Jornal A Margem nº 3

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Um espaço de diálogo e intervenção social João Pessoa - Paraíba - Brasil Ano 1- Nº 3 - Novembro/Dezembro de 2011

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QUANDO O POVO JULGA OS CRIMES DO ESTADO No mês de outubro deste ano, estudantes, movimentos sociais e organizações de defesa dos direitos humanos no estado da Paraíba realizaram, pela primeira vez, o Tribunal Popular da Terra (TPT). A partir do testemunho de sem terras, quilombolas, atingidos por barragem e indígenas, o estado brasileiro foi julgado e condenado por suas ações, omissões e cumplicidades. Entenda como um Tribunal Popular representa um paradigma de enfrentamento em relação à concepção dogmática dos direitos humanos. » Página 9

Entrevista

Opinião

Auxílio-reclusão: mentiras, verdades e análises possíveis “Bolsa-bandido”? Entenda o benefício previdenciário que tem sido alvo de emails reacionários e interpretado como ferramenta de incentivo à criminalidade.

“O machismo e a homofobia andam no mesmo espaço”

» Página 5

Os cidadãos de segunda classe do Novo Código Florestal » Página 6

Constituição e interpretação: o duelo da despenalização do aborto » Página 8

Pensar as fronteiras: a exceção soberana e os limites do Estado de Direito » Página 11

Direitos Humanos

O ano de 2011 conferiu à Paraíba uma lamentável titulação: a de estado onde mais foram cometidos crimes motivados direta ou indiretamente por homofobia. Segundo relatório recentemente divulgado pelo Movimento do Espírito Lilás (MEL), 21 casos dessa natureza foram registrados a partir de informações obtidas junto a órgãos oficiais e de imprensa. Renan Palmeira, vice-presidente do MEL/ Paraíba, concedeu uma entrevista à equipe do Jornal A Margem para tratar desta dura realidade e do crescente tensionamento político entre os movimentos LGBT e grupos conservadores, predominantemente religiosos.

A questão quilombola para além do artigo 68 » Página 10

Em Fatos

» Páginas 3 e 4

“Mãos ao alto! R$ 2,30 é um assalto”: empresários de João Pessoa tentam novo aumento de R$ 0,20

Apoio

» Página 7

Cinefilia!

JCVD: Jean-Claude Van Damme, além da pancadaria


Ano 1 ● Nº 3 ● Novembro/Dezembro de 2011

Editorial

Por baixo da toga do senhor juiz

H

á um fato muito curioso que observo se repetir na vida de muitos dos/as meus/minhas colegas estudantes do curso de Direito: a admiração (quase fetichizada) em torno da figura do julgador, do meritíssimo senhor juiz. Mas a “culpa” não é só dos futuros bacharéis. Não passam despercebidas as manifestações de muitos familiares e amigos no sentido de desejar que aquele que estuda Direito assuma, algum dia, o cargo de magistrado e que, com isso, passe a despachar, realizar audiências, proferir sentenças e perceber um bom salário. Sem desconsiderar as motivações de natureza diversa, não posso desassociar essa realidade de uma pretensão mais ou menos explícita de empoderamento: sim, porque ser um julgador é, acima de tudo, reconhecer-se (e ser reconhecido) como alguém que dá significado a um significante chamado “texto legal”, cuja atividade, por consequência, repercutirá para além da realidade daquele que veste a toga, representação esta quase sempre acompanhada do discurso da grandeza intelectual e idoneidade de quem decide. Os acontecimentos recentemente testemunhados pela sociedade brasileira no que diz respeito às limitações (ainda que provisórias) dos poderes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para investigar e punir magistrados induziram o ponto de ebulição de um debate há tempos adiado: como democratizar um poder que não se permite ver democratizado? A convivência da retórica democráticoconstitucionalista, promovida pelo próprio Judiciário, com uma estrutura fechada ao controle social e às mínimas exigências de transparência administrativa nos revela uma contradição que deve ser devidamente explorada e, preferencialmente, superada. O Poder Judiciário agrega, na sua vastidão de varas, tribunais, serviços notariais e servidores, as relações patrimonialistas e de pessoalidade típicas da gênese tradicionalista da sociedade brasileira, o que faz repercutir na lisura das ações de controle empreendidas por ele mesmo. Apostar na competência administrativa subsidiária do CNJ significa idealizar e sobrestimar a atuação das corregedorias locais, como se o corporativismo e a “cordialidade” entre magistrados (usando um conceito sociológico de Sérgio Buarque de Holanda) correspondessem a dados excepcionalíssimos. Longe de promover deduções generalizantes, é preciso atentar para as

relações estruturais de poder que se estabelecem em diversas localidades do país, onde laços tradicionais de dominação são muito evidentes e sugerem a proximidade tanto entre juízes quanto entre estes e representantes dos outros dois Poderes. A Paraíba, onde famílias mandam e desmandam há décadas (no Executivo, Legislativo e Judiciário), é um bom exemplo disso, não? Desta forma, não é preciso fazer grandes esforços para concluir que procedimentos correcionais conduzidos pelo CNJ têm chances muito mais evidentes de encontrar algum desfecho satisfatório do que aqueles levados a cabo pelas corregedorias dos Tribunais. O Poder Judiciário precisa, no fim das contas, ser disputado pela sociedade. É preciso compreender que os esforços no sentido de dar-lhe mais transparência e celeridade são louváveis, mas insuficientes. A maior parte dos juízes, desembargadores e ministros de Tribunais Superiores do país sintetiza um rosto elitista, conservador e de dificultoso acesso, valendo -se da retórica da sacra “imparcialidade” para legitimar interesses fortemente ideológicos (entre eles, o de que a administração da justiça deve se limitar a um grupo de intelectuais sectaristas, o que me parece, no fim das contas, uma questão de classe). Lutar pela democratização do Judiciário significa mostrar que o pobre quer a mesma justiça que o rico; que a criminalização dos movimentos sociais e de seus integrantes é uma incoerência frente às promessas do dito estado democrático de direito; que a justiça não se exaure em pretensões de legalidade; que a eficácia dos direitos socais não pode ser só um blá-blá-blá positivista. A partir dessas reflexões (e de suas consequentes ações, num jogo dialético), talvez comecemos a engatinhar em direção à sonhada “revolução democrática da justiça”: uma realidade em que o poder da toga não se justifica por si mesmo, mas pela compreensão, por parte do sujeito que a veste, de que o Poder Judiciário pode ser um real construtor da democracia, mesmo abrindo mão de toda mitologia jurídica que intenta legitimá-lo, por ora.

www.jornalamargem.com.br twitter.com/jornalamargem Este jornal é uma publicação bimensal produzida por estudantes do curso de Direito da Universidade Federal da Paraíba e outros colaboradores. As ideias aqui expostas não necessariamente refletem a opinião da equipe editorial.

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EXPEDIENTE

Editor-geral Douglas Pinheiro Revisora Andrezza Melo Coluna Cinefilia! Carlos Nazareno Coluna Em Fatos Caroline Carvalho Tancredo Fernandes

Por Douglas Pinheiro (Editor-geral) Equipe de editores(as) Alex Jordan Arthur Richardisson Breno Barros Delosmar Magalhães Hannah Lima Ive Fróes Liziane Correia Thiago Fernandes Yure Tenno Entre em contato com a equipe: equipeamargem@gmail.com


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Entrevista

Renan Palmeira - MEL PARAÍBA

Reprodução Internet

“O machismo e a homofobia andam no mesmo espaço”

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ara Renan Palmeira, vice-presidente do Movimento do Espírito Lilás (MEL/ Paraíba), os índices alarmantes de assassinatos e outras formas de violência contra homossexuais no estado da Paraíba são resultado tanto da nossa vinculação cultural predominantemente machista quanto dos recentes processos de visibilidade da causa LGBT, que têm desagradado setores conservadores. A luta do Movimento pelo sonho de igualdade significa estabelecer disputas dentro das instituições por proteção legal, políticas públicas e representação contra-majoritária. Ainda, a militância, os trabalhos de conscientização da sociedade e a produção cultural sobre a temática homoafetiva são estratégias irredutíveis de enfrentamento político. Renan apresentou, em primeira mão, aos editores do Jornal A Margem, o relatório “Homofobia: abordagem dos índices de crimes relacionados ao ódio contra homossexuais no Estado da Paraíba”, produzido pelo MEL em parceria com a OAB/PB, no qual constam informações detalhadas sobre agressões homofóbicas, no ano de 2011, obtidas junto à imprensa e órgãos oficiais. Por Breno Barros e Douglas Pinheiro

A MARGEM - Você poderia nos dizer qual é o significado do termo “homofobia” para o movimento LGBT? RENAN - Nós compreendemos que a homofobia é o ódio, o preconceito contra o homossexual. É um preconceito diferenciado de outros preconceitos. Nesse sentido, podemos perceber que as agressões contra homossexuais expressam muito esse ódio, a negação do homossexual, o nojo, a vontade de humilhá-lo. A maioria dos crimes contra homossexuais que estão no relatório evidencia casos de pedrada na cabeça, esmagamento do crânio, facada no reto, agressões que não são típicas de um assassinato comum. Você não só mata, mas também quer banir aquela pessoa da face da terra. No ano passado, aqui em João Pessoa, mataram um indivíduo e ainda arrancaram o pênis dele, colocaram-no na sua boca e fizeram várias cruzes no seu corpo. Houve também o caso de uma lésbica, na cidade de Queimadas, que foi agredida, estuprada e teve seu rosto danificado a pedradas. Realmente há ódio, nojo à figura do homossexual. A MARGEM - A homofobia se manifesta em outras relações, como no trabalho, por exemplo? Um piada com um homossexual é uma atitude homofóbica? RENAN – Sim. É uma forma de violência simbólica. A homofobia se coloca em vários patamares. Na escola, por exemplo, há o bullying homofóbico. Eu me considero como alguém que sofreu bullying homofóbico porque muito afeminado enquanto criança: há preconceito através da piada, da agressão, dentro do espaço escolar. Temos também a homofobia institucionalizada, que é advinda do próprio Estado, da dificuldade que o Estado tem de receber o LGBT, de dialogar com o LGBT; que a própria polícia tem de receber uma queixa de agressão homoafetiva.

Você tem a homofobia no espaço privado, a homofobia familiar, quando a família descobre que tem um filho homoafetivo e o discrimina. A homofobia consegue se fortalecer também com outros preconceitos. Um exemplo: a mulher lésbica. Ela sofre preconceito por ser lésbica e por ser mulher. Também o LGBT pobre e negro. Essas situações expõem e estimulam o ódio e a homofobia.

o machismo e a homofobia. Estão relacionados a visibilidade que nós temos hoje em nível nacional e o fortalecimento e o crescimento do preconceito e do ódio contra os homossexuais. Segundo o Ibope, o Nordeste brasileiro é a região mais homofóbica do Brasil: 46% dos crimes contra a comunidade LGBT que aconteceram nestes últimos anos se deram aqui.

A MARGEM - Só neste ano, na Paraíba, já foram registrados 18 casos de assassinatos motivados direta ou indiretamente por homofobia (até a data da entrevista). Você acha que tais crimes são unicamente justificados por nossa construção cultural explicitamente machista, que nega a possibilidade de superação da dicotomia homem-mulher, ou a visibilidade cada vez maior dos movimentos de defesa da causa LGBT também tem contribuído para isso? Há como relacionar uma coisa com a outra?

A MARGEM - O deputado Jean Willys (Psol-RJ) esteve aqui na Paraíba, há alguns meses, para tratar, juntamente com a coordenação do MEL, desse problema da violência contra homossexuais. Quais foram os pontos mais relevantes dessa articulação? Está sinalizada alguma estratégia de enfrentamento institucional?

RENAN - Nós compreendemos que o machismo e a homofobia andam no mesmo espaço. O preconceito contra o homossexual é o preconceito contra a feminilidade do homossexual: ao vê-lo como uma mulher ou compreender que ele possa ter alguma atitude feminina, há uma justificativa da homofobia pelo machismo. O avanço da união homoafetiva; o reconhecimento dessa mesma união pelo Supremo Tribunal Federal; a própria ONU – que, neste ano, deu passos na questão de pensar o combate à homofobia a nível mundial; a participação da OAB; e a abertura da mídia tornaram a causa homossexual muito visível, muito pública. E, nesse sentido, há uma parcela conservadora da população brasileira, que não é a maioria dela, mas é uma parcela significativa, que tem se enfurecido, que tem aumentado o seu preconceito, que tem aumentado o seu poderio de ódio contra essa parcela homossexual. Acredito que estão relacionados sim

RENAN - Jean Wyllys é um grande guerreiro, uma grande voz da comunidade LGBT, uma pessoa extremamente capacitada, maravilhosa. Ele tem feito um trabalho muito sério na Câmara Federal, na perspectiva de combater a homofobia, de pensar políticas públicas. Eu tenho acompanhado o mandato dele e observo que o grande entrave ao avanço da cidadania LGBT é a composição da Câmara: você tem setores extremamente conservadores, setores de fundamentalistas religiosos que não estão dispostos a dialogar com o movimento LGBT e nem aceitar a pauta LGBT. Quando Jean esteve aqui na Paraíba, nos reunimos com ele e apresentamos esse relatório. Ele está buscando levar esses 18 assassinatos – que aconteceram em João Pessoa, Campina Grande, Cabedelo, Santa Rita, Bananeiras, Sousa, Patos e Queimadas – para a Comissão Nacional de Direitos Humanos da Câmara, como forma de propagandear, de divulgar esses números e de cobrar políticas públicas do estado da Paraíba no combate à homofobia. Jean deixou muito claro que, se o estado brasileiro não se movimentar e não criar leis e políticas públicas que possam proteger os

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Entrevista “Ocupamos hoje o primeiro lugar da federação em crimes homofóbicos e não temos, no estado da Paraíba, nenhuma ação efetiva para combater a homofobia. Isso é algo extremamente sério” LGBTs, ele está disposto a levar esses assassinatos a cortes internacionais. A MARGEM - Como você avalia as políticas públicas LGBT no Brasil e, particularmente, no nosso Estado? RENAN - Na Paraíba, eu observo que o trato tem sido extremamente pequeno, mínimo. Nós temos hoje dois serviços funcionando na capital, que são a Delegacia Especializada em Crimes Homofóbicos (uma delegacia regional que funciona com várias limitações) e um Centro de Referência que funciona sem muitos recursos para conceder alimentação e estrutura a um LGBT em estado de carência. O que eu percebo é que há várias cidades no interior da Paraíba que não têm políticas públicas para os LGBTs. Ocupamos hoje o primeiro lugar da federação em crimes homofóbicos e não temos, no estado da Paraíba, nenhuma ação efetiva para combater a homofobia. Isso é algo extremamente sério. Eu não vejo, a longo prazo, iniciativas e articulações para produzir uma política pública de combate à homofobia no nosso estado. A MARGEM - Analisando a recente decisão do STF que reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo e as crescentes dificuldades de aprovação do PLC 122 (que criminaliza a homofobia), você acha que o reconhecimento de direitos dos homossexuais tende a ser cada vez mais judicializado? RENAN - Nós percebemos, com a decisão do Supremo Tribunal Federal, que ele é um grande aliado para o avanço da cidadania LGBT. Percebemos também que a Câmara Federal e o Senado não têm avançado na perspectiva de pensar as minorias sociais e, aí, nós temos nos apoiado muito no Supremo, nas decisões judiciais. É necessário compreender que a Câmara Federal e o Senado têm que se renovar na perspectiva de ter representantes de minorias sociais que possam pensar o diálogo das minorias com as maiorias, que possam pensar em leis para essas minorias, que possam pensar em políticas públicas para essas minorias. Eu não vejo hoje a Câmara Federal nem o Senado brasileiro como aliados para a conquista da cidadania LGBT. A MARGEM - A comunidade LGBT tem sido alvo permanente de muitas instituições religiosas, tipicamente defensoras da ideologia da moralidade e preservação dos “bons costumes”. Na sua opinião, há como conciliar liberdade sexual com liberdade de expressão religiosa?

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RENAN - Sim. Nós defendemos um estado livre para você vivenciar sua religiosidade da forma como quer, um estado livre para você vivenciar sua sexualidade da forma como quer. Eu acho que nós defendemos um Estado laico e pensar um estado laico é pensar um estado livre. Meu companheiro é evangélico, vai à igreja e nós vivemos muito bem assim. Da mesma forma que eu defendo a liberdade religiosa, no mesmo patamar, na mesma essência, eu defendo a livre orientação sexual, nem um grau a menos, nem um grau a mais. Então, nós queremos construir esse estado laico, onde as minorias e maiorias sociais são respeitadas, onde há diálogo entre elas. A MARGEM - Como você avalia o papel da mídia na defesa (ou prejuízo) da causa LGBT? RENAN - Nós avançamos muito. A mídia brasileira, até a década passada, apresentava os LGBTs de forma muito estereotipada: a “Vera Verão”, o tipo mais “bicha louca”, o tipo mais afeminado. Tudo isso era muito ligado ao humor, ao cômico. No início da década de 1990, a discussão sobre o tema passou a entrar de uma forma muito lenta nas telenovelas, a exemplo de “A próxima vítima” (com um casal de gays que foram agredidos na rua) e “Torre de Babel”. Eu avalio que ainda temos muito o que avançar na discussão da mídia, primeiro porque aparecem basicamente dois modelos de gays, que são o mais afeminado, ou o gay tipo Brad Pitt: bonito, másculo, rico, que não anda de ônibus, que só anda de carro. Dentro da comunidade LGBT, você tem uma diversidade de pessoas, de identidades, que em alguns momentos que não são representados pela mídia. A Rede Globo, nestes últimos anos, tem avançado muito na discussão, principalmente nas suas telenovelas, das representações do gay, mas sabemos que a classe artística tem vários LGBTs que têm uma identidade homoafetiva e que não a assumem publicamente por recomendação da grande mídia. A MARGEM – Como você recebe as críticas que se fazem às paradas gays no sentido de dizer que elas se tornaram eventos comerciais? RENAN - Concordo com essa crítica. Temos um mercado LGBT que é extremamente lucrativo e um público LGBT que é extremamente consumidor, um público pink que se veste bem, que compra. O capitalismo viu nisso um mercado promissor. Realmente as paradas nacionais e internacionais se tornaram um atrativo financeiro, um atrativo de poder aquisitivo, e perderam um pouco o

seu tom político. Nesse sentido, nós, na Paraíba, sempre procuramos fazer uma parada mais politizada. Eu acho que a Paraíba ainda não tem esse foco no mercado LGBT: as empresas daqui não dialogam tanto com essa possibilidade e nós procuramos preservar o referencial político. No mês de março, organizamos também a caminhada LGBT, que é uma coisa mais para “militante”. Apesar das críticas, é importante que as paradas permaneçam, é importante juntar dois, três milhões de pessoas nas ruas de São Paulo, por exemplo. A MARGEM – Você tem a intenção de escrever um livro em que relata sua experiência de bullying homofóbico na escola. Como está essa ideia? Tem algum livro que você recomenda que aborda a causa LGBT? RENAN - A proposta está em pé. Eu estou escrevendo o livro, porém, com a correria da militância, a correria do trabalho, ele não tem ficado em primeiro plano, mas pretendo lançá-lo no próximo ano. O título do livro é “Aprendendo a se defender”. Fala sobre os vários meninos que têm trejeitos ou uma aparência homoafetiva na escola e que, quando recorrem à diretora ou à professora para pedir proteção, ouvem: “aprenda a se defender”. Vai retratar esse preconceito na escola, que é um preconceito brutal, muito forte. Na França, por exemplo, a cada três suicídios de adolescentes, dois são de LGBTs. A causa é o preconceito. No Brasil, a produção sobre a temática LGBT é extrema. Nós temos gráficas e editoras que trabalham só com literatura LGBT, a exemplo de “O terceiro travesseiro”, que eu li quando estava no início da descoberta de minha identidade homossexual, um livro que conta o relacionamento entre dois meninos. Nós também temos uma produção de filmes imensa. A própria Paraíba tem sido cenário dessas produções, a exemplo de “Amanda e Monick”, de André da Costa, que trabalhou com duas transsexuais no interior do estado. Há também “O diário de Márcia”, de Bertrand Lira, o diário da vida de uma transsexual na Paraíba. Em nível nacional, você tem filmes belos como “Eu não quero voltar sozinho”, que narra a história de um menino portador de deficiência visual, que sofre preconceito, é homossexual e descobre um amor. “Cazuza” e “Madame Satã” foram também filmes pioneiros na última década. O próprio Ney Matogrosso está autuando em alguns filmes, representando um LGBT na terceira idade, se mostrando como LGBT já com 60 anos. Enfim, há vários documentários interessantes com LGBTs no Brasil. ●


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Opinião

Auxílio-Reclusão: mentiras, verdades e análises possíveis Por Bárbara Ferreira de Freitas e Nelson Gomes Júnior*

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ircula na internet, já há algum tempo, um email tipo corrente promovendo uma falsa campanha de esclarecimento acerca de um benefício previdenciário voltado para dependentes de segurados do INSS. A polêmica gira em torno do chamado “auxílio-reclusão”, benefício perversamente apelidado de “bolsa bandido” pelos autores do spam que vem se multiplicando, reforçando preconceitos e deturpando informações. A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a utilizar o conceito de seguridade social, o qual abrange saúde, assistência e previdência social, sendo esta última de caráter contributivo, ou seja, só é possível obtê-la por meio de pagamentos na forma da lei. A finalidade da previdência é cobrir os riscos sociais comprometidos pela falta de renda do contribuinte ou de sua família, tais como nos casos de doença, acidente, gravidez, prisão, morte e velhice. Conforme previsto nas leis 8.212/91 e 8.213/91, de um total de 10 benefícios possibilitados pela previdência social, 2 são pagos somente ao(s) dependente (s) do segurado: pensão por morte e auxílio reclusão, sendo este último fonte de muitos equívocos quanto à sua natureza, objetivos, beneficiários e valores pagos. O auxílio-reclusão consiste em um benefício de prestação continuada da previdência social, de caráter alimentar, que tem por objetivo possibilitar que os dependentes do presidiário tenham como se manter enquanto ele, antes provedor e segurado, encontrar-se recluso. Tem direito ao benefício todo segurado de baixa renda recolhido à prisão, durante o período em que estiver preso sob regime fechado ou semi-aberto. Atualmente, só tem direito ao auxílio o segurado que, à época da prisão, percebia renda mensal igual ou inferior a R$ 862,60 e, desde que, quando da solicitação do benefício, não esteja recebendo salário da empresa na qual trabalhava, nem em gozo de auxíliodoença ou aposentadoria. Diferentemente do valor alardeado no falso email, o auxílio varia de R$ 545,00 a R$

862,60 por família, seja qual for o número de dependentes do segurado. Faz jus ao benefício apenas a família do presidiário que tiver qualidade de segurado no momento da reclusão, sendo potenciais titulares do auxílio sua esposa(o)/ companheira(o), filhos (as), irmãos(as) e/ou pais. Caso o segurado possua dois ou mais dependentes, o auxílio será dividido igualmente entre os seus beneficiários. Em caso de morte do preso durante o período de pagamento do auxílioreclusão, o benefício se converte em pensão por morte. Em oposição ao boato eletrônico que insinua que o benefício em tela trata-se de um estímulo ao ato criminoso, o auxílio-reclusão visa cumprir o ditame de justiça social, protegendo a família do segurado da inesperada situação de vulnerabilidade social e econômica oriunda da reclusão do seu provedor. Evita, por consequência, que seus dependentes tornem-se alijados de subsistência e sofram a punição cabível exclusivamente ao praticante do delito. Em última análise, o auxílio tende a garantir a proteção constitucional à família, sem perder de vista a defesa da dignidade da pessoa humana, princípios frequentemente violados no cotidiano dos familiares de presos. Os discursos caluniosos sobre o auxílio-reclusão cumprem o papel reacionário de manutenção de preconceitos, estereótipos e negação de direitos aos segmentos mais vulneráveis da população. Os pobres, reiteradamente criminalizados pelos mecanismos seletivos de nosso sistema penal, configuram-se novamente como alvo preferido de dispositivos de controle, camuflados agora pela retórica da moralidade e do bom uso do dinheiro público.

“Seria ingenuidade de nossa parte acreditar que alguém, estando empregado, escolheria altruisticamente cometer um crime e ser preso para „beneficiar‟ sua família” É pouco razoável associarmos o auxílio-reclusão ao quadro de motivadores da criminalidade. Grande parte da massa carcerária deste país jamais conheceu a condição de segurado do INSS. Seria ingenuidade de nossa parte acreditar que alguém, estando empregado, escolheria altruisticamente cometer um crime e ser preso para “beneficiar” sua família. De igual maneira, não nos parece justa a perpetuação das “punições” estabelecidas aos familiares do preso, em especial porque não cometeram crime algum. *Bárbara é estudante do 5º período da graduação em Direito e Nelson é professor do Departamento de Ciências Jurídicas, ambos da UFPB.

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Os cidadãos de segunda classe do Novo Código Florestal “O crescimento econômico proporcionado pela expansão do setor da agricultura brasileira se alicerçaria nas reformas do código, cujos dissabores não recaem tão somente sobre os índios: atingem os quilombolas e os sem terra, projeções inequívocas da criação de cidadãos de segunda classe”

Por Hannah de Brito Lima e Marcos Araújo*

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Código Florestal, embora não pareça, influi na qualidade de vida de todos os brasileiros. Surgiu em 1934, partindo do pressuposto de que a conservação de ecossistemas naturais interessa a toda a sociedade, pois são estes que garantem os serviços ambientais básicos, sustentando, assim, a vida e a economia de todo o país. É a lei nacional que veta a ocupação de áreas de risco (tanto agrícolas, quanto urbanas) sujeitas a, por exemplo, deslizamentos de terra e inundações. O Novo Código, de relatoria do Deputado Federal Aldo Rebelo (PCdoB), que está prestes a virar uma lei, deixará “de fora populações que parecem estar invisíveis ao Estado”, como disse Rosane de Matos, representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), pois modifica as áreas de preservação permanente das florestas, dando margem ao crescimento da agricultura; não obstante isso, cerceia a participação da população silvícola, restando prejudicado o direito do índio à terra. O crescimento econômico proporcionado pela expansão do setor da agricultura brasileira se alicerçaria nas reformas do código, cujos dissabores não recaem tão somente sobre os índios: atingem os quilombolas e os sem terra, projeções inequívocas da criação de cidadãos de segunda classe. A proposta do Novo Código põe fim na obrigação de se recuperar áreas desmatadas ilegalmente até 22 de julho de 2008. O principal efeito de qualquer anistia é estimular novas ilegalidades, pois reforça a sensação de impunidade. Diversos crimes ambientais serão ignorados e perdoados pela adesão e cumprimento do programa de regularização ambiental. Propõe, também, reduzir a extensão mínima das Áreas de Proteção Permanentes dos atuais 30 metros para 15 metros de faixa marginal e demarcar as matas ciliares protegidas a partir do leito menor do rio e não do nível maior do curso d’água, aumentando, dessa forma, os riscos de inundações e desabamentos; com

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isso diminuem-se as áreas de preservação de fauna e flora, manutenção climática e controle da demanda biológica de oxigênio. Como argumentam que os latifundiários e os ruralistas necessitam de espaço para a agricultura, a USP coordenou um estudo mostrando que a área cultivada no Brasil poderá ser praticamente dobrada caso as áreas hoje ocupadas com pecuária de baixa produtividade sejam realocadas para o cultivo agrícola. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) afirmam que a nova proposta baseia-se na “premissa errônea de que não há mais área disponível para expansão da agricultura brasileira”, bem como que “a maioria da comunidade científica não foi sequer consultada e a reformulação foi pautada muito mais em interesses unilaterais de determinados setores econômicos”. Dados oficiais da Fundação Nacional do Índio apontam que 12,5% do território brasileiro pertencem a reservas indígenas, ou seja, terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, como reza o art. 231 da Constituição Federal de 1988. A previsão constitucional versada no caso em tela possui antecedentes históricos que elencam, por exemplo, os conflitos dos colonizadores do Brasil com os autóctones encontrados na Terra de Santa Cruz. Não é temerário apontar que a proteção do Estado Democrático de Direito para com os índios também representa um meio de correção oposta a uma dívida histórica, além de ajudar a preservar costumes indígenas e o patrimônio ambiental do país. Atualmente a região amazônica abarca o maior número de reservas indígenas no território brasileiro: são 174 reservas distribuídas nos municípios, segundo o Ministério Público Federal. O efetivo reconhecimento e fiscalização destas áreas deve garantir ao índio maior estabilidade no que atina ao direito à terra, que, por sua natureza, coaduna toda a coletividade indígena nos seus aspectos mais globais e intrínsecos que reafirmam a identidade cultural deste povo. Sabe-se que com o advento da tumultuada reforma no Código Florestal, que modifica

os institutos das áreas de proteção permanente e da reserva legal, reforma esta propugnada pela bancada ruralista, promete-se estimular a produção agrícola do país e, desta forma, beneficiar a economia. Forçoso questionar a inobservância do projeto de lei para com a participação dos índios e/ou institutos que os representem e as consequências imediatas nas lesões oriundas da reforma. A luta vetusta dos silvícolas pelo reconhecimento e preservação dos seus respectivos territórios habituais foi insculpida em termos constitucionais do Capítulo XIII, problemática discutida pela Assembleia Constituinte de 1988. Qualificar as terras indígenas como sendo de “posse permanente”, como está expresso §2º do art. 231, infere-se, por óbvio, que qualquer ordenamento de prosápia infraconstitucional que se amolde em qualquer matéria tangente aos interesses silvícolas deve incluí-los nas discussões acerca do projeto legislativo; e, não menos importante, deve respeitar as linhas limítrofes estabelecidas pela Lei Maior. O direito à terra do índio emerge em fatos históricos pretéritos que se perpetuam em transformações cotidianas dentro da sociedade que formam, sem que deixe de influenciar a sociedade majoritária das grandes metrópoles e afins. Não se encerra completamente numa concepção territorial; todavia, concerne a todo repertório histórico-cultural, todas as raízes, costumes e peculiaridades indígenas que se agregam à pessoa humana, ao ser. O Estado Democrático de Direito brasileiro deve atentar-se para a realização plena da justiça para com seu povo, indígena ou não; demais disso, cumpre não reduzir as conquistas dos índios num artigo qualquer enquadrado na constituição simbólica discutida pela inequívoca sapiência do professor Marcelo Neves (estudioso da teoria constitucional simbólica). É salutar e justo celebrar o debate acerca do Novo Código Florestal com equilíbrio, sem excluir os segmentos sociais interessados, para consagrar a segurança jurídica indígena e a preservação irrefutável do meio ambiente e dos direitos humanos dos indivíduos acalentados sob a égide dos ditames jurídicos debruçados sobre o caso em comento. *Hannah e Marcos são graduandos em Direito pela UFPB e FRB-BA, respectivamente.


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EM FATOS

PRESENTE DE NATAL: TARIFA DE ÔNIBUS DEVE SUBIR PARA R$2,30 EM 2012 Enquanto as famílias apreciavam a carne macia do peru natalino, o Conselho Municipal de Transportes e Trânsito se reunia para decidir o valor da nova tarifa de ônibus de João Pessoa. A decisão desceu com gosto de panetone mofado: o aumento de R$ 0,20 se repetiu num ano em que poucos imaginavam que isso poderia acontecer, não pela proximidade do cataclismo maia, mas pela iminência das eleições para a Prefeitura da capital. Mais difícil do que entender o aumento é decifrar a justificativa para tal, pois o Conselho Municipal afirma ser a variação dos preços dos insumos e as características operacionais nos últimos doze meses os elementos preponderantes para chegar ao valor de R$ 2,30. E você? Vai pular a roleta?

Devagar que o santo é de barro: governo Dilma inicia desapropriações para reforma agrária Foi publicada, no Diário Oficial do dia 27 de dezembro, a desapropriação de 60 fazendas espalhadas por 13 estados brasileiros, somando uma área de 112,8 mil hectares para o assentamento de 2.739 famílias sem-terra, segundo dados do INCRA e do Ministério do Desenvolvimento Agrário. As desapropriações estão relacionadas à pressão política exercida por movimentos sociais do campo, ao longo de 2011, para cobrar do governo federal uma política séria de reforma agrária. A medida governamental, no entanto (e a exemplo dos governos anteriores), é só mais uma saída pontual (e não estrutural) para os problemas da concentração fundiária e da miséria no campo.

SEMINÁRIO SOBRE FEDERALIZAÇÃO DO CASO MANOEL MATTOS FOI REALIZADO EM JOÃO PESSOA No Departamento de Ciências Jurídicas da UFPB (antiga Faculdade de Direito), foi realizado, pela Dignitatis – Assessoria Técnica Popular, pelo Centro Acadêmico Manoel Mattos (CAMM) e pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), o II Seminário sobre Federalização dos Crimes contra os Direitos Humanos – Estudos e Práticas em Homenagem ao Advogado Manoel Mattos. O evento ocorreu nos dias 22 e 23 de novembro e teve como objetivo aprofundar os debates em torno do mecanismo da federalização das graves violações contra os direitos humanos. Assim também, evidenciar a história de Manoel Mattos, buscando refletir sobre as formas de combate à impunidade, à corrupção estatal e às violações de direitos humanos no Brasil, especialmente porque o evento fez parte das atividades comemorativas de um ano do julgamento que, pela primeira vez, autorizou a aplicação do Incidente de Deslocamento de Competência (IDC). O evento também contou com a presença da Sra. Nair Ávila, mãe de Manoel Mattos, e de Rosemery Souto, promotora que denuncia a atuação de grupos de extermínio na Paraíba e em Pernambuco.

Mesmo com duas condenações na OEA, Estado Brasileiro evita punir torturadores e assassinos

Sem terra Sétimo Garibaldi, assassinado em 1988, durante um despejo ilegal

Na última edição deste periódico, noticiamos que o Ministério Público do estado do Paraná havia denunciado o latifundiário Morival Favoreto pelo crime de homicídio qualificado contra o integrante do Movimento Sem-Terra Sétimo Garibaldi, morto em novembro de 1998, durante uma tentativa de desocupação forçada de uma área ocupada pelo MST na Fazenda São Francisco, município de Querência do Norte. A denúncia se deu após a condenação do estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas a comemoração de movimentos sociais e entidades de defesa dos direitos humanos durou pouco: o Tribunal de Justiça do Paraná concedeu habeas corpus para trancar a ação penal movida contra o fazendeiro, cuja fase instrutória (oitiva de testemunhas) já havia sido iniciada. A defesa de Morival alegou ausência de justa causa para a propositura da ação, já que a mesma é baseada “apenas” numa sentença internacional. Com a decisão, o Brasil acumula o descumprimento vergonhoso de duas decisões internacionais, já que também não promoveu a punição de nenhum dos militares envolvidos no caso da “Guerrilha do Araguaia”, conforme determinava a Corte da OEA e cujo prazo expirou neste mês de dezembro.

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Opinião

Constituição e interpretação: o duelo da despenalização do aborto Por Igo Bandeira Rolim*

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resente na realidade de muitos países e, pois, bastante em pauta nos dias contemporâneos, o aborto tem se mostrado como um assunto cujo tabu precisa ser transpassado a fim de se discutir a necessidade de sua descriminalização ou não. Não adianta mais fechar os olhos a esta questão de saúde pública e tentar sufocá-la de forma autoritária a partir do Legislativo, isto é, sem estar em harmonia com a sociedade e, em especial, com as mulheres que reivindicam suas liberdades. Se o Direito é um fenômeno sócio-histórico-cultural, ele deve acompanhar o caminhar da sociedade. Visto isso, a grande crítica à criminalização que ainda se estabelece, mesmo com os recentes avanços dos países, é estruturada em quatro pensamentos. A proibição do aborto é hipócrita, discriminatória, cruel e machista. Hipócrita porque se o legislador quisesse, com efeito, proteger o embrião, tomaria medidas mais eficazes que possibilitassem às mulheres evitar gravidezes indesejadas e não simplesmente tratar o assunto de forma unilateral. É verdade que muito se avançou no tocante a isso, pois já houve tempos em que um conjunto de fatores sócio-culturais impelia as grávidas a cometerem aborto em nome da honra, como na Espanha do nacional-catolicismo, onde se diferenciou filhos legítimos de ilegítimos, se proibiu a investigação de paternidade, o divórcio, a venda de produtos anticonceptivos e, por fim, a própria esterilização, criando todo um quadro social que contribuía para a realização em larga escala de abortos. Discriminatória tendo em vista que as mulheres que possuem condições sócioeconômicas mais favoráveis recorrem aos países nos quais o aborto não é visto como um delito. Já as mulheres das classes mais humildes se veem relegadas ao descaso, tendo de se submeterem a condições torpes de abortamento. O aborto é tido como delito mais ainda para essas classes, tanto no sentido de serem as mulheres humildes que terminam sendo as mais penalizadas como também no sentido cultural de que ainda são elas que enxergam a prática do aborto como ilegal. Cruel, pois a proibição do aborto implica, na maioria dos casos, em sofrimento infligido às mulheres pela imposição de uma gravidez inesperada que impactará sua vida de formas negativas imprevisíveis e, em caso de se decidir pelo aborto, fá-lo-á sob condições que atentam contra a sua

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integridade físico-moral e até a sua vida. Por fim, machista, porque muitos defensores da criminalização do aborto são homens, ou seja, indivíduos sem a mínima sensibilidade e empatia pelo aborto, uma vez que eles jamais engravidarão e enfrentarão essa experiência.

“A proibição do aborto implica, na maioria dos casos, em sofrimento infligido às mulheres pela imposição de uma gravidez inesperada que impactará sua vida” Tratando dessa matéria, os modelos de regulamentação do aborto possíveis para o direito penal são três: o da proibição sem exceções, o das indicações e o do prazo. No modelo das indicações, permite-se o aborto estritamente quando estão presentes certas condições que o tornem indicado. Na indicação médica ou terapêutica, a mais adotada, a interrupção da gravidez é permitida quando esta oferece riscos à vida da mãe; na indicação ética, tendo sido a gestação fruto de violência sexual, recomenda-se o aborto; na indicação eugênica, a fim de evitar dar à luz a um filho com complicações físico-psicológicas, também se excluiria a ilicitude do ato abortivo; por fim, na indicação social, se a gravidez traz grande aflição ou complicação, por exemplo, a uma família de condições humildes que já tem um número conside-

rável de filhos. Todavia, este modelo se revela demasiado limitado, em outras palavras, prende-se exclusivamente a hipóteses restritas. No modelo do prazo, o aborto é descriminalizado contanto que seja feito por um médico e no começo da gravidez. Quando se diz começo da gravidez se quer dizer, mais precisamente, durante as primeiras doze semanas, haja vista que dentro desse prazo o embrião não possui atividade cerebral e ainda não apresenta sequer traços humanos. Além disso, recomenda-se a interrupção da gravidez no seu início com o fim de diminuir a probabilidade de ocorrência de acidentes fatais, probabilidade esta que supera a de acidentes subsequentes ao parto. O modelo do prazo é entendido como mais vantajoso se comparado ao das indicações. São duas as vantagens: legalizado nas doze primeiras semanas, o aborto é estendido a todas as mulheres incondicionalmente; e, assim, contornamse os abortos realizados clandestinamente e seus riscos. Desenvolvidas as considerações pertinentes, somos levados a uma reflexão de viés pragmático: se o Direito Penal preza pela verdade e justiça materiais, e não pelos critérios dogmaticamente formais, o que teria de se levar verdadeiramente em conta é se existe ou não um conflito real entre a mãe e o feto, estabelecendo uma abordagem apropriada para cada caso. É o que se revela mais sensato em matéria de aborto. É preciso perceber que essa discussão se encontra esgotada, andando em círculos, pois a tendência é de assim continuar enquanto a mentalidade coletiva for construída sobre pontos polêmicos, controversos e subjetivos como a religião, a sexualidade e o papel das mulheres na sociedade contemporânea. Tanto o é que os avanços já observados podem ser relacionados à diminuição da força da religião, à igualdade sexista e às lutas feministas. A verdade é que o que se encontra em pauta é o caráter imoral do aborto, pois, acima de tudo, está a discussão sobre uma vida em potencial. (Baseado no artigo intitulado “El aborto en el Derecho penal español”, de Enrique Gimbernat Ordeig, publicado no diário El País dos dias 2, 3 e 4 de dezembro de 1977)

*Igo é pesquisador e estudante do 4º período do curso de Direito da UFPB.


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Direitos Humanos

TRIBUNAL POPULAR DA TERRA: (re)problematizando os direitos humanos Por Alex Jordan e Eduardo Fernandes*

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emos vivenciado a uma incessante explicitação das contradições sociais, econômicas, políticas e culturais que se têm manifestado nas distintas esferas da realidade. Por séculos, foram acumulados conflitos considerados “periféricos” de toda ordem, que engendraram várias reivindicações, resistências, disputas, retrocessos e avanços, os quais postergam, ad infinutum, a satisfação mínima destes clamores. Neste cenário, surgem os movimentos sociais que, enquanto sujeitos coletivos, lutam para garantir os postulados da democracia, bem como são portadores de valores de justiça social e de igualdade de oportunidades e direitos, através do rompimento de paradigmas, protagonizando protestos e lutas que ensejam nas transformações sociais para a concretude dos direitos humanos. O quadro social brasileiro e, de uma forma geral, o latino-americano - marcados por fortes injustiças - explicitam a complexidade dos desafios, sendo irrefragável a importância das mobilizações populares e do Direito para a concretização dos direitos humanos. Todavia diante de um cenário de violações estruturais cometidas pelo próprio Estado - a atuação e falsa percepção do Direito enquanto objeto exclusivo dos trâmites internos ao Poder Judiciário é insuficiente. Neste ano, no dia 25 de outubro, no auditório da antiga Faculdade de Direito da Universidade Federal da Paraíba, foi realizado, pela primeira vez, o Tribunal Popular da Terra no estado, que reuniu movimentos sociais, organizações populares, assessorias jurídicas populares e defensores/as de direitos humanos comprometidos com as temáticas quilombola, indígena, dos atingidos por barragens e dos conflitos agrários. O Tribunal Popular da Terra (TPT) constitui-se num espaço de confluência entre os movimentos sociais que, cotidianamente, enfrentam um processo maciço de criminalização arquitetado - entre outros segmentos - pelos grandes meios de comunicação e uma minoria dominante amalgamada à nossa formação econômica, política, cultural e societária. O TPT tenta expor as entranhas do dito e escrito Estado Democrático de Direito, que está demasiadamente eivado de vícios que atentam contra os lastros da própria democracia. Em um espaço como o Tribunal Popular, faz-se perceber que a luta pelos direitos humanos não pode ficar adstrita ao combate aos efeitos das violações; necessita-se, pois, trazer ao banco dos réus o próprio Estado que, reiteradamente, através de ações comissivas e omissivas, viola, de forma estrutural, os direitos fundamentais e humanos consagrados na Constituição Federal de 1988 e nos tratados internacionais. As ações empreendidas pelo TPT trazem à tona a necessidade de pontificar o lugar de nossa atuação no cenário de concretização e problematização conceitual dos direitos humanos. O conceito de tais direitos, dada a sua importância no cenário global e local, comporta várias significações que, às vezes, até se contradizem. Destarte, para nortear a nossa prática, é fundamental delimitar muito bem nossos propósitos e apostas neste cenário de disputa.

“O TPT tenta expor as entranhas do dito e escrito Estado Democrático de Direito, que está demasiadamente eivado de vícios que atentam contra os lastros da própria democracia” A concepção de direitos humanos possui vertentes distintas que se contradizem e/ou complementam. Nesta celeuma conceitual, segundo o paradigma teórico de HERRERA FLORES (2009), destacam-se as vertentes liberal-individualista e crítico-dialética. A primeira preconiza que os direitos humanos são princípios, normas e valores universalmente reconhecidos como imprescindíveis para uma salutar convivência humana. Sua aceitação assenta -se na compreensão de que os direitos humanos estão fundados na igualdade de todos os seres humanos, detentores de um mesmo conteúdo de dignidade. Sob os postulados da supracitada teoria, os direitos humanos são uma realidade já alcançada, ou seja, temos os direitos antes mesmo de dispormos das condições materiais para o seu exercício, consoante preceitua o art. 2º da Declaração Universal de Direitos Humanos: “todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente declaração”. Nos termos dessa perspectiva liberal, ocorre uma profusão de direitos inócuos, dado que, por ausência de condições, a maioria da população mundial não pode exercê-los. Todos os problemas lastreados nos ditames de uma teoria liberal-tradicional dos direitos humanos instigaram a irrupção de uma nova problemática, qual seja a necessidade de um referencial teórico que englobe os contextos concretos, em detrimento da demasiada abstratividade dos documentos internacionais. Nesta linha de análise, a teoria crítico-dialética aduzida por HERRERA FLORES propõe o entendimento dos direitos humanos enquanto processos que são perenemente ressignificados e (re) inventados pelas lutas populares empreendidas pelos movimentos sociais e organizações popu-

lares. Outras perspectivas teóricas sinalizam também os direitos humanos na complexidade de temas como o multiculturalismo, do panafricanismo, dimensão asiática, pósmodernidade de combate, entre outras dimensões que evidenciam o caleidoscópio da linguagem em torno do conceito da dignidade humana. Portanto, os direitos humanos não são um dado hermético, mas um construído histórico, um resultado sempre provisório das lutas que os seres humanos encetam para a consecução do acesso às condições necessárias à vida. Destarte, a Constituição e os Tratados Internacionais não são os responsáveis pela criação de tais direitos: confundi-los com os direitos positivados na ordem jurídica nacional e internacional seria (re)cair, ingenuamente, em uma falácia positivista. Todavia, não podemos olvidar a importância destes instrumentos enquanto garantia jurídica e, por conseguinte, para a plena efetivação dos direitos humanos, visto que os movimentos sociais buscam bens para usufruir um meio digno de vida e as normas jurídicas resultantes dessa persecução engendrarão a garantia desses bens a duras penas conquistados. Para ler: HERRERA FLORES, Joaquín. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.

*Alex é graduando em Direito pela UFPB e integrante do Núcleo de Extensão Popular - NEP Flor de Mandacaru / Eduardo Fernandes é professor do Departamento de Ciências Jurídicas da UFPB.

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Direitos Humanos

A questão quilombola para além do artigo 68 Por Tancredo Gomes Fernandes*

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uando se fala em comunidades quilombolas, poucos se perguntam sobre qual sua verdadeira definição e, mais do que isso, averiguam se a definição posta legalmente tem o significado real do que seja um quilombo. O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias assevera, em seu art. 68, que é reconhecida a propriedade definitiva aos remanescentes das comunidades dos quilombos. Mas como reconhecer a propriedade definitiva se não há um conceito definido? Daí parte-se não só para uma pesquisa de dicionário, mas para um verdadeiro estudo histórico e antropológico, pois, para além do senso comum (que limita o quilombo a áreas de refúgio e concentração de escravos), percebe-se que a formação dessas comunidades tradicionais abrange também aquelas advindas da doação e compra de terras pelos próprios escravos, como também pela conquista do território através da prestação de serviços em tempos de guerra. O quilombo, como o de Palmares, se constituiu em um verdadeiro Estado Africano em pleno território brasileiro, graças ao seu sistema de organização: mais do que um espaço de ocupação de ex-escravos ou de descendentes de escravos, os quilombos se constituíram em bases de sobrevivência e suas reminiscências trazem consigo esse mesmo fim, dado o histórico de omissão e exclusão de direitos por parte do estado brasileiro. Uma das primeiras menções acerca dos quilombos vem do Conselho Ultramarino Português, em 1740, que os conceituou como “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco,

em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões neles”. A partir da descrição, o Conselho estabelece requisitos para que seja distinguido um grupo de escravos de um quilombo. Ainda, há resquícios históricos que impunham penas aos que se agrupavam dessa maneira: uma dessas punições era marcar no escravo um “F” com uma espada aquentada. Mas o buraco é mais profundo. O estado brasileiro sempre tomou posições que inviabilizaram, por exemplo, o acesso à terra por parte dos escravos. Quando soam as primeiras “conquistas” abolicionistas, como a Lei Eusébio de Queiroz, o legislador brasileiro logo aprovou um conjunto de leis que estabeleciam a compra como único meio de acesso à terra, esta chamada de Lei de Terras, que fora promulgada 14 dias após a “Lei para inglês ver”. Assim, não foi a canetada de Isabel que permitiu uma melhor qualidade de vida aos negros, pois eles continuaram sem condições de sobreviver e de desenvolver em terras devolutas alguma renda, pois a compra era impossível para quem mendigava um pão. O tempo passa, mas no Brasil pouco é feito. Quando Ulisses deu o grito conclamando a Constituição Cidadã, talvez Penélope acreditasse no seu devaneio, mas muitos tinham a certeza que seria mais uma lei a empoeirar dentro de um baú. Sim, foi uma conquista o art. 68 do ADCT, promulgado em 1988, cujo decreto regulamentador só adveio quinze anos depois, em 2003, e que, mesmo assim, é objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn), no Supremo Tribunal Federal, proposta pelo antigo Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas (DEM). Sim, é uma con-

quista a realidade de um estado como a Paraíba, que tem 35 comunidades quilombolas identificadas, mas apenas uma com propriedade definitiva outorgada. Sim, são conquistas as políticas públicas para quilombolas no Brasil, que distribuem migalhas a comunidades historicamente excluídas de investimentos. Estende-se ao processo histórico de exclusão a burocracia submetida às comunidades quilombolas para que tenham direito àquilo que está posto em lei. Faz-se necessário um emaranhado procedimento e, além disso, é obrigatório que o quilombola se afirme como tal, ou seja, que diga, frente aos técnicos, “SOU QUILOMBOLA”, mesmo sem se identificar com o significante. Na práxis da atividade extensionista, percebe-se o quanto foi autoritário o legislador ao impor um significante que nem todos conhecem, mas do qual, contudo, advém um significado compartilhado. Infelizmente muitos se aproveitam dessa falha semiótica em benefício dos que não querem a terra a fim de prejudicar quem nela vive, planta, colhe e constitui suas famílias. A falha brutal não atinge o conceito em si, mas o significante imposto por lei, que dificulta o andar do processo de titulação das terras quilombolas, que por si só já é lento o bastante para garantir o direito efetivo das comunidades negras a terem a propriedade definitiva de suas terras.

*Tancredo é estudante da graduação em Direito pela UFPB e integrante do Núcleo de Extensão Popular - NEP Flor e Mandacaru.

“Estende-se ao processo histórico de exclusão a burocracia submetida às comunidades quilombolas para que tenham direito àquilo que está posto em lei. Faz-se necessário um emaranhado procedimento e, além disso, é obrigatório que o quilombola se afirme como tal, ou seja, que diga, frente aos técnicos, „SOU QUILOMBOLA‟, mesmo sem se identificar com o significante” Página 10


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Opinião

Pensar as fronteiras: a exceção soberana e os limites discursivos do Estado de Direito “Um dia, a humanidade brincará com o direito, como as crianças brincam com os objetos fora de uso, não para devolvê-los ao seu uso canônico e, sim, para libertá-los definitivamente dele.” (Giorgio Agamben) Por Talles Lincoln*

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m 1922, em sua obra Politische Theologie, Carl Schmitt definiu soberano como “aquele que decide sobre o estado de exceção”. Para além da problemática decorrente da posição de falante do regime nazista (gostaria de lembrar que o ponto de vista de quem fala é um efeito retroativo do ato de fala que performativamente o constitui) e para além da querela inacabada com Hans Kelsen – tão preciosa e, por vezes, incompreensível para o direito ocidental moderno de nossas faculdades liberais, a teorização jurídica do estado de exceção feita por Schmitt parece desvelar uma das contradições mais visíveis do aparato institucional do Estado de Direito brasileiro. Se a soberania, enquanto categoria filosófica e política sem a qual cientistas políticos ocidentais não conseguem escrever absolutamente nenhuma linha de texto, reside justamente na fronteira entre o que é “estritamente” jurídico e o que é “meramente” político (Estado de exceção), temos diante de nós um problema de legitimidade. Porque a decisão sobre o estado de exceção, este compreendido na obra de Giorgio Agamben como um fenômeno complexo de suspensão inominada, por certo irrepresentável e indizível, da ordem jurídica vigente, implica necessariamente numa decisão sobre a própria existência da ordem jurídica enquanto tal. Ora, a possibilidade de decidir aquilo que é suspenso no estado de exceção decorre da possibilidade de decidir aquilo que é ordem jurídica. Com efeito, na nossa sociedade ocidental, a ordem jurídica vigente obedece a um sistema constitucional, no sentido de que o ato fundante da ordem jurídica posta é aquele que impõe a Constituição, sendo esta, portanto, não apenas o fundamento da ordem jurídica, mas sua base de validade e legitimidade, sendo o significante que refere os limites da ordem jurídica, isto é, o que está “dentro” e “fora” do Direito. Transportando o debate para âmbito brasileiro, temos uma discreta inadequação teórica, a partir da posição constitucional de três “sujeitos”: o art. 1º da Constituição da República atribui ao povo todo o poder político (parágrafo único) ao mesmo tempo em que fundamenta esse poder na soberania (inciso I); o art. 84, inciso IX, atribui ao Presidente da República a competência para decretar o estado de defesa e o estado de sítio (ficções jurídicas que se aproximam ao máximo do ponto cego entre o político e o jurídico do estado de exceção schmittiano);

por fim, o art. 102 atribui ao Supremo Tribunal Federal (STF) a “guarda” da Constituição. Ao dispor sobre a competência do S T F p a r a “guardar” a Constituição, o limite e o alcance do significado não ficam claros de imediato. O gesto de atribuição ao STF de proferir a interpretação autêntica (para usar uma expressão de Kelsen) em última instância do que é constitucional ou não, concedeu ao STF a definição dos limites de nossa ordem jurídica, tornando a ligação soberania/poder e ordem jurídica um tanto quanto frágil. Ao mesmo tempo em que o Presidente da República é aquele que deve tomar a iniciativa sobre os estados de defesa e de sítio, é do STF a missão de decidir sobre as fronteiras da Constituição e do jurídico. Contudo, enquanto o Presidente da República é diretamente “escolhido” (no que pese o falido sistema representativo, que nunca funcionou, já que não foi feito para funcionar) pelo “povo”, o STF - assim como todo o Judiciário - carece da retórica da representação como instrumento de legitimidade (obviamente, estou aqui me utilizando do discurso hegemônico e liberal do que seria legítimo numa sociedade ocidental moderna). Entrementes, a forma peculiar de composição do STF, isto é, por indicação do próprio Presidente da República, torna a questão um pouco mais complexa. O STF assume a forma de tribunal político na medida em que seus/suas componentes representam, em maior ou menor grau, os interesses políticos daquele /daquela que os/as nomeia. A configuração política do STF na verdade permite uma articulação maior do poder de decidir sobre a suspensão da ordem jurídica pelo Chefe do Poder Executivo, desenhando um elo inominado entre a política do Executivo e a política do Judiciário. No que concerne à própria retórica da definição do alcance e do sentido dos textos normativos constitucionais, é como se o

“O STF assume a forma de tribunal político na medida em que seus/suas componentes representam, em maior ou menor grau, os interesses políticos daquele/daquela que os/as nomeia” Estado de exceção pudesse se transformar inadvertidamente em regra bem em frente aos nossos olhos (à guisa de exemplo, veremos um clímax dessa conclusão no caos que se instalará nesse país durante “os grandes eventos” da Copa do Mundo e das Olimpíadas). Dos três “sujeitos” indicados anteriormente, todavia, a teoria jurídico-política schmittiana pareceu ter minimamente dado conta de pensar dois deles – não soa um tanto quanto curioso que um teórico do totalitarismo tenha debatido uma situação políticojurídica contemporânea à democracia e a o Estado de Direito? – entretanto, parece-nos que um deles e sua atribuição respectiva não foram corretamente previstos. Como o povo e seu poder soberano ficam no emaranhado institucional do Estado brasileiro? De quais fissuras podemos nos utilizar para indagar as deficiências inerentes a esse modelo de Estado e de sociedade? Por fim, qual ruptura necessária vai nos permitir pensar outra forma de fazer política? *Talles é graduando em Direito pela UFPB e integrante do Núcleo de Extensão Popular NEP - Flor de Mandacaru.

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Charge

JCVD O astro belga JeanClaude Van Damme, lutador de Caratê, estrelou inúmeros filmes de ação, dentre eles: O Grande Dragão Branco (1988), Kickboxer – O Desafio do Dragão (1989), Duplo Impacto (1991), Soldado Universal (1992), O Alvo (1993) e Street Fighter (1994). Roteiros clichês (vingança de ente familiar, competições de artes marciais etc.), feitos apenas para aqueles que não gostam de pensar diante da tela e preferem se divertir com muita pancadaria. Tiros, chutes, pontapés, suor, explosões, bandido morto, parente vingado, herói feliz, nada mais. E tudo isso se perpetua até os dias atuais. Os títulos dos filmes falam por si: Até a Morte (2007), Karate (2010) e Jogos Letais (2011).

Apoio

O referido ator chegou a ser escalado, até mesmo, para fazer a criatura monstruosa do filme Predador (1987), o que não vingou. Esse, que não é lá essas coisas, ainda é bem melhor do que todos os citados acima (e é protagonizado por Arnold Schwarzenegger, o 38º Governador do Estado da Califórnia). Diante disso, você arriscaria disponibilizar 97 preciosos minutos de sua vida para assistir a um filme intitulado JCVD (isso mesmo, as iniciais do nome do astro!), estrelado por ninguém menos que Jean-Claude Van Damme e dirigido por um desconhecido diretor francês (Mabrouk El Mechri)? Por incrível que pareça, a obra é excelente!

Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares

A trama ocorre em um assalto com reféns a uma agência dos correios na Bélgica. E, ao contrário do que normalmente aconteceria, Van Damme se envolve no fatídico como ele mesmo e não como um irmão vingativo ou um herói responsável pelo resgate de indefesos. Ele é um homem comum (apesar da fama), com 47 anos de idade e repleto de problemas profissionais e pessoais. Os tiros, chutes e pontapés são meros figurantes de uma realidade tensa, repleta de sentimentos morais e subjetividades. Enfatizo, nesse sentido, um rico e reflexivo monólogo biográfico criativamente inserido no clímax do filme. O carateca, conhecido como “Músculos de Bruxelas”, acertou em cheio quando “interpretou” JCVD (2008). Avaliado no Site The Internet Movie Data Base (IMDb) com a nota 7.3. Merecia mais. Recomendo. É possível que agrade àqueles que gostam dos filmes hodiernos do referido ator e, certamente, será bem recepcionado por aqueles que apreciam um bom thriller alternativo. Caso não agrade ao primeiro público, indico, desde já, como forma compensatória, “Os Mercenários 2” (The Expendables 2), que estreará em 2012 e contará com o maior “elenco-pancadaria” da história do cinema: Sylvester Stalone, Arnold Schwarzenegger, Chuck Norris, Jet Li, Dolph Lundgren, Bruce Willis e Jean-Claude Van Damme! Certamente não faltarão os famigerados tiros, chutes, pontapés, explosões etc.

SALGUEIRO - PE www.conceicaodascrioulas.com.br Página 12

Carlos Nazareno é cinéfilo, amante da boa música, estudante e jurista nas horas vagas.


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