Revista 1968

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REVISTA

POLÍTICA POLÍTICA • • COMPORTAMENTO COMPORTAMENTO • • CULTURA CULTURA Unisanta • ANO 1 • NÚMERO 1 • EDIÇÃO ESPECIAL • JUNHO DE 2008

José Dirceu Depoimento “Cheguei a Havana aos 23 anos e fui recebido por Fidel Castro”

Zuenir Ventura Entrevista

“A geração de hoje vive outra revolução”

Hair

40 anos sem cortes

Estudantes

Conflitos de uma geração que só queria mudar o mundo

Minissaia

Novos hábitos com as pernas à mostra

Fotografia

Passeata dos 100 Mil


AO_LEITOR

1968 AOS 40 O

ano de 1968 foi marcado por sentimentos de liberdade, atitude e mudança. A política foi a primeira a receber as boas-vindas de jovens dispostos a mudar o mundo. Em janeiro, a Primavera de Praga floria na atual República Tcheca. A atitude política dos membros do Partido Comunista, liderados por Alexander Dubcek, buscava tornar o socialismo mais humano. Um vento de grandes proporções varria o globo, pois as flores também foram símbolo do movimento Flower Power, nos Estados Unidos. O poder das flores incentivava, principalmente, a valorização da natureza, a luta contra o racismo e o fim da Guerra do Vietnã. Na Broadway, em abril, Hair aparece como a maior manifestação cultural contra o militarismo e a favor da paz. A peça continua atual e é encenada até hoje, agora para criticar a Guerra do Iraque. No Brasil, o regime militar, imposto a partir de 1964, mostrava as garras. Em abril, 68 era também o número de municípios que, sob intervenção, foram transformados em áreas de segurança nacional e tiveram, a partir de então, os prefeitos nomeados pelo presidente Costa e Silva e pelos generais que vieram a seguir. Em 13 de dezembro, por força do Ato Institucional nº. 5, os militares impõem, de fato, o regime de força e opressão. Símbolo dessa época é o Dops,

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utilizado para vigiar e punir quem era contrário ao regime. Assim como no maio francês, os estudantes brasileiros tomavam as ruas na luta por suas ideologias, e, como dito na entrevista com o escritor e jornalista Zuenir Ventura, transformavam 1968 no grande personagem de uma geração disposta a cobrar direitos individuais e coletivos, liberdade sexual e outras mudanças de comportamento e culturais, entre inúmeras outras manifestações que brotavam em todo o mundo. O espírito revolucionário é responsável pelo saudosismo que atinge quem viveu o ano de 1968 e àqueles que só conheceram os fatos por meio da história. Ativistas do período não traçam comparações. Para eles, a sociedade mudou e não precisa mais das ações como as que se operaram há quatro décadas. A partir dessas mudanças, procuramos entender melhor a sociedade atual. Por exemplo, a estrutura familiar. Quarenta anos depois, não cabe a nós, da Revista 1968, decidir se 1968 foi o ano que não começou, não terminou ou que aproveitou a data de aniversário para se fazer lembrar. Coube a nós registrar as ações de uma geração que não confiava em ninguém com mais de 30 anos. E detalhar alguns dos reflexos que toda essa desconfiança causou e causa 40 anos depois.

Evandro Teixeira

Enterro do estudante Édson Luíz, Movimento Estudantil,Rio de Janeiro, 1968

Os editores

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SUMÁRIO

REVISTA

1968 Ano 1 • Número 1 Edição Especial • Junho de 2008

Universidade Santa Cecília Faculdade de Artes e Comunicação - FaAC Diretor da FaAC Humberto Challoub

6. MOVIMENTO_ESTUDANTIL Do campus às ruas

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Coordenador do curso de Jornalismo Robson Bastos

Editores Rogério Amador Aline Monteiro

30. MODA_ATITUDE Jovem senhora

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Orientação Márcio Calafiori

32. CENA_TEATRAL A era de aquarius 36. COMPORTAMENTO_SOCIAL Nova fase de uma antiga base 39. SÉTIMA_ARTE I Sonho de Bertolucci

Diagramador Jeifferson Moraes Repórteres Amanda Albuquerque Bruno Quiqueto Gabriela Aguiar Gabriela Soldano Jeifferson Moraes Jordan Fraiberg Rogério Amador Tatiana Ferraz

18. IMAGEM_HISTÓRICA Arma contra a ditadura 26. ENTREVISTA_ZUENIR VENTURA 1968: O personagem que mudou a História

Professores responsáveis pela disciplina Elaine Saboya Márcia Okida Márcio Calafiori Capa Jeifferson Moraes Fotos: Evandro Teixeira

12. VIOLÊNCIA_POLÍTICA A tortura virou arte

40. SÉTIMA_ARTE II 2001: Decifrando o futuro 42. ARTE_CULTURA Statu quê?

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45. ENSAIO_68 Evandro Teixeira


Folha Imagem

MOVIMENTO_ESTUDANTIL

DO CAMPUS ÀS RUAS

Organizações estudantis levantaram a bandeira contra a ditadura militar na busca por liberdade Jordan Fraiberg

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Soldados da Força Pública organizam estudantes presos em Ibiúna, no XXX Congresso da UNE

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ano de 1968 foi marcado por manifestações, protestos, greves, prisões e mortes em todo o mundo. O Maio do mesmo ano, orquestrado por Daniel Cohn-Bendit em Paris, teve como objetivo mobilizar os estudantes e aprovar um programa de reformas educativas e de exigências políticas radicais. Os universitários franceses se manifestaram também contra a Guerra do Vietnã. No Brasil, não era diferente. “No início, na origem das ações do movimento estudantil, nós não lutávamos contra a ditadura militar — ou só contra ela. O movimento estudantil tinha bandeiras específicas, que diziam respeito a nós, estudantes. Mas era o Brasil. Vivíamos sob o tacão do regime militar e, óbvio, foi mais do que natural que rapidamente as bandeiras estudantis se incorporassem à

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luta contra a ditadura. Mas não lutávamos apenas contra ela. Lutávamos pela quebra dos dogmas e contra os padrões hierárquicos da sociedade”, lembra o ex-líder estudantil, José Dirceu. Hoje, no movimento estudantil brasileiro, o termo massacre é usado, por exemplo, para se referir à falta de incentivo à educação. Marcelo Arias presidiu a União Estadual dos Estudantes (UEE) de 1999 a 2001. Ele diz que as bandeiras mudam conforme a época: “A principal luta que tive foi a favor da presença da universidade pública na Baixada Santista. Fizemos manifestações, paralisações e até derrubada do veto. Ficamos acampados na Fatec e fizemos greve na Faculdade de Medicina. Em 2001, chegamos a invadir a reitoria de uma universidade. Diferentemente de 1968, que lutar pela qualidade de ensino significava lutar contra a ditadura, isso porque os militares propunham a privatização

da universidade pública. Hoje, a qualidade de ensino passa a ser a ampliação do acesso à universidade, como o Pró-Uni”, compara Arias. A atual presidente da UEE, Caroline Hedjazi, diz que as principais causas estudantis são a reforma universitária — que amplia as vagas na universidade pública —, a regulamentação do ensino privado e até mesmo o passe livre para estudantes: “Entre outras coisas, pedimos a ampliação do Pró-Uni, diz Caroline. A UNE, hoje, tem a força majoritária da União da Juventude Socialista, mas também existem diversas outras chapas, assim como antigamente existiam diversas correntes que buscavam a presidência da organização”. Novo rumo Com mais organização, o movimento estudantil consegue promover ações que antigamente não conseguia. Como o Circuito

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Folha Imagem

O CONFLITO DA MARIA ANTÔNIA Estudantes, José Dirceu. Os estudantes portavam pedras, bodoques e coquetel molotov. Do outro lado, no Mackenzie, a preparação para o combate era realizada com bombas de ácido misturado a cal virgem, rojões, pedras, bodoques e também coquetel molotov. “Não foi um confronto entre as duas instituições (Mackenzie versus USP), mas entre os estudantes da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo contra os estudantes mackenzistas, considerados de direita”, conta José Dirceu. — Corre, corre, corre... os caras estão jogando bomba. Corre, cara, quer morrer aqui? Vão matar gente lá dentro, vamos ficar afastados dessa zona toda.

Pedro Jaime, o Jaiminho, avistava de longe a polícia. De um lado da rua, ouvia frases como “lança neles”. Do outro lado, ouvia o pessoal da USP gritar: “Milico desgraçado!”. O objetivo da briga era a ocupação do centro universitário da USP, que, em 1968, funcionava como um grande centro do movimento estudantil paulista. O curso de filosofia e o centro universitário ficavam no prédio da Maria Antônia. A manhã do dia 3 de outubro teve como resultado muitos feridos, o incêndio do prédio da Faculdade de Filosofia e a morte do estudante secundarista José Carlos Guimarães, de 20 anos. E ficou conhecido como o Conflito da Maria Antônia. Arquivo Pessoal - José Dirceu

Estava tudo calmo até o dia 2 de outubro de 1968. Alguns estudantes faziam pedágio na rua Maria Antônia, com o objetivo de conseguir fundos para a participação em mais um evento da organização estudantil: — “Ei, senhora, gostaria de nos ajudar com alguma coisa para participarmos do Congresso da UNE?” — pedia um estudante no pedágio, próximo à Faculdade de Filosofia da USP. “Foi quando surgiram os mackenzistas”, conta Pedro Jaime, hoje funcionário da Universidade Mackenzie. Do lado da USP, os estudantes eram liderados pelo presidente da União Nacional dos Estudantes, Luís Travassos, e pelo presidente da União Estadual dos

Assembléia estudantil realizada na Praça da República, em São Paulo. Luís Travassos e José Dirceu, 1968

Universitário de Cultura e Arte (Cuca), que mantém o contato dos estudantes com a cultura brasileira. “O movimento estudantil só ocorre se os estudantes se mexerem. Aqui em Santos, o movimento está estagnado porque os alunos não ligam para a política, não constroem a luta”, diz Caroline. Ex-ministro da Casa Civil do governo Lula, José Dirceu concorda que o movimento estudantil mudou muito e encontra-se hoje num contexto histórico diferente. “Ele [o estudante militante] pode optar pela militância num sindi-

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cato, numa ONG ou associação. Existem várias bandeiras como a questão do meio ambiente, a luta pela ética, a luta contra a pobreza, a luta pela terra. Além dos desafios de hoje, que também são diferentes dos daquela época, como por exemplo, a luta pela capacitação técnico-profissional, o problema da violência que atinge, principalmente, os jovens da periferia, entre outras questões”. Existe uma divisão no movimento estudantil. O Centro do Estudante de Santos, por exemplo, não se articula com os estudantes e a com a própria

UNE que, por sua vez, tenta reviver as ações políticas. “O que falta em Santos é construir lutas. Os presidentes de centros ou diretórios acadêmicos precisam saber da situação da cidade, se inteirar”, diz Caroline Hedjazi. Já José Dirceu relembra que o movimento estudantil no período do regime militar, principalmente em 1968, era um dos principais movimentos da sociedade civil, como a luta contra a ditadura: “Tenho profundo orgulho de ter sido um dos protagonistas do movimento estudantil na luta contra a ditadura no Brasil”. 68

3 de outubro de 1968: estudantes se enfrentam na rua Maria Antônia, que deu nome ao confronto

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José Dirceu, presidente da União Estadual dos Estudantes de São Paulo em 1968, relata os momentos que marcaram a sua vida política início do movimento Uma vez na faculdade, comecei, então, imediatamente a atuar no movimento estudantil. Eu já tinha uma boa bagagem intelectual e política e lógico que não poderia aprovar a quebra da normalidade constitucional em 1964, o golpe militar, a deposição de um presidente legitimamente guindado ao posto. Então eu já fora um opositor ao golpe, embora ainda engatinhasse na vida política quando o presidente João Goulart foi derrubado. Um ano depois, em 1965, ao entrar na Faculdade de Direito da PUC, o cenário era triste. A repressão do regime militar já havia fechado as associações atléticas e centros acadêmicos, havia censura ainda que não institucionalizada, livros já eram proibidos. Na época havia muitas referências e lideranças. Em 68, eu estava na presidência da União Estadual dos Estudantes em São Paulo (UEE-SP) e junto a outros companheiros, liderei a célebre batalha da rua Maria Antonia, em 3 de outubro de 1968. Uma vida de militância

Com o início do Golpe, começava também a revolta dos estudantes com o regime militar – Tomada do Forte de Copacabana, em 1964

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Agência Estado

Evandro Teixeira

PERSONAGEM

Minhas experiências foram profundas e marcaram a minha vida. Fui preso e banido. Fui um dos 15 presos políticos trocados pela libertação do diplomata americano Charles Burke Elbrick. Depois disso vivi o exílio e a clandestinidade em Cruzeiro do Oeste, onde vivi com outro nome e outro rosto na primeira metade da década de 70. Fora do Brasil, no REVISTA_1968

exílio, ou aqui, clandestino, sempre houve jeito de me informarem e de eu me informar e acompanhei as centenas de mortes e desaparecimentos políticos, a prisão e torturas infringidas aos militantes que lutaram pela liberdade. No auge da ditadura, nos chamados “anos de chumbo”, período do ditador general Garrastazú Médici, de 1970 a 1974, o Brasil chegou a ter mais de 30 mil brasileiros refugiados fora do país, exilados legalmente ou não, apenas fugindo da perseguição política, do sufoco, do medo e dos riscos da morte. Em 1979, com a anistia, voltei à atuação política normal e ajudei a fundar e a montar o PT. As sementes dessa época, daquela luta, não só minha nem só do movimento estudantil, de todos, dos segmentos do povo organizado, germinaram e fizeram o Brasil democrático e libertário que temos hoje. Liberdade em Havana Fui libertado em 1969, por exigência dos seqüestradores do embaixador americano. Cheguei a Havana aos 23 anos e fui recebido por Fidel Castro. Ele estava ao pé da escada do avião. Na época, ele tinha 43 anos. Nunca mais esqueci aquelas imagens e o reencontro com companheiros que atuavam na Ação Libertadora Nacional e já se encontravam Cuba. José Dirceu de Oliveira e Silva nasceu na cidade de Passa-Quatro, em Minas Gerais, no dia 16 de março de 1946.

Discurso no plenário da Câmara, no dia 1º de dezembro de 2005, quando José Dirceu teve o mandato cassado

CONGRESSO DE IBIÚNA Dias depois do sangrento conflito, ocorreu, clandestinamente, o 30º Congresso da UNE, que escolheria um novo representante. Desde 1965 as entidades estudantis atuavam na ilegalidade por causa do AI-5. A polícia interveio no encontro prendendo aproximadamente mil estudantes e lideranças que foram encaminhadas ao Dops. Os líderes presos foram: Wladimir Palmeira, José Dirceu, Luís Travassos, Antonio Ribas, Edson Soares, Franklin Martins, Paulo Steller, Luís Raul Machado e José Arantes. Até mesmo o CRUSP (Conjunto Residencial da USP) foi invadido em uma operação conjunta do Exército, Polícia Federal e a militar com o objetivo de quebrar o principal foco de organização do movimento. Estudantes foram presos e o local foi fechado.

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VIOLÊNCIA_POLÍTICA

A TORTURA VIROU ARTE O prédio símbolo da repressão é reaberto para mostrar as marcas de uma época que devemos esquecer

Reprodução

Bruno Quiqueto

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Contradição entre ignorância e crescimento é destaque em uma das celas do Dops

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e repente, vozes vindas de fora, ecoando pelos corredores estreitos. Alívio. São apenas os visitantes curiosos. A água pingando de um cano força a lembrá-lo do suor escorrendo do corpo de indivíduos agredidos, fatigados e jogados nas profundezas de um calabouço. A Delegacia de Ordem Política e Social — o Dops — produziu cenas de terror que deixaram cicatrizes na história. Hoje, a tranqüilidade do local não se compara, nem um pouco, com o passado recente, com a paúra que rondava e compunha o ambiente. Restauradas em janeiro de 2002, as suas dependências estão abertas ao público para visitação, em São Paulo. Criado durante o Estado Novo (1937-1945), no governo Getúlio Vargas, o Dops foi instalado em todo o território nacional, com o objetivo de vigiar e punir políticos, intelectuais, escritores, jornalistas, estudantes, comunistas, camponeses, enfim, todos os que estivessem sob a mira da polícia política. Depois de 1964, passou também a receber presos do Doi-Codi (Departamento de Operações Internas — Centro de Operações de Defesa Interna). Outro período de grande atividade do órgão foi a partir da assinatura do AI-5, em 13 dezembro de 1968. De acordo com o jornalista e escritor Elio Gaspari, em A Ditadura Escancarada, o governo militar brasileiro (1964-1985) ordenou, estimulou e defendeu a

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prática da tortura como resposta à ameaça terrorista dos grupos de esquerda. Prédio do medo De 1964 a 1970, o Dops era o órgão repressor mais temido pelos subversivos. “Era quem torturava e matava em nome da democracia deles (militares)”, diz Moacir de Oliveira, ex-integrante do Partido Comunista Brasileiro e do Sindicato dos Metalúrgicos de Santos. Ele ficou preso por pelo menos 20 dias no Dops, depois de ser transferido do Doi-Codi, onde fora torturado. Nas torturas eram utilizados aparelhos de choque elétrico, pregos, além de outros artifícios. “Você ia pelado e, de capuz, para não ver quem estava te torturando. Eu apanhei bastante no pau-de-arara. Carrego uma cicatriz na perna até hoje”, conta Oliveira. Depois de ser solto, em janeiro de 1976, ele seguiu a carreira política e foi vereador de Santos por 16 anos. Os agentes do Dops estavam espalhados. “Tenho certeza de que nas reuniões que fizemos para a criação da Associação dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo, no Colégio Santista, tinha agentes do Dops”, lembra a ex-deputada Mariângela Duarte. As reuniões para a criação da subsede da Apoesp em Santos foram planejadas entre 1974 e 1978: “Eles, os agentes infiltrados, tiravam fotos e observavam tudo”. Durante os anos de chumbo, Mariângela foi professora de Literatura e Línguas na Universidade Católica de Santos e membro do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido de oposição ao governo. Nas celas restauradas do Dops, a lembrança de um período

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trágico. O frio arrepiante, proporcionado pelo ar climatizado, traz à tona o clima sombrio e agonizante. Homens e mulheres separados. Cada cela chegava às vezes a abrigar mais de 50 presos. “Quando ouvíamos o barulho das portas se abrindo era um terror. Ninguém sabia quem ia sair e se ia voltar”, relata Ivan Seixas, expreso político ligado a um partido armado clandestino. As marcas deixadas nas paredes pelos presos que por ali passaram foram pintadas de cinza-escuro. “Nós não queremos isso, que a história seja esquecida, nós queremos uma referência das celas do Dops para que elas nos mostrem o que foi aquela época”, criticou, na época da inauguração do museu, o secretário de Cultura do Estado, João Sayad. Apesar de muita gente acreditar que existiam porões no Dops, as celas e as salas de tortura ficavam no térreo do edifício. O muro do lado de fora da janela era alto e cobria a visão, fazendo com que a luz do sol viesse de cima,

dando a ilusão dos presos estarem num porão. Outro motivo que leva ao engano era porque os recém chegados passavam pelo primeiro andar e só depois desciam para as celas. Durante os anos em que o Dops esteve em atividade, 50 mil pessoas foram encarceradas e mais de 20 mil torturadas. Os arquivos guardam mais de 180 mil fichas. Indivíduos de todas as classes sociais morreram. Está tudo fotografado e documentado. “O Dops representa um buraco na política brasileira durante a ditadura. Esse tipo de coisa não pode voltar nunca mais”, desabafa Moacir de Oliveira. A tortura virou cultura Na entrada do atual prédio do Dops, o visitante pode ver uma exposição fotográfica, intitulada “Direito à Memória e à Verdade — A Ditadura no Brasil: 19641985”. Seguindo adiante, quatro celas foram totalmente restauradas. Cada uma mede aproximadamente dez metros quadrados, com duas janelas no fundo, cer-

Acima, depois de abrigar a o Departamento de Defesa do Consumidor, a antiga sede do Dops funciona como prédio principal da Pinacoteca do Estado de São Paulo; abaixo, corredor que encaminhava os presos às celas, agora leva os visitantes para conhecer a verdade, por meio de fotos e arquivos digitais

Fotos: Bruno Quiqueto

Painel exposto na entrada do Dops destaca o período ditatorial no Brasil

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Reprodução e fotos: Bruno Quiqueto

HISTÓRIA DO PRÉDIO O prédio do antigo Dops foi planejado pelo arquiteto Ramos de Azevedo e construído em 1914 para sediar a Central de Ferro Sorocabana, seus armazéns gerais e escritórios administrativos.

As imagens do período linha dura reforçam os rostos daqueles que lutaram para que a liberdade voltasse ao seu lugar

Em 1924, foi criado o Departamento Estadual de Ordem Política e Social – Deops, que na década de 1940 passou a se chamar Dops. Com a extinção do Dops em 1993, o prédio passou a abrigar até março de 1998 a sede do Departamento de Defesa do Consumidor.

No local, fotos das vítimas catalogadas que foram mortas pela violência da ditadura

Atualmente também é usado como sede da Pinacoteca do Estado de São Paulo, no Largo General Osório, 66, Luz. Telefone: (11) 3324-1000. O local pode ser visitado de terça a domingo, das 10 às 17 horas.

ARQUIVOS Cerca de 1,5 milhões de fichas e 163 mil pastas (1924-1983)

Fotos de militantes assassinados nas ruas também estão no acervo do Dops

Celas exibem fotos de prisioneiros que foram torturados

Prontuários: 150 mil pastas e 182 mil fichas

lado de fora, um estreito corredor onde presos tomavam banho de sol poderia ser visto por uma das janelas das celas. “Eu emagreci dez quilos aqui dentro. Não andava mais, perdi totalmente o equilíbrio. Foi terrível. A gente não calculava a violência que era aqui dentro”. Este é o depoimento de Elzira Vilela, ex-prisioneira do Dops e presidente do grupo “Tortura Nunca Mais”, em seu vídeo no Memorial da Resistência. Esse e outros depoimentos podem ser vistos, assim como os números de prontuários e dossiês, nos equipamentos de informática que estão disponíveis no local. O acervo ficou sob a guar-

da da Polícia Federal de 1983 a 1991, quando foi entregue à Secretaria de Cultura do Estado. A comissão de familiares de mortos e presos desaparecidos teve acesso aos documentos de 1991 a 1994, quando todo o acervo ficou aberto para consulta pública. O material pode ser encontrado no Arquivo Público do Estado, Secretaria da Casa Civil, na Rua Voluntários da Pátria, 596, em São Paulo. O Memorial da Resistência, ou Museu do Dops, antes se chamava Memorial da Liberdade. Devido à pressão de ex-prisioneiros, que consideraram a palavra Liberdade inadequada para o local, teve o nome alterado. 68

Dossiês: 9626 pastas e 1,1 milhões de fichas Ordem Social: 2312 pastas e 115 mil fichas Ordem Política: 1582 pastas e 120 mil fichas

cadas de grades de ferro. Uma porta de madeira maciça, com fechadura que lembra um antigo castelo, com duas portinholas — uma na altura do rosto e a outra logo abaixo, que servia para a passagem de comida e objetos. Ainda no fundo, separado por duas paredes de alvenaria, a reforma removeu o local onde ficavam o chuveiro e o vaso sanitário. Do

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ARMA CONTRA A DITADURA O poder da fotografia no desenvolvimento da história

IMAGEM_HISTÓRICA Em 26 de junho de 1968, o fotógrafo Evandro Teixeira, na Cinelândia, Rio de Janeiro. Registrou o evento que ficou conhecido como “A Passeata Dos 100 mil”, contra a ditadura militar Evandro Teixeira

Jeifferson Moraes

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le tinha em suas mãos uma arma. Com movimento preciso e olhar atento, escolhe o alvo. À sua frente, milhares de pessoas. Ele sabe que o momento é único e não desperdiçá-lo. Então ergue o instrumento e, com a certeza de sua decisão, dispara! Várias vezes. Disparos que não mataram, mas que eternizaram um momento da história do Brasil. O fotógrafo Evandro Teixeira é o autor de uma das mais famosas fotos da “Passeata dos 100 Mil”, na Cinelândia, Rio de Janeiro, um ato contra a ditadura militar, realizado em 1968. Ele diz que a câmera fotográfica foi a arma que escolheu para lutar. Utilizava a fotografia para revelar a verdade censurada nos textos jornalísticos. “Não podíamos protestar. O jornalista não podia subir no palanque. A fotografia era a maneira de dar um grito, dar um alerta”, diz Teixeira. Os instantâneos feitos pela câmera de Evandro Teixeira projetaram para o futuro uma mensagem que rejuvenesce ao longo dos anos. Como foi dito pelo jornalista Marcos Sá Corrêa, “a cada década que passa um significado é acrescentado a foto — e vai se remoçando”. Fernando Gabeira cita no livro a importância da liberdade de imprensa. “Não é um fenômeno natural – ela foi conquistada”. Após 40 anos, uma das fotos tornou-se foco de um projeto que levou cinco anos para se concre-

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tizar, e resultou na publicação do livro 68 Destinos — Passeata dos 100 Mil. Por meio da imagem, que mostra nitidamente o rosto de centenas de pessoas, foi possível a identificação de 100 das 100 mil que estavam presentes naquele dia 26 de junho de 1968. Aos 72 anos, o fotógrafo ainda trabalha no mesmo jornal pelo qual foi cumprir a sua pauta há quatro décadas, o Jornal do Brasil. Notável por sua destreza na profissão de fotojornalista, Teixeira registrou sua marca em imagens memoráveis da história do País. Ele iniciou a carreira em 1958 e, desde então, aprendeu sobre a força que tem uma imagem. SUCESSO EM FAMÍLIA A família de Teixeira se uniu para realizar o trabalho. O livro foi editado e publicado pela editora Textual, empresa de propriedade das filhas Carina Caldas e Adryana Almeida. Carina é jornalista e Adryana seguiu o mesmo caminho do pai, também é fotógrafa. Evandro Teixeira conta que o casal Elayne e Ernandes Fernandes se reconheceram manuseando as fotos. Hoje eles estão casados, mas quando participaram da passeata nem se conheciam. A partir do contato com o casal, o reconhecimento das pessoas virou uma brincadeira que se repetiu diversas vezes. Quando a foto era exposta ou publicada, mais pessoas se reconheciam, partindo do amigo e jornalista italiano, Georgio Teruzzi, a idéia de transformá-la num projeto. As filhas trataram de criar o

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Fotos: Evandro Teixeira

site www.evandroteixeira.net, onde era possível clicar sobre cada rosto da foto. Por meio da página na Internet, e com a divulgação na mídia, o projeto ganhou repercussão e 170 pessoas foram reconhecidas na foto. “No início, a idéia era publicar 68 personalidades para simbolizar o ano de 1968. Depois chegamos ao número de 100 identificados, que poderia representar os 100 mil participantes que deram nome à passeata”, lembra Evandro Teixeira. Ele diz que pretende publicar uma segunda edição e incluir os 70 personagens que ficaram de fora. “O livro está bombando. Não esperava tanto sucesso, mas não quero contar glória. A segunda edição só Deus dirá”.

Estudante de medicina é perseguido por Policiais Militares durante protesto na Cinelândia, Rio de Janeiro, 1968

“Eram 18h25 quando 25 soldados do Batalhão de choque da PM invadiram o restaurante Calabouço, no Centro do Rio” PASSEATA E MORTE Evandro Teixeira conta que, no dia da passeata, tinha que cumprir a pauta de acompanhar Vladimir Palmeira, um dos principais líderes estudantis. “Trabalhava para o Jornal do Brasil, onde atuo até hoje, e tinha que fotografar Palmeira. Eu poderia ser o responsável pela prisão dele com a cobertura fotográfica”, ressalta Teixeira. Neste mesmo dia o fotógrafo conta que houve rumores de que Vladimir seria preso ou morto, mas mesmo assim realizou seu trabalho e fez as fotos. Curio-

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Acima, da esquerda para a direita, Ernandes Fernandes, Elayne Fonseca, Carlos Zilio, Maria del Carmen, Eduardo Escorel, Ana Luísa Escorel, Henrique Colasanti e Teresa Pontual. Fotografados por Evandro Teixeira na Cinelândia, Rio de Janeiro

A passeata atingiu diversas camadas da sociedade. Jornalistas, artores, cantores, intelectuais, padres, freiras, trabalhadores. Foi a primeira manisfestação – com apoio da massa – de grande proporção, desde o golpe militar de 1964

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samente a foto da multidão que virou símbolo da passeata só foi publicada em seu primeiro livro Fotojornalismo, lançado em 1983. O jornalista Fritz Utzeri conta no livro como tudo começou. “Eram 18h25 quando 25 soldados do Batalhão de choque da PM invadiram o restaurante Calabouço, no Centro do Rio, onde estudantes jantavam, enquanto outros assistiam às aulas e se preparavam para uma passeata”. O fato ocorreu no dia 25 de março e Fritz também cita o trecho de uma matéria publicada no Jornal do Brasil que conta a tragédia que desencadeou diversas manifestações. “O tenentecomandante do pelotão sacou o revólver e atingiu Édson Luiz de Lima Souto, que, em companhia de Benedito Frasão Dias, assistia à aula”. A morte do estudante causou muita revolta. Seu corpo foi carregado até a Assembléia Legislativa onde se iniciou um protesto violento. O enterro de Édson Luiz reuniu milhares de pessoas, mas tudo transcorreu sem incidentes com a polícia. O que não aconteceu nos dias seguintes. Após vários conflitos com a PM, o dia 21 de junho ficou conhecido como a “Sexta-feira Sangrenta”. Travouse uma batalha que envolveu não só estudantes, mas boa parte da população que reagiu. O movimento estudantil cresceu e ganhou apoio da massa. Então veio a “trégua” do governo e a passeata do dia 26 de junho foi autorizada. A marcha correu as principais ruas do Rio de Janeiro. Em discurso, Vladimir Palmeira lembrou a morte do estudante e aos gritos, sem uso do microfone, conduziu os manifestantes. REVISTA_1968

“Aquele dia foi um dia especial. Tínhamos gente da maior importância, intelectuais da música, cinema e do teatro, como Chico Buarque, Gilbeto Gil, Edu Lobo, gente da igreja, freiras, padres, de todas as classes da sociedade”. Evandro Teixeira considera que foi um dia de dar um basta a todas as adversidades que estavam sendo cometidas pelo governo. O protesto estudantil não foi somente contra a ditadura, mas também em oposição à política educacional do governo, que revelava uma tendência à privatização.

VIDA DE FOTÓGRAFO

Paulo Jabur

PERSONAGENS E LENDAS O livro mostra os rostos dos personagens identificados na foto, e compara a história de cada um com imagens atuais feitas no mesmo local, a Cinelândia. Alguns moram fora do País e forneceram as fotos. Foi o caso de Leda Montenegro que nasceu em Manaus e hoje mora na Flórida, Estados Unidos. Como também Beatriz Mira, que nasceu no Rio de Janeiro e hoje mora no México. O arquiteto Ernandes Fernandes e a designer Elayne Fonseca foram os primeiros a se reconhecerem na foto e mantêm até hoje uma relação de amizade com o fotógrafo. Casaram-se três anos depois da passeata e em 1979 viram a foto pela primeira vez: “Quando editamos o primeiro livro do Evandro, em 1981, Fotojornalismo, a Elayne se redescobriu na foto, que até então era desconhecida. Foi a primeira vez que a imagem foi publicada”. Fernandes foi trabalhar no Jornal do Brasil, e lá conheceu Evandro Teixeira, que contratou a designer, sua mulher, para desenvolver o projeto gráfico de 68 Destinos. 68

Evandro Teixeira construiu, ao longo de 50 anos, uma carreira notável e tornou-se um dos maiores fotojornalistas do Brasil. Quando menino, morava numa pequena cidade da Bahia, Jequié, e já se interessava pela arte. Com uma caixa de papelão conseguia reproduzir filmes, em películas, trazidas de Salvador. Mas quando viu uma série de fotografias do jornal O Cruzeiro, descobriu que seria fotógrafo. Foi para o Rio de Janeiro, onde começou fotografando casamentos e fazendo bicos. Seu primeiro trabalho como fotojornalista foi em 1958, no jornal Diário da Noite. Em 1962, foi trabalhar no Jornal do Brasil que era considerado um dos principais veículos jornalísticos do País. “Fiz grandes coberturas no mundo e no Brasil. Mas o momento mais significativo e dramático foi durante o Golpe Militar no Chile, que foi muito pior que no Brasil”. Ele diz que foi uma tristeza muito grande que o levou a chorar naquele dia. Também foi o único a fotografar o corpo do poeta chileno Pablo Neruda no porão do hospital, pois conhecia a mulher do poeta.

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Cavalaria invadindo a missa do estudante Édson Luís na Igreja da Candelária, Movimento Estudantil, Rio de Janeiro, 1968. O fotógrafo Evandro Teixeira conseguiu um bom ângulo realizando a foto de cima de um edifício.

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ENTREVISTA_ZUENIR VENTURA

Fotos: Divulgação

“É incrível como a geração de 68 tem um olhar de antipatia com a geração de hoje” Zuenir Ventura

1968: O PERSONAGEM QUE

MUDOU A HISTÓRIA Entenda por que o ano se tornou, para o jornalista e escritor, um grande personagem que não sai de cena Rogério Amador

E

le é referência quando o assunto é o ano de 1968. E não é para menos. Faz jus à prerrogativa de que todo o bom jornalista nada mais é do que testemunha do seu tempo. No seu caso, foi exatamente isso que ocorreu. Foi um dos primeiros a ver o corpo do estudante Édson Luiz, morto por policiais em março de 1968, durante a manifestação dos estudantes para protestar contra a alta dos preços da refeição, no Restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro. Em maio do mesmo ano, quando era repórter da revista Visão, recebeu como prêmio uma viagem a Paris. E justamente nessa ocasião estourou uma das maiores manifestações estudantis já realizadas e que ficou conhecida como “Maio de 68” em todo o mundo.

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Sorte ou acaso? Zuenir Ventura acha que nenhum dos dois. Esse mineiro de Além do Paraíba, que acaba de completar 77 anos, acha que especificamente o ano de 1968 é um grande mistério. “Naquela época, não havia comunicação em tempo real como temos hoje. E, portanto, como explicar todas essas manifestações terem ocorrido quase que ao mesmo tempo, em vários lugares do mundo como Espanha, Tchecoslováquia, México, Estados Unidos, sem terem sido planejadas ou até mesmo vistas por alguém? É inexplicável”, conclui o jornalista, que após voltar ao Brasil foi preso pelo regime militar por ser taxado de articulista da imprensa em favor do Partido Comunista. Escritor e colunista do jornal O Globo e da revista Época, Zuenir tem na fala serena e na

qualidade de seus textos a sua marca registrada. Ganhou prêmios importantes como o Esso de Jornalismo e o Vladimir Herzog, com a série de reportagens para o Jornal do Brasil sobre a morte do líder seringueiro Chico Mendes, no Acre, e o Jabuti com os livros Cidade Partida e 1968 — O ano que não terminou. Em 2008, lançou o segundo livro sobre o ano, 1968 — O que fizemos de nós, pela Editora Planeta. Na obra, ele faz um balanço das consequências de todas essas manifestações e traça um paralelo político/comportamental com a atualidade, entrevistando personagens que marcaram a época no Brasil, como Fernando Henrique Cardoso, Caetano Veloso, Fernando Gabeira e José Dirceu. No momento, o escritor e jornalista está divulgando o seu mais recente livro pelo País. Num raro

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momento em sua casa, a Revista 1968 entrevistou por telefone aquele que é considerado como “a voz de 68”. Leia a seguir os principais trechos da conversa: Revista 1968 – Em seu primeiro livro, 1968 – O ano que não terminou o senhor retrata os principais eventos no Brasil e suas consequências. Na sua análise, qual foi o principal fato em 1968 que serviu para mostrar a indignação do povo em relação a um modelo autoritário? Zuenir Ventura – Na verdade, é difícil citar um único fato. Esse ano foi marcado por várias manifestações, principalmente pelas questões comportamentais. Costumo dizer que 1968 foi um divisor de águas, sobretudo pelo plano das liberdades pessoais. Se hoje as meninas podem andar livremente pelas ruas com suas minissaias, foi uma conseqüência de 68. Podemos destacar o movimento feminista, que ganhou corpo a partir de 1968, a revolução sexual, o movimento homossexual, enfim. Quando em sã consciência poderíamos ver mais de três milhões de gays nas ruas de São Paulo realizando uma manifestação? Era algo totalmente impensável antes de 68. Também podemos citar o movimento ecológico, o movimento negro, situações e desejos que começaram a aparecer em 68. Portanto, é impossível citarmos sobre um único fato ou o mais importante.

Revista 1968 – No Brasil, as manifestações além de comportamentais, não tinham um cunho político? Zuenir – Sem dúvida. Uma coisa

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levava à outra. Vivíamos no auge da ditadura militar e o que o povo, ou a grande maioria dele queria, era ter liberdade em uma série de coisas que acabei de citar, e que o governo da época não abria mão. Aliás, esse fato não ocorria apenas com a gente. Grande parte da Europa também passava por situação semelhante.

“É impressionante como o assunto desperta a curiosidade e a simpatia das pessoas. Eu brinco que daqui há 40 anos continuarei a contar as mesmas histórias, só que para um outro público” – Já que o senhor citou a Europa, será que sofremos influência do que estava ocorrendo lá? Zuenir – Engraçado que você citou uma coisa da qual até hoje não tenho resposta. Para mim, é um verdadeiro mistério o que aconteceu em 68. Todo mundo pergunta: como tudo isso aconteceu, em diversos lugares do mundo como México, Praga, Paris, Madri, sem a comunicação que existe hoje? Naquela época, para uma correspondência sair do Brasil para a França, por exemplo, demorava meses para chegar ao destino. Ou seja, era praticamente impossível saber o que acontecia em outro país ou em outra Revista 1968

região. E tudo aconteceu com uma sincronia incrível, com os mesmos anseios. É por isso que digo que 68 não é um ano, e sim um personagem. – Como assim um personagem? Zuenir – 1968 é um personagem, porque vivemos discutindo sobre ele. Igual a um sujeito narcisista que não quer sair de cena. É interessante. Outro dia numa palestra em uma Universidade, observei que a platéia era grande e heterogênea, ou seja, havia pessoas ali que em 1968 já tinham 20, 30 anos. Outras que nasceram naquela época e muitas que souberam de 68 apenas pelos livros ou que ouviram falar. È impressionante como o assunto desperta a curiosidade e a simpatia das pessoas. Eu brinco que daqui a 40 anos continuarei a contar as mesmas histórias, só que para um outro público. Revista 1968

Revista 1968 – O senhor esteve na Europa por ocasião das manifestações em 1968. Qual a sua visão sobre o ocorrido? Zuenir – Essa é outra história interessante, porque eu não esperava estar lá. Na época, eu trabalhava na revista Visão, no Rio de Janeiro, e recebi como prêmio uma passagem para Paris, para passar uns dias. Pois bem, só foi pisar na França, isso em maio de 1968, que estouraram as manifestações. Até hoje brincam comigo sobre esse fato, que, aliás, foi um dos motivos da minha prisão. Havia um coronel chamado Pimentel e assim que desembarquei no Brasil ele me interpelou dizendo que eu era uma espécie de pombo-correio de Moscou, que na verdade eu estava trabalhan-

do para os partidos comunistas. Coisas da ditadura da época. Não adiantava falar que era coincidência que ele não acreditava. Mas voltando ao que você me perguntou, com relação à França, as manifestações de igual modo eram de ordem comportamental, assim como em boa parte do mundo. Revista 1968 – Por que lideranças importantes de 68 como Nicolas Sarkozy, Daniel Cohn-Bendit, na Europa, e Fernando Gabeira, no Brasil, gostariam de esquecer esse ano? Zuenir – Existe uma vertente ruim sobre esse ano, onde lhe são atribuídas todas as questões negativas sobre temas considerados importantes como a família, a falta de respeito às hierarquias, as drogas, enfim, situações que tiveram como conseqüência aquelas apregoadas pelas manifestações em 68. Eu já vejo de forma diferente. E é por isso que é importante discutir 68. Por exemplo, eu acredito que o legado da Semana de 1922, a antropofagia de Oswald de Andrade, foram assimiladas pelo movimento de 68. Assim como 68 deixou como legado para os dias atuais o cinema novo de Glauber Rocha, a música da Tropicália, ou seja, 1968 também têm de ser exaltado.

– No segundo livro o senhor entrevistou pessoas influentes como Caetano Veloso, Fernando Henrique Cardoso, Fernando Gabeira e o ex-ministro José Dirceu. Eles desempenham papéis importantes no cenário político e cultural da atualidade. O senhor acredita que essa geração amadureceu

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quanto a seus ideais? Zuenir – Quando eu entrevistei o Caetano Veloso, ele falou uma frase emblemática para mim. Ele disse: “Zuenir, para ser parecido tem que ser muito diferente”, uma alusão evidente da importância do ano de 68 para todos. Não tenho dúvidas de que para aqueles que, de alguma forma, participaram dos movimentos, se interaram com tudo aquilo o que aconteceu, cresceram demais nas mais variadas formas de enxergar

as questões políticas/comportamentais. Tanto que essas pessoas que você citou são importantes no cenário político/cultural, mas que graças à liberdade e à democracia conquistada praticam ideologias diferentes. – A geração de hoje é mais apática que a de 40 anos atrás? Zuenir – É incrível como a geração de 68 tem um olhar de antipatia com a geração de hoje. As pessoas falam que essa geração só quer saber do presente, não tem apego às ideologias, vivem apenas de paroxismos. Mas para essas pessoas eu pergunto: qual

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o apelo que o jovem tem hoje para se tornar um senador da República, por exemplo? A geração de hoje vive outra revolução, que é a revolução tecnológica. As principais descobertas nessa área foram feitas por jovens como o Google, a Microsoft. Portanto, os jovens de hoje não são mais ou menos apáticos, só vivem situações diferentes. – Quais as heranças que 1968 deixou para nós? Zuenir – Como eu já te disse, toda a revolução ou manifestação tem suas heranças positivas e negativas. E 1968 não foi diferente. Acredito que, de positivo, o que ficou foi a generosidade dos jovens, daqueles que lutaram e se doaram de corpo e alma pela uma causa pessoal e coletiva, que cresceram através de uma ideologia que foi perseguida e conquistada. Agora, a herança maldita, eu não tenho dúvidas que foram as drogas e toda essa permissividade que está por trás dela. No segundo livro, escrevo acerca de uma rave que visitei. Imagina só um velhinho em uma festa dessas. Mas foi legal, me lembrou muito o Woodstock, do movimento hip. Hoje, temos a música eletrônica, o new hip. Inclusive o título desse capítulo ficou assim: “A primeira rave a gente nunca esquece”. Agora, essa questão da ilusão ingênua, da busca pela vertigem e da felicidade pelas drogas são uma lástima. Até porque quem se aproveita disso são as grandes multinacionais, que faturam horrores através da venda de drogas. Mas enfim, apesar de tudo o que falamos, não tenho dúvidas de que foi muito bom ter tido 1968. 68

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JOVEM SENHORA Reprodução

A saia curtíssima que desnudou as pernas das jovens dos anos 60 simbolizou mais que uma nova tendência e continua em alta Gabriela Aguiar

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A minissaia demonstrava mudanças culturais e comportamentais

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uando pensamos no trabalhão que as mulheres tiveram para se impor política e socialmente nos anos 60, a peça de roupa que retrata perfeitamente o movimento pela emancipação é a minissaia. É lógico que o assunto é polêmico. Se você, por exemplo, conversasse com uma adepta radical do feminismo, ela discursaria: “A minissaia transforma a mulher num objeto sexual”. Já as liberadas diriam: “Que nada! Alienada é quem não curte o próprio corpo”. O fato é que em 1968 a minissaia surgiu para libertar e polemizar. A idéia era ousar e mostrar que a moda deveria partir de cada pessoa, pois não existia uma tendência única. Era através do modo de se vestir que as pessoas mostravam suas atitudes e comportamentos. O pequeno pedaço de pano veio para mudar o guarda-roupa feminino. Mary Quant e o francês André Courrèges projetaram e lançaram a minissaia que faz sucesso até hoje. Mas Quant deixou bem claro: “A idéia da minissaia não é minha, nem de Courrèges. Foi a rua quem a inventou”. Mary era estudante e achava a moda “feia”. Por isso, passou a desenhar as suas próprias roupas

MODA_ATITUDE e abriu lojas em Londres, junto com o marido, e fez sucesso. Seus empreendimentos se tornaram um ícone na vanguarda dos anos 60. Já André Courrèges fez tanto sucesso quanto Mary Quant, principalmente com a arte inovadora de criar roupas com uma visão futurista com formas geométricas, associando sua outra profissão de engenheiro civil. O designer em moda disse: “Hoje, a mulher é igual ao homem, trabalha, tem mil afazeres. Por isso é preciso facilitar sua vida e lançar mão de todo o avanço tecnológico que traz esta facilidade”.

Segundo Mary Quant, a idéia da minissaia não é dela, nem do marido Courrèges. Mas sim da rua que inventou a peça Evolução Novos modelos surgiram, novas combinações de roupas para usar com elas, além de cores e acessórios. Hoje existem minissaias jeans, de couro, mais soltas e bem apertadinhas, desfiadas, de prega, cós alto ou baixo, meio aberta dos lados, de zíper ou com botões, de cores leves ao mais extravagante xadrez, isso sem contar a de oncinha. “O estilo mudou, mas a peça nunca sai de moda”, diz Maria Clotilde Frassei, conhecida como, Clô. Destaque nas passarelas, ela conquistou espaço no mundo da moda. Participou de desfiles REVISTA_1968

em Paris, Milão, Tóquio, o que a transformou, no início da década de 90, em uma das cinco principais modelos brasileiras mais bemsucedidas no exterior. Clô conta que as idéias da década de 60 para a moda nunca deixaram de ser usadas. “A minissaia está sempre presente nas coleções primaveraverão, principalmente num país tropical como o Brasil”. As saias de mais ou menos 30 centímetros de comprimento deixavam ousadamente as pernas à mostra, sinônimo de feminilidade e da libertação sexual. Clô lembra de uma frase dita por Mary Quant: “A minissaia é sexy, mas jamais obscena. A moda é feita para provocar o desejo”. E é assim até hoje, comenta Clô: “A minissaia é uma peça provocante que leva os homens à loucura quando uma mulher dá aquela cruzadinha de pernas. As mulheres arrancam olhares quando estão usando uma, mas é lógico que para usar uma peça como é essa, é preciso ter belas pernas”. temperamentos Hoje, as mulheres demonstram a personalidade por meio de suas roupas. As mais românticas preferem tecidos de cores discretas como bege, cor-de-rosa, azul claro às texturas suaves e delicadas. Esse é o único estilo em que elas não são chegadas em minissaias. Já as sexys e atrevidas, a rebelde, a supernatural ou a mulher esportiva não dispensam a peça curta e provocante. A aluna do curso de moda da Universidade Santa Cecília, Camila Neves, diz que não dispensa uma minissaia. Ela que foi uma das melhores peças inventadas e que demonstra muito o estilo de cada mulher: “Dizem que as gor-

“A minissaia é sexy, mas jamais obscena. A moda é feita para provocar o desejo” Maria Clotilde Frassei, conhecida como Clô dinhas não ficam bem de minissaia, mas eu não me preocupo com a opinião dos outros, estou fazendo moda e vou aprender a criar estilos de roupa que caem bem no meu corpo. Aprendi que cada mulher tem sua maneira de se vestir e é com isso que elas mostram um pouco da sua personalidade. Eu, por exemplo, sou uma menina meio maluca e adoro muitas cores, e minhas minissaias não são diferentes”. “Acho difícil a minissaia sair de moda, toda mulher gosta, todo homem também”, brinca a coordenadora do curso de design de moda do Centro Universitário Monte Serrat, Paula Orsatti: “A única coisa que acontece é o surgimento de novos modelos para diversificar e não cansar. É preciso inovar sempre para chamar atenção, se não perde-se o prestígio da criação!”. Ana Maria de Oliveira era empregada doméstica. Hoje aposentada e com 60 anos, ela conta que adorou a idéia de pouco panos, e que gosta até hoje. “Lembro que no início eu comprei uma minissaia de cor preta e joguei uma blusa branca, porque na época essas cores estavam em destaque. Gosto de minissaia, só que na minha 68 idade não dá mais”, brinca.

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CENA_TEATRAL

A ERA DE AQUARIUS

A contracultura encenada em Hair: Hippies. Cabelos compridos. Roupas coloridas. Maconha. Nu. A paz e o amor Gabriela Soldano

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air, a peça escrita em 1968 por James Rado e Jerome Ragni, com músicas de Galt MacDermot, aborda temas como a homossexualidade, masturbação, drogas e a contracultura. Logo na estréia, o musical tornouse uma bandeira dos hippies e pacifistas contrários à Guerra do Vietnã, um hino de paz e do amor livre. Na peça, os personagens usam roupas coloridas e cheias de flores. Os homens têm cabelos compridos e despenteados e, às vezes, a barba longa, para refletir rejeição e indignaçao à aparência burguesa. Já as mulheres têm uma aparência natural: cabelos longos, soltos, encaracolados, despenteados e enfeitados com flores. The Age of Aquarius é uma das músicas que ficaram famosas com a peça, que prega harmonia, compreensão, simpatia, confiança e paz. Celebrando uma utopia de que todos, sob a mesma terra, festejarão o amor, que será a única forma de expressão da sociedade. A estréia brasileira do musical Hair, em 1969, foi no Teatro Aquarius, em São Paulo (hoje Teatro Zaccaro), durante a fase mais dura do regime militar: o AI-5 acabara de entrar em vigor. A direção musical foi de Cláudio Petraglia, a coreografia de Márika Gidali e a tradução das músicas para o português de Renata Pallotini. Ademar Guerra foi o responsável pela iniciativa de montar o espetáuclo aqui. Acompanhado do

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Em 1979, Hair é adaptado para o cinema por Michael Weller, com a direção de Milos Forman. O ator Treat Williams interpreta o hippie Berger Fotos: Reprodução

produtor Altair Lima, eles tiveram de vencer o preconceito dos empresários teatrais que achavam impossível montar o musical no Brasil. Nus por um minuto A peça teve ainda de enfrentar uma censura rígida, pois todos os atores apareciam no palco completamente nus. Após longa negociação, os censores concordaram que em apenas uma cena, com um minuto de duração, a nudez seria mostrada. Todos os atores teriam que ficar imóveis no palco, durante o minuto negociado com a censura. Por esta razão, a cena da nudez teve um tratamento sensível e delicado e é lembrada até hoje pelo público e pela crítica. O escritor e crítico literário Flávio Viegas Amoreira acha que a polêmica da peça vai além do nu. Para ele, era a sensualidade e a provocação intimidante e subversiva exercida pelo corpo em relacionamentos não-convencionais que provocava polêmica na peça: “Ademar Guerra teve de aceitar o nu estático. Isso prova que, para a censura, a genitália em movimento teria apelo tão demolidor quanto a Passeata dos Cem, na Avenida Rio Branco, Rio de Janeiro. Até 1968 o mundo era governado por hipócritas a serviço dos ‘bons costumes’”. A montagem brasileira foi também a grande responsável por tornar famosos jovens atores como Armando Bogus, Sônia Braga, Maria Helena, Altair Lima, Benê Silva, José França, Neusa Maria, Marilene Silva, Laerte REVISTA_1968

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Morrone, Aracy Balabanian, Gilda Vandenbrande, Bibi Vogel, Acácio Gonçalves, Pingo, Nuno Leal Maia e Ney Latorraca. Mas aos 18 anos, Sônia Braga foi a grande estrela do espetáculo, homenageada depois por Caetano Veloso na música Tigresa: “Uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel”. É essa tigresa que diz a Caetano que tudo vai mudar, cantando o lema da peça: “Porque ela vai ser o que quis, inventando um lugar/ Onde a gente e a natureza feliz vivam sempre em comunhão”. A funcionária pública aposentada Maria Regina Baptista tinha 21 anos na época do lançamento da peça em São Paulo. Ela relembra quando viu o espetáculo: “A primeira peça que assisti na vida foi Hair. Me lembro que saí do teatro encantada, e assim continuo até hoje. A peça mudou a vida de muita gente, porque o que buscamos, na época, era ser ‘free’. Ao ver Hair, pensei que realmente podia ser”. A montagem santista Em 2003, o grupo amador de Teatro DNA, de Santos, fez uma montagem do musical Hair para uma cena de 15 minutos dentro do 7º Fescete, com apresentações no Teatro Municipal Brás Cubas e no Teatro Rosinha Mastrângelo. A cena continha diálogos de várias partes do texto e era centrada, basicamente, na divergência de pontos de vista entre o hippie Claude e seus pais. A direção foi de Ivan da Conceição, com produção da designer Márcia Okida. “Hair sempre foi uma de minhas paixões. Resolvemos resumila e apresentá-la naquele festival. Dirigir a peça foi um imenso prazer”, diz Ivan da Conceição. Carregada nos ombros de um

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dos atores, Márcia Okida solou no início do espetáculo a música The Age of Aquarius. O restante do elenco fazia a percussão. Eram os hippies invadindo a platéia, cantando e distribuindo flores ao público. O momento agradou a maquiadora e figurante Rose Magalhães. “O mais legal foi que a minha mãe, que estava na platéia, não me reconheceu quando entreguei a flor para ela”. Ivan da Conceição lembra que mesmo não dominando por completo a música, o público se deixou encantar pela cena: “Foi um momento lindo, bem colorido, que conseguiu empolgar a platéia. As canções trazem uma mistura de sons que traduz a miscelânea cultural da década de 60. De alguma forma, a platéia faz uma viagem no tempo quando assiste essa peça”. Okida lembra que a reação do público às canções não era esperada pelo grupo: “Foi uma surpresa. Isso porque tinha muita gente jovem na platéia que, talvez, não conhecesse Aquarius. Mas o público cantou junto e foi emocionante. Também cantamos Manchester Inglaterra, Let the Sunshine in e o Hare Krishna”.

A santista Gildinha Vandenbrand fez parte do elenco de Hair. A atriz de cabelos soltos entoa hare christma no ambiente que a fez levar a vida real ao teatro. Foi no palco que ela se casou com o ator Fernando Reski

Proibido para menores Assim como na peça original, a montagem causou polêmica, isso porque o DNA apresentou a cena de nu. Na ocasião, ocorreu um incidente. Como no teatro houve apresentações infantis naquela tarde, os organizadores acabaram permitindo que o público infantil permanecesse para o espetáculo da noite, apesar da indicação encaminhada pelo grupo DNA alertar que o espetáculo era adequado para maiores de 18 anos, justamente em razão da cena de nu

Especialista em cores, a designer Márcia Okida aproveita o contexto da peça e abusa das tonalidades, que pintram a cultura 68, no cartaz do grupo DNA

Entre os artistas que se lançaram com Hair, Ney Latorraca – de camisa aberta – particpou da montagem no Teatro Coliseu, em Santos

frontal masculino. “As crianças viram a cena, lógico, e alguns pais ficaram indignados com que os filhos estavam vendo”, diz Márcia. Rose Magalhães relembra a impressão do público naquele momento: “Houve um certo horror com a silhueta masculina de Claude nu na última cena”. Ivan da Conceição também relembra a polêmica: “Famílias saíram do teatro revoltadas, nos taxaram de indecentes e outros queriam saber quem era o diretor para ir tirar satisfação”. Márcia Okida conta por que a cena do nu foi escolhida para a montagem: “Usamos as marcações originais. Hair é famoso por causa da cena do nu, que nem é uma coisa tão exagerada quanto as pessoas pensam. O personagem quer se libertar de todas as amarras, de tudo que a sociedade REVISTA_1968

impõe. E a maneira que ele escolhe para mostrar para os pais que quer ser livre é tirando a roupa e saindo de casa”. Espera e impacto A montagem santista também causou expectativas no público. Okida lembra: “Os outros grupos teatrais estavam ansiosos pela nossa apresentação. Como foi divulgado que a peça seria apresentada, queriam saber o dia e como seria a apresentação”. Ivan da Conceição diz que havia uma certa pressão no ar. “Havia muita cobrança, até de quem já conhecia o texto da montagem da década de 60. Mas acho que soubemos passar muito bem as mensagens da peça e do grupo”. O DNA teve autorização da tradutora oficial no Brasil da obra, Renata Pallottini, para rea-

lizar a montagem inteira de Hair, inclusive com acesso a uma cópia completa do texto original da peça. Ivan da Conceição percebeu que Renata achou interessante que um grupo formado por jovens atores desejasse montar Hair nos dias atuais: “Ela se surpreendeu com nossa intenção de discutir assuntos tão polêmicos, enquanto boa parte das montagens vigentes está preocupada em apenas entreter a platéia”. O diretor diz que a peça ainda provoca impacto: “Hair sempre causará espanto, pois sexo, drogas, guerra e liberdade individual, entre outros assuntos, dificilmente são abordados tão sem barreiras quanto nesta peça. Não podemos esquecer que dizer não à guerra é, e sempre será, um importante papel dos verdadeiros artistas”. 68

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COMPORTAMENTO_SOCIAL

NOVA FASE DE UMA

Amanda Albuquerque

A ANTIGA BASE

Reprodução

A influência das mudanças sociais começadas há 40 anos, sob os olhos da família

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Nas ilustrações das revistas dos anos 40 e 50, a mulher está sempre envolvida nos afazeres domésticos. Isso começa a mudar nos anos 60

s mudanças culturais e de comportamento da década de 60 transformaram o núcleo familiar a ponto de parecer que alguém havia reescrito completamente o papel de cada um. A personagem principal, o pai, passou a dividir a responsabilidade da renda e da gestão familiar com uma personagem que antes era coadjuvante, a mãe. Por sua vez, as personagens principais na vida dos pais, os filhos, passaram a ser tratados às vezes até como vilões. O movimento feminista foi o fator que influenciou com maior importância a troca de valores entre o homem e a mulher. As mães deixaram de ser aquelas que esperavam os maridos em casa, com a mesa de jantar pronta, os filhos sentados à mesa de banho tomado para se tornarem mais uma fonte de renda na economia de casa. Antes dos anos 60, dificilmente uma mulher trabalhava fora, a não ser que fosse professora. Quem ficaria em casa, cuidando da educação dos filhos e das tarefas domésticas? Foi a partir dessa década que o homem, aos poucos, foi deixando de ser o único provedor da casa, aquele que põe a comida na mesa, que paga as contas, que chega cansado do trabalho e vai ler o jornal. Outro fator que modificou o conceito de família foi o consumismo e a realização instantânea do desejo, ou seja, o ato de satisfazer imediatamente determinada vontade. Ambos são reflexos da chamada pós-modernidade, período histórico em que se preza o individualismo. De acordo com o professor e antropólogo Darrell Champlin, o potencial que as mulheres ganha-

ram de controlar o seu destino reprodutivo, resultado do avanço científico, acelerou a mudança. A partir de então, ela pôde atuar mais no mercado de trabalho. A pílula anticoncepcional foi a exclamação no grito da liberdade feminina, deixando apenas aos velhos dogmas sociais, o poder de proibir a mulher de trabalhar para permanecer na cozinha. As mulheres combateram esses dogmas como mães e educadoras. Elas não mudaram seus casamentos, mas passaram a educar seus filhos, e principalmente filhas, com os novos conceitos de igualdade e independência. Os filhos cresceram com uma visão diferenciada. Os meninos deixaram de procurar uma fêmea apenas por seus dotes culinários e as meninas não pararam de estudar e nem de trabalhar. Champlin diz que houve outras mudanças econômicas e sociais que levaram a mulher ao mercado de trabalho. Uma delas é a maneira como a mídia popularizou os novos conceitos consumistas que têm o único propósito de satisfazer necessidades imediatas. “De repente, você passa a ter uma visão muito diferente da que tinha antes. As pessoas passam a enxergar o mundo de um jeito diferente. Passando a entender as notícias, os acontecimentos globais e que têm mais chances na vida do que achavam que tinham antes. Você tem então, um mundo novo e inteiro na sua frente”, diz o antropólogo. Todo esse pensamento teve ênfase na mulher, que, de uma hora para a outra, passou a ter um potencial muito maior de se desenvolver profissional e pessoalmente do que teve em qualquer outro momento na história. A desvalorização da família foi um fenômeno razoavelmente REVISTA_1968

recente no Brasil. Passou a ocorrer em meados da década de 70 em diante. Começou com a banalização da violência e da sexualidade e com os avanços científicos, certos pensamentos e paradigmas religiosos foram deixados de lado. “Estamos vivendo um momento sem precedentes na história da humanidade. Porque a estrutura familiar já não é mais tão imperativa quanto foi 40 anos, 30 anos ou até, 20 anos atrás”, diz Champlin. Logo, o casamento dos filhos de 1968 se tornou uma parceria em que o homem procura manter a casa em ordem e a esposa feliz, enquanto a mulher procura a sua independência financeira. A globalização e os avanços científicos não só firmaram a liberação da mulher e os valores feministas. Compor uma família deixou de ter o peso e a importância que era há 40 anos, passou a ser algo de interesse e satisfação apenas de sensações momentâneas que, às vezes, são hedonistas e egoístas. Segundo o sociólogo e professor Ricardo Galvanese, o casamento virou apenas uma forma de satisfazer o desejo de companhia. O consumismo acabou gerando um niilismo (descrença em valores absolutos). “Se a vida não tem um sentido fundamental o que importa sou eu e minhas sensações, então eu vou buscar aquilo que intensifique minhas sensações”, interpreta o sociólogo. O homem é um ser que necessita de convívio. “A partir do momento que ele se encara como um ser individualista, passa a tratar todos de uma forma descartável. Isso é reflexo do consumismo. Os casais passaram a ver o casamento, não mais como uma instituição, em que se deve permanecer para manter a base familiar, mas como

a satisfação pessoal de estar com a pessoa que ama. Se um dia deixar de amar vai abandonar e procurar outra família, sem se preocupar com filhos ou com o outro. A relação dura enquanto a outra pessoa for útil no sentido amoroso”, completa Galvanese. Foi o caso de Thallyta Ribeiro, que está separada há seis meses. “Ele vivia dizendo que eu era chata, que ligava o tempo todo e que queria participar demais da vida dele. Falava que se não fosse casado talvez teria um emprego melhor. Ter uma filha não o impediu de fazer as malas e ir embora. E ele não sente falta de nós, está aliviado”, conta Thallyta. O Sexo O movimento feminista e os avanços científicos trouxeram a pílula anticoncepcional. Foi a primeira vez que o sexo se separou da reprodução. É claro que havia a camisinha, mas ela não era opção da mulher e sim do homem. A partir do momento em que se tornou possível fazer sexo com um seguro controle de natalidade, somado à quantidade de vezes que o assunto é tratado na televisão, mais a recém-desenvolvida necessidade imediata e ainda apadrinhada há anos pelo movimento hippie de paz e amor, o sexo passou a ser tratado como normal, necessário e nãoobrigatoriamente interno ao

“Estamos vivendo um momento sem precedentes na história da humanidade. Porque a estrutura familiar já não mais é tão imperativa quanto foi 40 anos atrás” Darrell Champlin 37


SÉTIMA_ARTE Divulgação

A pílula anticoncepcional foi a exclamação no grito da liberdade feminina

casamento. Segundo a psicóloga Ana Maria Neiva Paiva, algumas pessoas dizem que isso é reflexo do movimento hippie, mas não é verdade. “Os hippies cultuavam a paz e o amor, a liberdade, não a libertinagem. Era um amor mais livre? Sim, mas era uma liberdade com uma tênue margem de controle, pois eles só faziam sexo com quem gostavam”, diz Ana Maria. “A banalização do sexo só ocorreu porque as pessoas levaram a expressão “livre” às ultimas conseqüências. Ninguém reparou que, no fundo, havia um certo controle e levaram o ato de fazer sexo apenas e tão somente como uma diversão, sem controle e sem finalidade”, completa. Pais e filhos Ainda falando na liberdade com limites, como citou a psicóloga, os pais de hoje tiveram uma criação controlada que não souberam passar ao filhos. “Vejo constantemente no meu consultório adolescentes e crianças com muito mais problemas que os seus pais. Eles sentem a necessidade de serem livres, é claro, mas chega um momento que duvidam do amor dos pais”, revela Ana Maria. A liberdade dada hoje em dia é fruto da onda liberalista dos anos 60, mas o que não foi passado adiante foi a preocupação amorosa. “Tentando ser diferente dos pais e da época ditatorial que viveram,

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os atuais resolveram mostrar aos filhos que confiam neles, dando liberdade e autonomia. Só esqueceram de explicar isso aos filhos”, diz Ana. Essa confusão acontece quando os responsáveis realmente se preocupam com os filhos, o que não é 100% dos casos. Algumas vezes os pais deixam bem claro que a família está atrasando o desenvolvimento de suas carreiras. Os filhos passam a ser apenas uma consequência do casamento, não mais uma bênção. Eles não se tornam o centro das preocupações, pois não há tempo para isso. Então, a educação dos filhos passa a ser terceirizada. Terceirização de educação é quando os ensinamentos das crianças passam a ser responsabilidade de cursos de inglês, babás, escolas integrais, a própria televisão, internet, enfim, não há diálogo. Essas crianças vão crescer sem limites. “A liberdade de um indivíduo termina quando a liberdade de outro começa. Se a criança não sabe onde a liberdade dela termina, automaticamente ela não sabe quando a liberdade do outro começa. Vira um eterno círculo vicioso de hedonistas egoístas”, diz o sociólogo Ricardo Galvanese. Tanto o marido quanto a esposa tentam continuar crescendo pessoal e profissionalmente. “O ideal de um casamento é a máxima de ser um, permanecendo dois. De crescer em conjunto”, diz Galvanese. A pós-modernidade fez com que os conceitos de família perdessem o sentido. As pessoas passaram a lidar com os parceiros e filhos como obstáculos a serem vencidos, não como uma instituição. É o caso de Cristina Moreira, médica de 28 anos. “Quando eu engravidei, achei que iria surtar!

Nem pensei duas vezes: eu abortei na hora. Meu marido não soube. Ele trabalha em um banco, e não entenderia. Mas eu nunca iria conseguir subir na carreira tendo que parar por sei lá quantos meses por causa do filho”, diz Cristina. Nova família As famílias dos filhos de 1968, em sua maioria, estão desestruturadas. Fato. Mas não por isso as tentativas acabam. “Apesar dos resultados, as pessoas agem assim e acabam modificando a família sem intenção”, diz a psicóloga. “A confusão na busca pela felicidade e equilíbrio dos pais acaba mostrando aos filhos, no mínimo um exemplo do que não fazer”, completa. Diferentemente do que se pensa, pais separados não são a raiz de toda a desestrutura. A separação não impede um casal de desempenhar o papel de pai e mãe. É importante para os filhos discernirem a importância e a atuação de cada um. Sem diminuir ou substituir o papel de um ou de outro. “Eu pedi para estudar nos Estados Unidos, meu pai achou legal, mas só assinou a minha autorização depois que falou com a minha mãe”, conta Carla Lima, que tem pais divorciados. “Pais separados podem sim ser bons pais, contanto que a atenção com os filhos não mude”, diz a psicóloga Ana Maria. “É preciso alcançar um equilíbrio. O feminismo fez com que a mulher e o homem se tornassem iguais, isso foi bom para ambos. Fez com que o casamento se tornasse uma escolha, o que também é muito bom. O que falta é alcançar um novo ideal para a família, um modelo que possa se adequar à sociedade atual, pois a mudança foi inevitável”, diz 68 Ricardo Galvanese.

O SONHO DE

BERTOLUCCI Cineasta italiano retrata a revolução de 68 dentro de um quarto de Paris

Tatiana Ferraz

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Maio de 1968 é um marco cultural importante. O mês é retratado no filme Os Sonhadores (The Dreamers), de Bernardo Bertolucci. A revolução estudantil que tomou conta da cidade de Paris tinha como lema o slogan “é proibido proibir”. Enquanto no Brasil ocorria o período duro da ditadura militar, na França os jovens estavam preocupados em acabar com a guerra e em ter a total liberdade de seus direitos, inclusive o de expressão. O filme de Bertolucci, diretor que se tornou conhecido por O Último Tango em Paris, não é para qualquer um. Mas o filme retrata bem a época. Em 114 minutos, traz bons atores que mostram bem a realidade e a vontade dos jovens em se expressar. A sexualidade é explorada ao máximo. Dois rapazes e uma garota dividem no mesmo quarto a paixão pelo cinema e o desejo de mudar o mundo. Começa ai o mérito do cineasREVISTA_1968

ta. Refletir um ideal da época, em que a revolução política se mistura e se confunde com a revolução sexual. A divisão entre o prazer e a razão política é a grande descoberta de jovens que buscavam uma identidade. O filme faz alusão a eventos que marcaram o ano de 1968 na França, como a expulsão de Henri Langlois do cinema. Traz imagens verídicas nos posicionando e mostrando que nada daquilo foi mentira. Que as atitudes dos jovens eram pura consequência de tudo o que estava acontecendo e um ideal da busca de um mundo com maior liberdade. As sensações estavam à flor da pele e isso é muito bem retratado por Bertolucci. Ver o filme Os Sonhadores nos coloca frente a frente com Paris. Nos faz entender o lado comportamental da revolução que sempre lemos no jornal, mas que nunca é retratada com as ações do dia-a-dia. Aliar história e cultura é um dos papéis do cinema. E isso, Bertolucci o faz muito bem.

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Cartaz do flme de Bernardo Bertolucci

A revolução estudantil que tomou conta da cidade de Paris tinha como lema o slogan “é proibido proibir” 39


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2001: DECIFRANDO

O FUTURO

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Após 40 anos, o filme de Stanley Kubrick continua sendo referência em ficção científica Tatiana Ferraz

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filme 2001: Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick, faz uma ligação direta do homem primata com a conquista do espaço e a passagem de tempo mais drástica e impactante da história do cinema. Mesmo produzido em 1968, antes, portanto, de o homem ter chegado à Lua, o filme tem uma perspectiva visionária, um marco na ficção científica. “O longa tem efeitos que não envelheceram. Hoje assisto ao filme e não considero ultrapassado”, conta o professor de Teoria da Comunicação, André Rittes. O ano do longa é emblemático, pois representa o nascimento de uma era de mudanças. A obra começa na pré-história, ou seja, nos primórdios da evolução do homem. Numa das cenas mais clássicas do cinema, um primata, depois de vencer uma briga com uma tribo rival, joga um osso para cima e a peça se transforma numa nave espacial, ambiente onde se desenrola a trama. A tripulação de uma nave ao perceber que o computador, Hal 9000 ou apenas Hal, poderia cometer erros, passa a desconfiar da máquina. Hal, que tem uma inteligência criada pelo homem, percebe, e começa a sabotar a tão sonhada missão.

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Uma característica importante é a interpretação direcionada ao filme. Kubrick utiliza recursos que interagem de formas diferentes, mas que resultam em qualidade, como o uso de poucos diálogos em contraste com muita sonoridade. Nos primeiros 25 minutos de filme não há conversas, forçando o espectador a se atentar às imagens. Baseado em dois livros de Arthur C. Clarke (The Sentinel e 2001: A Space Odyssey), escritor de ficção científica morto em março último, Stanley Kubrick imprimiu à obra uma inovadora visão de futuro e previu a dependência que hoje temos em relação aos computadores. Para entrar nos ambientes da nave, os tripulantes são identificados pela voz. O design dos compartimentos é moderno, com objetos que hoje percebemos no dia-a-dia. A alimentação era feita por canudo ou com uma pasta de vários sabores, como por exemplo, batata frita. Eduardo Ricci comenta que a trilha sonora é importante no filme e complementa: “A simbologia do 2001 é transmitida de forma clara com o oposto do homem primitivo e do espacial”. Em 1972, o cineasta russo Andrei Tarkovsky dirigiu Solaris, o que em pleno período da Guerra Fria foi considerado uma resposta a 2001. Baseado no romance

de ficção científica de Stanislaw Lem, Solaris também tem a ação concentrada no espaço, mas não mostra uma visão de futuro e sim um enigma. “São duas histórias em paralelo. Ambos mostram o homem em contato com o espaço. Solaris agradou mais aos críticos, mas 2001 é uma das obras-primas do cinema”, diz Ricci. 68

Acima, o diretor Stanley Kubrick, ao lado, poster do filme 2001 Uma Odisséia no Espaço, lançado em 1968 e ganhador do Oscar de Melhor Efeitos Visuais

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ARTE_CULTURA A cantora paulistana Céu mistura jazz, reagge e samba em uma pickup, e esbanja influências tropicalistas

STATU QUÊ? A Tropicália sacudiu e polemizou o statu quo da Música Popular Brasileira e contagiou o cinema, o teatro e as artes plásticas Aline Monteiro

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ns dizem que o termo Tropicalismo surgiu com a exposição Tropicália, de Hélio Oiticica, realizada em 1967. Mas há quem garanta que surgiu, sim, com a Tropicália, mas em referência àquela música composta por Caetano Veloso, ainda em 1967. Outros referenciam o batismo do movimento ao jornalista e produtor Nelson Motta, quando este intitulou de Cruzada Tropicalista, um de seus artigos para a coluna Roda-Viva, do jornal Última Hora, no início de 1968. O fato é que em maio, há exatos 40 anos, terminava a gravação de um LP chamado Tropicália (Panis et Circensis), que contou com a participação de Caetano, Gilberto Gil, Tom Zé, Capinan, Torquato Neto, Os Mutantes, Rogério Duprat, Gal Costa, Maria Bethania e Nara Leão,

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disco que marcou a inovação dos arranjos musicais verde-amarelos. Se só para organizar o movimento foi necessário envolver tanta gente, dá para imaginar o que foi preciso para orientar o carnaval? Talvez nem mesmo os denominados tropicalistas entendessem bem o que estavam promovendo no País. O “carnaval” promovido pela turma durou um ano. Mas foi o suficiente para colorir as atitudes de mudança que pipocavam na cultura brasileira. A mistura de estilos musicais era usada por Glauber Rocha, que com a câmera na mão, e bem mais que uma idéia na cabeça, sacudia o cinema com o filme Terra em Transe, rodado em 1967. Nessa fase, o novo Cinema Novo estava voltado para as críticas políticas. Em 1969, Joaquim Pedro de Andrade utilizava a estética e as alegorias da Tropicália para filmar Macunaíma, que resgatava a antropofagia criada por

Oswald Andrade, em 1928. O texto antropofágico também foi palco de Zé Celso que, à frente do Teatro Oficina, dirigiu a peça Rei da Vela, fazendo oposição ao regime por meio da arte. Pelas mãos de Hélio Oiticica, o ato de movimentar as artes plásticas começava em 1964. O balanço era necessário para que se pudesse visualizar as cores e texturas usadas no Parangolé, um tipo de capa, ou bandeira, que só mostrava sua beleza quando movimentado no corpo de alguém. A interação do admirador com a obra se tornou ainda mais forte quando a sua exposição, mencionada no início, consagrou o conceito de arte penetrável. A Tropicália levava o “observador” por um caminho de cores, areia, plantas e araras, mesclando o ambiente tipicamente brasileiro, com influências do Pop Art e de culturas universais. Era a maneira que o artista plástico,

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FOTOS DE ÉPOCA

Evandro Teixeira: “A fotografia era a maneira de dar um grito, dar um alerta”

Acima, com Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe, de Glauber Rocha (foto), as músicas passaram a fazer parte do conjunto de elementos culturais do cinema; abaixo, rock, samba e batucado se juntam na banda carioca Pedro Luis e a Parede

performático e anarquista, usou para, em meio à repressão, instigar os sentidos do público a tomar consciência do próprio corpo, para depois perceber o ambiente político e cultural em que estava vivendo. Não havia para onde correr. O espírito inovador estava impregnado no cinema, no teatro, na literatura, na moda e na música, que encontrou um paredão formado pelos defensores da tradicional MPB. O uso de guitarras elétricas em produções nacionais era criticado pela turma que postulava a “pureza da música brasileira” e eram contrários a essas inovações, taxando-as de “coisa de americanos”, exatamente como a cantora Elis Regina, que chegou a promover uma passeata contra a guitarra. Mas os festivais de MPB, notadamente o da TV Record, acabaram favorecendo a introdução de novas combinações e arranjos na MPB, com Caetano, Gil e os Mutantes. Hoje, músicas de Zeca Baleiro, Céu, Pedro Luís e A Parede, Lenine, Cidadão Instigado e Los Hermanos demonstram influências tropicalistas. Seja pelas misturas de levadas nordestinas com guitarras, agora aceitas, ou por atitudes independen-

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tes e alternativas. Muitos artistas garantem ter mergulhado na música brasileira a partir da Tropicália que, na verdade, questionava o statu quo musical. O som tropicalista não era aceito devido à espera de uma evolução da MPB. Criar um estilo que interrompesse esse processo era trair o samba, “a genuína música brasileira”. As letras também eram motivo de perseguição pelo regime militar, que pressionava cada vez mais os compositores e intérpretes, chegan-

do a exilar Gilberto Gil e Caetano Veloso, porta-vozes do movimento. Todas as criações psicodélicas que fizeram parte da Tropicália deixaram seu recado: Era momento de inovar, chocar, criticar e, lógico, de alucinar. Quanto à definição do movimento, acredito nas mencionadas no início do texto, mas a oferecida a mim por um DJ tropicalista foi, talvez, uma das mais expressivas: “Tropicalismo não existe. Na verdade, ele é coisa dos olhos de quem ouve e dos ouvidos de quem vê”. 68

Fogo na Rural do Exército, Rio de Janeiro, 1968

A queda do batedor da FAB, Rio de Janeiro, 1965

Cavalaria invadindo a missa na Igreja da Candelária, 1968

Golpe Militar no Rio de Janeiro, 1964

Líder Vladimir Palmeira, Movimento Estudantil, Rio de Janeiro

Rainha Elizabeth no Brasil, São Paulo, 1968

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Trilha sonora sobre harmonia, amor, simpatia e paz

The Age of Aquarius A Era de Aquarius

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When the moon is in the Seventh House And Jupiter aligns with Mars Then peace will guide the planets And love will steer the stars This is the dawning of the age of Aquarius

Quando a lua estiver na sétima casa E Júpiter alinhar-se com o Marte Então a paz guiará os planetas E o amor dirigirá as estrelas Este é começo da era de Aquarius

The age of Aquarius Aquarius!

A era de Aquarius Aquarius! Tradução: Gabriela Soldano



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