, por que o reconhecimento e a identidade lhes aprisiona no anonimato? E ainda, se a história do filme não condiz com a minha interpretação sobre eles, por que se reúnem com frequência em dias e local fixos? Será que não estão à procura de reconhecimento, ou de uma identidade? O próprio Encontro (com e maiúsculo) é conhecido e visto pelas pessoas do bairro. Fabuloso pode ser reconhecido pelo jeito de fazer malabar assim como Pipoca pelos seus óculos de menina cult. Dois anônimos que fazem da arte suas identidades. Eles até que concordam. Quando voltamos a conversar sobre o filme, agora os três (eu e eles), o peruano insistia em contradizer a minha interpretação. Ele lembra que algumas participações em circos importantes, como o Cirque Du Soleil e o Spacial, chegaram a fazê-lo pensar em desistir do trabalho autônomo. Fabuloso tenta me convencer ainda que suas escolhas são puramente ideológicas (diz ele), mas não totalmente fora da realidade. Ele me conta que trabalhando por conta própria, consegue faturar tanto quanto no circo. “Eu não te disse que a gente tem que colocar um preço no que faz? Eu preciso comer, apesar de tudo.” O malabarista diz que, no momento, está trabalhando numa fábrica de produtos para malabar feitos com materiais recicláveis, além de se apresentar nas ruas. Um pouco menos radical que Fabu-

19

loso, Pipoca não comenta muito sobre a idealização da vida marginal como uma escolha. A moça diz que arte é arte em qualquer lugar . “Eu não repudio o circo”, diz ela. “Claro que as condições de trabalho são outras. Mas, na medida em que você ide-

“Eu preciso comer, apesar de tudo.” aliza aquele espaço do circo como um patrimônio artístico que sobreviveu ao tempo e às convergências de cultura, não vejo diferença entre a realidade aqui fora e a fantasia lá dentro”, completa. Aqui ela fomenta minhas questões anteriores. E Fabuloso, ainda contrariado, não se manifesta. Vale deixar claro que não modifiquei em nada as falas dos entrevistados, caso lhes pareça presunçoso o debate. Eles

são assim, requintados no vocabulário e cheios de opinião. Não que a postura me surpreenda, mas até certo ponto me dá a sensação de que eles estão representando um pensamento que se distancia das suas realidades. Realidade, aliás, é uma palavra complexa para se tratar com eles. Sempre com seus paradoxos. A conversa não termina e eles insistem em dizer que suas vidas são normais. Ou melhor, são reais. Fabuloso com sua visão neoliberal de conduzir a arte. Pipoca com o “tanto faz” plantado na cabeça. Vou embora com a sensação de que artistas são sempre artistas. Por mais que eles (Fabuloso) digam que aquela é a realidade de suas vidas, fico me perguntando quem eram aqueles personagens. Afinal de contas, tudo o que relatei aqui, apesar de contado por eles, pode ser tão ficção quanto o filme (será?). Continuo com e a minha interpretação. E eles, provavelmente, interpretando.


São Borja em fotos

Queria que soubesses, sob nossos olhos, a vista da vida que daqui nós temos. E que fique marcada a impressão que surpreende esse olhar de fora que é o nosso: de uma cidade antiga. Que venha à superfície do entender de trezentos e trinta anos, tamborilados em cliques. No Brasil que inspiramos, nesses quadros, o retrato de onde viemos e de como nós vivemos, pois que essa é a nossa visão de mundo, de tudo.


1

2

3

4

5

6

1 [Nycolas Ribeiro] Um pingo aguarda seu dono. | 2 [Nycolas Ribeiro] Os bugios da praça XV de Novembro. | 3 [Nycolas Ribeiro] Cazuza e o seu “Blues da Piedade” nos muros da cidade. | 4 [Manuella Sampaio] Dos negócios às artes: São Borja passa pela Galeria Presidente Vargas. | 5 [Tamara Finardi] Cais do Porto às 7h da manhã. | 6 [Tamara Finardi] Indícios da primavera.


7 8

9

7 [Aline Sant Ana] A distância histórica traz lembranças de Porto Alegre até a 1ª Estação Férrea de São Borja. | 8 [Sofia Silva] Fachada do Museu Ergológico. | 9 [Sofia Silva] Charrete em exposição dentro do Museu Ergológico.


12

10 13

11 14

10 [Phillipp Gripp] Cruz feita com pedra jesuíta na entrada da igreja matriz. | 11 [Sofia Silva] Detalhe no palco fixo, no pátio do Museu Ergológico. | 12 [Tamara Finardi] No embalo das cores: Parquinho na Praça XV. | 13 [Tatiane Bernardo] Mausoléu de Getúlio Vargas, localizado no centro da praça XV. | 14 [Tatiane Bernardo] Estátua em homenagem a Getúlio Vargas.


24

[OPINIÃO | RIO GRANDE DO SUL]

CAIO FERNANDO ABREU, POETA?*

Q

uando era criança havia um escritor da minha cidade que me encantava deveras. Antônio Auri Sudati criava mundos fantasiosos e infantis onde se mesclavam trens falantes e meninos-parafuso. A possibilidade de encontrar com o autor quase todos os anos na Feira do Livro da cidade me cativava ainda mais e achava glorioso ter suas obras autografadas, com belas dedicatórias. Sou da cidade de Santiago, localizada nos limites da região central do Rio Grande do Sul, a chamada “Terra dos Poetas”. Antônio vive há muitos anos em Santa Maria e também há vários anos não leio nenhum de seus livros. Depois de suas histórias fantásticas, não me recordo de ler outra obra santiaguense, desse modo, o epíteto “Terra dos Poetas” me incomodava verdadeiramente. Quem são e onde estão esses poetas? Por que Itabira não é a Terra dos Poetas? Lá nasceu Drummond. Ou Alegrete, de Quintana? Ou ainda o Recife, de João Cabral de Melo Neto? Enquanto eu cursava a 8ª série do ensino fundamental chegou à cidade uma exposição sobre Caio Fernando de Abreu, nome sobre o qual nunca ouvira falar. Era 2006 e completara-se uma década de seu falecimento. Nossa professora de português pediu, então, um trabalho sobre “Caio F”. Num primeiro momento a obra dele me soou agressiva e despudorada demais, rendeu no máximo risinhos entre nosso grupo de trabalho e certa ojeriza por aquelas temáticas complexas. A partir daquele ano na cidade passaria a reverberar repetidamente o nome de Caio Fernando Abreu como o grande escritor da cidade. Enquanto cursava o ensino médio acabei voltando à obra de Caio, mais especificamente porque a biblioteca municipal possuía grande parte de seus textos. Comecei pelo

livro “Pequenas Epifanias” e aos poucos fui devorando todos. Passeando por contos, novelas e romances, percebi que Caio não possui nenhum livro de poesia. Mais uma vez a “Terra dos poetas” me inquietava: Caio não só não era poeta, como desgostava (e muito) da cidade. “Passo da Guanxuma”: é sob esse pseudônimo que Santiago aparece em seus livros. Guanxuma é uma planta comum na região, que se espalha aos montes e é usada, para fazer vassouras, daqueles que parecem de bruxa. Por mais que o autor negasse ser especificamente Santiago, atri-

buindo o qualificativo à representação de qualquer cidade interiorana, sua inspiração santiaguense é perfeitamente visível. Em “Os dragões não conhecem o paraíso”, de 1988, alguns dos contos mostram com riqueza de detalhes as pequenas fofocas, o clima de opressão, o preconceito, a falta de privacidade e, claramente, o desgosto de Caio com o Passo da Guanxuma. Na cidade é comum ouvir coisas como “Caio chamava Santiago carinhosamente de Passo da Guanxuma”. Em nenhum de seus textos vi carinho algum. Soa curioso que a cidade idolatre tanto Caio F. Da mesma forma, parece estranho que uma cidade tão

* Renan Guerra é graduando de Jornalismo pela Universidade Federal do Pampa (São Borja).

provinciana tenha um busto de Caio F. no centro da cidade. É pitoresco o fato de que o mais prestigiado filho-escritor da Terra dos Poetas seja um contista de mão cheia (e não me venham com a melindrosa explicação de que ele fazia poesia em prosa). O mais interessante é que o epíteto só foi endossado, transformando-se numa lei municipal em 2009, mas ainda não possui reconhecimento estadual. Na cidade há outros escritores, como Oracy Dornelles,que já foi entrevistado até pelo Jô Soares, mas em função de seu circo de pulgas e não de sua poesia; ou Ayda Bochi Brum, Zeca Blau, Aureliano de Figueiredo Pinto, entre outros. Porém, todos tão auto-centrados e provincianos que acabam por não fugir das temáticas campestres/amorosas, não as menosprezando, mas nada que soe suficientemente relevante para as considerações existenciais pós-modernas. Atualmente o epíteto tem gerado frutos, como a chamada “Casa dos Poetas de Santiago” que, de forma independente, apoia e incentiva a produção e a leitura de poesias na cidade. De certa forma, a alcunha de “Terra dos poetas” coloca o assunto em pauta, mesmo que seja a passos lentos e com certa imprecisão conceitual. Incentivar a literatura fora das capitais e grandes centros urbanos é uma atitude de grande importância e que merece respeito. De qualquer modo, custome a aceitar que Caio Fernando Abreu seja considerado o poeta de Santiago, uma vez que seu texto é em prosa e tão mais cosmopolita do que a cidade. Creio, enfim, que a Terra dos Poetas é a palavra e seu chão é o livro. E espero que o nome de Caio não seja apenas dito e redito, mas sim que seus livros sejam lidos e relidos. Quem sabe dessas leituras e incentivos não surja um grande poeta de Santiago?


[REPORTAGEM | PARANÁ]

25

foto | ALEXANDRE MARCHETTI

ECOMUSEU DE ITAIPU:

TERRITORIO, PATRIMONIO E /

^

COMUNIDADE EM UM SO LUGAR /

O nome Paraná, originário da língua indígena Tupi-Guarani, significa “enseada do grande rio”. O Estado possui seis bacias hidrográficas, como a do homônimo. Nela, assenta-se a Usina Hidrelétrica de Itaipu, uma das maiores geradoras de energia do planeta. Graças a essa imensa obra, atualmente pode-se encontrar importantes coleções arqueológicas, históricas e técnico-científicas, juntamente com espaços interativos, educativos, botânicos e de artes, no Ecomuseu de Itaipu.

O

Ecomuseu de Itaipu foi inaugurado no dia 16 de outubro de 1987, recebendo turistas de diversos lugares do Brasil e também de outros países. Conforme a turismóloga da Itaipu Binacional, Neli Rover, o local já foi visitado por pessoas de diversas nacionalidades. “Só no mês de janeiro de 2012 recebemos visitantes do Canadá, Chile, Suécia,

Paraguai, Argentina e outros”, diz. Desde a inauguração, o lugar já recebeu cerca de 1,71 milhões de turistas. É o primeiro ecomuseu da América Latina, considerado diferente dos tradicionais. Ao contrário de um museu comum, o Ecomuseu de Itaipu surgiu com a proposta de assumir o processo de preservação do meio ambiente, integrando-o ao desenvolvimento cultural, social, eco-

nômico e tecnológico. De acordo com a gestora do programa de valorização do patrimônio da Itaipu, Emília Medeiros, o ecomuseu não possui somente a função de acervo. “O ecomuseu é um elemento coordenador não só da preservação do momento que passou, mas também da preservação do presente e da boa acolhida do futuro, tornando-se uma verdadeira instituição de


neiro deste ano o ecomuseu reabriu suas portas após uma reforma que trouxe um novo atrativo: uma maquete com 80m² (está entre as maiores do país), que permite ao visitante uma viagem até a tríplice fronteira. O modelo mostra o relevo de uma área equivalente a 48 mil metros quadrados, representada 25 mil vezes menor que o espaço original. A maquete está instalada embaixo de um piso de vidro de

isso era sempre cheio de crianças. (...) E a gente ficava até o final, às vezes a gente ficava pendurada na janela do lado de fora pra ver se tinha fechado mesmo, porque era muito bom”, lembra. Já na universidade, Danubia participou da seleção de monitores estagiários para o refúgio biológico e para o ecomuseu. Na entrevista contou sua experiência com o Ecomuseu, fator que, sem dúvi-

“Eu amo esse lugar, cada milímetro desse chão, eu amo, com certeza, desde pequena.”

ia e da edurização da memór Por meio da valo Itaipu tem de eu us o Ecom cação ambiental, o fortaleciração regional e promovido a inte cional. na Bi da Itaipu mento da imagem

foto | CAROLINE ROSSASI

três centímetros de espessura para que, dessa forma, o visitante possa caminhar por cima dele e, assim, conhecer de perto toda a região. “A ideia é que, ao caminhar pelo espaço, o visitante tenha um novo olhar sobre este nosso pedaço, o nosso lugar”, explica Emília. O Ecomuseu de Itaipu também propõe ações voltadas para a comunidade. Geralmente são oficinas (teatro, economia doméstica, manufatura de cartões) ofertadas para suprir as necessidades que a comunidade do entorno demanda. Segundo a educadora ambiental da Itaipu, Hildete de Souza, na medida em que são percebidas as necessidades da comunidade do entorno, organizam-se atividades para atender à procura. “Nos primeiros anos de atendimento a população simplesmente ficava fascinada por esse espaço e as crianças vinham para cá com muita frequência e não queriam ir embora. Essa insistência fez com que pensássemos numa forma de atender essa demanda que vinha naturalmente”, conta. Uma dessas crianças é hoje monitora do Ecomuseu de Itaipu. Quando tinha dez anos, Danubia Slowinski Soares foi para o ecomuseu atraída pela estátua do “barrageiro homem de aço”, que na época ficava em frente ao prédio. A monitora participava das oficinas todos os finais de semana com sua prima. “Tinha oficina que eu aprendia a fazer artesanato, pintura, coisas com sementes. O próprio espaço era muito Slowinski] agradável e por

en, o onitores touchscre Equipado com m ria stó hi na ar nd aprofu visitante pode se do local.

foto | CAROLINE ROSSASI

comunicação entre as gerações presentes, passadas e futuras”. Toda a história da usina pode ser conhecida no ecomuseu, das suas fundações até a atualidade. A Itaipu Binacional adquiriu 8.519 propriedades ao todo, atingindo cerca de 40 mil pessoas no processo de construção (de 1978 a 1982). Para o atendimento das famílias, a hidrelétrica firmou parcerias com algumas representações sociais além de órgãos públicos, como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), a Companhia Paranaense de Energia Elétrica (COPEL), a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e Prefeituras Municipais. Segundo a gestora do programa de valorização do patrimônio da Itaipu, 89,29% da população imigrante permaneceu no Paraná após o início das obras e apenas 8,8% se mudou para o Mato Grosso, 1,1% para Santa Catarina e 1,03% para o Paraguai. O Ecomuseu é dividido em diversos setores e cada um mostra uma parte da história da usina. As maquetes e cenários ilustram perfeitamente como as populações da área viviam desde a pré-história, até todo o processo de construção da usina. A representação do passado se junta com as inovações tecnológicas, sendo exposta em painéis touchscreen trilíngues (em inglês, português e espanhol) a fim de interagir com o visitante para que o mesmo possa descobrir um pouco mais da história daquele lugar, conforme queira. [Danúbia Em 31 de ja-

foto | CAROLINE ROSSASI

[REPORTAGEM | PARANÁ]

26

talhes ostram com de Os cenários m viam vi e s antigos qu como os povo . am av rt mpo na região se co


reportagem | CAROLINE ROSSASI Para a visitante carioca Aline Lopes de Paula, o ecomuseu tem como principal objetivo registrar a memória: “Guardar para as crianças verem no futuro como era, como desenvolveu, como passou, isso sempre vai ser importante”. Conforme Sueli de Fátima Oliveira, turista de Ribeirão Preto – SP, o ecomuseu mostra também os pontos positivos que resultaram na construção da Usina. “A partir de um alagamento tudo o que a gente perdeu com relação à natureza, mas também se ganhou muita coisa. Acredito que o ecomuseu mostra também o que aconteceu de bom com a formação da Itaipu Binacional”, afirma. Da mesma forma que a história é evidenciada, as pessoas se percebem dentro dela. Esse é o verdadeiro papel de um ecomuseu, manter a relação com a comunidade, sendo como um espelho da mesma. E o Ecomuseu de Itaipu consegue por em prática o verdadeiro conceito de si próprio, transcendendo a dimensão física, dando continuidade a essa história que não tem fim.

CURIOSIDADES Produziu em 2011 um total de 92.245.539 megawatts/ hora (92,24 milhões de MWh); O recorde histórico de produção de energia ocorreu em 2008, com a geração de 94.684.781 megawatts/hora (MWh); O volume total de concreto utilizado na construção da usina seria suficiente para construir 210 estádios de futebol como o do Maracanã, no Rio de Janeiro; O ferro e aço utilizados permitiriam a construção de 380 Torres Eiffel; A altura da barragem principal (196 metros) equivale à altura de um prédio de 65 andares; O recorde de produção foi atingido em 2000, quando a Itaipu Binacional gerou 93,4 bilhões de quilowatts/hora. Em 2004, quando completou 20 anos de atividade, a usina já havia gerado energia suficiente para abastecer o mundo durante 36 dias;

foto | CAROLINE ROSSASI

da, contribuiu para que ela fosse aceita. “É aquela coisa de você ver o Ecomuseu como um pedaço da tua história. E foi isso que eu relatei. Então, através de mostrar quando eu era criança, eles viram todo esse sentimento e eu tive essa oportunidade de começar a trabalhar aqui”. Danubia trabalhou no Ecomuseu até terminar o contrato e, depois da graduação, começou a atuar em sua área - a pedagogia - mas ainda pensando em retornar. Após a última revitalização do local, Danubia voltou a trabalhar como monitora (guia) e hoje se sente realizada. “A oportunidade de reprisar isso e passar toda essa mensagem positiva não tem preço que pague. É uma vontade que eu realizo com muita satisfação. Eu amo esse lugar, cada milímetro desse chão, eu amo, com certeza, desde pequena”, orgulha-se, com brilho nos olhos. Através da proposta de interagir com o homem e seu ambiente, o ecomuseu faz com que cada turista perceba a importância cultural que o local tem para os brasileiros, principalmente os paranaenses.

27

Fonte: www.itaipu.gov.br


[MÚSICA] 28

MUSICULT

O Brasil é um caldeirão musical e curiosamente grande parte de seus ritmos não é reconhecida e sequer aproveitado dentro do próprio país. Artistas mesclam todas essas referências nacionais com uma variada gama de sons, sem medo e sem vergonha de utilizar ritmos considerados mais periféricos, como o funk e o brega, criando uma música tão brasileira e ao mesmo tempo tão universal que é aplaudida de pé no exterior.

Céu

Mahmundi Karina Buhr

1

Download: www. karinabuhr. com.br

Download: facebook. com/mahmundionline

, que Ritmo marcadamente caseiro a temas agrega sonoridades eletrônicas o canções que remetem ao verão, gerand calmas e quase lisérgicas.

Para o resto do país parecia que a cena musical recifense se alimentava continuamente do legado de Chico Science e do Manifesto Manguebeat, mas nos últimos dois anos as novidades voltaram a florescer e lá brotou uma cantora difícil de ser classificada: Karina Buhr, que consegue transformar ritmos dissonantes como punk e forró em canções tão ternas a ponto de virarem trilha sonora de novela. Canta sobre amores e dores errantes, cadáveres e outras pirações poéticas em seu segundo álbum, o vibrante “Longe de onde”. A própria cantora se define para a Tudo & Etc como dona de “um som romântico e defeituoso”.

A carioca disponibilizou para download em março um delicioso EP chamado “Efeito das Cores”. Mesclando sonoridades típicas dos 80’, bem ao estilo Marina Lima, com a tendência indie do chillwave2 de bandas como Toro y Moi e Washed Out sob camadas eletrônicas, Mahmundi entoa canções simples, que versam sobre amores, felicidades e banalidades, tudo aquilo que realmente importa.

2

Cineasta franco-bras ileiro aclamado em festivais internacion ais por filmes como “Madame Satã” e “O Céu de Suely” .

Vencedora do Grammy de melhor álbum de Word Music em 2007, com três discos lançados e mais de 400 mil cópias vendidas. O seu terceiro álbum, “Caravana Sereia Bloom”, mescla sons como rock, afrobeat, reggae e samba numa estética lo-fi que lembra um passeio pelos filmes do Karim Aïnouz1, como “Viajo por que preciso, volto por que te amo” (2009). Céu, mais brasileira/mundial que nunca, destitui cada vez mais as nomenclaturas e compartimentos da música nacional, criando uma melodia tão própria que, segundo ela, é quase como um “Road Movie”. Quem ainda não a conhece deve ouvi-la, afinal, “se eu fosse você, já tinha chegado em mim”.


música | RENAN GUERRA

29

Num país onde as mulheres eram as grandes intérpretes e os cantores masculinos eram contados nos dedos, cada vez mais ouvimos homens libertando suas dores e mágoas em forma de canções, às vezes diretas outras mais metafóricas, mas ainda assim entregues a canção (é, Chico Buarque fez uma bela escola). Romulo Fróes, Wado, Siba, Thiago Pethit, Marcelo Jeneci, Marcelo Camelo, Criolo, Pélico, Domenico Lancellotti, Filipe Catto, Otto, Lucas Santtana, Kassin e outros que fazem música de qualidade, cada um com suas especificidades. Porém, separamos aqui dois mancebos que merecem atenção: Cícero e Silva, ambos produziram suas canções bem ao estilo “do it yourself” e esse clima caseiro só gerou mais intimidade e poesia.

Cícero Simplesmente um garoto carioca trancado em seu apartamento, gravando canções de amor&dor madrugada a dentro. Assim surgiu “Canções de apartamento”, álbum singelo que mescla referências de bossa nova, tropicália e indie rock para falar dos desencontros da juventude. Com uma verve à la Los Hermanos, Cícero já conquistou um público grande e o respeito de seu ídolo Marcelo Camelo, para quem abre os shows.

Trabalha o minimalismo, mesclando camadas de som, brincando com instrumentos, criando um universo singelo para suas canções, onde fala de amores, amizades e banalidades, tudo de forma encantadora. Com um EP de cinco canções, ele já foi convidado para o line up do Sónar Festival que acontece em São Paulo e que conta com as participações de Björk, James Blake³ (revelação de 2011, que curiosamente divide o mesmo produtor de Silva) e Mogwai4. Silva promete mais um EP e um disco completinho para este ano e merece ser ouvido.

dos criadores do gênero.

-rock, considerada um

Banda escocesa de po

st-

Download: amusicoteca.com.br/?p=4815

4

Silva

³ Cantor inglês qu e chamou atenção por seu du bstep em downtempo.

foto | DIVULGAÇÃO

Download: amusicoteca.com. br/?p=3376


[OPINIÃO | MARANHÃO]

30

OS MUITOS MARANHÕES*

Q

uando morei no Maranhão, estado brasileiro, aliás, que pelo IBGE de 2010 é o mais pobre da federação, vi muitos Maranhões num só. Impossível não ver a miséria e as precárias condições habitacionais, de saneamento e higiene, quando circulamos pelas regiões periféricas da capital ou pelo interior, locais que não eram trajetos litorâneos turísticos, nos quais paisagens paradisíacas como o mar, os coqueiros, as avenidas pavimentadas, a rede de hotéis de luxo e os imensos navios, tudo contrastava com as outras partes, as casas sem acabamento, habitações subumanas, esgoto a céu aberto e gente vivendo sem água potável e sem energia elétrica por toda parte. Mas estranhamente exalavam felicidade pela vida e pelo contato com a gente que vinha de fora: os tais forasteiros do Sul. Acredito realmente que viajar é uma forma de aprender e por isso faço isso sempre que posso. Conheci muitos países e continentes, vivi em diversos lugares distintos: da Europa à África, de um hemisfério ao outro, e em cada lugar que estive, em cada espaço compartilhado, também eu me tornei um sujeito diferente. A diferença é sempre bem-vinda. Ser diferente é normal: somos diferentes e é isto que nos torna- a cada um de nós e a cada uma das culturas globais- de certa forma, assim tão especiais. O problema, no entanto, é quando tornamos a diferença uma razão para a desigualdade. Somos todos diferentes, mas somos todos iguais. Desigualdade é coisa feia, antidemocrática e indesejável: promove conflitos, gera batalhas e destrói vidas humanas, física e emocionalmente falando. Quando estamos num outro lugar da cultura, estamos em contato com o diferente, com o Outro como escreve Eric Landowski, para quem

“o sentido não é mais o simples produto de um pensamento diretamente confrontado com a realidade”. De fato o Maranhão fez outro sentido para mim à medida que fui interagindo com as pessoas. O Maranhão foi se tornando Outro. Importa, assim, dizer que o Maranhão é em sentido e não em essência, o que eu pude ou fui capaz de perceber e sentir. E esta percepção é que eu com-

junho e julho, costurando e bordando, exaltando sua história e suas tradições. O Maranhense é orgulhoso de ser quem é, tanto quanto os gaúchos o são. Lá, como aqui, os lugares, as músicas, as comidas, as paisagens, os ritmos, as lendas, o jeito das pessoas falarem, o sutaque, como eles dizem, enfim, tudo só estando lá e vivendo como eles vivem para ser capaz de senti-lo.

partilho: o Maranhão é um lugar quente. Faz muito calor. Isso praticamente todo mundo sabe, mas a gente não acredita o que isso representa até morar lá, num lugar em que existe apenas uma estação de chuvas no ano e que dura poucas semanas, proximamente ao mês de maio, porque no resto do ano só faz sol. Nossa sensação, disposição e relação com o mundo. A umidade do ar deixa as páginas dos livros moles e tudo gruda, a água do banho fica salobra e é muito difícil conseguir fazer espuma, a gente sai do banho com a sensação de que precisa tomar banho outra vez. O Maranhão é contraditório. É um estado pobre e ao mesmo tempo tão rico. As danças, o folclore colorido e diversificado, aquela gente toda trabalhando o ano todo para fazer a festa popular do Tambor de Crioula, do Carnaval e das festas datadas de

O Maranhão para mim é predicado de gente que se orgulha de falar um português correto, que dizem, porque mais próximo do português de Portugal. Que se orgulha de expressar sua religiosidade, que é criativo, generoso e solidário. Teria muitas histórias para contar que explicam porque os vejo com cada um destes qualificativos. Continuo até hoje conhecendo o Maranhão. Recebo amigos maranhenses em minha casa, oportunizo a eles a experiência similar que me ofereceram por lá. O sentido não é dado prontamente. A gente constrói. Ainda sigo conhecendo os Maranhões e tantos outros lugares como a mim mesmo. A semiótica chama a isso de semiose infinita. Infinitos somos nós. Ou como diz Riobaldo, em Grande Sertão Veredas, por Guimarães Rosa: “o importante nesta vida é que não estamos nem nunca terminados”.

* Geder Parzianello é professor da Universidade Federal do Pampa (São Borja).



GPH Mテ好IA


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.