E por Falar em Alienação

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E POR FALAR EM ALIENAÇÃO…


E por falar Em Alienação ...

Jean Bartoli Fone/Fax : 55 11 5584 8018 Celular: 011 91190480

E-mail: jeanbartoli@uol.com.br


E por falar em alienação...2 RESUMO: Falar em alienação tornou-se comum e perde-se a abrangência e a força desse conceito. Tentaremos resgatar sua dimensão antropológica e religiosa para mostrar o quanto ele pode ajudar-nos a entender por que a organização empresarial apresentada como fundamento de uma sociedade das organizações e do conhecimento torna-se um lugar de alienação para os executivos que nela trabalham. O impasse nasce do fato que a empresa está toda construída sobre a rentabilidade e o consumo. Tentaremos m ostrar que a primazia da dimensão consumista pode reforçar o processo de alienação que desafia todo ser humano a se reencontrar pelo menos parcialmente reconciliado. Sendo este conceito de alienação m uito próximo do conceito de idolatria, pensamos que o presente trabalho pode ser conduzido no âmbito das ciências da religião.

ABSTRACT: Talking about alienation becom es comm on and this concept's range and strength is often lost. We shall try to find out its anthropological and religious dimension thus evidencing how much it can help us to understand why the business organizations self-introduced as the foundation of a learning and business society is a place where executives become alienated. The impasse is due to the fact that business organization is wholly profit and consume-oriented. We shall try to demonstrate that the primacy of the consume dimension may strengthen the alienating process that challenges executives as every human being to experience at least a partial reconciliation. This concept of alienation is like the concept of idolatry: therefore it seems to us that this analysis may be developed in sciences of religions.

PALAVRAS-CHAVES

Alienação Reconciliação Executivos Sociedade do conhecimento

KEY-WORDS Alienation Reconciliation


E por falar em alienação...3 Executives Learning organization

A organização empresarial é considerada pelos seus mais ardorosos defensores como um lugar de busca e de realização do sentido da existência humana nas suas dimensões material, psicológica, social e, para alguns, espiritual. Apresentando-se assim, ela pretende mobilizar as pessoas de talento e tomar a direção do processo econômico-social. Ela pretende também estar na vanguarda da construção de uma sociedade das organizações e do conhecimento que possa abrir uma página nova na história da humanidade. Os executivos têm o papel especial de zelar por esta nova utopia. Esta pretensão pode levar, porém, a um impasse porque a empresa está toda construída sobre a rentabilidade e o consumo. Tentaremos mostrar que a primazia da dimensão consumista pode reforçar o processo de alienação cuja tentativa de superação é o desafio de todo ser humano para se reencontrar pelo menos parcialmente reconciliado. Sendo este conceito de alienação muito próximo do conceito de idolatria, pensamos que o presente trabalho pode ser conduzido no âmbito das ciências da religião. Este trabalho comportará três partes:

1. O que se pode entender por alienação: Erich Fromm e Paul Tillich fornecerão algumas pistas para entender o conceito. 2. O consumo, finalidade de toda a atividade empresarial concorre ao processo de alienação do ser humano. Portanto, a organização empresarial apresentada como lugar de realização pode, ao invés, concorrer ao processo de alienação do executivo que nela trabalha. 3. Existe um a possibilidade, mesmo que parcial, de um processo de reconciliação? Analisaremos se Paul Tillich pode oferecer alguma pistas de reconciliação parcial ao executivo que queira sair do processo de alienação.

1. O QUE PODEMOS ENTENDER POR ALIENAÇÃO? Discutiremos o conceito de alienação a partir de dois autores: Marx, que leremos com a ajuda e a interpretação de Erich Fromm, e Paul Tillich. A escolha vem do fato que Marx deu grande notoriedade ao conceito focando sua importância como chave de interpretação do


E por falar em alienação...4 relacionamento do ser humano com o mundo econômico. Na sua época, o mundo da produção econômica parecia bastante simples e dividido em duas classes: oprimidos e opressores, operários e patrões. Fromm, lendo Marx, acrescenta um terceiro ator, chamado hoje de executivo, que aparece entre as duas classes como agente manipulado e manipulador. Tillich analisa o conceito de alienação (estrangement) numa dimensão mais existencial e teológica. As duas abordagens, portanto, parecem complementares. Segundo E rich Fromm1,

“a alienação (ou “alheamento” para Marx significa que o homem não se vivencia como agente ativo de seu controle sobre o mundo, mas que o mundo (a natureza, os outros, e ele mesmo) permanece alheio ou estranho a ele. Eles ficam acima e contra ele como objetos, malgrado possam ser objetos por ele mesmo criados. Alienar-se é, em última análise, vivenciar o mundo e a si mesmo passivamente, receptivamente, como o sujeito separado do objeto”2.

O autor liga o conceito de alienação ao conceito de idolatria3. Os ídolos são a obra das mãos do próprio homem que adora o que ele mesmo criou. Ao fazê-lo, ele se transforma em coisa. Transfere às coisas de sua criação os atributos de sua vida e, em vez de experiencar-se como a pessoa criadora, só entra em contato consigo mesmo através da adoração do ídolo. Não é só o mundo das coisas que se torna superior ao homem, mas também as circunstâncias sociais e políticas por ele criadas se tornam seus senhores4. O homem acaba alienado da essência humana e levado a um egoísmo existencial porque a essência humana se transforma em meio para a existência individual dele. A alienação conduz à perversão de todos os valores. Cada homem especula sobre como criar uma nova necessidade em outro homem a fim de forçá-lo a um novo sacrifício, coloca-lo numa nova dependência e incita-lo a um novo tipo de prazer e, por conseguinte, à ruína econômica. Com a massa de objetos cresce o número de entidades estranhas a que o homem fica sujeito e o homem se torna cada vez mais pobre como homem. Fromm acrescenta que Marx não previu até que ponto a alienação chegaria a ser o destino principalmente das pessoas, como por exemplo, os executivos, que manipulam símbolos e

1 FROMM, Erich, Conceito Marxista do homem, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 8ª edição, 1983, capítulo V p.50 ss. 2 Op.cit. p.50

3 Podemos acrescentar que esta ligação entre alienação e idolatria é um tema amplamente desenvolvido por autores da teologia da libertação como F.J. Hink elammert, Hugo Assmann, Jung Mo Sung. 4 Op.cit. p. 57


E por falar em alienação...5 homens em vez de máquinas. O operário depende da expressão de certas qualidades pessoais como habilidade e confiança de que é merecedor e não é obrigado vender sua personalidade, seu sorriso e suas opiniões ao ser contratado. Os manipuladores de sím bolos não são contratados apenas por sua perícia, m as também por suas qualidades pessoais que os tornam “acondicionamentos de personalidades atraentes” de fácil trato e manuseio. São verdadeiros homens da organização cujo ídolo é a empresa. O próprio Fromm5 sugeriu a leitura de Paul Tillich6. Numa visão teológica, Tillich considera que o conceito de alienação (estrangement), em bora não bíblico, está presente em muitas descrições das dificuldades e difíceis escolhas do ser humano. Está presente na descrição que o apóstolo Paulo faz da luta interior do homem contra si mesmo quando perverteu a imagem de Deus transformando-a em ídolo7. O autor prossegue mostrando que esta alienação traduz-se por duas expressões na Confissão de Ausburgo: o ser humano se encontra “sem fé e com concupiscência” (sine fide erga deum et cum consupiscentia)8. Ele acrescenta uma terceira expressão: a hubris que poderia se traduzir por orgulho no sentido de auto-elevação. Pensamos que as duas últimas expressões (hubris e concupiscência) ajudam a entender com mais profundidade o conceito esboçado por Marx e permitem uma análise mais acurada da alienação presente nas organizações.

Alienado, o homem se encontra fora do centro divino ao qual seu próprio centro pertence. O ser humano é centro de si mesmo e do seu mundo; por isto, ser si mesmo e ter um mundo constitui para ele, com o perfeição da criação, o desafio. Esta perfeição desperta ao mesmo tempo a tentação de criar imagens de deuses imortais porque é consciente da sua infinidade potencial. Isto faz com que pode chamar os homens mortais e as imagens divinas imortais. Se não reconhecer a ambigüidade desta situação, cai na hubris. Eleva a si mesmo além dos limites do seu ser finito e provoca a vingança divina que o destrói. A hubris é o chamado pecado espiritual cujo sintoma é que o homem não reconhece sua finitude: identifica verdade parcial com verdade absoluta, povos confundem sua bondade limitada com bondade absoluta (fariseus e

5 menciona na nota 1 da pág. 50 a conexão que Paulo Tillich faz entre os dois conceitos. 6 TILLICH, Paul, Sy stematic Theology three volumes in one, Chicago, The University of Chicago Press, 1967,

Volume two, Part III, I, C e D p. 45 ss. 7 Op.cit. p.45. 8 Op.cit. p. 47


E por falar em alienação...6 puritanos) e o homem identifica sua criatividade cultural com a criatividade divina. O ser humano confunde uma auto-afirmação natural com uma auto-elevação destrutiva9.

A vontade do ser humano em trazer a totalidade do seu mundo dentro de si mesmo é a tentação de quem está entre o finito e o infinito. Todo indivíduo, consciente do seu alheam ento do mundo, deseja uma reunião com o mundo. Sua “pobreza” o faz buscar a abundância: é a raiz do amor em todas as suas formas. A possibilidade de atingir uma abundância ilimitada é a tentação de quem está ao mesmo tempo consciente de ser si mesmo e estar situado num mundo. É a concupiscência ou desejo ilimitado de trazer para dentro de si a totalidade da realidade. Isto se refere à fome ou ao sexo, ao conhecim ento ou ao poder, à riqueza material ou aos valores espirituais10.

Segundo Tillich11, Adão deve ser entendido como o hom em essencial que simboliza a transição da essência para a existência e o que a teologia cristã costuma chamar de pecado original não tem nada de original nem de hereditário: é o destino universal de alienação que diz respeito a cada ser humano. O pecado é um fato universal que se torna um ato individual ou, m ais precisamente, o pecado individual transforma em ato o fato universal da alienação. Como ato individual, o pecado é um problema de liberdade, de responsabilidade e de culpa individual de tal modo que, em cada ato livre, o destino humano universal de alienação está envolvido e passa ao ato. Não se pode então separar o pecado como fato do pecado como ato. A alienação é, muitas vezes, entendida como determinismo físico, biológico, psicológico, sociológico, econôm ico ou cultural. Nenhuma destas explicações por si só permite entender o sentimento existencial de responsabilidade pessoal que o homem alienado experimenta em seus atos. Mas cada uma destas teorias contribui para a compreensão da condição humana. A percepção da universalidade da alienação não torna a consciência de culpa do ser humano irreal; liberta-o da pretensão que a todo o momento tem a liberdade indeterminada de decidir qual caminho ele escolhe. Que dizer da alienação e da culpa coletivas? O autor mostra que a culpa individual participa da criação do destino universal da humanidade e do destino especial do grupo ao qual pertence o indivíduo12. Talvez seja a partir da consciência desta dialética entre a

9 Op.cit. p.51 1 0 Op.cit.p. 52 1 1 op.cit.p. 56ss 1 2 op.cit.p.59


E por falar em alienação...7 responsabilidade pessoal e a percepção de uma alienação presente na nossa experiência existencial que exista uma possibilidade de construir uma reconciliação ainda que parcial.

2. O QUE ESTE CONCEITO DIZ A RESPEITO DO DIA A DIA DO CONSUMIDOR E DO EXECUTIVO ATUANDO NUMA ORGANIZAÇÃO EMPRESARIAL? Queiramos ou não, não podemos negar que gastamos muito tempo e energia para consumir. Podem variar a proporção ou o empenho, a satisfação ou o tédio, a submissão à necessidade ou ao desejo: ninguém escapa à condição de consumidor. O que se entende por consumo? O que o conceito de alienação pode esclarecer a respeito? O hábito de consumo com o filosofia de vida não é um fenômeno natural. Trata-se de um comportamento induzido que corresponde, segundo Rifkin13, a uma religião ou a um evangelho chamado por ele de Evangelho do Consumo de Massa. Literalmente, consumir significa destruir, saquear, subjugar, exaurir. A metamorfose do consumo de víc io a virtude é, no entender deste autor, um dos fenômenos mais importantes, no entanto, o m enos analisado do século XX14. O consumo de massa não ocorreu espontaneamente tampouco foi o subproduto inevitável de uma natureza humana insaciável. O fato de as pessoas preferirem trocar horas a mais de trabalho por horas a mais de ociosidade tornou-se uma preocupação crítica e a ruína de empresários cujos estoques de produtos se acumulavam rapidamente. A empresa precisa do consumo para poder sobreviver e produzir dinheiro para seus donos ou seus acionistas. O consumo nasce da necessidade dela poder continuar a vender as quantidades cada vez maiores produzidas com os avanços tecnológicos. Por isto que deve livrar-se da durabilidade dos produtos: eles não podem ter uma vida útil muito grande para poder ser substituídos rapidamente. Novos conceitos de marketing e de propaganda deslancharam na década de 1920 refletindo a determinação crescente da comunidade empresarial para esvaziar seus depósitos e acelerar o ritmo do consumo a fim de acompanhar a produtividade cada vez maior. A mudança dos hábitos de compra dos assalariados foi obra do crédito ao consumidor que permitiu que, em menos de uma década, uma nação de americanos esforçados e frugais se transformasse em adeptos de um a cultura hedonista em busca dos caminhos sempre novos da gratificação imediata. Os novos esquemas publicitários estimulavam uma nova psicologia de consumo em

1 3 RIFKIN, J eremy,O fim dos empregos, MAKRON Books 1996 1 4 Parece que não teve acesso aos teólogos citados na nota 3!


E por falar em alienação...8 massa. Não é preciso acrescentar que o resto do mundo entrou com alegria e dedicação nesta religião. O modelo de sociedade das organizações precisa do consumo para poder se manter. É um sistema ancorado sobre a acumulação e a destruição compulsivas. O ser humano é chamado a reavaliar seu ideal de perfeição e os fundamentos das suas relações com os outros. O consumo leva ao isolamento. A mudança de comportamento foi analisada pela "Nostradamus do marketing" segundo a revista Fortune: Faith Popcorn15. As pessoas que atingem um determ inado patamar de consum o ficam cada vez mais separadas do resto das pessoas e se entrincheiram na privacidade de condomínios. A residência-fortaleza será o centro da produção (se trabalha em casa), o centro da segurança (deverá ser a prova de intrusos) e o centro do consumo (compra-se pizza, carro etc. por telefone, fax ou via Internet). O relacionamento se limita a um círculo bastante fechado de pessoas que seguem o mesmo modo de vida, que têm o mesmo padrão de renda e os mesmos centros de interesse. Deste modo, segundo Canclini16, forja-se um consenso em relação a um modelo socio-econômico apresentado como o único possível. Ao mesmo tempo, uma violenta manipulação de símbolos por modalidades audiovisuais e massivas de organização da cultura, subordinadas a critérios empresariais de lucro assim como a um ordenamento global que desterritorializa seus conteúdos e suas formas de absorção, reforçam este consenso que vira pensamento único17. A perda de eficácia das formas tradicionais e ilustradas de participação cidadã (partidos, sindicatos, associações de base) não é com pensada pela incorporação de massas consumidoras ou participantes ocasionais dos espetáculos que os poderes políticos, tecnológicos e econômicos oferecem através dos meios de comunicação de massa. Desaparece a cultura política que via as ações presentes como parte de uma história e procura de um futuro renovador. As decisões políticas e econômicas são tomadas em função das seduções imediatistas do consumo. Homens e mulheres convencem-se de que muitas das perguntas próprias dos cidadãos – a que lugar pertenço e que direitos isso me dá? Como posso me informar? Quem representa meus

1 5 POPCORN, Faith,O relatório Popcorn, Editora Campus 1993, pag.2 e 3. O título de Nostradamus aparece na capa do livro logo embaixo do nome da autora. 1 6 CANCLINI, Nestor García, Consumidores e cidadãos , conflitos multiculturais da globalização, Editora UFRJ,

Rio de Janeiro 1995, pag.27ss


E por falar em alienação...9 interesses? – recebem sua resposta mais através do consumo privado de bens e dos meios de comunicação, dos circuitos da comunicação de massa cada vez mais sofisticados de informação18, considerados como diversões e lazer, do que nas regras abstratas da democracia ou pela participação coletiva em espaços públicos19. Como não reconhecer neste processo o desdobramento e a verificação das observações de Fromm?

O consumo é a causa, a razão de ser e a finalidade das empresas. Peter Drucker, autor clássico nesta matéria, ensina o que se deve entender por organização empresarial20:

uma organização empresarial é um grupo humano, composto por especialistas que trabalham em conjunto em uma tarefa comum: produzir bens ou serviços. A organização empresarial é uma ferramenta e, como tal, quanto mais especializada, maior será seu desempenho. Como a empresa é composta por especialistas, cada um na sua área restrita de conhecimento, sua missão tem que ser muito clara. Os seus resultados somente existem externamente e ela e estão sem pre distantes da contribuição de cada membro. Enquanto as outras comunidades (sociedade, família) têm, como meta, a sobrevivência e não o desempenho, as organizações empresariais não existem primeiro para as pessoas que nelas trabalham e, sim, para e em função dos bens e dos serviços que elas produzem e para o resultado financeiro que conseguem gerar a partir desta produção. Cada membro de uma organização dá (ao menos em teoria) uma contribuição vital mas nenhum deles sozinho produz os resultados. O que se espera é que os bens e serviços produzidos com uma qualidade cada vez m aior e mais garantida por controles cada vez mais aprimorados, contribuam para uma melhor qualidade de vida entendida como posse de bens ou acesso a serviços cada vez mais sofisticados. E esta qualidade de vida representa o único horizonte prometido por uma sociedade que se recusa a sair do aqui agora e que elegeu o consumo como seu objetivo fundamental.

o papel do conhecimento é gerar esta “sociedade das organizações”21. Por isto terá um

papel fundamental na medida em que se transforma em conhecimentos 1 7 Expressão cada vez mais us ada para designar este consenso forjado: cf. por exemplo as análises feitas por vários autores e intelectuais publicadas mensalmente no periódico le Monde diplomatique. 1 8 LASCH,Christopher The revolt of the elites and the betrayal of democ racy, W.W. Norton Company, New

York-London 1995 pag.34 1 9 CANCLINI, op.cit. pag.13 2 0 DRUCKER, Peter,Sociedade pós-capitalista, Ed. Pioneira Novos Umbrais 1994, capítulo 2


E por falar em alienação...10 “A função das organizações é tornar produtivos os conhecimentos. As organizações tornaram-se fundamentais para a sociedade em todos os países desenvolvidos, devido à passagem do conhecimento para conhecimentos22”. “como a organização moderna é uma organização de especialistas do conhecimento, ela precisa ser uma organização de iguais, de “colegas”, de “associados”. Nenhum conhecimento se “classifica” acima do outro23.”

Aqui está o ideal, ou o paraíso a ser construído pela organização empresarial: moldar a sociedade transform ando-a em sociedade de organizações na qual o cimento da unidade e da igualdade entre seus m embros seja a partilha dos conhecimentos, todos colocados em pé de igualdade e avaliados pela sua eficaz na produção de bens e serviços de uma qualidade reconhecida, subordinada, porém, aos resultados monetários esperados pelos acionistas que podem ser os próprios produtores/consumidores, via sua participação em fundos de pensão24. A unidade possível é a da contribuição de conhecimentos esparsos e fragmentários que possam ser im ediatamente usados na produção de objetos tangíveis (bens de consumo), intangíveis (economia de serviços) ou virtuais (nova economia) e não a busca de um conhecimento unificado e orgânico que permita uma tentativa de apreensão da realidade na sua totalidade e sua diversidade. O consumo, a destruição e a renovação destes bens é o alicerce sobre o qual será edificada a sociedade unida e globalizada.

Para que tudo isto possa acontecer deve ser feita uma “revolução gerencial”25. Antes desta "era do conhecimento" como os consultores gostam de chamá-la, o papel do gerente se parecia bastante com o papel de um oficial militar: era avaliado pela competência que demonstrava ou não de comandar pessoas e definido como alguém responsável pelo trabalho dos subordinados. Hoje, passou a ser visto como responsável pelo desempenho de pessoas e pela aplicação e pelo desempenho do conhecimento. Isto gera uma angústia muito grande nos executivos que não foram formados para este modelo. O conhecimento está sendo aplicado hoje ao conhecimento26: descobrir com o o

2 1 DRUCKER, op.cit. pág.39: “ass im como a sociedade pós-capitalista tornou-se uma sociedade de organizações, ela também se tornou uma sociedade de empregados.” 2 2 DRUCKER,op.cit. pág. 28 2 3 DRUCKER, op.cit. pág.33 2 4 DRUCKER, op.cit. pág. 33 2 5 DRUCKER, op.cit. pág. 20ss 2 6 DRUCKER, op.cit. pág. 21


E por falar em alienação...11 conhecimento existente pode ser mais bem aplicado para produzir resultados. É o manipulador de símbolos do qual falava Erich Fromm. O executivo foi promovido a sacerdote do meta-conhecimento, da reconciliação e da harmonia organizacional na medida em que abre mão do comando para se tornar o catalisador do conhecimento. Instado a renunciar ao poder, recebe a responsabilidade para o desempenho. Nas empresas hoje, o executivo aparece com o uma nova versão do proletário alienado: é submetido a uma pressão extremamente forte para ser criativo e para superar todos os seus lim ites físicos e mentais27. O equilíbrio entre auto-afirmação e auto-elevação pende para a última porque esta ideologia está intimam ente ligada à ideologia da competitividade exacerbada inclusive pela exigências da sobrevivência e o medo de perder o emprego. Ele é chamado a aceitar o sacrifício para que alguns obtenham resultados em abundância...

Christopher Lasch28 sugere um outro enfoque sobre esta revolução gerencial! Segundo ele, estas elites gerenciais são as responsáveis pela traição da democracia e, ao mesmo tempo, se revoltam contra este estado de coisas. Operam uma manipulação de símbolos não pela via ideológica, mas pela exibição dos sinais externos de sua renda e por seus modos de vida, cada vez mais internacionalizados e desenraizados de seu país de origem, do seu povo e de sua comunidade29. O preço a pagar é uma dependência total do emprego e a pertença a networks (redes) que se substituem às comunidades naturais. A formação de um network consiste numa troca de informações, de intuições (insights para usar o linguajar) e de boatos profissionais; é diferente do processo de construção de comunidades que repousam sobre uma continuidade, sobre uma localização e principalmente sobre laços e modos de comportamento cultivados de geração em geração. Os executivos vivem cada vez mais num mundo de conceitos abstratos, de imagens e de símbolos em cuja interpretação eles se especializam . Portanto têm mais em comum com seus pares de Paris, Hong Kong ou New York do que com a massa dos brasileiros que não estão ligados às redes mundiais de comunicação. Consideram-se como parte da classe dos melhores e mais brilhantes que não devem nada a ninguém porque acham que seu poder e sua

2 7 existem inclusive treinamentos ao ar livre onde está s endo colocado em situações perigosas para

experimentar situações limites. 2 8 LASCH, op.cit. 2 9 LASCH, op.cit. pag. 33ss.


E por falar em alienação...12 riqueza repousa somente sobre seu talento pessoal. Desenvolvem uma tendência ao individualismo, vivem ilhados e de "animal político" (Aristóteles) viram cidadãos do "McWorld" (Barber30), uma nova espécie de homens e de mulheres para os quais a religião, a cultura e a pertença étnica são elementos marginais: sua identidade é antes de tudo profissional. Portanto, o conceito de alienação de Marx encarnou-se de vez e m ais profundamente do que o próprio Marx poderia ter percebido mas que seu comentarista, Fromm, já vislumbrava com acuidade. O consumo como tentativa de saciar os desejos ilimitados e acumulação de riqueza e poder de quem produz e de quem consome mostram que quem iniciou a sociedade de consumo atirou no que viu e atingiu o que não viu. O que parecia um projeto meramente econômico atinge, na realidade, a essência e a existência do ser humano que transcende as categorias de produtor e de consumidor.

3. SE RIA POSSÍVEL SAIR DES TA ALIENAÇÃO? Segundo Tillich31, o homem pertence a um meio, mas este é somente uma parte do seu mundo. Ele pode transcendê-lo a cada palavra que ele fala. É livre de fazer desse m undo um objeto que ele observa e de fazer de si mesmo um objeto sobre o qual dirige sua atenção. Nesta situação de liberdade finita, ele pode perder a si mesmo e a seu mundo e a perda de um implica a perda do outro. Talvez a possibilidade de reconciliação individual e a tentativa de reconciliação das pessoas que vivem dentro de comunidades, entre elas as empresas, passe por uma tomada de consciência deste espaço de liberdade limitada mas real que elas podem experimentar. Isto poderia ser feito concretamente na tentativa de reencontrar o centro entre polaridades ontológicas exacerbadas no estado de alienação32.

Superar a separação da liberdade e do destino: sob o controle da hubris e da concupiscência, a liberdade cessa de se relacionar com os objetos fornecidos pelo destino. Ela se relaciona a um sem-núm ero de conteúdos. Quando o homem faz de si o centro do universo, a liberdade perde sua consistência e se volta para objetos, pessoas e coisas que são completamente contingentes para o sujeito que escolhe e que podem,

3 0 BARBER, Benjamin: Vers une société universelle de consommateurs, Culture McWorld c ontre démocratie ,

Le Monde Diplomatique, agosto 1998, p. 14 e 15 3 1 op.cit.p.60 3 2 op.cit.p.62 ss


E por falar em alienação...13 portanto, ser substituídos por outros tão contingentes e sem nada que os relaciona especificamente ao sujeito. Se não existir uma relação essencial entre um agente livre e seus objetos, nenhuma escolha é objetivamente preferível em relação à outra; nenhum compromisso com uma causa ou uma pessoa tem significado; nenhum sentido (finalidade) dom inante pode ser estabelecido. Na medida em que a liberdade se distorce em arbitrariedade, o destino se distorce em necessidade mecânica. Então, a prim eira tarefa de reconciliação seria resgatar o redimensionamento da atividade empresarial: esquecer os discursos totalizadores e voltar à sua vocação de produzir bens ou serviços que atendam as necessidades das pessoas permitindo que estas possam escolher suas trilhas de realização e de felicidade como bem entendem e num horizonte mais amplo do que o oferecido pela corrida atrás de novas marcas de roupa, whisky ou sabonetes.

Superar a separação da dinâmica e da forma: todo ser vivo acontece além de si mesmo e além da forma através da qual ele tem acesso ao ser. Na natureza essencial do ser humano, dinâmica e forma são unidas. Sob o controle da hubris e da concupiscência, o ser humano está sendo arrastado em todas as direções sem rumo e substância. Sua dinâmica distorce-se em uma urgência sem forma para a auto-transcendência. Não é uma nova forma que o atrai: a dinâmica tornou-se fim em si mesma. Alguém pode falar em “tentação para o novo”, que é um elemento necessário para toda auto-realização criativa mas que distorcida sacrifica o criativo para o novo. Nada de real é criado se falta uma forma, porque nada é real sem forma. Ao m esmo tempo, a forma sem a dinâmica é igualmente destrutiva porque se torna uma lei externa. Se um dos pólos desaparece, o outro desaparece também. Nas empresas, redescobrir esta verdade significa tirar dos ombros dos executivos e do consumidor o peso da ideologia da necessidade da mudança a qualquer preço. A corrida atrás das novidades e das modas para o consumidor, bem como a busca de novas estruturas e métodos gerenciais para os executivos parece fazer parte de uma tentativa de afastá-los de toda consistência e possibilidade de emitir julgam entos a partir de uma visão crítica e de uma personalidade definida a partir de uma consciência formada. O caminho é resgatar os princípios e os valores que dêem uma forma e um conteúdo aos julgamentos emitidos pelas pessoas.

Superar a separação da individuação e da participação: a vida é individuação em todas as suas formas; ao mesm o tempo, a mútua participação do ser no “sendo” mantém a unidade do ser. Os dois pólos são interdependentes. No estado de alienação, o homem


E por falar em alienação...14 cai sob o poder dos objetos que tendem a fazer dele um mero objeto. O caminho de reconciliação passa pela busca da afirmação de uma pertença à organização assumida com toda a força da própria subjetividade e que permita que a participação à vida da organização possa ser traduzida por um discurso também crítico e atitudes livres que possam resultar em ações eficazes uma auto-afirmação da própria humanidade além dos resultados econômicos conseguidos.

BIIBLIOGRAFIA: BARBER, Benjamin: Vers une société universelle de consommateurs, Culture McWorld contre démocratie , Le Monde Diplomatique, agosto 1998 CANCLINI, Nestor García, Consumidores e cidadãos, conflitos multiculturais da globalização, Editora UFRJ, Rio de Janeiro 1995 DRUCKER, Peter,Sociedade pós-capitalista, Ed. Pioneira Novos Umbrais 1994 FROMM, Erich, Conceito Marxista do homem, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 8ª edição, 1983 LASCH,Christopher The revolt of the elites and the betrayal of democracy, W.W. Norton Company, New York-London 1995 POPCORN, Faith,O relatório Popcorn, Editora Campus 1993 RIFKIN, Jeremy,O fim dos empregos, MA KRON Books 1996 TILLICH, Paul, Systematic Theology three volumes in one, Chicago, The University of Chicago Press, 1967

Publicado em Último Andar, caderno de pesquisa em ciências da religião, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião/PUC-SP, ano 3 – n.3 - 2000


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