K - Jornal de Crítica

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K Jornal de Crítica

Quando foi publicado nos anos 1980, a saga Watchmen, escrita por Alan Moore e desenhada por Dave Gibbons, o contexto era de grande maturidade para os quadrinhos. Ao lado de Neil Gaiman (Orquídea Negra, Sandman), J. M. de Matteis (Moonshadow, Blood), Frank Willer (O cavaleiro das trevas) e Art Spiegelman (Maus), Moore transformava as histórias de heróis e suas aventuras fantásticas num pesadelo existencial e filosófico, misturando referências literárias, mitológicas, questões políticas do momento e o próprio universo deste gênero híbrido, intertextual por excelência, das HQs. É como se o mundo real entrasse de sola no reino da fantasia de homensaranha, mulheres-maravilha, super-homens e semideuses, virando tudo pelo avesso e revelando as misérias e ruínas da história contemporânea. Foi um período maravilhoso para os quadrinhos, muito criativo, mas que representou também o fim da inocência. Ou seja, as revistas já não seriam mais um mero entretenimento ou leitura juvenil. A barra ficou pesada, seguindo uma tradição que vinha dos geniais Will Eisner, a partir de 1940, e Robert Crumb, na década de 1960. Em Watchmen, um bando de heróis vive sua lamentável decadência, a maioria aposentada, entre deprimidos e impotente, outros trabalhando para o governo, ou remoendo as migalhas de lembranças dos tempos antigos em que representavam a esperança de ordem na sociedade, um ideal a ser seguido. O problema é que esta ordem é sempre ilusória, precária, e os heróis começam a perceber seu próprio fim e o caos ao redor. Muitas tramas se cruzam nas páginas impiedosas e assombradas de Moore, como o extermínio do grupo de heróis decadentes, a violência urbana

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DIVULGAÇÃO

REYNALDO DAMAZIO

Legenda leenda legenda legenda crescente, a possibilidade de uma guerra em escala planetária e a invasão de extraterrestres. Nos bastidores, há uma conspiração que move forças sobrenaturais e interesses políticos. Mas a narrativa não se esgota aí e ainda inclui uma crítica bastante crua e inteligente ao próprio conceito das histórias em quadrinhos a partir de seus padrões de mercado, de seus personagens inverossímeis e refeitos à exaustão para o consumo de massa, da idealização de poderes irreais, sobre-humanos, e de uma ideologia autoritária. Não é à toa que Moore é considerado por muitos como o enfant terrible do gênero, aquela cara que sempre estraga a festa. Um dos personagens mais interessantes de Watchmen, o mascarado esquisitão Rorschach, é na verdade um psicopata violento que segue uma moral particular de salvacionismo e vingança – como ocorre com os justiceiros de um modo geral – e não se conforma com o fato desalentador de que a situação fugiu definitivamente ao controle. Torna-se um pária, marginalizado pelo sistema que o criou e perseguido por aqueles a quem serviu. O nome do perso-

nagem, tirado do teste de personalidade criado pelo psiquiatra suíço Hermann Rorschach (1884-1922), é outra das grandes ironias de Moore, pois sua “cria” se mantém justamente na fronteira entre o herói e o vilão, o bem e o mal, a ética e a barbárie, a sanidade e a loucura, numa perigosa crise de identidade. Se ele próprio, pode-se imaginar, fizesse o tal teste, certamente o resultado seria alarmante. Os textos de Moore, porém, não são nada confortáveis. A linguagem é exasperante, entre o poético e o sarcástico, e as situações sombrias fazem o leitor mergulhar num clima muitas vezes sufocante, de terror sutil. A narrativa normalmente segue um fluxo labiríntico, com muitos discursos que se cruzam e se fragmentam, compondo um painel complexo de dramas individuais e coletivos. Por isso, não se deve estranhar se a sensação depois da leitura for a de que o abismo está bem pertinho, ao alcance dos olhos e da sensibilidade. Por tudo isso, não se pode esperar uma versão cinematográfica muito fiel ou mesmo eficaz de Watchmen, ao gosto dos fãs. Embora o original seja ilustrado, como uma espécie de storyboard, HQ e filme são meios diferentes, com modos próprios de narrar e de estabelecer a relação com seus receptores. As graphic novels de Moore exigiriam filmes mais experimentais, de difícil apelo comercial, o que os tornaria economicamente inviáveis. Ainda que o diretor Zack Snyder tenha buscado se aproximar da narrativa imaginosa de Moore, o resultado não agradou o escritor, que pediu para tirar seu nome da produção, como já havia ocorrido com a adaptação de V de vingança. Para leitores e cinéfilos, resta ver o filme e comparar as duas obras, tentando compreender o que há de comum e diverso entre as linguagens de ambas, suas especificidades e contradições. Reynaldo Damazio é sociólogo. Trabalha como editor, crítico e tradutor. Autor dos livros Nu entre nuvens (Ciência do Acidente, 2001) e Horas perplexas (Editora 34, 2008), entre outros.


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