Jornal A Margem nº 4

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Um espaço de diálogo e intervenção social Parahyba - Paraíba - Brasil Ano 2 - Nº 4 - Março/Abril de 2012

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O CASO DE PINHEIRINHO A decisão do Estado de preterir uma dezena de credores da massa falida da Selecta à centenas de famílias atentou não só ao direito à moradia como também a uma série de dispositivos que garantem a dignidade da pessoa humana. O caso de Pinheirinho responde uma emblemática pergunta: a quem o Estado serve? E nos faz refletir se o mesmo é democrático e de direito. » Página 3 Direitos Humanos

Editorial

Das cinzas do tribunal renasce a mulher honesta » Página 2 Opinião

Rio + 20: da preocupação à angústia » Página 5 O Estado de Direito entre o passado e o futuro por Luigi Ferrajoli » Página 7 O Constitucionalismo como substitutivo de Deus na sociedade pós-metafísica: exercícios de ultrapassagem política da 'Metafísica Constitucional' a construção emocional da justiça e da norma jurídica

A memória que não tomba e a história que não se escreve

» Páginas 8 e 9

João Pedro Teixeira, líder das Ligas Camponesas de Sapé, barbaramente assassinado no dia 2 de abril de 1962. Elizabeth Teixeira, viúva, presa e perseguida durante a ditadura militar. Os fatos históricos, a memória, o protagonismo...

» Página 11

» Página 4

O Educacionismo de Cristovam Buarque

Assessoria Jurídica Popular

NEP: ASSESSORIA JURÍDICA, EDUCAÇÃO POPULAR E LUTA POR TRABALHO » Página 9 Opinião

A INSUPORTÁVEL NECESSIDADE DE BATMAN E CORINGA » Página 10 Patrocínio

Opinião

8 de março: parabéns, flores, estupros e mortes

» Página 6 Cinefilia!

Carlos Nazareno analisa em Cinefilia a comédia “Mamãe faz cem anos” (1979), filme que retrata as peripécias de uma família que se reúne para comemorar o centenário de sua matriarca em pleno regime Franquista. O longa foi vencedor do prêmio especial no Festival de San Sebastián e do prêmio da crítica no Festival de Bruxelas. » Página 12


Ano 2 ● Nº 4 ● Março/Abril de 2012

Editorial

Das cinzas do tribunal renasce a mulher honesta Não é de se estranhar que uma série de avanços nas permite o reconhecimento da mulher na sociedade. Não decisões dos tribunais brasileiros possam ser postos abai- permite que direitos seus possam ser garantidos, que elas xo pelo conservadorismo que ainda impera sob as togas possam ocupar cargos no mercado de trabalho e que tedos ministros. Quem não se lembra do conceito de nham liberdade para decidir sobre o seu corpo. O estupro “mulher honesta” presente no se banaliza ao ponto da mídia Código Penal Brasileiro até pouco paraibana expô-lo em pleno altempo? Antigamente, ou melhor, moço. Depois disso, jovens do há poucos anos, se uma mulher município de Queimadas se sendedicasse sua vida à prostituição, tem no direito de dispor do corpo ela não era reconhecida pelo Esde algumas mulheres, que violentado como honesta, ou seja, não tadas sexualmente ainda passam tinha nenhum princípio, honra ou pelo constrangimento social envalor, desrespeitava os bons cosquanto derramam lágrimas pela tumes, sendo esses aqueles promorte de duas amigas também vindos da sociedade machista e estupradas. Quais serão os próxipatriarcalista, por isso poderiam mos fatos? Esperamos não espesofrer qualquer violência sexual, rar. Esperamos que não venha pois prostitutas, assim desonesuma Maria da Penha para dar um tas, não seriam protegidas pelo beliscão no Estado para que ele tipo penal denominado de estuatente que a violência doméstica pro. Felizmente, mudanças foé um atentado contra a dignidade ram feitas na legislação, mas mulher. Esperamos que não A decisão do STJ regrediu da parece que nem todos os juízes aconteçam outros casos, mas andaram aos mesmos passos do no tempo ao ressuscitar na pela suporte dado as vítimas, ordenamento. A título de exemplo pela quantidade de Delegacias temos a decisão recente do STJ sua jurisprudência o concei- da Mulher e abrigos, pelas camque absolveu um homem acusapanhas de prevenção e consciento de mulher honesta” do de estuprar três meninas de 12 tização, vamos ficar a ver navios anos. Segundo o Código Penal, que demoram séculos a passar. existe a presunção de violência no ato sexual, quando a Os danos causados pelo judiciário conservador, as vítima for menor de 14 anos. A decisão do Superior Tribu- marcas da violência doméstica, os efeitos do estupro são nal de Justiça regrediu no tempo ao ressuscitar na sua mais que constrangimentos a mulher, são penas que elas jurisprudência o conceito de mulher honesta, dado que carregam pela vida. Somente a luta e a conscientização absolvição se baseou no fato que as meninas já pratica- são capazes de alterar a atual conjuntura de opressão. De vam relações sexuais. Absurdamente, o Tribunal de Justi- nada adiantam as leis que ficam a empoeirar nos códigos ça de São Paulo, sobre o mesmo caso, afirmou que as e os discursos vazios de inserção da mulher no mercado vítimas por se prostituírem não eram consideradas inocen- de trabalho, se elas continuam sofrendo os mesmo drates nem ingênuas. mas de séculos passados. As atuações nas cortes brasiInfelizmente, o buraco é bem mais embaixo. Não só as leiras que agasalham o abuso à mulher não podem ser decisões dos grandes tribunais como também das varas e apagados com uma borracha. Não há justificação para o comarcas do nosso país ainda ecoam uma tradição de injustificável. Não há brechas para a injustiça. . exclusão aos direitos da mulher. Postas historicamente Por Tancredo Fernandes abaixo dos homens, elas vivem dominadas seja pelo pai, Editor-geral namorado, irmão ou avô. Uma sociedade machista não

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Este jornal é uma publicação bimensal produzida por estudantes do curso de Direito da Universidade Federal da Paraíba e outros colaboradores. As ideias aqui expostas não necessariamente refletem a opinião da equipe editorial.

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EXPEDIENTE

Editor-geral Tancredo Fernandes Revisor Alex Jordan Coluna Cinefilia! Carlos Nazareno Coluna AJUP

Equipe de editores/as Alex Jordan Breno Barros Caroline Pereira Delosmar Magalhães Douglas Pinheiro Hannah Lima Ive Fróes Luiz Victor Sterfesson Higo

Liziane Correia Entre em contato com a equipe: www.jornalamargem.com.br


Ano 2 ● Nº 4 ● Março/Abril de 2012

ESPECIAL

O CASO PINHEIRINHO: como a destruição de milhares de moradias expôs a fragilidade do nosso Estado Democrático de Direito Breno Barros*

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ão José dos Campos, domingo, dia 22 de janeiro de 2012. Pinheirinho caiu. O maior assentamento urbano da América Latina foi invadido e vilipendiado. Os autores da agressão: policiais militares supostamente apoiados pela Justiça Estadual e sob a administração do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB). Cerca de 2 mil policiais militares armados, helicóptero, cavalaria e covardia. Na outra ponta do front, idosos, crianças, mulheres e homens, moradores de todas as idades. Acuados e sem opção, cada um foi expulso de sua casa. As violações continuaram. Milhares de residências foram demolidas juntamente com os bens de seus proprietários que mal tiveram tempo para retirar os próprios documentos. Qual foi o crime que cometeram para que fossem tão violentamente castigados? Ocuparam uma área de mais de 1 milhão de metros quadrados que integrava a massa falida da Selecta, empresa ligada ao megaespeculador Naji Nahas, o mesmo que conseguiu quebrar a bolsa de valores do Estado do Rio de Janeiro no final dos anos 1980. Ele aparece envolvido em diversas “maracutaias” tendo sido até preso em sua residência pela Polícia Federal, no dia 8 de julho de 2008, durante a Operação Satiagraha, que investigou esquemas de crimes financeiros e lavagem de dinheiro. Quem são os credores dessa massa falida? O jornalista Ricardo Boechat citou alguns dos supostos credores asseverando que certamente não se tratava de nenhum movimento social. “Sou capaz de dar a minha cara a tapa se tiver (entre os credores) alguma „Viúva de Taubaté‟, algum asilo de velhinhos de Niterói, alguma „Casa da Criança com Aids‟ de Maceió”. Boechat complementa: “São bancos, são grandes grupos, porque só grandes grupos, grandes bancos se metem com megaespeculadores”. Uma pergunta para refletir: Era interessante em São José dos Campos, uma das cidades mais desenvolvidas de São Paulo, a presença de milhares de sem-teto ocupando Pinheirinho? Faz-se necessária uma reflexão sobre o Direito. No ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição Federal ocupa posição de destaque frente às demais normas. O princípio da proteção à dignidade humana é (ou deve ser) o parâmetro norteador para toda decisão jurídica. O que houve em São Paulo? Havia espaço para exceções à proteção da dignidade? De fato os moradores de Pinheirinho não foram vistos como seres humanos detentores dos direitos amplamente assegurados pela Constituição. A propriedade privada que favoreceria um pequeno grupo de interessados estava acima de qualquer expectativa de direito daqueles “vândalos”, “invasores”, “vagabundos”, “marginais”, “drogados” e

“preguiçosos”. Qualquer adjetivo cabe para delimitar quem pode ou mesmo merece ter os direitos violados. Vale ressaltar que não era toda a Justiça, nem toda a imprensa ou toda a classe intelectual que em uníssono ordenava o massacre. Nas palavras de um dos advogados dos moradores a indignação se resumia em: “Nós ganhamos, mas não levamos”. Ele se referia à liminar da Justiça Federal apresentada antes da derrocada de Pinheirinho, porém, completamente ignorada pela Justiça Estadual de São Paulo. No trânsito se aprende que “em caso de dúvida, não ultrap ass e”, m as para as autoridades que promoveram o massacre de Pinheirinho, nada melhor do que a dúvida para legitimar o atropelamento. Est udant es t om ar am as vozes da imprensa independente para divulgar o que não aparecia na Globo, SBT, TV Gazeta etc. O povo foi massacrado. Não usaram ap e n as ar m as menos letais. A desocupação não foi um “sucesso”, como alardeou Alckmin. As famílias estavam sofrendo, sem quartos, banheiros, comida, sendo constantemente ameaçadas. A Polícia, que segundo a Constituição Federal existe para proteger a sociedade através da preservação da ordem pública e da incolumidade (isto é, isenção de perigo) das pessoas e do patrimônio, agiu na contramão de tudo isso. Uma rápida busca no Youtube traz imagens claras de que a “incolumidade” se restringia ao texto constitucional naquela situação. Destruídas as casas, pontos comerciais, templos, o galpão comunitário e exiladas as famílias em abrigos que mais pareciam campos de concentração; os que se solidarizavam com os brasileiros do Pinheirinho se perguntavam: Em que democracia nós vivemos? O sonho acabou? O jurista André Ramos, no curto trecho de sua fala exibida pela Rede Globo, destacou que as vias de negociação não haviam sido esgotadas, o que já seria um motivo para evitar a expulsão dos moradores. Mesmo os que não conhecem as leis, mas têm o mínimo de solidariedade, conseguem imaginar que não se destrói as casas de mais de 8 mil pessoas sem gerar um caos social.

No trânsito se aprende que “em caso de dúvida, não ultrapasse”, mas para as autoridades que promoveram o massacre de Pinheirinho, nada melhor do que a dúvida para legitimar o atropelamento”

Não podemos responsabilizar unicamente a Justiça de São Paulo, na pessoa da juíza Márcia Faria Mathey Loureiro, que determinou a reintegração de posse do terreno de Pinheirinho, ou o governador Geraldo Alckmin, nem mesmo os PMs. Podemos então responsabilizar o Estado de Direito que assegura a propriedade privada – esquecendo de sua função social - e que diz que decisão judicial deve ser obedecida? Em 2004 já havia uma comunidade ocupando aquela área e durante todo este tempo a proteção do Estado aos que careciam de moradia não foi assegurada. O Governo Federal não pode ficar isento da lama que manchou nossa história recente. Uma vez que nossos gestores, nossa Justiça, ou mesmo nossa sociedade civil organizada assiste de mãos atadas à violência movida por interesses econômicos; toda filosofia parece vã. Podemos imaginar que a solução virá de fora, que algum mecanismo internacional consiga fazer o que não fizemos em nome da humanidade ou que o Transcendental se irrite com o caos na Terra e estabeleça sua ordem. Por enquanto, dor.● * Breno Barros é estudante da Graduação em Direito da UFPB.

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DIREITOS HUMANOS

A memória que não tomba e a história que não se escreve Douglas Pinheiro Bezerra*

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á um grande equívoco acerca da história. Não propriamente “na” história, mas na forma como esta é concebida, narrada e especulada. O “histórico”, dizem, estaria na grandeza dos acontecimentos, na eloquência dos líderes, na empreitada civilizatória ocidental e numa engenhosa articulação que leva a humanidade ao irremediável progresso apaziguador. Dizem. Mas há, também, os que historicizam a realidade com os pés no chão, sem aquele brilho hipnótico que se enxerga nos olhos de outrem. Os que se veem como construtores do mundo, de uma realidade cheia de contradições, “fazedores da história”, por “pequeninos” que sejam. Enfrentar a narração consensual dos acontecimentos e as interpretações sorrateiras da realidade, as quais nos costumam ser empurradas “goela abaixo”, como verdadeiros dogmas, constitui uma tarefa difícil, mas não escapa à práxis política de muita gente corajosa. Gente viva e morta. Perseguida, exilada e assassinada. Gente pronta para desmascarar as pretensas benesses de um regime golpista que, contraditoriamente, pretendia conduzir nossas instituições sociais e políticas a um intangível grau de desenvolvimento econômico e de experiência democrática. Dona Elizabeth Teixeira, 87 anos, faz parte dessa gente. Mãe de onze filhos, boa parte deles mortos em trágicos acontecimentos; viúva de uma das maiores lideranças de trabalhadores rurais do período pré-64, o camponês João Pedro Teixeira; presa e perseguida pelo regime militar; um dos símbolos da memória da luta por reforma agrária do país. O terrorismo de Estado (que, na cabeça de alguns, jamais existiu) não conseguiu se esquivar de todos os venenosos espinhos de uma delicada flor de insubmissão. Mas o reconhecimento do protagonismo de Elizabeth Teixeira não se esgota numa reflexão meramente personalista. A memória de seu sofrimento é a memória de todo um movimento social ferrenhamente oprimido pela ditadura militar. As Ligas Camponesas, que situaram a Paraíba na pauta de reformas estruturais do Estado, eram um “perigo”. Pretendiam o respeito às normas trabalhistas no campo, a sindicalização dos camponeses, a abolição de práticas medievais de exploração do trabalho e a realização de reforma agrária como estratégia de combate à miséria rural e de incentivo à produção policultora. Quanta subversão!

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O que se sucede à barbárie institucionalizada é um primoroso exemplo de que os fatos históricos e as relações sociais são narrados a partir da perspectiva de quem vence. A memória do campo não é a dos movimentos de trabalhadores que contestavam uma secular estrutura fundiária concentradora, tradicionalista e violenta. Os nomes das ruas, avenidas, lugares públicos e conjuntos habitacionais não são os das vítimas dessa estrutura e do golpe militar. A “história”, ao contrário, é a da “revolução verde”, da suposta modernização do latifúndio promovida pelo regime. Os vencidos apenas cravam seus nomes nas lápides dos túmulos os quais habitam – quando habitam – enquanto os cúmplices e líderes da carnificina são acolhidos como honrados “heróis” nacionais. A memória induz um processo de identificação, de construção de sentido-comum. Como propõe Michael Pollak, ela pretende gerar coesão dentro da narrativa histórica e o sentimento de pertencimento dos indivíduos que compõem um núcleo social em relação ao seu passado, com vistas ao presente e ao futuro. A memória, portanto, pode ser a dos vencidos e a dos vencedores, a dos dominantes e a dos dominados. Ocorre, no entanto, que o resgate da memória dos oprimidos significa a possibilidade de narração contra-hegemônica da história, o rompimento com juízos consensuais acerca da realidade e do significado da atuação política de determinados grupos (que pertencem a determinadas classes). É assim que os atuais movimentos de luta por reforma agrária resgatam sua memória no sofrimento de seus líderes; na repressão institucional a organizações como as Ligas Camponesas, bem como na sua pauta de reivindicações e modelo de organização; e nas mazelas deixadas pela arcaica organização fundiária brasileira, que jamais prescindiu da violência e da sobre-exploração do trabalhador. A imagem de Dona Elizabeth Teixeira frente ao túmulo do seu marido assassinado a mando de proprietários de terras será sempre um espelho do passado voltado para um presente ainda opressor, obscuro e pouco questionado pela sociedade. Uma sociedade urbana cuja consciência (produzida inconscientemente) parece ser indiferente à situação do trabalhador rural, como se campo e cidade não estivessem dialeticamente relacionados. Mas essa história falta ser escrita.● * Douglas Pinheiro Bezerra é estudante da Graduação em Direito da UFPB.

João Pedro Teixeira: líder dos trabalhadores da terra, sua luta era em prol dos agricultores; morreu em 2 de abril de 1962, por defender a vida do seu povo camponês”

Ninguém tá pras jornada, Direito Das que exaurem a última força Do pobre fadado a emprestar as ouça Pra mando acatar sem nem enjeito. Se martelam o ritmo, ditam o traçado, Se maquinam formas de manter camadas, E nós cativos, no cabo da enxada, Haverá de ter levante no roçado! João, líder será e haja brado.

Trabalhadores do sertão, vê bem, Direito Por entre as dores da laboração, Pensam senão a teu respeito, Do dia que estenderá a sua mão. Sustar o cambão, dar fim nos feudos E nesse arremedo de trabalho Que não é , é escravidão. O camponês interligado, seguindo resoluto, Findo o caminho que é pôr abaixo a exploração, Quer questionar somente o se e quão Conhecerá a medida do justo. Luiz Victor do Espírito Santo Silva


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Opinião

Rio + 20: da preocupação à angústia Por Yoseph Willy Maranhão de Brito Bezerra*

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á vinte anos, o Brasil sediou a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CENUMAD), que reuniu 178 governos e mais de 100 chefes de estados ou de governos, que segundo Guido Soares,“foi a maior conferência já realizada pelas Nações Unidas até aquele momento histórico”. Esta serviu para sedimentar o conceito de Desenvolvimento Sustentável, proposto pela comissão Bruntland no relatório “Nosso futuro comum” lançado em 1987, além de ter contribuído como norte para todas as demais conferências relacionadas à temática do meio ambiente, mudanças climáticas, e economia verde. Do ponto de vista político a CENUMAD produziu documentos importantes tais como a Convenção da biodiversidade; Convenção do Clima; Declaração de princípios sobre florestas; bem como a Agenda 21. No tocante a política ambiental brasileira foi também importante para retificar a má impressão deixada em 1972, na conferência de Estocolmo, quando o Brasil, na época governado pelos militares, defendeu uma política de desenvolvimento a qualquer custo. Ficando famoso o slogan adotado pelo Brasil de que “a industrialização suja é melhor que a pobreza limpa”. Desde então o Brasil tem avançado na legislação ambiental, com a criação de leis, tais como: a Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998); a Lei de Educação Ambiental (Lei nº 9.795/1999); a Lei de Unidades de Conservação (Lei nº 9.985/2000), entre outras. Destaque também para a conclusão da Agenda 21 nacional em 2002. Pois bem, o Brasil sediará em junho a Rio + 20, evento que irá servir como uma espécie de balanço do que foi feito nesses vinte anos da CENUMAD, além de analisar os resultados e traçar novas metas para defesa do meio ambiente, de uma economia sustentável a nível global e eficiente do ponto de vista energético. Infelizmente, apesar de alguns avanços, como os supracitados, os resultados desses vinte anos ficaram muito aquém das metas traçadas. Ao invés de uma evolução, o que se percebeu foi uma involução em relação ao meio ambiente, principalmente na última década. Isso devido as recentes crises econômicas que têm afastado o interesse dos países ricos na efetiva proteção do meio ambiente.

Quanto ao Brasil, se por um lado este sediará a Rio + 20, do outro está na iminência de aprovar um novo código florestal, que dentre outras medidas propõe: a anistia de todos os agricultores indiciados por desmatamento até 2008, a redução de áreas de APPs (Áreas de proteção permanente) e a maleabilidade nas regras de existência de áreas de Reserva Legal.

É patente a importância da Rio + 20 para se discutir o que será feito no plano ambiental internacional, contudo o evento não está recebendo a atenção devida. Em solo pátrio, por exemplo, ouvimos mais falar dos preparativos da Copa do Mundo de 2014 do que a Rio + 20. O próprio documento da ONU intitulado zero draft, documento-base das negociações, foi classificado como “tímido e desnorteado” pelo senador Fernando Collor de Mello que apontou a carência de objetividade e metas práticas do documento, que se restringiu, poderíamos dizer, a uma literatura pró-meio ambiente. Collor também chamou a atenção para a importância do número de chefes de estado que irão comparecer. A presença de representantes da Inglaterra e Estados Unidos, por exemplo, não está nem confirmada. A questão não é, segundo o senador, apenas convidá-los, mas convocá-los. Pois mais que uma questão política o problema ambiental virou questão de

sobrevivência, não do planeta, mas nossa. Estudos realizados apontam que o limite aceitável de aumento da temperatura é de até 2 graus centígrados até o final do século. Em contrapartida, se prosseguirmos com a atual matriz econômica e energética e, por conseguinte, com os padrões de poluição e desmatamento, o aumento da temperatura não alcançará um patamar menor do que 4 graus. Nas palavras do professor Sérgio Besserman Viera, durante audiência pública promovida pela Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE) ocorrida no dia 12 de março, mesmo que fosse feito de fato uma revolução no tocante ao modo como exploramos o meio ambiente, ainda assim, pelo que já foi feito, se obteria um aumento de 3 graus centígrados, 50% a mais do que o aceitável. O professor Besserman, fez uma analogia interessante quanto a esse fato: estamos caminhando em direção a uma curva, existe uma placa que aponta que a velocidade máxima é de 100 km/h, no entanto, estamos vindo numa velocidade tal que mesmo que pisássemos com toda força no freio, não transporíamos a curva com velocidade menor que 150 km/h de tal forma que mesmo um hábil condutor correria sério risco de sofrer um acidente, e nesse caso, o automóvel se trata do planeta terra. Já no seu discurso, durante a mesma audiência pública, o senador Cristovam Buarque lembrou que durante a CENUMAD, o problema das mudanças climáticas era um fantasma no plano puramente teórico, mas que hoje já está bem evidente. E que por isso os compromissos não tratam mais de evitar o problema, mas sim de enfrentá-lo. Foi com pesar que o senador disseque a princípio nutriu um sentimento de preocupação, pois se perguntava se o Brasil estava de fato preparado para receber um evento desse porte, e importância. A preocupação, contudo, virou angústia, ao constatar que, infelizmente, o Brasil não está preparado para tal responsabilidade. E note-se que nosso país é tido como exemplo no cenário internacional quanto a questão ambiental. Se o Brasil é rico em seus biomas, não é de se espantar a preocupação dos ambientalistas quanto ao êxito dessa conferência, e mais ainda, quanto ao futuro que a humanidade caminha em direção. O que nos resta, como seres humanos, é torcer pelo sucesso da Rio + 20, apesar dos auspícios negativos.● * Yoseph Willy Maranhão de Brito Bezerraé estudante da Graduação em Direito da UFPB.

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Opinião

8 de março: parabéns, flores, estupros e mortes Por Iara Ágata Avelino*

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uinta-feira, 8 de março de 2012, a cidade acorda pintada de denúncias: “O machismo mata”. Um dia de flores e parabéns sendo relembrado de suas origens.

Esse dia surge na Rússia, no ano de 1917, quando mais de 90 mil operárias da indústria têxtil foram às ruas, em todo o país, no intuito de protestar contra as precárias e injustas condições de trabalho impostas às mulheres naquela época. O cenário político da Rússia, naquele período, era permeado pela tensão, e este episódio histórico de protagonismo feminino acabou ganhando grande aderência das massas nas ruas, transformando-se na primeira greve geral contra o Czar Nicolau II. As origens desse dia são de luta, e não há como negar esse caráter visto que a situação da mulher na sociedade atual, apesar de algumas conquistas históricas, não é das melhores. Negada do direito ao próprio corpo, a mulher tem que recorrer ao aborto clandestino. São mais de um milhão de mulheres realizando anualmente abortos inseguros, dos quais perto de 400 mil terminam em internação. São as mulheres já excluídas socialmente e

aquelas que estão em situação mais frágil, as que morrem por aborto inseguro em maior número: pobres, negras, jovens. Ninguém se lembra da vida dessas mulheres no oito de março? Mercantilizada e coisificada em todos os meios de comunicação, nós mulheres temos que lidar com constantes desrespeitos e violência tanto no ambiente privado quanto no público. Na Paraíba, em 2012, já foram assassinadas 23 mulheres. Ainda hoje, mulheres recebem menos que os homens pela realização dos mesmos serviços, e todo esse cenário se agrava no caso de serem negras ou lésbicas. É para essa sociedade machista e violenta essas flores? Diante desses fatos, várias organizações feministas se movimentaram no dia oito de março em João Pessoa na luta por um projeto de sociedade feminista e popular, sob o tema “Nosso corpo, nosso território”. O Coletivo Desentoca esteve presente na construção e no dia da atividade. Cantos e batuques feministas ecoaram pela Lagoa e pela Universidade Federal da Paraíba. Deixamos nosso recado: o Oito de Março não é para comemoração, flores, chocolates, mas sim um dia para denunciar a situação da mulher na nossa sociedade e reivindicar mudanças, transformação, melhoras. Os muros grafados com a frase “O machismo mata” nos lembram de que ainda temos muitos problemas a resolver. As atividades ocorridas na cidade nos mostram que nem todos/as ignoram isso.●

o Oito de Março não é para comemoração, flores, chocolates, mas sim um dia para denunciar a situação da mulher na nossa sociedade e reivindicar mudanças, transformação, melhoras”

*Iara Ágata Avelino é feminista, estudante da Graduação em Direito da UFPB, integrante do Coletivo Desentoca e do Núcleo de Extensão Popular Flor de Mandacaru.

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O Estado de Direito entre o passado e o futuro por Luigi Ferrajoli Por Igo Bandeira Rolim*

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termo “Estado de Direito” apresenta dois conceitos. Do ponto de vista formal, qualquer ordenamento no qual os poderes públicos são conferidos pela lei e exercidos nas formas e com os procedimentos por ela estabelecidos; do ponto de vista material, aqueles ordenamentos nos quais os poderes públicos estão igualmente sujeitos à lei, não apenas quanto às formas, mas também quanto aos conteúdos do seu exercício. (O Estado de Direito entre o passado e o futuro, tópico 1: Estado legislativo e constitucional de Direito, pág. 417). Cada um dos supracitados conceitos se relaciona diretamente com um dos dois modelos surgidos na Europa, chamados de Estado legislativo de Direito e Estado constitucional de Direito. O primeiro nasceu com o Estado Moderno e afirmou o Princípio da Legalidade como norma de reconhecimento do direito válido. O segundo foi consequência da disseminação, na Europa pós-II Guerra Mundial, de constituições rígidas como normas de reconhecimento do direito válido e do controle jurisdicional de constitucionalidade sobre as leis ordinárias. Na transição de um modelo ao outro, podem-se apontar algumas mudanças importantes no Estado de Direito: 1) Na natureza do direito, cuja positividade abarca desde a lei às normas que regulam os conteúdos da lei, acarretando numa separação entre validade e vigor e uma nova relação entre forma e conteúdo das decisões. No Estado constitucional de Direito, as leis não passam apenas pelos requisitos formais de produção legislativa, mas também pelas normas substanciais quanto ao seu significado, não sendo admitidas leis que contradigam a constitu-

ição. A validade, portanto, é formal e material, diferentemente do Estado legislativo de Direito, no qual a validade estritamente formal assegurava que para uma lei ser admitida na ordem jurídica bastava apenas emanar de uma autoridade competente, o que dissocia a ideia de validade da ideia de justiça ou verdade. 2) No plano da jurisdição, isto é, interpretação e aplicação das leis pelo juiz. No paradigma do Estado Legal, a sujeição do juiz se dava, independentemente de conteúdo ou significado, à lei. No paradigma seguinte, tal sujeição se dá, acima de tudo, à constituição e, somente depois, à lei, que deverá estar em conformidade com a primeira evidentemente. 3) Concernente ao papel da ciência jurídica, o qual deixa de ser meramente descritivo e explicativo, como no paradigma do Estado legislativo de Direito, para ser crítico acerca do seu objeto e metodologia. 4) A respeito da linguagem jurídica, pois as normas técnicas sobre a produção dos atos linguísticos normativos e as normas substanciais sobre os significados e conteúdos agora são codificadas e disciplinadas. Ou seja, regras sobre como se diz o direito e sobre o que o direito pode determinar. Tais mudanças foram consequências tanto de alterações políticas, jurídicas e institucionais como de alterações culturais no senso comum, e o que corrobora para essa afirmação foi a presença, durante a crise de transição de um paradigma a outro no século XX, de regimes autocráticos totalitários como o Fascismo, Nazismo e Stalinismo. Um exemplo claro disso pode ser observado no filme A Onda (Die Welle, versão de 2008 de Dennis Gansel). Através dele, podemos entender como um regime autocrático pode se instaurar de forma mais subliminar e disfarçada do que se pensa quando se trata de uma sociedade ou grupo social carente e desvirtuado, no qual a autocracia vem a propor sanar as mazelas, diferenças e dificuldades. Devido à crise do Estado de Direito, ocorre uma regressão ao direito jurisprudencial de tipo pré-moderno, no qual o direito jorra da sociedade (da turma, em se tratando do filme) como uma alternativa à fonte estatal de Direito. Isso pode ser facilmente comprovado quando se vê cenas de vandalismo, enfrentamentos contra outras tribos, brigas e até exclusão pela causa maior do movimento. Ou seja, tudo o que é feito pelo movimento é válido. Também dotado de saudação, logomarca, uniforme e um líder, o movimento torna-se autossuficiente para ser tomado

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Em crises de transição, são comuns o declínio das codificações estatais e o fim do monopólio da produção jurídica pelo Estado, o que dá abertura a uma ruptura da unidade e coerência e desvalorização das constituições estatais”

como algo à parte da sociedade, inclusive desejando conquistá-la. O líder é posto acima de qualquer constituição ou lei, o que observamos na cena em que o professor pede para levarem o traidor ao palco para ser punido e os alunos obedecem às cegas, em detrimento de qualquer outra fonte normativa, tendo em mente apenas a ideia do poder supremo do grupo sobre os indivíduos. Em crises de transição, são comuns o declínio das codificações estatais e o fim do monopólio da produção jurídica pelo Estado, o que dá abertura a uma ruptura da unidade e coerência e desvalorização das constituições estatais, possibilitando o nascimento de ordenamentos alternativos. Em tempos hodiernos, com a fragilização da soberania dos Estados nacionais, multiplicação e confusão das fontes do direito, a desarticulação do princípio da legalidade, seja formal seja substancial, e o desapoderado papel garantista das constituições estão deteriorando tanto o Estado de Direito legislativo como o constitucional. Aquela experiência real ocorrida em 1967 na Califórnia e retratada na versão de 1981 do filme A Onda, juntamente com os diversos movimentos neofascistas, neonazistas, neosstalinistas e de outros cunhos ideológicos, pode ser um primeiro indício de uma sociedade em crise que leve a uma reformulação de seus atuais dispositivos institucionais e sociais, dentre eles, o próprio Estado de Direito.●

* Igo Bandeira Rolim é estudante de Direito do 5º período noite da UFPB e pesquisador no grupo Direito à comunicação e lutas sociais. Dica de leitura: FERRAJOLI, Luigi. O Estado de Direito entre o Passado e o Futuro. In COSTA, Pietro. ZOLO, Danilo. O Estado de Direito: história, teoria e crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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Ano 2 ● Nº 4 ● Março/Abril de 2012

Opinião O Constitucionalismo como substitutivo de Deus na sociedade pósmetafísica: exercícios de ultrapassagem política da 'Metafísica Constitucional' a construção emocional da justiça e da norma jurídica Por Newton de Oliveira Lima*

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„transvaloração‟ dos valores traçada por Nietzsche indica uma transformação linguistica e simbólica do caráter cultural dos valores, entendidos pelo neokantismo (Gustav Radbruch) e pela fenomenologia (Max Scheler), como entes metafísicos isolados da cultura porque situados acima dela e a direcionando, Schmitt assimila tal acepção crítica aos valores sob um enfoque político. Interpretando a “vontade de potência” de Nietzsche, Schmitt identifica que os valores devem ser concebidos como expressão do poder, recuperando a insinuação kantiana de que os valores são interpretados pelo sujeito, e colocando o sujeito e sua dignidade como núcleo dos valores pela construção de uma racionalidade „moral‟, ele recupera em “Tirania dos Valores” a possibilidade de uma significação política dos valores como vetores de poder, mas sem “demolir” o sujeito e sua dignificação; enfim, Schmitt re-fundamenta o princípio da dignidade sob uma ótica valorativa, para lançá-lo no contexto de uma sociedade secularizada, sem Deus, porém com a esperança de poder re-encontrar Deus e a reboque desta ideia de um “humanismo dignificante” enquanto “cabeça” de uma atividade constitucional produtiva de valores; os valores superiores de uma cultura sem sentido escatológico, cujo cerne, todavia, deve ser a dignidade humana. Vivenciando o paradigma de radical secularização nietzschiano, Schmitt parte para o encontro da acepção de dignidade de Kant e sua acepção de uma racionalidade moral e procedimental, que será recuperada na atualidade pelo procedimentalismo constitucional de Habermas e de Rawls. Os valores constitucionais somente podem ser construídos dentro de um procedimentalismo “moral”, que tenha como valor de fundo a dignidade humana e a capacidade do sujeito de avaliar e re-criar valores, numa acepção de sociedade radicalmente secularizada e politizada, sem Deus, caso se queira um ethos democrático, não absolutista, por conseguinte. O “realismo constitucional” parece encaminhar a discussão sobre a concretização dentro de parâmetros cada vez mais supostamente práticos, fazendo obscurecer as considerações normativas e principiologias que caracterizam tradicionalmente o pensamento constitucional, todavia, o grande representante clássico da politização da interpretação constitucional, Carl Schmitt, ele próprio admite em “Tirania dos Valores”, 1960, a necessidade da volta de uma concepção nuclear de dignidade humana à luz do pensamento kantiano, assim, o que na verdade Schmitt é forçado a admitir é a necessidade de uma acepção normativa 'forte' de Constituição e a primazia dessa sobre o processo político, pelo menos no enquadramento, pelo formalismo, da liberdade política de interpretação

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e concretização da Constituição e suas dissensões ideológicas e de poder. Seguindo a pista de Schmitt rumo a uma retomada da axiologia kantiana aplicável à hermenêutica constitucional, onde se defende o entendimento de uma formalidade procedimental e uma axiologia centrada no discurso democrático pode assegurar a possibilidade de uma ultrapassagem dos percalços que denominaremos de Metafísicos, ou seja, de acordo com a tradição kantiana, não empíricos e não racionais do debate constitucional. Realizar, portanto, a verdadeira ultrapassagem política da metafísica constitucional significa aproximar as posições de Schmitt e Kant no sentido de empreender o combate à retórica política manipuladora e demagógica, ideologias do momento que funcionam como meios de “idolatria constitucional” que colonizam as demandas constitucionais, em um trabalho de afastamento, pela procedimentalização democrática e a axiologia política, desses construtos pseudocientíficos e mesmo não empírico-racionais, que ao invés de esclarecerem, obscurecem a trilha democrática da constitucionalidade. Se os verdadeiros motivos e valores políticos aparecerem através de uma vivência democrática, crítica, discursiva e, portanto, procedimental-substancial da Constituição, isto é, discursivo-axiológico das efetivas bases normativas e valorativas do processo constitucional, poder-se-á cogitar de uma metodologia hermenêutica equilibrada, que afaste a demagogia momentânea, o falso paradisíaco de uma constitucionalização retórica e „salvacionista‟, implicando numa tese de caráter, por fim, não idólatra, mas de uma racionalidade superior, onde a Constituição seja não um Dei ex machina,mas uma carta normativa concretizável de princípios que possam se desenvolver em um horizonte político-axiológico de uma historicidade concreta, elevando-se ao patamar do que ela em grau máximo pode ser em uma sociedade pós-metafísica, isto é, o centro de desenvoltura de uma razão integradora da carência de sentido da sociedade moderna, onde o espaço de entendimento discursivo das subjetividades individuais e grupais torne-se o lócus de processualização das de-

mandas e de discussão “aberta” e racional dos valores, com a conseguinte definição de quais são os valores que cada sociedade decida que sejam dominantes e se estes são protegidos e garantidos constitucionalmente. Numa imagem forte, a Constituição como normatividade construída procedimental, axiológica e politicamente pode ser o próprio substitutivo da divindade numa sociedade sem Deus, onde o apego à pura tradição não mais encaminha os conflitos, nem muito menos o simulacro ideológico de processos políticos salvacionistas e demagógicos que fetichizam a Constituição como campo de idolatria política e anteparo de projetos secretos de poder. O processo constitucional pode ser o substitutivo de Deus na sociedade atual, como campo de construção de uma “racionalidade de integração” histórica e discursiva. As insinuações de Ronald Dworkin de um “Direito como Integração” são interessantes nesse sentido, pois mostram como uma integração entre Política, Moral e Direito deve ser uma atividade constitucional que realize uma interpretação política e moral das lacunas e espaços de normatização da Constituição representados por princípios. Se como disse Kant as categorias sem as intuições são vazias e as intuições sem as categoriais são cegas, a Constituição é uma meta-categoria da sociedade atual, capaz de se constituir num campo de sintetização dos potenciais de fé e esperança ainda existentes, portanto, as significações de subjetividades com sentido de existência. A fé de Carl Schmitt em Deus e na Constituição deve ser expressa na ressignificação de objetivos escatológicos traduzidos em finalidades políticas como ele percebeu, mas o ponto de ultrapassagem da metafísica e da ideologia não é a racionalidade estratégica do amigoinimigo e de um realismo político que termi-


Ano 2 ● Nº 4 ● Março/Abril de 2012 na por recair na ideologização e manipulação de seus paradigmas de ação, porém que a razão discursiva e a pressuposição de valores como desejos e ideais simbólicos humanos em um horizonte histórico-discursivo de concretização constitucional evite que se recaia na „idolatria constitucional‟, isto é, na manipulação da Constituição por grupos de poder, pugnando pela racionalização da Política e pela dignificação humana. Poderíamos pensar uma nova “Teologia Política”, mas de uma Política sem Ideologia, republicana, de uma Constituição não idolatrada, mas debatida, destinada a uma sociedade sem centro que é a expressão laicizada de uma Teologia sem Deus, a partir da proclamação da “Morte de Deus” por Hegel em “Fé e Saber” (1802) e por Nietzsche em “Assim Falou Zaratustra” (1888). Uma crítica a partir da concepção kantiana à acepção schmittiana de Constituição, objetivando a interpretação normativa e axiológica

como filtragem das possibilidades de manipulação polítizadora da Constituição, acatando o paradigma de Kant de que a Política deve ser precedida pelo Direito, que a limita, devese buscar uma transformação na acepção estruturadora dos valores, que passa a ser lingüística (Habermas) e procedimental (Kant). De Habermas se depreende a possibilidade de construção de valores pela linguagem, descartando a fundamentação “idealista -formalista” do neokantismo e “essencialistasubstancial” da fenomenologia, volta-se ao sujeito como unidade mínima de centramento existencial e local de abertura para a produção intersubjetiva do consenso, assim como de crítica aos valores (J. HABERMAS e H. PUTNAM, “Normas y Valores”, 2008). O horizonte metafísico dos valores constitucionais, dessa forma, é resignificado em prol de uma legitimidade laica, democrática, construída na luta e no discurso, num horizonte de pessoas livres e iguais, como preconizado

porKant em seu ideal de Estado republicano laico e liberal. Pensar valores constitucionais e princípios de fundamentação da Constituição e da hermenêutica constitucional com fins macro-políticos, para além da esfera da Política, ou querer reconduzir a Política novamente ao Sagrado nos neofundamentalismos atuais, práticos e salvacionistas, portanto, como alerta Marilena Chauí em “O Retorno do Teológico-Político”, escarnecer da função propriamente crítica que possui a atividade política. Se todos somos intérpretes da Constituição (P. HÄBERLE,'A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição' 1999), então lutemos para que ela não seja colonizada por indivíduos ou grupos portadores de valores fundamentalistas ou a-políticos , a-críticos, portanto. ● *Newton de Oliveira Lima é Professor Assistente, nível II, de Filosofia Geral e Jurídica do Departamento de Ciências Jurídicas da UFPB.

ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR

NEP — Núcleo de Extensão Popular — Flor de Mandacaru: Assessoria Jurídica, Educação Popular e a Luta por Trabalho Liziane Correia*

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NEP existe há 5 anos como Programa de Extensão (Probex) na UFPB, sua principal característica, desde a origem, é reunir estudantes do curso de Direito na extensão, para assim, entrarem em contato com a realidade de grupos sociais que vivem à margem das grandes estruturas sociais, mas que tentam se organizar, mesmo em torno dos direitos que lhes são, historicamente, negados. A principal ferramenta para essa organização popular em torno de seus direitos, para o NEP, é a Educação Popular em comunidades. Poucas extensões do país trabalham com esta perspectiva, dialógica e horizontal, a qual tenta aproximar os estudantes de conflitos sociais, intrínsecos ao mundo legal e ao modelo econômico capitalista, com o fim de transformá-los. Por isso, nos aproximamos sempre de fontes teóricas críticas e reflexivas, para que, dialeticamente, moldemos a teoria a partir da prática e construamos uma prática a partir da teoria. Apesar de serem poucas, as Assessorias Jurídicas Universitárias Populares (AJUP‟s), formam uma Rede Nacional, a RENAJU (Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária), é através dela que tem se discutido o modelo de Extensão e de Direito que está posto, e as possibilidades de atuarmos em organização para darmos novos moldes aos dois. O NEP em sua organização divide-se em três eixos de luta por efetivação dos direitos: quilombolas, agrários e do trabalho.

res, mais especificamente, os trabalhadores do caos urbano, que são a fatia da sociedade que permanece nas cidades a procura de meios de sobrevivências, os quais, muitas vezes, são conquistados precariamente, através de empregos ou serviços que legalmente tem proteção consolidada (e conquistada com muito sangue!) e que mesmo assim é violada.

Então, através da extensão, percebemos que o problema não é apenas o desemprego, mas também o emprego. As pessoas empregadas não vêm recebendo os devidos direitos, não estão formalizadas, muitas vezes não sabem os direitos que tem e outras vezes até sabem, mas tem medo que o patrão as desempreguem. E até pior, as pessoas bem empregadas estão perdendo seus empregos, como dizem os dados do CAGED (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) que registram um fechamento de mais de 140 mil vagas para os trabalhadores que recebiam mais de 2 salários mínimos, entre Janeiro e Setembro de 2011; também confirma que as Esses grupos foram escolhidos por serem empresas estão demitindo antigos trabalhasujeitos que historicamente tem seus direitos dores para empregarem novos com um salánegados. Os quilombolas e os trabalhadores rio menor. rurais por estarem sempre sujeitos a perderem suas terras, seu meio laboral, cultural e Já não bastasse o Brasil ter um dos mais espaço de moradia; e os outros trabalhado- baixos salários mínimos (o 16º pior entre os

países latino-americanos), o que dificulta a garantia da compra de direitos básicos (transporte, alimentação, saúde), a população paraibana não recebe nem isso. Segundo o CONSEA (Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional da Paraíba), 80% dos paraibanos recebem menos de um salário mínimo, 600 mil pessoas passam fome porque recebem menos do que deviam, só em João Pessoa 38 mil passam fome. Diante deste cenário, o eixo de Luta por Trabalho, vem construindo relação com trabalhadores mal-empregados e desempregados para conscientização de organização em torno de seus direitos, um dos focos é a luta por uma política pública (Lei de Frentes Emergenciais do Trabalho) que garanta a qualificação, renda, alimentação e criação de grupos de produção. Isso tudo porque a mera qualificação não garante que o mercado absorva a demanda de desempregados, além do que, não garante que o trabalhador estará recebendo o devido e sem ser explorado. A perspectiva para 2012 é continuar estas discussões, abrir canais de diálogo com os espaços sindicais e continuarmos debatendo demandas emergenciais destas comunidades como: moradia, violência e saúde. O NEP acredita que os direitos se constroem e são efetivados a partir do protagonismo de atores que vem sendo excluídos de seu relevante papel na sociedade, sejam eles negros, sem-terra, desempregados etc. Todos precisamos nos unir em prol de uma sociedade melhor.● *Liziane Correia é estudante da Graduação em Direito na UFPB, integrante do Núcleo de Extensão Popular Flor de Mandacaru e do Coletivo Desentoca. O NEP — Flor de Mandacaru se reúne semanalmente nas terças-feiras, às 14h, na sala 04 do CCJ .

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A insuportável necessidade de Batman e Coringa Ive Fróes*

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Nietzsche, em Genealogia da Moral, traz a contradição da constituição da memória. Partindo do pressuposto que a promessa se reflete no campo da lembrança, ela extrai nossa capacidade de esquecer, criando traços do pensamento causal, solidificado na relação entre a decisão da vontade (presente) e ação manifestada (futuro). Uma mente que vivencia suas ações passadas teria, para o filósofo, uma “indigestão” psíquica, pois a absolvição das experiências cotidianas vividas constrói um obstáculo para o homem se lançar ao novo e ao desconhecido. Destarte, o esquecimento teria um caráter positivo e saudável.

imagem sempre esteve presente na vida humana. Dos ícones religiosos à arte moderna, a pintura é uma forma de deixar impressões sobre realidades. Através dela podemos desvendar a influência dos seus autores, bem como as perspectivas sob o contexto histórico em que vivem. E assim, não o é diferente com as Histórias em Quadrinhos (HQs). Até chegar à arte final, é preciso história, concepção criativa, enredo, personagens, ambientação. Nesse sentido, fica fácil perceber como os gibis influenciam na disseminação de ideias e conceitos, capturando O assassinato cruel dos pais marca ideologias e momentos políticos. o desenvolvimento da personalidade do jovem Bruce Wayne, ao fazer a Deixando de lado preconceitos em promessa de limpar Gotham City da relação ao mundo da aventura como violência. O fator doloroso que susdestinado ao público infantil; e deitenta a memória garante que o perxando também - pelo menos por asonagem imprima em si mesmo um gora - a relação que podemos fazer peso de constantemente responder entre HQs e a disseminação de (pre) ao compromisso. São características conceitos da indústria cultural estado personagem: a sobriedade, a radunidense, partimos para o ponto zão, a uniformidade, o costume; Batcrucial do texto: o confronto da moral man está sempre preso em sua canas histórias de Batman e Coringa. misa de força social. Criado por Bob Kane e Bill Finger, em 1939, e publicado na atual DC Comics, Batman é conhecido pelo seu propósito de combater o crime em Gotham City. Para isso, utiliza armamento militar e tecnologia de ponta, além de treinamento físico e intelectual. Tal necessidade de limpar as ruas de sua cidade nasce de um elemento conhecido na filosofia de Nietzsche, a promessa.

Em contramão existe o Coringa, arqui-inimigo/amigo do herói. Sua história de vida é tão trágica como a de Bruce, mas ele não guarda memórias. Acaba criando a cada instante personas, inventando sujeitos de ação, testando possibilidades. O Coringa nasce na não consciência, por isso autodestrutível, alterna-se entre agente e produto do caos. Ele é ação, e Batman, sua reação: não há antítese romântica na relação vilão-

Batman, símbolo de uma cultura que teme a barbárie, „os vândalos‟, não estima ou respeita o Coringa nem o caos, mas o quer afastado” Página 10

herói. A consciência do perigo simbolizado nas HQs como a morte aparece sempre no caminho de Batman; o fato de ele ter a consciência da morte o torna escravo dela, já que ela, a morte, não é consciente. Ao contrário do Coringa, que toma a morte sua escrava. Batman não fere seus princípios de “não matar”, e o Coringa zomba dele a partir disto, sempre o colocando contra a parede, levando-o a uma contradição: ele só poderá livrar a cidade do mal quando quebrar essa valoração moral, quando ultrapassar seu limite. A Justiça da cidade, que é recheada de burocratas corruptos, não impede que Batman entregue os criminosos para julgamento (e ao castigo), que, no entanto, não irá resolver os problemas da moral de bem e mal. Levando em conta a relação credor/ devedor a questão se encerra numa vingança vazia. A prisão dos criminosos ou a domesticação dos instintos não resolveria o problema do crime. Matar como vingança equivale a cumprir a lei como vingança. Batman, símbolo de uma cultura que teme a barbárie, “os vândalos”, não estima ou respeita o Coringa nem o caos, mas o quer afastado. E assim, quanto mais se empenha em prender o vilão, mais engraçada será a piada. ● *Ive Fróes é estudante da Graduação em Direito pela Universidade Federal da Paraíba Texto baseado em uma monografia de Filosofia da Universidade Paulo VI, São Paulo, 2010.


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Opinião

O Educacionismo de Cristovam Buarque Por Danilo Gomes de Souza e Suellyton Lima*

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os meandros da metade de 2011, séries de rebeliões explodiram nos subúrbios de Londres e de toda a Inglaterra, na qual concentravam, em sua maioria, jovens desempregados. Quebra-quebra generalizado, assaltos a lojas, jovens que tomavam roupas de marcas para depois queimá-las. O curioso era que o “movimento”, se assim pode ser chamado, não carregava uma bandeira política específica, não reivindicava direitos, não exclamava ideias, não era uno ideologicamente. As causas para tais manifestações são muitas. O sociólogo Zygmunt Bauman viu uma rebelião de consumidores imperfeitos, incapacitados de se inserirem no modus operandi da sociedade globalizada. Excluídos socialmente, os jovens “gritavam” através de seus atos, para se inserirem na irracionalidade consumista. Em uma análise míope facilmente se enquadrariam as manifestações em atos de vandalismos, rebeldia sem sentido, violência desnecessária. Por outro lado, uma Europa em crise, com índices crescentes de desemprego e uma juventude cada vez mais sem perspectiva para o futuro parecem indicar fundamentos mais apropriados aos atípicos eventos de Londres. Uma sociedade em crise. A falta de ideais pelos quais se deva lutar; um vazio existencial na alma do homem moderno; uma sociedade industrial, carente de maiores aspirações, que se encaminha para a catástrofe. São estes os motivos que Cristovam Buarque, ex-candidato à Presidência da República, elenca, para declarar a necessidade de uma nova utopia, uma ideologia alternativa, uma “utopia final”, que atenderá pelo nome de Educacionismo. O termo aparece já com o escritor anarquista Piotr Kropotkin, mas aqui se falará da teoria desenvolvida em “O que é Educacionismo” de Cristovam Buarque. O mote não é novo: revolução pela educação; esta como meio de mudança social. Como ideologia, vê uma “linear” história do mundo que culmina numa encruzilhada em que se avultam apenas duas alternativas: a opção pela modernidade-técnica da sociedade atual, pelo aquecimento global e pela desigualdade entre os seres humanos, ou a opção pela modernidade-ética, pelo Educacionismo e igualação dos homens no que concerne à educação. Não obstante o dualismo inerente a toda ideologia, em uma alternativa tão simples o caminho a ser optado é óbvio. E mais óbvio o é, porque o Educacionismo vem a ser a única alternativa diante do fracasso das ideologias liberais e sociais. Fracasso este proclamado nas mais de cem páginas do livrinho da “coleção primeiros passos” que serve de base para este artigo. Para o Educacionismo mudam-se as ba-

ses da crença. Estas não se encontram mais nas condições materiais marxistas. O processo social é resultado da educação e não da economia. Muda-se o conceito de riqueza: o capital será conhecimento. Não se fala em proletário e burguês, mas em proprietários e despossuídos de conhecimento. A verdadeira luta de classes hoje se dá não entre capital e trabalho, mas entre quem tem acesso à educação de qualidade e quem não tem. O sonho de uma sociedade utópica “não está na estatização do capital, mas na distribuição do conhecimento”.

O Educacionismo reconhece uma “desigualdade tolerável” limitada nos extremos pela proteção ao meio ambiente e pelo espaço de exclusão social a ser rejeitado. O princípio basilar é: a educação igual para todos, não importando a diferença de classes. É a democratização radical da educação: nas escolas filhos de políticos e de pedreiros frequentam ambientes iguais. O igual acesso à plataforma educacional permite o desenvolvimento individual com liberdade, na qual a pessoa, livre das amarras, precisa apenas de seu talento e dedicação para desenvolver seus potenciais. A educação faz os indivíduos indignaremse diante da realidade; permite deslumbrarem-se esteticamente diante do mundo; entenderem a lógica de como funciona a realidade e incluírem-se político e socialmente na sociedade. Sonho basilar de qualquer sociedade que queira progredir, boa parte da utopia do Educacionismo, ao menos, boa parte de suas pretensões, se encontra na nossa carta maior (CF, art. 3º, 205º, 206º, etc.). Que quase todos reconhecem a educação como meio de se mudar o mundo é fato. O pressuposto do Educacionismo é este: “para o indivíduo, a educação é o caminho necessário, mas não basta; para toda a sociedade, a educação basta, porque ela traz o resto que for necessário”. Quem dera fosse assim. Um único direito a ser exigido; uma única palavra a ser gritada publicamente; um único ideal pelo qual se lutar. Na Europa em crise, a Espanha vê hoje a sua geração com

maior formação educacional - com maior qualificação - baixar o nível dos seus currículos para conseguirem empregos. Prova de que há muito que se fazer. O maior mérito do Educacionismo, como utopia/ideologia, consiste em retirar o ideal educacional dos recantos empoeirados de nossa mente transformando-o em causa maior, em motivo de ação na práxis, fazendo-se gritar: educação ou morte! Todavia, o questionamento reflexivo far-se -á necessário. Seria o Educacionismo uma nova roupagem liberal para desfocar ideologias latentes em um rio de lágrimas no vale obscuro da sociedade contemporânea? Ou seria um ensaio para a progressão de uma sociedade que está cansada de garantir o direito tão somente da terra, saúde, moradia etc. desamparando e excluindo os direitos dos sem terra, sem saúde, sem moradia...? A ideia pode ser plausível, mas tão somente a ideia não basta; as questões de como conceber e oxigenar uma sociedade com uma educação monopolizante e manipulável aparece como uma aversão a esta causa. Para o modelo de educação, seguindo princípios educacionistas, o meio educacional não seria já mais algo perfeito e terminado, mas sempre discutido, questionado e “aperfeiçoado”, sempre com a instituição estatal ao lado de todo o desenvolvimento, encarando esta empreitada não como um meio de manobra de massas e serviçais em pró de causas fabris, mas como a locomotiva do desenvolvimento de grandes cidadãs (ãos) críticos para (re) pensar num progresso não prioritariamente econômico, mas, primordialmente, social e humano, algo que não seria oposto (acreditando até mais numa melhor eficiência) ao desenvolvimento econômico sustentável. Um dos problemas é que a proposta educacionista, até mesmo para se evitar um possível monopólio de um Estado controlador, e uma consequente educação unilateral, traz em seu bojo uma educação por demais ideal. Os exemplos da Inglaterra e Espanha contrariam o ideal educacionista de pautar uma revolução tão somente pela educação. Evidente se mostra que a educação, embora questão de extrema importância, não responde a todos os problemas que se afiguram frente à sociedade contemporânea. Uma educação radicalmente igual não significa uma sociedade igual. Poder-se-á dizer que é o ponto de partida. Mas todo início de viagem fracassa na ausência de um rumo certo, ou de um caminho consistente.● *Danilo e Suellyton são estudantes da Graduação em Direito do 3º período da Universidade Federal da Paraíba. Para ler: BUARQUE, Cristovam. O que é educacionismo?. São Paulo: Editora Brasiliense, 2008.

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MAMÃE FAZ CEM ANOS

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Carlos Saura, o mestre do cinema espanhol, é, sem dúvida, fonte de inspiração para outros grandes cineastas. Percebemos referências (propositais ou não) do aludido diretor nos estilos, por exemplo, do também espanhol Pedro Almodóvar (“Tudo Sobre Minha Mãe” – 1999; “Fale Com Ela” – 2002; e “Volver” – 2006) e do norte -americano Wes Anderson (“Rushmore” – 1998; “Os Excêntricos Tenenbaums” – 2001; e “Viagem a Darjeeling” – 2007). Dentre os dois citados espanhóis, verificamos, ainda, a curiosa coincidência quanto à predileção de uma mesma atriz para protagonizar diversos filmes: Penélope Cruz para Almodóvar e Geraldine Chaplin (filha do inigualável Sir Charles Spencer Chaplin) para Saura. Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1980 (ano em que fora vitorioso o alemão “O Tambor” [1979]), “Mamãe Faz 100 Anos” (1979), escrito e dirigido por Carlos Saura, conta a estória de uma família excêntrica contextualizada subjetivamente no cenário político da Espanha à época (Franquismo) e dá seguimento a “Ana e os Lobos” (1973). Enquanto este revela um cenário de cárcere, com personagens mais sérios, centrados e oprimidos, sua sequência demonstra uma realidade mais leve, onde a tão sonhada liberdade caminhava a passos largos diante das visíveis atitudes das personagens, tudo propositadamente com o intento de aludir a diferentes fases fáticas do citado governo. Todos se reúnem na velha mansão da família às vésperas do centenário da matriarca. A trama está adstrita a 3 irmãos; à esposa frígida de um deles e suas 3 filhas; uma agregada especial (Ana, interpretada por Geraldine Chaplin) e seu marido; alguns empregados e a autoritária, hilária e perspicaz Mama, interpretada pela excelente Rafaela Aparicio. Os problemas, as manias, os pensamentos, os desejos, os sonhos, as ambições e os segredos das personagens, com sensacionais pitadas de sarcasmo, surrealismo e excentricidade, atraem, sobremaneira, a atenção do espectador nos 92 minutos do filme. São garantidas boas risadas nesta comédia repleta de metáforas, críticas sociais e mascarados recados políticos. Quem já viu “Ana e os Lobos” pode não compreender uma das informações que lancei acima acerca das personagens da aludida sequência. Ou, quem assistiu antecipadamente “Mamãe Faz 100 Anos”, será surpreendido ao vislumbrar a cena final do primeiro filme. Para quem leu este relato e ainda não viu nenhuma das duas obras, sugiro que veja primeiramente o segundo filme. Vencedor do prêmio especial no Festival de San Sebastián e do prêmio da crítica no Festival de Bruxelas, esta exímia obra é uma extraordinária opção para aqueles que apreciam o invulgar cinema europeu. Assistam! Carlos Nazareno é cinéfilo, amante da boa música, estudante e jurista nas horas vagas

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