Jornal do CELG - 72

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14 ano 24 • julho 2013 • nº 72

Artigo

Freud e Maquiavel: “mestres da suspeita” e, por que não? “mestres do escândalo”? Há exatamente quinhentos anos, em 1513, Niccoló Machiavelli (Maquiavel, 1469-1527) escreveu em Florença uma obra que marcou o mundo da cultura. Trata-se do clássico intitulado “O Príncipe”. Maquiavel e Freud, sob muitos aspectos, podem ser lidos conjuntamente. Além de Marx, Nietzsche e do próprio Freud, Maquiavel também poderia ser incluído na lista de pensadores que o filósofo Paul Ricoeur classificou como “mestres da suspeita” e, por que não? “mestres do escândalo”. O intrigante fascínio da obra de Maquiavel nos remete ao que Freud afirmara em relação à figura trágica de Édipo: existe ali uma verdade que nos toca (e nos afronta) incondicionalmente. Maquiavel escreveu num contexto específico de extrema complexidade sociopolítica mas, desde já, importa considerar que uma obra clássica (e exatamente por isto é “clássica”) transcende os limites do tempo e nos remete, forçosamente, a uma dimensão “a-histórica”. Certamente o contexto histórico influencia as ideias e as produções intelectuais mas convêm não perder de vista que essas mesmas circunstâncias são criações humanas e têm origem nas suas motivações mais elementares. Neste sentido, O Príncipe de Maquiavel, resgata elementos que perpassam os tempos não obstante as marcas de sua retórica e os relatos específicos da sua época. Sob este aspecto podemos entender a afinidade intelectual de pensadores tão separados no tempo como Maquiavel e Freud. O lastro comum entre ambos nos conduz a um outro olhar, mais profundo e consequente, que transcende a circunstancialidade dos fatos históricos. O Príncipe fala de ambiguidades e angústias visceralmente humanas: a violência, a crueldade, a necessidade da figura carismática do Soberano, a ânsia voraz por poder e mais poder. Mas, o ponto mais fascinante da obra de Maquiavel seria a ênfase no resgate do elemento “cruel” instituindo-o no rol de uma positividade impensada para a cultura ocidental; a “utilização” do mal, sem vulgaridade ou banalização. Esta teria sido a grande proeza do pensamento “maquiavélico” que ainda hoje nos surpreende com um misto de atração e perplexidade e, aqui, podemos complementar a originalidade de Maquiavel com a originalidade

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de Freud: ambos enfrentam o espinhoso problema da duplicidade da natureza humana abrindo à racionalidade e ao engenho criativo a possibilidade em tirar proveito e usufruir das vantagens que esta condição é capaz de proporcionar. É ilustrativo quando, no capítulo XVIII de O Príncipe, o autor utiliza-se de uma metáfora retórica: “Aquiles e tantos outros príncipes antigos foram deixados aos cuidados do centauro Quíron, que os manteve sob sua disciplina. Isso quer dizer que, tendo por preceptor um ser metade animal e metade homem, um príncipe deve saber usar de ambas as naturezas: e uma sem a outra não produz efeitos duradouros”. Na época renascentista em que O Príncipe foi escrito, a política era o palco privilegiado onde se encenavam as paixões humanas numa ferocidade desregrada e cruenta. Os acontecimentos se precipitavam num fluxo de atuações que expressavam os impulsos mais primitivos de voracidade e poder, ou seja, o império do gozo absoluto. Maquiavel percebeu a necessidade de tirar proveito deste potencial inerente ao ser do homem. Inútil e imprudente seria reprimi-lo ou negá-lo. Seu procedimento “terapêutico” foi tentar entender a ordem natural das motivações humanas e, através de uma análise realista sem preconceitos ou escrúpulos, transformar o primitivismo passional em elementos pensáveis e disponíveis à reflexão estratégica. Para introduzir ideias novas e revolucionárias seria preciso pensar na contracorrente da cultura vigente. Diríamos que sob este aspecto Maquiavel suspendeu o raciocínio norteado pelas regras morais e procurou pensar a realidade do homem e sua ânsia de sobrevivência em tempos difíceis onde imperava a lei do mais forte. Neste nível de raciocínio onde nem sempre o racional é moral os conceitos da moralidade, no sentido tradicional do termo, não entravam no rol das suas cogitações. Como é afirmado no capítulo XV, “é preciso que o Príncipe aprenda, caso queira manter-se no poder, a não ser bom e a valer-se disso segundo a necessidade” pois “o homem que quiser ser bom em todos os aspectos terminará arruinado entre tantos que não são bons”. A principal virtude do Soberano é fazer o que dita a necessidade, independente de padrões morais, afim de alcançar objetivos mais amplos e consequentes que assegurem a estabilidade e a

“Mas, o ponto mais fascinante da obra de Maquiavel seria a ênfase no resgate do elemento “cruel” instituindo-o no rol de uma positividade impensada para a cultura ocidental; a “utilização” do mal, sem vulgaridade ou banalização”.

Paulo Seixas Psiquiatra, Mestre em Filosofia, professor do curso de especialização em Psicoterapia Psicanalítica, UFRGS


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