"Naval Ode": Um exercício de auto-tradução

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Universidade dos Açores Departamento de Línguas e Literaturas Modernas Teoria da Tradução

“Naval Ode”: Um exercício de auto-tradução por Fernando Pessoa

Luís F. C. Arruda Martins PósPós-graduação em Tradução Ponta Delgada 2004/2005 2004/2005


Índice o. Introdução ……………………………………………………………………………………………………………………………..

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1. Auto-tradução: conceito e caracterização ……………………………..…….………………………….

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2. O bilinguismo e a tradução em Fernando Pessoa ……………………….……………………..

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3. Fragmentos para uma poética da tradução em Fernando Pessoa ………………

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4. Fernando Pessoa e a auto-tradução: o caso de “Naval Ode” ………………….…..

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5. Considerações finais ………………………………………….………………………………………...........................

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6. Referências bibliográficas ……………………………………………..……………………………………………….

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Anexos Anexo A – BABEL - OR THE FUTURE OF SPEECH ……………………………………………………….….

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Anexo B – [CARTA AO DIRECTOR DE PUNCH] ……………………………………………………………….

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Anexo C – [PLANO DE EDIÇÃO DE OLISIPO] ………………………………………………………………….

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Anexo D – [PROJECTOS] …………………………………………………………………………………………………….

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Anexo E – [«O TRADUCTOR INVISIVEL»] ……………………………………………………………………..….

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Anexo F – [A ARTE DE TRADUZIR POESIA] ……………………………………………………………………..

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Anexo G – [PETIÇÃO A FAVÔR DE WILLIAM SHAKESPEARE, TRADUZIDO] ………….…….

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Anexo H – [PARA UMA TEORIA DA TRADUÇÃO – 2] …………………………………………………….

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Anexo I – [PARA UMA TEORIA DA TRADUÇÃO – 1] ……………………….……………….…………….

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Anexo J – [O RITMO E O SENTIDO] ……………………………..………………………………….……………….

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Anexo K – [CARTA A ROGELIO BUENDíA DE 15.9.1923] ………………………………..……………….

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Anexo L – [CARTA - PROPOSTA DE TRADUÇÕES DE SHAKESPEARE] ……………………..….

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Anexo M – “Ode Marítima”/”Naval Ode” ………………………………….…………………………………….

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“Naval Ode”: Um exercício de auto-tradução por Fernando Pessoa 0. Introdução Neste trabalho propomo-nos abordar uma área pouco estudada da obra de Fernando Pessoa, incidindo a nossa atenção sobre a sua prática e teoria da tradução, e mais precisamente num dos seus projectos de auto-tradução. Depois de analisado o conceito de auto-tradução e discutidos alguns dos seus traços caracterizadores, e de examinada a importância do bilinguismo e, sobretudo, da tradução no desenvolvimento e fragmentação deste autor, abordaremos o pensamento de Fernando Pessoa quanto à prática e natureza da tradução, apresentando alguns elementos pertinentes. Após este momento de contextualização do papel da tradução na obra pessoana, o foco será colocado na tradução que Fernando Pessoa fez da “Ode Marítima” do seu heterónimo Álvaro de Campos, de forma a confirmar se a sua prática se coaduna com os pressupostos teóricos apresentados.

1. AutoAuto-tradução: conceito e caracterização Um caso extremo da dialéctica entre autor e tradutor é o dos autores que traduzem os seus próprios escritos, isto é, que praticam a auto-tradução. Não é difícil encontrar, ao longo de toda a história da literatura, autores que tenham escrito em duas ou mais línguas, como por exemplo, Luís de Camões, Paul Celan e Antonio Tabucchi, entre muitos outros. No entanto, foram muito poucos os que auto-traduziram as suas obras, o que se reflecte na pouca atenção que este fenómeno tem recebido por parte dos investigadores, talvez pelo facto de o associarem mais ao bilinguismo do que à esfera da tradução. A auto-tradução não é um fenómeno que possa apresentar um grande número de estudos, pela simples razão que não é uma prática comum. Trata-se de algo raro, mesmo no caso de autores que pelas mais diversas razões dominavam mais de uma língua. Uma obra nasce num ambiente linguístico e é de dentro desta atmosfera, composta por signos, sons, imagens, paisagens, mundivisões, história, etc., que nasce o texto. Devemos então questionarmo-nos acerca das razões que levam um

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autor, depois de ter terminado a escrita duma obra, a escrevê-la numa outra língua. Poderia argumentar-se que o que está em causa é simplesmente tradução e não recriação. O cerne da questão está em identificar o que significa traduzir para o autor da obra. Devemos desde já adiantar que existe um ponto crucial na distinção entre tradução e auto-tradução. Apesar de se referir sempre a existência dum texto de partida e dum texto de chegada, e de nos depararmos com as questões conexas de fidelidade e criatividade, a verdade é que a posição do tradutor que traduz o seu trabalho é única e privilegiada (TANQUEIRO, 2002: 50-53). Barrento refere a natureza sui generis do texto autotraduzido: “[…] muitos autores-tradutores revelam ter ido consciência dessa diferença específica que marca o texto em tradução e o distingue dos seus dois Outros, os textos ditos «originais» nas duas línguas, entre os quais se situa […]” (BARRENTO, 2002: 111). Trata-se de uma questão de autoridade perante o texto de partida. Em princípio, o autor-tradutor consegue – melhor que um tradutor – reproduzir os objectivos do texto de partida. Um autor que traduza os seus próprios escritos, citando Jeffrey Green, “is as privy to the original writer’s intentions as anyone can ever be, he or she would probably assert the right to be highhanded and arbitrary, taking liberties that an ordinary translator normally would not dare to take with work written by someone else”. (GREEN, 2001: 16). Deste modo, do ponto de vista da auto-tradução, os conceitos normalmente expressos por termos como “fiel” ou “infiel” e “boa” ou “má” para nos referirmos à qualidade duma tradução deixam de poder ser considerados. A tradução é nitidamente sujeita às necessidades da escrita. A relação entre fidelidade ao original e requisitos da tradução sofre uma alteração. Na circunstância da tradução pelo autor, o conceito de fidelidade significa respeito pelas ideias que conduziram à produção do texto, esse proto-texto conhecido apenas pelo autor. No entanto, a troca e simultaneidade de papéis entre tradutor e autor provocam um deslocamento do eixo do pensamento, o que obriga o autor-tradutor a reconsiderar constantemente os seus padrões de fidelidade à ideia inicial da obra literária. Fitch (1988: 121-123) aponta que o próprio facto de existir uma obra auto-traduzida – prova de que o autor actuou sobre o seu trabalho em dois momentos distintos – torna essa obra literalmente incompleta. Isto é, o trabalho completo só pode ser representado pelos dois escritos em conjunto. Deste modo, os dois textos podem ser entendidos como variações um do outro, e com igual valor. Ignora-se a ordem cronológica em que foram escritos, dado que o que interessa é o processo resultante do texto, e não o texto como produto. De acordo com Fitch, o que importa não é a multiplicação de um produto, mas a duplicação dum processo. Quanto a nós, este raciocínio pode ser rebatido pela ideia de que, como foi dito acima, o nascimento duma obra não pode ser desligado da sua língua original. A possibilidade de existir um processo criativo passível de ser repetido em duas línguas conduz, por um lado, à exposição do tangível (personagens, espaço, tempo, temas), e por outro, ao eclipse das relações entre língua, tema e mundo em que o processo criativo decorre. 3


Um ponto que nos parece fundamental para compreender o fenómeno consiste em saber se a intenção de conduzir a auto-tradução é anterior ou contemporânea à produção da obra, ou se pelo contrário, é resultado de considerações ou necessidades posteriores. Parece-nos igualmente que o conhecimento da ordem e metodologia para a produção dos textos é essencial do ponto de vista teórico, uma vez que o autor pode escrever a obra e traduzir quase simultaneamente, isto é, pode terminar uma parte e traduzi-la logo a seguir, ou pode terminar a obra e traduzi-la num momento mais ou menos posterior. No caso específico do presente trabalho importava também conhecer melhor o processo cronológico de tradução, isto é, saber se o poeta traduziu enquanto compunha, o que significava um desdobramento consciente entre heterónimo e ortónimo, ou se traduziu após a finalização do texto lírico. A resposta a estas questões afigura-se-nos de grande importância. Importante parece-nos também conhecer o tipo de relação existente entre as duas línguas na história e formação do autor. Cada língua é um espaço de criação de modelos sociais, culturais e históricos, onde prevalecem formas e estilos de discurso, poéticas discursivas. Isto é de grande importância para o domínio da auto-tradução, porque cada língua contém práticas de discurso onde estão previstas as potencialidades da produção do texto literário. Assim, a auto-tradução, e a própria tradução, podem ser vistas como uma relação entre práticas discursivas formalizadas. (TANQUEIRO, 2002: 39-42) Independentemente das motivações que levem um escritor a auto-traduzir-se, este ímpeto está mais relacionado com o ganho de perspectiva e significados do que com a oportunidade de simples repetição. A prática da auto-tradução leva o autor a distanciar-se do seu texto, propondo-se verificar a sua coerência interna e as suas qualidades formais. O autor-tradutor poderá traduzir tendo como objectivo providenciar maior transparência semântica ao texto de chegada, porque tradutor algum terá um conhecimento tão profundo sobre a obra original quanto ele. Apesar do seu estatuto privilegiado, o autor-tradutor parece-nos mais próximo da esfera da tradução, porque a tarefa de construção ficcional ou poética já havia sido realizada pelo indivíduo enquanto autor. A auto-tradução configura também a questão da tradução cultural, no entanto, a tradução de e entre culturas já não constitui o conceito central, mas a própria cultura é agora conceptualizada como processo de tradução. Em resultado, o termo auto-tradução pode ser também definido como uma dinâmica de encontro cultural, como uma negociação de diferenças entre duas culturas mais ou menos distantes, que poderá resultar num difícil processo de transformação. As diferenças são metamorfoseadas num instante criador e a tradução assume-se como uma estratégia de encontro, ultrapassando os limites e as fronteiras da língua.

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2. O bilinguismo e a tradução em Fernando Pessoa No seu texto “Babel – or the Future of Speech” (ver Anexo A), Pessoa resume as esferas de intervenção dos idiomas na sua personalidade linguística bilingue. Na verdade, o poeta assume a necessidade de uma divisão de todas as dimensões da sua vida entre as línguas inglesa e portuguesa: “Usando do inglez como lingua scientifica e geral, usaremos do portuguez como lingua literaria e particular. Teremos, no imperio como na cultura, uma vida domestica e uma vida publica. Para 0 que queremos aprender leremos em inglez; para 0 que queremos sentir, portuguez. Para 0 que queremos ensinar, fallaremos inglez; portuguez para 0 que queremos dizer.” É curioso que no texto supracitado, redigido num primeiro momento em inglês e seguidamente em português, o autor nos dê conta da relevância do bilinguismo: “A real man cannot be, with pleasure and profit, anything more than bilingual.” E sem dúvida que Pessoa tomou partido da sua condição bilingue, quer na sua vida quotidiana, quer na sua obra literária, quer na sua epopeia pela elevação do nível cultural do Portugal contemporâneo. Deste modo, o inglês é a língua de comunicação e comunicação pública, isto é, a “lingua scientifica e geral” da “vida publica”, sendo-lhe reconhecida inclusive uma importância crescente no cenário mundial, como o comprova as palavras “We must make English the Latin of the wider word.” Em contrapartida, à língua portuguesa está destinado o mundo íntimo do sentimento. E é exactamente por se considerar um cidadão do mundo que desde muito cedo tenta ver reconhecido o seu mérito no labor poético em língua inglesa, como o certifica a carta ao director da revista Punch datada de 21 de Fevereiro de 1906 (ver Anexo B). Em 1918, Pessoa publica a sua primeira obra, trata-se de uma colecção de poesia em língua inglesa, intitulada 35 Sonnets editada em Lisboa. A actividade tradutória de Pessoa decorreu, como é largamente conhecido, da competência bilingue e bicultural adquirida ao longo dos oito anos e meio de imersão praticamente total na língua e cultura inglesas, na cidade de Durban, da então Colónia do Cabo, durante a sua infância e adolescência, à excepção da comunicação em português no ambiente familiar. Inultrapassável é a sua frequência da Durban High School, onde termina os estudos com a mais elevada distinção. Chega a fazer o exame de ingresso na Universidade do Cabo, que realiza com o registo máximo de “First Class”, mas regressa definitivamente a Lisboa em 1905, tinha então 17 anos. Vicissitudes levam-no a optar pela tradução como fonte de receitas para a sua vida quotidiana. Ouçamos o que Fernando Pessoa nos diz relativamente à sua profissão: “A designação mais própria será «tradutor», a mais exacta a de «correspondente estrangeiro em casas comerciais». O ser poeta e escritor não constitui profissão, mas vocação.” (QUADROS, 1986, vol. III: 1427) Daí que Pessoa tenha destacado tanto a sua competência na tradução comercial, como o seu percurso de vida

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quando responde por carta datada de 13 de Novembro de 1913 a um anúncio para uma vaga de tradutor de inglês para português, anunciada no Diário de Notícias (SILVA, 1996: 158). É assim que a tradução, tanto comercial como literária, vem a desempenhar um papel primordial na vida e obra deste autor, contribuindo igualmente para o seu desdobramento em personae com tarefas literárias e tradutórias específicas. A formação que recebera em língua inglesa, acrescida do domínio das línguas inglesa e francesa, condicionam a sua opção pela profissão de tradutor comercial e técnico, numa Lisboa então com fortes relações comerciais com a Grã-Bretanha. A tradução literária foi também uma outra fonte de rendimentos, como o atestam as traduções para português que fez para a Biblioteca Internacional de Obras Célebres, datada provavelmente de 1911 (SARAIVA, 1996: 16-19). Essa mesma actividade de tradutor literário coloca-o muitas vezes numa posição de mercenário literato, traduzindo como forma de ganhar o sustento, daí o seu desabafo numa carta a Mário de Sá Carneiro datada de 06/12/1915, “Tive de traduzir livros teosóficos.” (QUADROS, 1986, vol. II: 207) Para além de fonte de rendimentos, a tradução literária fazia parte da missão de que Pessoa se havia investido para elevar o nível cultural português, tendo para tal delineado uma série de projectos de tradução não só para divulgar autores estrangeiros no nosso país, como também para promover autores nacionais no estrangeiro, sobretudo na cena literária transpirenaica. Entre os autores portugueses incluía-se o próprio Pessoa de quem se conhecem fragmentos traduzidos do heterónimo Álvaro de Campos do “Opiário” e “Ode Marítima” (LOPES, 1993: 217-218, 212-217). Acerca da necessidade da nossa divulgação cultural, Pessoa argumenta, “Intelectualmente somos mal conhecidos lá fora, trans-pirineus. Qual o fim disso? A criação duma personalidade europeia nossa, que nos valorize perante o estrangeiro.” (QUADROS, 1986, vol. III: 995) A estratégia de desmultiplicação dramática do eu pessoano utilizada na sua criação literária é repetida ao nível da tradução, arquitectando personagens incumbidas de traduzir determinados textos. O fenómeno da tradução e o mundo heteronímico parecem duas facetas de um modelo para a génese criativa. No total, são dez os tradutores entre as setenta e duas personagens criadas por Pessoa (LOPES, 1985: Ilust. nº 20; LOPES, 1990, vol. I: 167-169; LOPES, 1993: 78-80, 222-223). Eis os seus nomes seguidos de alguns títulos cuja tradução lhes estava confiada: - A. L. R. (tradutor de «Protocolos dos Sábios de Sião»); - Claude Pasteur (tradutor de «Cadernos de Reconstrução Pagã» coordenados por A. Mora); - Charles James Search (irmão de Alexander Search, tradutor de «O Estudante de Salamanca» de Espronceda, «Complete Sonnets» de Antero de Quental, «Sonnets» de Camões, «The Mandarin» de Eça de Queirós, e Guerra Junqueiro); - Fernando Pessoa (a quem foram confiadas a maior parte das traduções); - Herr Prosit (tradutor de «O Estudante de Salamanca» de Espronceda); [sic] - Miguel Otto (tradutor do «Tratado de Lucta Livre» de Carlos Otto); 6


- Navas (tradutor de Horace J. Faber); - Ricardo Reis (conhecedor de latim e grego, daí ser o tradutor de «Prometeu Preso» de Ésquilo, «Poemas de Safo e de Alceu», Poemas da Antologia Grega (Sel.), e «A Política» de Aristóteles; ) - Thomas Crosse (tradutor de «Complete Poems of Alberto Caeiro» e «História TrágicoMarítima»); - Vicente Guedes (contista e tradutor das tragédias de Ésquilo). Dada a dimensão e âmbito deste trabalho, e na impossibilidade de abordar todos os seus projectos de tradução, dentre estes optámos pelo plano geral das obras a publicar pelo seu projecto editorial “Olisipo” 1 (ver Anexo C). A nossa escolha foi motivada pela diversidade e eclectismo na escolha dos títulos e autores. De 55 títulos apresentados, 31 referem-se a traduções. Deste modo, o nosso objectivo passa obviamente por apresentar a divisão de tarefas pelos tradutores disponíveis e exemplificar a visão de Fernando Pessoa da tradução ao serviço do desenvolvimento cultural do país. Ficam também patentes as preferências literárias do escritor. Não poderíamos igualmente deixar de mencionar um outro projecto (sem título), relacionado com o texto que titula este trabalho, onde apesar de não sermos informados dos nomes dos tradutores, os títulos são apresentados em inglês (ver Anexo D). O balanço quantitativo entre as ambições dos projectos e as traduções de facto realizadas, ou de que temos notícia, é francamente negativo. No entanto, para um autor que não chegou a celebrar o meio século de vida, o vasto legado e a qualidade das suas traduções – das espontâneas, por gosto, mas também das pagas – demonstram a importância que esta actividade tinha na sua vida e obra. Um outro dado a reter é o eclectismo patente na escolha dos textos tanto a traduzir como traduzidos; a selecção de Pessoa inclui autores ingleses (a maioria) e americanos (Whittier, Poe, Lowell), mas também os espanhóis Garcilaso, Quevedo e Góngora, o francês Chevalier de Cailly, o irlandês Thomas Moore, o persa Omar Khayyam, e o anglo-indiano Kipling, entre outros. Destaque também para a variedade das épocas de proveniência dos textos, originários desde a Antiguidade, como é o caso de muitos dos poetas da Antologia Grega, até ao tempo presente de Pessoa, através do místico Aleister Crowley, passando pela Alta Idade Média com Omar Khayyam. (SARAIVA, 1996: 4043) O facto de as fontes textuais para as traduções terem sido essencialmente as obras originais ou traduções-adaptações existentes à altura em inglês, como certamente aconteceu com os poemas Rubaiyat do persa Omar Khayyam, é um outro elemento importante nesta caracterização do fenómeno da tradução pessoana. 1

Esta editora, propriedade de Fernando Pessoa, lançou apenas duas publicações, English Poems: I - Antinous, II Inscriptions e English Poems: III - Epithalamium, ambas em 1921 e da sua autoria.

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3. Fragmentos para uma poética da tradução em Fernando Pessoa Depois de constatado, ainda que de forma breve, o estatuto e dimensão que a tradução tinha em Fernando Pessoa, não constituirá surpresa que este tenha discorrido de uma forma mais ou menos longa sobre a natureza da tradução e seus problemas, e a tarefa do tradutor. Deste modo, à medida que fomos lendo escritos de Pessoa onde este reflectia sobre tradução, foi-se construindo a consciência de uma poética pessoana da tradução. Referimo-nos à presença de um conjunto de processos ou práticas reflexivas que configuram um leque de possibilidades, exclusões e transgressões na tradução de um texto literário, isto é, um saber-fazer assente na prática em tradução. Segundo este tradutor, “[…] nenhuma tradução, suppondo que existe, pode dar conhecimento da obra em sua completa e verdadeira vida.” (LOPES, 1993: 385) (ver Anexo E), mas uma vez que a tradução é necessária, ela deve respeitar em absoluto “[…] (1) […] the idea or emotion which constitutes the poem, (2) […] the verbal rhythm in which that idea or emotion is expressed; it should conform relatively to the inner or visual rhythm, keeping to the images themselves when it can, but keeping always to the type of image.” (PESSOA, 1973: 75) (ver Anexo F) É a partir duma tentativa de definição da natureza literária do poema que nos são oferecidas orientações para a sua tradução. Nesse mesmo texto reconhece existirem textos que merecem ser traduzidos não pelas suas qualidades literárias, mas sim pelo desafio que representam para o tradutor, pelo convite para que este parta ao seu encontro. No texto “[O TRADUCTOR INVISIVEL]” (ver Anexo E), abordado no parágrafo anterior, Pessoa refere-se a um “[…] presentimento, feito de não sei que mixto de intuição, de suggestão e de entendimento obscuro […]”, que influencia a tradução como se num “estado antenatal” “nós mesmos nossos traductores invisiveis” tivéssemos tomado um conhecimento anímico dos textos produzidos e a produzir. A tradução seria, assim, um processo baseado na inteligência intuitiva, um despertar dessa “anamnesis”, reminiscência disforme e recordação indeterminada. No texto “[PETIÇÃO A FAVÔR DE WILLIAM SHAKESPEARE, TRADUZIDO]” insurge-se contra a tradução que não respeita a forma e o género literário do texto, insurge-se contra aqueles tradutores que, no caso concreto deste texto, traduzem “[…] em mera prosa a prosa e o verso de Shakespeare, como se se estivesse traduzindo de uma traducção ingleza de Shakespeare para Rudyard Kipling […]” (LOPES, 1993: 222) (ver Anexo G). A fidelidade à obra e ao autor obrigam a que o tradutor seja possuidor não só de profundos conhecimentos da língua e cultura do texto de partida, mas também da obra e do seu autor. A crítica do nosso autor faz-se nos seguintes termos, “[…] não é com a competência de traductor-de-inglez do snr. dr. Ramos que eu implico e esbarro. É com a sua

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competência para traduzir Shakespeare, visto que lhe cáe em cima e o reduz a prosa.” (LOPES, 1993: 221) Num outro texto, “[PARA UMA TEORIA DA TRADUÇÃO – 2]”, defende que existem traduções fáceis e traduções difíceis, sendo estas últimas as mais interessantes, isto é, “[…] either from one language into a widely different one, or from a very complicated poem though into a closely allied language. There is no fun in translating between, say, Spanish and Portuguese.” (LOPES, 1993: 220) (ver Anexo H) Neste texto, para além de reflectir sobre as dificuldades da tradução, Fernando Pessoa faz transparecer a sua visão da função cultural da tradução com vista à elevação do nível cultural do país e disseminação da obra de autores portugueses. Uma questão que decididamente preocupa Pessoa é o respeito pela organização do texto de partida, pelo seu sentido original aliado à estrutura rítmica. De facto, é a partir do ritmo e da sua preservação no texto de chegada que Pessoa aborda a questão da fidelidade em tradução, e mais especificamente da sua escrita. O seguinte excerto de “[PARA UMA TEORIA DA TRADUÇÃO – 1]” (ver Anexo I), “Posso traduzir, atravez de idioma intermedio, qualquer poema grego, desde que consiga approximar-me do rhythmo do original, para 0 que basta saber simplesmente ler 0 grego, 0 que de facto sei, ou que obtenha uma equivalencia rhythmica. D’essa maneira traduzi alguns poemas da Anthologia Grega. A unica coisa a perguntar, a quem saiba grego e portuguez, é se a minha traducção está certa quanto ao sentido do poema, e se consegue uma equivalencia rhythmica sufficiente.” (LOPES, 1993: 219),

e especialmente o breve mas relevante “[O RITMO E O SENTIDO]” (ver Anexo J), “Um poema é uma obra litteraria em que o sentido se determina atravez do rhythmo. O rhythmo pode determinar o sentido inteira ou parcialmente. Quando a determinação é inteira, é o rhythmo que talha o sentido, quando é parcial, é no rhythmo que o sentido se precisa ou precipita. Na traducção de um poema, portanto, o primeiro elemento a fixar é o rhythmo.” (LOPES, 1993: 386),

oferecem-nos evidências da importância basilar que o ritmo possui para a tradução em Pessoa. O sentido da tradução deve estar em conformidade com o texto de partida, partilhando com este uma equivalência rítmica entre as diferentes partes do texto e respeitando sempre a natureza rítmica da língua do original. No entanto, a correspondência entre sentido e ritmo não deve ser obtida exclusivamente num registo tradutório literal, existe, por conseguinte, lugar para a interpretação por meio de equivalências, paralelismos e simetrias semânticas. É o que nos diz numa carta datada de 15 de Setembro de 1923, dirigida a Rogelio Buendía e sua esposa (ver Anexo K) a propósito da tradução para castelhano e edição de cinco das suas «Inscriptions»:

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“Creio que realizaram a traducção com grande felicidade, dada a difficuldade fundamental de pôr em uma lingua neo-latina, sem ser demasiado extenso, o que a concisão natural do inglez permitte concentrar em um curto numero de versos. Assim a vossa traducção é em alguns pontos, por assim dizer, interpretativa. Mas não podia deixar de sel-o, reconheço. E repito que está executada com uma grande felicidade. Ha, porcerto, um ou outro pormenor da traducção que se não conforma inteiramente com o sentido do original. Mas isso entra, creio, na inevitabilidade de ser mais interpretativa que litteral uma traducção do inglez (ou do allemão) para qualquer das linguas vulgarmente chamadas latinas.” (LOPES, 1993: 322-323)

Esta poética fragmentada da tradução não exige que o tradutor seja literal na escrita em tradução, mas sim que este respeite o espírito da obra, a sua essência, tal como diz numa carta a propósito da eventual publicação de diversas traduções suas de Shakespeare, realizadas e a realizar: “Quer para as traducções de Shakespeare, quer para estas, é o mesmo o meu critério de traductor – transpôr para portuguez tanto o espirito, como a essencia da lettra da obra.” (LOPES, 1993: 223) (ver Anexo L) A tradução para Pessoa significa respeito pelo texto original, recordando a cada passo o seu ritmo, o elemento essencial para a compreensão e transmissão do sentido. A fidelidade da tradução resulta de um encontro entre texto e tradutor, onde o primeiro oferece o espírito que irá dar vida à tradução.

4. Fernando Pessoa e a autoauto-tradução: o caso de “Naval Ode” Ode” Antes de iniciarmos de facto uma análise crítica da tradução que Fernando Pessoa faz dos primeiros 134 versos da “Ode Marítima” (ver Anexo M), do seu heterónimo Álvaro de Campos, iremos primeiro fazer uma curta análise à estrutura e temática desta composição, de forma a contextualizar o fragmento na globalidade da “Ode Marítima". Datada de 1915 e publicada nesse ano no segundo número da revista Orpheu, “Ode Marítima” é a mais extensa composição lírica do universo criativo pessoano, sendo composta por 904 versos. A sua extensão impõe dificuldades na análise; ainda assim, é possível estabelecer uma estrutura narrativa. Desta forma, é possível destrinçar quatro momentos: (1) situação inicial, situando o sujeito lírico consciente no cais deserto, num início de manhã estival (versos 1 a 18); (2) progressiva perda da consciência (versos 19 a 619); (3) progressiva recuperação da consciência (versos 620 a 882); (4) situação final no cais onde o sujeito lírico consciente nos aparece na agora solarenga manhã de verão (versos 883 a 904). No momento final, o sujeito lírico olha o paquete que sai e sente angústia (BERARDINELLI, 2004: 72). A estrutura interna é condicionada pelo motivo do volante, a metáfora para o coração, fazendo a sua aparição em momentos de alteração no quadro que é apresentado.

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A narrativa desenvolve-se a partir da chegada do paquete, provocando angústia no sujeito lírico, e a partir daí iniciam-se as considerações sobre as viagens, a ânsia do regresso ao passado, o princípio do delírio, a evocação do grande pirata, o desejo de partir, a vida terrestre, a vida marítima. Por oposição a tudo isto, verifica-se o esforço em desprezar esses mesmos pensamentos e desejos. Entretanto, o paquete parte, e o sujeito lírico encontra-se na mesma situação que ao princípio do poema. Quanto ao próprio excerto, este tem início, como já foi referido, com o sujeito lírico sozinho num cais deserto. O cais é um espaço entre a terra e o mar que possibilita diferentes perspectivas, por exemplo, a barra e o Indefinido, e donde vê um paquete que se aproxima. O seu olhar acompanha este navio; no entanto, a sua alma, nas suas palavras, “[…] está com o que vejo menos” (verso 12), isto é, com a Distância, a Manhã e a Hora do seu imaginário, com um espaço e tempo simbólicos. Aqueles elementos surgem em maiúsculas, uma vez que se relacionam com as características temporais e espaciais do Indefinido. É através da imaginação que transita do cais real para o cais ideal, o “Cais Absoluto” (verso 54), modelo platónico de todos os cais sensíveis. O trânsito entre estes dois cais é motivado pela observação do navio e pela alteração que experimenta no seu íntimo: “E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente” (verso 19). É também o volante que, ao verso 127, condiciona a ânsia de identificação e evocação da vida marítima que se segue no desenvolvimento da ode. Feita uma brevíssima abordagem do poema, continuemos agora para o nosso verdadeiro objectivo. Relativamente a esta auto-tradução, a primeira questão a tratar é a sua própria natureza, isto é, em rigor absoluto não é uma verdadeira auto-tradução, dado que a assinatura sob a “Ode Marítima” pertence ao heterónimo Álvaro de Campos e a tradução “Naval Ode” sai da mão de Fernando Pessoa. Esta é para nós a única ressalva a fazer. Como já referimos anteriormente, Pessoa criou uma estratégia de desmultiplicação dramática do eu, que utilizava conscientemente, como se percebe pela forma como se apresentava perante Ophélia Queiroz, a única namorada, como Álvaro de Campos, “Hoje, não fui eu que vim, foi o meu amigo Álvaro de Campos.” (QUADROS, 1992: 174) Antes de avançar para o nível textual da análise, gostaríamos de discutir as motivações subjacentes à existência deste fragmento de “Ode Marítima”. O que conduziu Pessoa a este texto? As motivações literárias e civilizacionais para a tradução já as referimos no ponto dois deste trabalho, e de resto, em 1915, Pessoa chegou a enviar a Harold Monro (editor da Poetry Bookshop em Londres) uma tradução para inglês, ainda hoje perdida, de “Chuva Oblíqua” incluído no primeiro número da revista Orpheu (SILVA, 1996: 33-34). Será que tentou fazer o mesmo com uma composição do segundo número do Orpheu? Os dados de que dispomos não nos permitem confirmar ou negar esta hipótese. Do mesmo modo, não temos como justificar a interrupção da tradução integral da “Ode Marítima”, restando-nos simples conjecturas.

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“Naval Ode” não se afasta das meditações pessoanas sobre tradução apresentadas no terceiro ponto deste trabalho. Trata-se de uma tradução fiel que à vista dos tipos de tradução de Newmark deve ser classificada de semântica, isto é, situa-se ao nível do lexema e considera a intenção do texto de partida. A abordagem ao original é literal, palavra a palavra, verso a verso. O respeito pela composição estende-se ao número de versos por estrofe. Fernando Pessoa mantém as configurações gráficas do original, como no caso da disposição dos versos e na preservação das maiúsculas com o intuito de preencherem os objectivos do texto. No que diz respeito à estrutura rimática dos 134 versos verifica-se que o verso branco (i.e. sem rima) do original é mantido em todos eles. A estratégia de conformidade com o original é também recorrente em relação à estrutura métrica, conservando-se o verso livre (i.e. não há um padrão métrico), pelo que o texto possui apenas o ritmo interior ou psicológico do verso. Como se pode depreender do cenário traçado até aqui, a pontuação de “Naval Ode” é também fiel ao original, respeitando, por exemplo, pausas e silêncios introduzidos através da utilização de reticências. O verso 95 constitui a excepção a esta regra, sendo encerrado na tradução com um ponto de exclamação, “Por inumeráveis encostas atónitas…”/”Of unnumbered astonished alones!” A utilização dos travessões é integralmente preservada nas duas circunstâncias em que se verifica a sua utilização nos versos 26 e 111-112, sendo este último caso exemplo cabal de como a tradução foi calculada numa literalidade quase total de forma e de conteúdo. Até este momento quase que nem parece estarmos perante aquilo a que se pode chamar uma tradução autorizada, ou melhor, privilegiada, isto porque as opções do tradutor, como que invisível, ainda não foram colocadas no plano do sentido. A acção do tradutor privilegiado, no caso de “Naval Ode”, faz-se sentir ao nível semântico; a sua posição única perante o texto permite-lhe tomar opções, considerando não só o momento de leitura, mas também o momento anterior de escrita, ainda que sob a máscara dramática de Álvaro de Campos. Pessoa mantém-se fiel às suas convicções sobre o trabalho em tradução. Se, por um lado, se trata de um texto onde não se assiste às convenções métricas, rimáticas e fónicas tradicionais, por outro, isso não significa que não existam necessidades semânticas especiais a solucionar pelo autortradutor no texto de chegada. Dado que a questão da auto-tradução foi tratada na primeira parte deste trabalho, neste momento destacamos o princípio da autoridade omnisciente deste tradutor. O fragmento apresenta-nos em duas situações o problema da tradução do termo “saudade”, no verso 30 e no verso 117, recebendo nas duas circunstâncias a mesma tradução: “regret”. Eis os versos: “Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!/”Ah, every quay is a regret made of stone!” (verso 30)

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“Uma saudade a qualquer cousa”/”A regret at something” (verso 117)

Estamos perante um fenómeno de tradução cultural entre a carga simbólica da portuguesa “saudade” pelo inglês “regret”, uma vez que “saudade” possui conotações próprias na memória colectiva portuguesa. Comprova-se exactamente o que já foi referido como sendo “uma dinâmica de encontro cultural, como uma negociação de diferenças entre duas culturas mais ou menos distantes. As diferenças são metamorfoseadas num instante criador e a tradução assume-se como uma estratégia de encontro, ultrapassando os limites e as fronteiras da língua.” Trata-se de uma terceira voz, na lógica do pensamento de João Barrento em O Poço de Babel, conhecida do autor-tradutor que, no seu estatuto privilegiado, reconhece outras vozes que não a sua nos seus dois originais. No entanto, não nos podemos desligar dos pressupostos pessoanos da tradução, devendo atentar ao fragmento e aos seus sentidos. A interpretação que Pessoa, bilingue e bicultural, faz do referente cultural “saudade” – como já vimos este tradutor previa uma estratégia interpretativa – funciona como um desdobramento do sentido pertinente para o texto, relacionando-se e dependendo dos termos “angústia” e “angustiado” (ocorrem por quatro vezes na proximidade de “saudade”), o que, no esteio dos ritmos do texto, aponta para uma interpretação de “saudade” em tradução enquanto “remorso” ou ”arrependimento”. A consulta dos diversos dicionários disponíveis (ver Referências bibliográficas) foi também elucidativa, corroborando a nossa hipótese. Um outro processo utilizado pelo autor-tradutor foi a equivalência dinâmica. Quando falamos em equivalência dinâmica referimo-nos ao princípio do efeito equivalente, isto é, a intenção presente no texto de partida e que o texto de chegada reproduz fielmente. É o que se observa na tradução de “encostas” por “alones” (verso 95), evidência da acção do texto sobre este autor-tradutor fiel. Como se pôde observar não se encontram discrepâncias entre os princípios defendidos por Fernando Pessoa e a sua prática da tradução em “Naval Ode”, não fazendo um uso extensivo do seu estatuto de autor-tradutor. A sua posição de mediador cultural e linguístico serve em última análise para esclarecer o texto a partir de um conhecimento privilegiado porque anterior à escrita em tradução.

5. Considerações finais Depois de discutida a dimensão e importância da tradução nas diversas actividades e projectos de Pessoa, e confirmada a consistência deste exercício de tradução de si próprio à luz da sua retalhada teorização sobre tradução, decidimos concluir este trabalho questionando-nos, e quiçá possibilidade para futuras investigações, acerca dos pontos de contacto entre a teorização de Pessoa em tradução e a moderna produção nesta área. De facto, parecem-nos recorrentes ecos de autores 13


posteriores como Barrento, Benjamin, ou Steiner. De Steiner, por exemplo, sentimos a reverberação da sua tese de tradução como leitura e interpretação, fontes de renovação do texto. Ainda a propósito de “Naval Ode” encerramos com uma citação de Newmark com a qual o nosso tradutor certamente concordaria, “A bad translator will do anything to avoid translating word for word; a good translator abandons a literal version only when it is plainly inexact.” (NEWMARK, 1981: 146)

6. Referências bibliográficas (1992) – Oxford English Dictionary, Second Edition on CD-ROM (version 1.02). Oxford, Oxford University Press. (1998) – Oxford Talking Dictionary. The Learning Company, Inc. (CD-Rom) (1994) – Random House Webster’s Electronic Dictionary and Thesaurus, College Edition. Random House. (CD-Rom) (2002) – Macmillan English Dictionary (for Advanced Learners). Oxford, Macmillan Education. ALMEIDA, Onésimo Teotónimo (1987) – “Sobre o sentido de a minha pátria é a língua portuguesa [Pessoa-B. Soares]” in Colóquio - Letras, nº97. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 34-47. BAKER, Mona (1998) – Routledge Encyclopedia of Translation Studies. London, Routledge. BARRENTO, João (2002) – O Poço de Babel: Para uma poética da tradução literária. Lisboa, Relógio d’Água. BERARDINELLI, Cleonice (2004) – Fernando Pessoa: Outra vez te revejo…. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar. DURAND, Marcella – “Interview with Nicole Brossard: On Translation & Other Such Pertinent Subjects” in Double Change, nº 2. [Em linha] Endereço: http://www.doublechange.com/issue2/brossard.htm Acedido a 3 de Fevereio de 2005. FERREIRA, António Mega (org.) (1986) – Fernando Pessoa, O Comércio e a Publicidade. Lisboa, Cinevoz/Lusomedia. FITCH, B. T. (1985) – “The status of self-translation” in Texte - Revue de Critique et de Théorie Littéraire, nº 4. Toronto, University of Toronto, pp. 111-126. FRANCO, F., A. HOUAISS & M. VILLAR (dir.) (2001) – Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Instituto Antônio Houaiss/ Editora Objetiva. GALHOZ, Maria Aliete (org.) (1985) – Fernando Pessoa. Lisboa, Editorial Presença. GALLISSON, R. & D. COSTE (1983) – Dicionário de Didáctica das Línguas. Coimbra, Livraria Almedina. [s/d] (TT.VV.)

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GREEN, Jeffrey M. (2001) – Thinking Through Translation. Athens, University of Georgia Press. HOUAISS, Antônio & Ismael CARDIM (1989) – Webster’s Dicionário Inglês - Português. Lisboa, Círculo de Leitores. LOPES, Teresa Rita (1985) – Fernando Pessoa et Le Drame Symboliste: Héritage et création. Paris, Fundação Calouste Gulbenkian. [1977] – (1990) – Pessoa por Conhecer. 2 Vols. Lisboa, Editorial Estampa. – (coord.) (1993) – Pessoa Inédito. Lisboa, Livros Horizonte. – (org.) (1997) – Álvaro de Campos – Livro de Versos (Edição Crítica). Lisboa, Referência / Editorial Estampa. LOURENÇO, Eduardo (1981) – Fernando Pessoa revisitado: Leitura estruturante do drama em gente. Lisboa, Moraes. NEUBERT, Albrecht & Gregory SHREVE (1992) – Translation as Text. Kent (Ohio), The Kent State University Press. NEWMARK, Peter (1981) – Approaches to Translation. Oxford, Pergamon Institute of English. PESSOA, Fernando (1973) – Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias. Lisboa, Edições Ática. (textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho) – (s/d) – Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Lisboa, Edições Ática. (textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho) PULTAR, Gönül (1997) – “The Mad Nomad: Interview with Talât Sait Halman” in Journal of American Studies of Turkey, nº5. [Em linha] Endereço: http://www.bilkent.edu.tr/~jast/Number5/Pultar.html Acedido a 3 de Fevereiro de 2005 QUADROS, António (org.) (1986) – Obra Poética e em Prosa. 3 Vols. Porto, Lello & Irmão Editores. – (1992) – Fernando Pessoa – Vida, Personalidade e Génio. Lisboa, Publicações Dom Quixote. SARAIVA, Arnaldo (1996) – Fernando Pessoa – Poeta-Tradutor de Poetas: Os poemas traduzidos e o respectivo original. Porto, Lello Editores. SENA, Jorge de (2000) – Fernando Pessoa & Cª Heterónima: Estudos coligidos 1940-1978. Lisboa, Edições 70. SILVA, Manuela Pareira da (org.) (1996) – Correspondência Inédita. Lisboa, Livros Horizonte. STEINER, George (1976) – Extraterritorial: Papers on literature and the language revolution. New York, Atheneum. [1972] – (2001) – “A Man of Many Parts” in Guardian Unlimited Books, 3 de Junho de 2001. [Em linha] Endereço: http://books.guardian.co.uk/critics/reviews/0,5917,500414,00.html Acedido a 4 de Fevereiro de 2005 – (2002) – Depois de Babel: Aspectos da linguagem e tradução. Lisboa, Relógio d’Água. [1975] (tradução de Miguel Serras Pereira) 15


STEVENSON, Robert Louis (1985) – Treasure Island. Oxford, Oxford University Press. [1881-1882] TANQUEIRO, Helena (2002) – Autotradução: Autoridade, privilégio e modelo. Dissertação de doutoramento em Teoria da Tradução apresentada à Universidade Autónoma de Barcelona. [Em linha] Endereço: http://www.tdx.cesca.es/TDX-1030103-182232 Acedido a 28 de Fevereiro de 2005 VEGA, Miguel Ángel (ed.) (1994) – Textos Clásicos de Teoría de la Traducción. Madrid, Ediciones Cátedra. VENUTI, Lawrence (1995) – The Translator’s Invisibility: A history of translation. London, Routledge. – (1998) – The Scandals of Translation: Towards an ethics of difference. London, Routledge.

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ANEXOS

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ANEXO A BABEL - OR THE FUTURE OF SPEECH.2 [Misto] [s/d] A real man cannot be, with pleasure and profit, anything more than bilingual. One language, even if carefully codified in its rules and precisions, is difficult enough to hold and spread out; two are the human limit for any man who is not born to suicide as a philologist of the useless. We must make English the Latin of the wider word. To that end not only does a great population concur, but also a great literature and a great power of a still greater literature. Temos que pactuar com a realidade. Não podemos fazer da lingua portuguesa 0 privilegio da humanidade. Podemos, porém, convertel-a em metade de tal privilegio. Os Deuses não nos concedem mais: não podemos aspirar a mais. Concentremo-nos no portuguez, como elle se houvesse de ser tudo; não esqueçamos porém que elle pode não ser mais que metade de tudo. O Quinto Imperio todo pelo espirito - metade pelo verbo. Usando do inglez como lingua scientifica e geral, usaremos do portuguez como lingua literaria e particular. Teremos, no imperio como na cultura, uma vida domestica e uma vida publica. Para 0 que queremos aprender leremos em inglez; para 0 que queremos sentir, portuguez. Para 0 que queremos ensinar, fallaremos inglez; portuguez para 0 que queremos dizer. Just so different and so renovated by the order […], will soon be […] to the particular.

BABEL - OU O FUTURO DA FALA Um verdadeiro homem só pode ser, com prazer e proveito, bilingue. Uma língua, ainda que minuciosamente codificada nas suas regras e normas, é bastante difícil de dominar e difundir; duas são 0 limite humano de qualquer homem que não nasceu para se suicidar como filólogo da inutilidade. Devemos transformar 0 Inglês no Latim do mundo inteiro. Para isso não basta ter uma grande população, mas também uma grande literatura e a capacidade de vir a ter uma literatura ainda maior. Apenas, tão diferente e tão renovada pela ordem […], será rapidamente […] para 0 particular.

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LOPES, Teresa Rita (coord.) (1993) – Pessoa Inédito. Lisboa, Livros Horizonte, pp. 154-155. (tradução de Luísa Medeiros)

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ANEXO B [CARTA AO DIRECTOR DE PUNCH] 3 [Manuscrito] [21.2.1906] Rua S. Bento, 98, 2º, Lisbon, Portugal 21st. February, 1906. The Editor «Punch», Bonverie Street, London. Sir, I submit the poem enclosed to your appreciation. In it I have tried merely to attain the ridiculous by the union of the serious and of the grotesque. I have attempted, moreover, to link the ridiculousness of expression thus produced to a lofty, elegiac verse-movement. You will judge how far I have succeeded. I am aware that my manuscript should have been typewritten, but my means do not allow it. I am further conscious that I have no literary experience (none can be expected from a boy of sixteen); and that, for this reason, in the writing of my manuscript I may have injuried Convention rudely: all this I hope will be excused. I have signed my manuscript with a pseudonym; but when a foreigner writes anything – especially a poem – it is better not to father it directly. If my poem be refused, I am afraid you must put it in the waste-paper basket, inasmuch as English stamps are here unobtainable. In hope of success, however, I enclose what I can – an addressed envelope. Awaiting your decision, I am, Sir, Yours faithfully, F.A.N. Pessôa. Exmº Senhor, Submeto o poema incluso à sua apreciação. Nele tentei atingir o ridículo pela união do sério e do grotesco. Esforcei-me, além disso, por ligar o ridículo da expressão assim produzida ao sublime movimento do verso elegíaco. O senhor julgará até que ponto o consegui. Estou consciente de que o meu manuscrito deveria ter sido escrito à máquina, mas os meios de que disponho não o permitem. Sei também que não tenho experiência literária (nada mais se pode esperar de um rapaz de dezasseis anos); e, por essa mesma razão, ao escrever o meu manuscrito devo ter transgredido grosseiramente as convenções: tudo isto espero que me seja desculpado. 3

LOPES, Teresa Rita (coord.) (1993) – Pessoa Inédito. Lisboa, Livros Horizonte, pp. 155-156.

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Assinei o meu manuscrito com um pseudónimo; mas quando um estrangeiro escreve qualquer coisa – especialmente um poema – é melhor não lhe atribuir directamente uma autoria. Se o meu poema for recusado, receio bem que o Senhor tenha de o deitar no cesto dos papéis, porquanto os selos ingleses são aqui impossíveis de obter. Na esperança de sucesso, contudo, enviolhe juntamente aquilo que posso – um envelope com o meu endereço. Aguardando a sua decisão, Sou, Exmo senhor, Muito atento e venerador F.A.N. Pessôa.

DE NOTAR QUE H.D. Jennings, in Os Dois Exílios (Centro de Estudos Pessoanos, 1984, p. 94) refere uma carta de Pessoa ao director do Punch, incluindo o poema humoristico «An elegy on the marriage of my dear friend Mr. Jinks», datado de 16 de Abril de 1905. Atente-se também na inexactidão (propositada?) quanto à idade apresentada por Pessoa que, na altura, tinha, naturalmente, 18 e não 16 anos.

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ANEXO C [PLANO DE EDIÇÃO DE OLISIPO] 4 [Dactilografado] [Dactilografado] [s/d] “Canções” (Antonio Botto), 2ª edição, augmentada. “A Tormenta” (Shakespeare), trad. Fernando Pessoa. “Prometheu Preso” (Eschylo), trad. Ricardo Reis. “Hamlet, Principe da Dinamarca”, (Shakespeare), trad. Fernando Pessoa. “O Rei Lear” (Shakespeare), trad. Fernando Pessoa. “Poemas de Safo e de Alceu”. Trad. Ricardo Reis. “Trovas do Bandarra”, com commentario interpretativo de Rafael Baldaia. Poemas da Antologia Grega. (Sel.). Trad. de Ricardo Reis. Poemas Principais de Edgar Poe. Trad. Fernando Pessoa. “O Príncipe” (Macchiavelli). Trad. “A Política” (Aristóteles). Trad. Ricardo Reis. Haikai e Outros Poemas Japoneses. Trad. Poemas Persas. Trad. “Rima do Velho Marinheiro” (Coleridge). Trad. de Fernando Pessoa. “Contos Selectos” (O. Henry). Trad. “Contos Selectos” (W. W. Jacobs). Trad. Poemas (Luiz de Montalvor). “Protocolos dos Sabios de Sião” (– – –). Trad. A. L. R. Dois Estudos Sobre a Grecia. (A. W. Benn). Trad. “Laocoonte” (Lessing). Trad. “Theoria do Suffragio Politico”. (Fernando Pessoa). Livros a traduzir da Home University Library (Williams & Norgate) “Diccionario Technico Universal”. “Mar Portuguez” (Fernando Pessoa). “Cancioneiro, Liv. I e II” (Fernando Pessoa). “Cancioneiro, Liv. III e IV” (Fernando Pessoa). “Auto das Bacantes” (Fernando Pessoa). “Arco do Triumpho” (Álvaro de Campos). “A Invenção do Dia Claro” (José de Almada-Negreiros). “Indicios de Ouro” (Mário de Sá-Carneiro). Ed. Fernando Pessoa (ou “Poemas Completos”, incluindo aquelle livro inedito, e outros ineditos que haja). (ou “Obras Completas de Mário de Sá-Carneiro”, sendo 0 primeiro volume 0 dos “Poemas Completos”, ut supra). “A Ideia do Progresso” (J. B. Bury). Trad. “Historia do Cristianismo” (J. M. Robertson). Trad. “A Renascença” Walter Pater). Trad. “Historia da Liberdade de Pensamento” (J. B. Bury): Trad. (v. “Home University Library”, supra). 4

FERREIRA, António Mega (org.) (1986) – Fernando Pessoa, O Comércio e a Publicidade. Lisboa, Cinevoz/Lusomedia, pp. 159-161.

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“A Fabula das Abelhas” (Mandeville). Trad. “Octavio” (Victoriano Braga). “A Casaca Encarnada”. (Victoriano Braga). “English Poems, I & II” (Antinous, Inscriptions). Fernando Pessoa: “English Poems, III & IV” (Epithalamium, Five Songs). Fernando Pessoa. “English Poems, V” (Elegy). Fernando Pessoa. “English Sonnets, Book I” Fernando Pessoa. “English Sonnets, Book II” Fernando Pessoa. “Theory of Political Suffrage». Fernando Pessoa. “Prometheus Revinctus – A Dramatic Poem (by) Fernando Pessoa. “How Napoleon Never Existed” (Pérès). Trad. “The Student of Salamanca” (Espronceda). Trad. Fernando Pessoa. “Sonnets of Camoens”. Trad. Fernando Pessoa. “Sonnets of Quental”. Trad. Fernando Pessoa. “Complete Poems of Alberto Caeiro”. Trad. Thomas Crosse. “Songs” (Antonio Botto). Trad. “Songs from the Old Portuguese Song-Books”. Trad. Fernando Pessoa. “The Duke of Parma – A Tragedy”. Fernando Pessoa. “All About Portugal”. Ed. Fernando Pessoa (special). “The Southern Review” (quarterly or half-yearly).

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ANEXO D [PROJECTOS] 5 [Dactilografado] Dactilografado] [s/d] Five Epistles to the Boeotians – Fernando Pessoa. (5 n.0s) The Strange Death of Professor Antena – Mário de Sá-Carneiro. (1) Opiary, Triumphal Ode, Naval Ode – Alvaro de Campos. (1, 2 or 3). Portuguese Anthology (beginning with extracts, text and translations, from the Cancioneiros, and then throughout Portuguese both prose and poetic literature). (several n.0s) «A Engommadeira» – José de Almada-Negreiros. (1 or 2 n.0s). (?) Catullo da Paixão Cearense. (trans. perh. w. text) (several n.0s) A Man's Death – Joaquim Leitão. (1 n.0) (Religions of Lusitania). (Part in the War, write down with absolute frankness). (The Problem of Spanish Galicia – by someone APO will obtain) (The Catalonian problem – by someone from Barcelona) (Or, perhaps, two articles, one on each side of the question, preceded by an explanation of why a paper called «P» deals with a Spanish matter). Columbus a Galician. (The details concerning the «Genoa» myth) (Examine, however, other details concerning the Beja, or something like it, thesis). Editorial article on SP and on his presidency, perhaps a succint exposition of S. do S.: or an article on the Political Situation in Portugal «Octavio» (A Play in three acts) – Victoriano Braga. (1 n.0) The Horoscope of Portugal. The Myth of King Sebastian. Personal Jokes./ (Jokes about Portuguese personalities or by them, from Bocage and Dr. Assis to really decent people). Objectionable Personalia. (Scandal…)

Cinco Epistolas aos Beócios – Fernando Pessoa (5 números.). A Estranha Morte do Professor Antena – Mário de Sã-Carneiro. (1) Opiário, Ode Triunfal, Ode Maritima – Alvaro de Campos. (1, 2 ou 3). Antologia Portuguesa (começando com excertos, textos e traduções dos Cancioneiros, e a seguir de toda a literatura portuguesa, prosa e poesia). (vários números.) «A Engommadeira» – José de Almada-Negreiros. (1 ou 2 n.0s) Catullo da Paixão Cearense. (talvez transcrição com texto) (vários números?) A Morte de um Homem – Joaquim Leitão (1 número) (Religiões da Lusitânia). (Parte na Guerra, escrito com absoluta franqueza). (O Problema da Galiza Espanhola – por alguém que APG obterá) 5

LOPES, Teresa Rita (coord.) (1993) – Pessoa Inédito. Lisboa, Livros Horizonte, pp. 217-218.

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(O Problema Catalão – por alguém de Barcelona) (Ou, talvez, dois artigos, um de cada lado da questão, precedidos por uma explicação sobre a razão de um jornal denominado «P» tratar de um assunto espanhol). Colombo, um Galego. (Os pormenores acerca do mito «Genovês») (Examinar, contudo, outros pormenores acerca da tese de Beja, ou algo parecido). Artigo editorial sobre SP e a sua presidência, talvez uma exposição sucinta do S. do S.: ou um artigo sobre a Situação Política em Portugal. «Octávio» (Uma peça em três actos) – Victoriano Braga. (1 número). O Horóscopo de Portugal O Mito do Rei Sebastião. Anedotas Pessoais./ (Anedotas sobre personalidades portuguesas ou escritas por elas, de Bocage e Dr. Assis, para gente realmente decente). Personalia Objectáveis. (Escândalos…)

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ANEXO E [«O TRADUCTOR INVISIVEL»] 6 [Dactilografado] Dactilografado] [s/d] A virtude principal da literatura – o não ser musica – é ao mesmo tempo o seu principal defeito. Tem que ser composta e expressa em uma lingua qualquer. Tem, portanto, por mais largamente que essa lingua seja fallada ou conhecida, que se não dirigir plenariamente à maioria do genero humano. Aquillo por onde é mais explicita que qualquer outra arte, por isso mesmo é menos universal que ella. Occorre, pois, perguntar por que processo, em literatura, é alguem universalmente celebre, como, ainda que poucos, ha relativamente tantos que o são; por que processo são celebres no espaço, e sobretudo no espaço e no tempo quando forçosamente, e mòrmente na poesia, que é a especie literaria mais alta, nenhuma traducção, suppondo que existe, pode dar conhecimento da obra em sua completa e verdadeira vida. Porque o certo é que, a maioria de nós, não mentimos nem fingimos quando, ignorantes do grego, soffremos o enthusiasmo de Homero, ou, hospedes e peregrinos no latim, temos o culto de Horacio ou de Catullo. Não mentimos nem fingimos: presentimos. E esse presentimento, feito de não sei que mixto de intuição, de suggestão e de entendimento obscuro, é uma especie de traductor invisível, que acompanha pelas eras fóra, e torna universal como a musica, a arte dada em linguagem, esse producto de Babel, com cuja queda o homem pela segunda vez cahiu. O que ha de mais alto neste mundo falla, quer queira quer não, uma linguagem symbolica, entendida por poucos com a verdadeira chave hermetica, a intelligencia, entendida por mais com o instincto de que ha que entender, que é a intuição. São os primeiros, para o caso da obra literaria, os que conhecem como naturaes a língua em que ella está escripta; são os segundos os que a não conhecem assim, ou de todo a não conhecem, mas que, não conhecendo a lingua, conhecem todavia a obra. Mas ha mais, e mais extranho. Podemos, por intuição, ou o que quer que seja, figurar-nos a alma e a vida de uma obra poetica de que não conhecemos nada, ou, no melhor, não conhecemos mais que uma traducção em prosa, que é outra fórma, mais complicada, do mesmo nada. Muitos de nós, porém, nos figuramos, com razoavel exactidão, a alma e a vida de obras que nunca lemos, por vagas reminiscencias de referencias, por obscuras e casuaes allusões, ou de obras, ainda, em idiomas extranhos, e de que não ha, ou pelo menos nunca lemos, traducção em idioma que nol-o não seja. Aqui o traductor invisivel opera invisivelmente. Já não intuicionamos: adivinhamos. É como se houvesse em nós uma parte superior da alma que soubesse por condição todos os idiomas e tivesse lido por natureza todas as obras. Afinal, que é uma obra literaria senão a projecção em linguagem de um estado de espirito, ou de uma alma humana? E essa obra é o symbolo vivo da alma que a escreveu, ou do momento d’essa alma – uma pequena alma occasional – que a projectou. Porque não haverá de alma para alma uma communicação occulta, um entendimento sem palavras, pelo qual adivinhamos a sombra visivel pelo conhecimento do corpo invisivel que a projecta, e entendemos o symbolo, não por o conhecermos visto, mas por sabermos aquillo de que é symbolo?

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LOPES, Teresa Rita (coord.) (1993) – Pessoa Inédito. Lisboa, Livros Horizonte, pp. 385-386.

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Quem sabe, até, se em qualquer estado antenatal, não vimos frente a frente a obra em seu espirito, que não no corpo verbal que aqui tem; que, ouvindo aqui só fallar nella, desde logo sabemos de quem se trata, na sua verdadeira essencia e vida; e que, pois, lendo mal, ou nem sequer lendo, não é em nós suscitado, não um entendimento, ainda que intuitivo, mas uma funda e subtil recordação? Quem sabe, ainda, se, nesse estado antenatal, livres ainda do espaço e do tempo, não vimos já tudo, aqui hoje passado ou aqui hoje futuro, sub specie aeternitatis; e assim, se pudermos dispertar em nós essa anamnesis, não estamos hoje, nós mesmos nossos traductores invisiveis, senhores inconscientes das obras ainda por nascer no decurso futuro do mundo? Não sorrio porisso – ou melhor, não sorrio sempre, nem promptamente dos que me fallam de Shakespeare sem que saibam o inglez – e escolho Shakespeare para exemplo porque elle é dos poetas mais fielmente casados com a indole e as possibilidades do idioma em que compoz, e, como bom marido, com as maneiras e fórmas de enganar esse idioma. Não sorrio. Quem sabe se, em qualquer incarnação anterior, o que me falla não conheceu Shakespeare como aqui foi, não fallou com elIe como aqui faltou, e não está sendo, sem que elle ou eu o saiba, o traductor invisivel de um grande amigo ignorado?

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ANEXO F [A ARTE DE TRADUZIR POESIA] 7 [Dactilografado] [s/d] A poem is an intellectualized impression, or an idea made emotion, communicated to others by means of a rhythm. This rhythm is double in one, like the concave and convex aspects of the same arc: it is made up of a verbal or musical rhythm and of a visual or image rhythm, which concurs inwardly with it. The translation of a poem should therefore conform absolutely (1) to the idea or emotion which constitutes the poem, (2) to the verbal rhythm in which that idea or emotion is expressed; it should conform relatively to the inner or visual rhythm, keeping to the images themselves when it can, but keeping always to the type of image. It was on this criterion that I based my translations into Portuguese of Poe's Annabel Lee and Ulalume, which I translated, not because of their great intrinsic worth, but because they were a standing challenge to translators.

Um poema é uma impressão intelectualizada, ou uma ideia convertida em emoção, comunicada a outros por meio de um ritmo. Este ritmo é duplo num só, como os aspectos côncavo e convexo do mesmo arco: é constituído por um ritmo verbal ou musical e por um ritmo visual ou de imagem que lhe corresponde internamente. A tradução de um poema deve, portanto, conformar-se absolutamente (1) à ideia ou emoção que o constitui, (2) ao ritmo verbal em que essa ideia ou emoção é expressa; deve conformar-se em relação ao ritmo interno ou visual, aderindo às próprias imagens quando possa, mas aderindo sempre ao tipo de imagem. Foi baseado neste critério que fiz as minhas traduções portuguesas de Annabel Lee e Ulalume de Poe, que traduzi, não pelo grande valor intrínseco que possuam mas por serem um repto permanente aos tradutores.

7

PESSOA, Fernando (1973) – Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias. Lisboa, Edições Ática, pp. 74-75. (tradução de Jorge Rosa)

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ANEXO G [PETIÇÃO A FAVÔR DE WILLIAM SHAKESPEARE, TRADUZIDO] 8 [Manuscrito] [anterior a 4.9.1916 4.9.1916] 9.1916] Uma tôrva e peçonhenta maldade – maldade excessiva mesmo para o coração, tão de officio viperino, de um editor – levou os snrs. Lello & Irmão, não sei porque azar posthumo de Shakespeare, a escolher para victima prolongada aquella, a maior de todas as almas que se teem enganado de mundo. Decidiram fazer passar a Shakespeare tratos de traductor. E como encontrassem vis e criminosos precedentes, em ambos os logares onde ha más fadas, para que, sem ousadia de originalidade, n’elles alicerçassem o seu grande crime, escolheram para mestre para mestre de obras a figura, d’oravante laivada de perversão, do dr. Domingos Ramos. E passaram a insultar os descendentes dos navegadores com incutir-lhes a idéa de que é possivel traduzir o verso e a prosa eternos de Shakespeare para uma prosa portugueza excessivamente transitoria. Apenas folheei, e nem uma linha li, das traducções que o snr. Domingos Ramos terá immortalmente que expiar. Porque não é com a competencia de traductor-de-inglez do snr. dr. Ramos que eu implico e esbarro. É com a sua competencia para traduzir Shakespeare, visto que lhe cáe em cima e o reduz a prosa. Shakespeare só se deve usar traduzir – o verso para verso, e prosa para prosa, e que verso e prosa teem de ser! Mas vá que o não sejam: o traductor terá falhado n’uma boa causa. Agora propôrse pôr em mera prosa a prosa e o verso de Shakespeare, como se se estivesse traduzindo de uma traducção ingleza de Shakespeare para Rudyard Kipling – isso é que não pode ser – isso é que pede reclamação diplomática; justo ultimatum, intervenção estrangeira… Apélo, indignado e crítico, para quantos em Portugal conheçam Shakespeare. Bem sei que não são mais que quatro ou cinco. Mas as grandes convicções valem exercitos. Com ois homens sefez o regicidio. Fernando Pessoa

8

LOPES, Teresa Rita (coord.) (1993) – Pessoa Inédito. Lisboa, Livros Horizonte, pp. 221-222.

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ANEXO H [PARA UMA TEORIA DA TRADUÇÃO – 2] 9 [Dactilografado [Dactilografado] ilografado] [s/d] I do not know whether anyone has ever written a History of Translation(s). It should be long, but a very interesting book. Like a History of Plagiarisms – another possible masterpiece which awaits an actual author – it would brim over with literary lessons. There is a reason why one thing should bring up the other: a translation is only a plagiarism in the author's name. A History of Parodies would complete the series, for a translation is a serious parody in another language. The mental processes involved in translating well are the same as those involved in translating competently. In both cases there is an adaptation to the spirit of the author for a purpose which the author did not have; in one case the purpose is humour, where the author was serious, in the other one language when the author wrote in another. Will anyone one day parody a humorous into a serious poem? It is uncertain. But there can be no doubt that many poems – even many great poems – would gain by being translated into the very language they were written in. This brings up the problem as to whether it is art or the artist that matters, the individual or the product. If it be the final result that matters and that shall give delight, then we are justified in taking a famous poet's all but perfect poem, and, in the light of the criticism of another age, making it perfect by excision, substitution or addition. Wordsworth's Ode on Immortality is a great poem, but it is far from being a perfect poem. It could be rehandled to advantage. The only interest in translations is when they are difficult, that is to say, either from one language into a widely different one, or from a very complicated poem though into a closely allied language. There is no fun in translating between, say, Spanish and Portuguese. Anyone who can read one language can automatically read the other, so there seems also to be no use in translating. But to translate Shakespeare into one of the Latin languages would be an exhilarating task. I doubt whether it can be done into French; it will be difficult to do into Italian or Spanish; Portuguese, being the most pliant and complex of the Romance languages, could possibly admit the translation.

Não sei se já alguma vez alguém escreveu uma História da Traducção (ou traducções). Havia de ser um livro extenso, mas muito interessante. Tal como uma História do Plagiato – uma obra-prima possível que espera um autor actual – ela haveria de transbordar de lições literarias. Há uma razão pela qual uma coisa deva levar à outra: uma traducção é apenas um plagiato no nome do autor. Uma História das Imitações Burlescas de Obras Literárias [Parodies] completaria a série, porque uma traducçã0 é uma imitação [paródia] séria numa outra língua. Os processos mentais envolvidos em traduzir bem são os mesmos que aqueles envolvidos em traduzir competentemente. Em ambos os casos há uma adaptação ao espírito do autor para um propósito que 0 autor não teve; num caso, 0 propósito é 0 humor, enquanto 0 autor estava sério, no outro é uma língua, quando 0 autor escreveu numa outra. Parodiará alguém algum dia um poema humorístico num poema sério? E incerto. Mas não 9

LOPES, Teresa Rita (coord.) (1993) – Pessoa Inédito. Lisboa, Livros Horizonte, pp. 220-221. (tradução de Maria Rosa Baptista)

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pode haver qualquer dúvida de que muitos poemas – mesmo muitos grandes poemas – ganhariam em ser traduzidos na mesma língua em que foram escritos. Isto leva-nos ao problema de saber se 0 que importa é a arte ou 0 artista, 0 indivíduo ou 0 produto. Se 0 que importa for 0 produto final, e este 0 que deve dar [é] fruição, então estamos justificados em tomar um poema que é tudo menos perfeito, de um autor famoso, e à luz do criticismo de uma outra era, torná-lo perfeito pelo corte, substituição ou adição. 10 A Ode à Imortalidade, de Wordsworth, é um grandioso poema, mas está longe de ser perfeito. Poderia ser vantajosamente remanuseado. O único interesse em traduções é quando elas são difíceis, ou seja, de uma língua para outra completamente diferente, ou então de um poema muito complicado para uma língua muito próxima. Não tem nenhuma graça traduzir, digamos, entre espanhol e português. Qualquer pessoa que pode ler uma língua, pode automaticamente ler a outra, por isso parece também não haver qualquer utilidade em traduzir. Mas traduzir Shakespeare para uma das línguas latinas seria uma tarefa extremamente gratificante. Duvido que isso possa ser feito para francês; seria muito difícil fazê-lo para italiano ou espanhol; sendo 0 português a mais maleável e complexa das línguas românicas, poderia possivelmente admitir a tradução.

10

Nossa sugestão de tradução: “Se o que interessa é o resultado final, e que este satisfaça, então temos justificação para pegar num poema tudo menos perfeito de um poeta famoso, e – à luz da crítica de uma outra época – torná-lo perfeito pelo corte, substituição ou adição.”

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ANEXO I [PARA UMA TEORIA DA TRADUÇÃO – 1] 11 [Manuscrito] Manuscrito] [s/d] Entendamo-nos bem. Ninguem pode Ier tudo, sequer sobre um só assunto. É, pois necessario, muitas vezes, citar em segunda-mão, quando não ainda mais translatamente. Não há nisso charlatanice, desde que estejamos convencidos da competencia e da probidade do primeiro citador; nem é necessario que estejamos sempre indicando que não citamos do original, enchendo as paginas, que escrevemos, de «citas em segunda-mão», ociosas e importunas. Se eu citar, ainda que no original, uma phrase grega ou allemã, não vem a proposito dizerem-me, 0 que é aliás verdade, que não sei grego nem allemão. É preferivel citar em portuguez, até para conveniencia do leitor. Posso traduzir, atravez de idioma intermedio, qualquer poema grego, desde que consiga approximar-me do rhythmo do original, para 0 que basta saber simplesmente ler 0 grego, 0 que de facto sei, ou que obtenha uma equivalencia rhythmica. D’essa maneira traduzi alguns poemas da Anthologia Grega. A unica coisa a perguntar, a quem saiba grego e portuguez, é se a minha traducção está certa quanto ao sentido do poema, e se consegue uma equivalencia rhythmica sufficiente. A traducções d'essas poss0 legitimamente appôr um «traducção de F.P.», sem que tenha que accrescentar «atravez do inglez» ou outra phrase de egual teor. O que não posso é pôr «traduzido do grego», ou de qualquer modo insinuar que assim traduzi. O que não posso é criticar uma traducção alheia da mesma especie, excepto como se criticasse um original portuguez, e muito menos posso appôr notas sobre 0 texto grego à minha traducção. Se amanhã apparecer, sob 0 meu nome, um opusculo sobre a cirurgia dos rins, ou uma grammatica do sanscrito, induzo necessariamente toda a gente a suppor que sei de cirurgia dos rins ou que conheço 0 idioma devanagrico.

11

LOPES, Teresa Rita (coord.) (1993) – Pessoa Inédito. Lisboa, Livros Horizonte, p. 219.

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ANEXO J [O RITMO E O SENTIDO] 12 [Manuscrito] [s/d] Um poema é uma obra litteraria em que o sentido se determina atravez do rhythmo. O rhythmo pode determinar o sentido inteira ou parcialmente. Quando a determinação é inteira, é o rhythmo que talha o sentido, quando é parcial, é no rhythmo que o sentido se precisa ou precipita. Na traducção de um poema, portanto, o primeiro elemento a fixar é o rhythmo.

12

LOPES, Teresa Rita (coord.) (1993) – Pessoa Inédito. Lisboa, Livros Horizonte, p. 386.

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ANEXO K [CARTA A ROGELIO BUENDíA DE 15.9.1923] 13 [Dactilografado] [15.9.1923] 15.9.1923] Para Rogelio Buendía, Castelar 6, Huelva. Don Rogelio Buendía. Querido amigo: Muito agradeço a sua carta de 11, recebida hontem, e o exemplar duplicado de «La Provincia», recebido hoje. Mais ainda lhe agradeço a honrosa amabilidade que representa, da sua parte e da de sua Esposa, o traduzirem, e publicarem a traducção, de cinco das minhas «Inscriptions». Creio que realizaram a traducção com grande felicidade, dada a difficuldade fundamental de pôr em uma lingua neo-latina, sem ser demasiado extenso, o que a concisão natural do inglez permitte concentrar em um curto numero de versos. Assim a vossa traducção é em alguns pontos, por assim dizer, interpretativa. Mas não podia deixar de sel-o, reconheço. E repito que está executada com uma grande felicidade. Ha, porcerto, um ou outro pormenor da traducção que se não conforma inteiramente com o sentido do original. Mas isso entra, creio, na inevitabilidade de ser mais interpretativa que litteral uma traducção do inglez (ou do allemão) para qualquer das linguas vulgarmente chamadas latinas. Vendo bem, a tarefa, que tão amavelmente para mim se propuzeram executar, e executaram, não podia, dadas as suas difficuldades essenciaes, ser conduzida com maior destreza e escrupulo artistico. De todo o coração vol-a agradeço. Não tenho visto o Antonio Botto. Mas, sobre a sua conferencia fallei, mal recebi a sua carta, ao José Pacheco, director da «Contemporanea». Elie disse-me immediatamente que a «Contemporanea» organizaria a sua conferencia não só com prazer, senão com enthusiasmo. São as palavras d’elle que lhe transmitto. Nem haveria mais ninguem em Portugal que pudesse tão bem organizar – e de tão boa vontade organizaria – uma conferencia sua, como a «Contemporanea». O José Pacheco disse-me, de resto, que já ha tempo o havia convidado para fazer uma conferencia em Lisboa, quando para tal tivesse occasião. Não vale a pena mandar o seu livro a «criticos» nenhuns em Fortugal. Ha aqui uma scisão quasi completa, senão completa, entre o jornalismo ou periodismo e a superioridade intellectual. Ha notaveis temperamentos criticos, mas nunca escrevem em jornaes – por vezes será mais justo dizer que em absoluto não escrevem. Ha muita gente culta em Portugal, mas não ha meio culto. A cultura em Portugal é de individuos, não de grupos, e esses individuos vivem quasi separados, ás vezes mesmo de si-proprios. Tenho a agradecer-lhe, ainda, as palavras de apreço que em sua carta dedica aos meus poemas em inglez. Creia sempre, querido amigo, na amisade, na admiração e no reconhecimento do muito seu, (a) Fernando Pessoa. Lisboa, 15/IX/1923. 13

LOPES, Teresa Rita (coord.) (1993) – Pessoa Inédito. Lisboa, Livros Horizonte, pp. 322-323.

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ANEXO L [CARTA - PROPOSTA DE TRADUÇÕES DE SHAKESPEARE] 14 [Dactilografado] Dactilografado] [20.6.1923] 20.6.1923] Rua de S. Julião, 52, 1º. Lisboa, 20 de Junho de 1923. Exmo. Senhor Dr. João de Castro, LISBOA. Em confirmação, e seguimento concreto, da conversa que hontem tivemos, venho apresentar-lhe, esclarecendo-a, a proposta, que fiz, para a traducção das principaes obras de Shakespeare, assim como de outras obras, de menor extensão e vulto, porém de egual novidade – pelo menos quanto á fôrma de traduzir – para os publicos que falíam portuguez. De Shakespeare proponho-me traduzir, por emquanto, as seguintes dez peças: «A Tormenta», «Hamlet, Principe da Dinamarca», «O Rei Lear», «Macbeth», «Othello», «Antonio e Cleopatra», «O Mercador de Veneza», «Sonho de uma Noite de Verão», e duas outras, sobre cuja escolha não estou ainda decidido, mas que serão provavelmente o «Coriolano» e a comedia «Como quizerdes». As outras traducções, de que lhe fallei, deveriam pertencer a uma collecção de pequenos livros, uniformes no formato, no aspecto e no preço, subordinada ao intuito de fazer conhecidos do publico portuguez, em selectas resumidas, os principaes poetas e prosadores extrangeiros de que elle, por emquanto, pouco mais conhece que os nomes. Para essa collecção, cujo ambito geral – que vagamente lhe indiquei – naturalmente transcede a possibilidade da minha collaboração exclusiva, eu traduziria, por exemplo, os «principaes poemas» de Edgar Poe, de Robert Browning, de Wordsworth, de Coleridge, de Mathew Arnold, de Shelley, de Keats, e, em volumes de conjuncto, dos poetas menores da Restauração ingleza (Sedley, Suckling, Lovelace, etc.) e da epocha victoriana em seu fim (O'Shaughmsay, Dowson, Lionel Johnson, e outros). Quer para as traducções de Shakespeare, quer para estas, é o mesmo o meu critério de traductor – transpôr para portuguez tanto o espirito, como a essencia da lettra da obra. Das traducções de Shakespeare comprometto-me a entregar uma peça por trimestre; das outras um livro cada dois meses. Quanto ao preço, por que seriam pagas estas traducções, creio que o unico systema a adoptar é o systema das «royalties», como se applica ás traducções d’este genero. Esse systema é o mais justo para ambas as partes e ajusta-se por natureza a todas as fluctuações de preços de livros e de calculos de sua producção. Proponho, pois, nesta orientação, que tanto umas como outras traducções me sejam pagas pela mesma tabella – vinte por cento do preço de capa, na occasião da entrega do manuscripto da traducção; e isto não deve ser de calculo difficil, poisque a editoria porcerto sabe a quanto vae vender o exemplar ao publico, e de quantos exemplares vae fazer a tiragem. Pedi ainda, numa especie de postscripto á minha proposta, tal como primeiro verbalmente a fiz por intermedio do sr. Geraldo Coelho de Jesus, que, por conta d’estas traducções me fôsse abonada, até ao fim do mez de Junho corrente, a quantia de dois mil escudos. Como tenho promptas, e sujeitas 14

LOPES, Teresa Rita (coord.) (1993) – Pessoa Inédito. Lisboa, Livros Horizonte, pp. 222-223.

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apenas á necessaria revisão final, a traducção de «A Tormenta» de Shakespeare e a dos «Principaes Poemas» de Edgar Poe, tendo adeantada a dos «Principaes Poemas» de Robert Browning, não tardará muito que a entrega dos manuscriptos equilibre o adeantamento que peço. Accresce que, de aqui a não muito tempo, terei prompta tambem a traducção do «Hamlet». É esta proposta, desdobramento e concretização do que verbalmente tratámos, que peço o favor de transmittir officialmente á editoria de que é gerente e socio. Agradecendo-o antecipadamente, subscrevo-me, com a maior consideração. De V. Exa. Mto. Atto. e Obgdo.

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ANEXO M Ode Marítima 15

Naval Ode 16 [Orpheu II] [Julho de 1915]

Sózinho, no cais deserto, a esta manhã de verão, Ólho pró lado da barra, ólho pró Indefinido, Ólho e contenta-me vêr, Pequeno, negro e claro, um paquete entrando. Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira. Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo. Vem entrando, e a manhã entra com êle, e no rio, Aqui, acolá, acorda a vida marítima, Erguem-se velas, avançam rebocadores, Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto. Ha uma vaga brisa. Mas a minh'alma está com o que vejo menos, Com o paquete que entra, Porque êle está com a Distância, com a Manhã, Com o sentido marítimo desta Hora, Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea, Como um começar a enjoar, mas no espírito. Ólho de longe o paquete, com uma grande independência de alma, E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.

[Misto] [1915] 1 Alone, on the deserted quay, this summer morning, I look towards the bar, I look towards the Indefinite, I look and find pleasure in seeing, Little, black and clear, a steamer coming in. It is very far yet, distinct and classic after its own fashion. It leaves on the distant air behind it the vain curls of its smoke. It is coming in, and morn comes in with it, and on the river Here, there, naval life awakes, Sails arise, tugs advance, 10 Small boats jut out from behind the ships in the port. There is a vague breeze. But my soul is with the things that I see least, With the in-coming steamer, Because it is with Distance, with Morn, With the naval meaning of this Hour, With the painful softness that rises in me like a qualm, Like a beginning of sea-sickness, but in my soul. I look from afar at the steamer, with a great independence of mind And a whell begins to spin in me, very slowly.

Os paquetes que entram de manhã na barra Trazem aos meus olhos comsigo O mistério alegre e triste de quem chega e parte. Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos Doutro modo da mesma humanidade noutros portos. Todo o atracar, todo o largar de navio, É – sinto-o em mim como o meu sangue – Inconscientemente simbólico, terrivelmente Ameaçador de significações metafísicas Que perturbam em mim quem eu fui...

20 The steamers that enter the bar in the morning, Bring to my eyes with their coming The glad and sad mystery of all who arrive and depart. They bring memories of distant quays, and of other moments Of another kind of the same mankind in other ports. Every (...), every departure of a ship, Is – I feel it in me like my blood – Unconsciously symbolic, terribly Threatening metaphysical meanings That startle in me the being I once was...

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra! E quando o navio larga do cais E se repara de repente que se abriu um espaço Entre o cais e o navio, Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente, Uma névoa de sentimentos de tristeza Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas Como a primeira janela onde a madrugada bate, E me envolve como uma recordação duma outra pessôa Que fôsse misteriosamente minha.

30 Ah, every quay is a regret made of stone! And when the ship leaves the quay And we note suddenly that a space is widening Between the quay and the ship, There comes to me, I know not why, a recent anguish, A mist of feelings of sadness That shines in the sun of my mosy anguishes Like the first window the morning strikes on, And clings round me like some one else's remembrance Which is somehow mysteriously mine.

Ah, quem sabe, quem sabe, Se não parti outrora, antes de mim, Dum cais; se não deixei, navio ao sol Oblíquo da madrugada, Uma outra espécie de porto? Quem sabe se não deixei, antes de a hora

40 Ah, who knows, who knows, If I did not leave long ago, before Myself, A quay; if I did not depart, a ship in The oblique sun of morning, From another kind of port? Who knows if I did not leave, before the hour

15

LOPES, Teresa Rita (org.) (1997) – Álvaro de Campos – Livro de Versos (Edição Crítica). Lisboa, Referência / Editorial Estampa. [1993] 16 LOPES, Teresa Rita (coord.) (1993) – Pessoa Inédito. Lisboa, Livros Horizonte, pp. 213-217.


Do mundo exterior como eu o vejo Raiar-se para mim, Um grande cais cheio de pouca gente, Duma grande cidade meio-desperta, Duma enorme cidade comercial, crescida, apoplética, Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?

Of the exterior world as I see it Dawned for me, A large quay full of few people, Of a great half-awakened city, 50 Of a great city commercial, overgrown, apopletical, As much as that can be outside Time and Space?

Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material, Real, visível como cais, cais realmente, O Cais Absoluto por cujo modêlo inconscientemente imitado, Insensívelmente evocado, Nós os homens construímos Os nossos cais nos nossos portos, Os nossos cais de pedra actual sôbre ágoa verdadeira, Que depois de construídos se anunciam de repente Cousas-Reais, Espíritos-Cousas, Entidades em Pedra-Almas, A certos momentos nossos de sentimento-raiz Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta E, sem que nada se altere, Tudo se revela diverso.

Ay, from a quay, from a quay somehow material, Real, visible as a quay, really a quay, The Absolute Quay on whose type, unconsciously imitated, Insensibly evoked, We men have built Our quays in our harbours, Our quays, of actual stone overlooking true water, Which, once built, suddenly show themselves to be 60 Real-Things, Things-Spirits, Entities in Stone-Souls, At certain moments of ours of root-sentiments When it seems that a door is opened in the outer world And, without anything changing Everything reveals itself to be different.

Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações! Ah, the Great Quay whence we embarked in Ship-Nations! O Grande Cais Anterior, eterno e divino! The Great Earlier Quay, eternal and divine! De que porto? Em que ágoas? E porque penso eu isto? Of what port? Over what waters? And why do I think of this? Grande Cais como os outros cais, mas o Único. A Great Quay like all other quays, but the Only One. Cheio como êles de silêncios rumorosos nas antemanhãs, Full, as they are, of murmurous silences in the fore-dawns 70 And budding with the dawns in a noise of cranes E desabrochando com as manhãs num ruído de guindastes E chegadas de comboios de mercadorias, And arrivals of goods-trains E sob a nuvem negra e ocasional e leve And under the black, occasional and light cloud Do fumo das chaminés das fábricas próximas Of the smoke of the chimneys of the near factories Que lhe sombreia o chão preto de carvão pequenino que brilha, Which clouds its ground, black with small shining coal, Como se fôsse a sombra duma nuvem que passasse sôbre água sombria. As if it were the shadow of a cloud passing over dark water. Ah, que essencialidade de mistério e sentidos parados Ah, what essentiality of mystery and arrested senses Em divino extase revelador In a divine revealing ecstasy Ás horas côr de silêncios e angústias At the hours coloured like silences and anguishes Não é ponte entre qualquer cais e O Cais! Is the bridge between any quay and THE QUAY! Cais negramente reflectido nas águas paradas, Bulício a bordo dos navios, Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada, Da gente simbólica que passa e com quem nada dura, Que quando o navio volta ao porto Ha sempre qualquer alteração a bordo!

80 Quay blackly reflected in the still waters, Suddle [?] on board the ships, Oh wandering and unstable soul of the people who live in ships, Of the symbolic people who pass and for whom, nothing lasts For when the vessel returns to the port, There is always some change on board!

Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso! Alma eterna dos navegadores e das navegações! Cascos reflectidos de vagar nas ágoas, Quando o navio larga do porto! Fluctuar como alma da vida, partir como voz, Viver o momento trémulamente sôbre ágoas eternas. Acordar para dias mais directos que os dias da Europa, Vêr portos misteriosos sôbre a solidão do mar, Virar cabos longínqùos para súbitas vastas paisagens Por inumeráveis encostas atónitas...

On continual flights, goings, drunknness of the Different! Eternal soul of navigators and navigations! Hulls slowly reflected in the waters When the ship leaves the port! 90 To float as soul of life, to depart as voice, To live the moment tremulously on eternal waters! To wake to more direct days than the days of Europe, To see mysterious ports over the loneliness of the sea, To double distant capes and see sudden great landscapes Of unnumbred astonished alones!

Ah, as praias longínqùas, os cais vistos de longe, E depois as praias proximas, os cais vistos de perto. O mistério de cada ida e de cada chegada, A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade Dêste impossível universo A cada hora marítima mais na própria pele sentido! O soluço absurdo que as nossas almas derramam Sôbre as extensões de mares diferentes com ilhas ao longe, Sôbre as ilhas longínqùas das costas deixadas passar, Sôbre o crescer nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente, Para o navio que se aproxima.

Ah, the distant beaches, the quays seen from afar, And then the near beaches and the quays seen from near. The mystery of each departure and of each arrival, The painful instability and incomprehensibility 100 Of this impossible universe At each naval hour ever more deeply felt right in my skin. The absurd sob that our souls spill Over the ever-different tracts of seas with islands afar, Over the distant lines of the coasts we merely pass by, Over the clear growing-clear of ports, with their houses and their people, When the ship nears the land.

Ah, a frescura das manhãs em que se chega, E a palidez das manhãs em que se parte,

Ah, the freshness of moms when we arrive, And the paleness of the moms when we depart,

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Quando as nossas entranhas se arrepanham E uma vaga sensação parecida com um mêdo – O mêdo ancestral de se afastar e partir, O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo – Encolhe-nos a pele e agonia-nos, E todo o nosso corpo angustiado sente, Como se fôsse a nossa alma, Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira: Uma saudade a qualquer cousa, Uma perturbação de afeições a que vaga patria? A que costa? a que navio? a que cais? Que se adoece em nós o pensamento E só fica um grande vácuo dentro de nós, Uma ôca saciedade de minutos marítimos, E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dôr Se soubesse como sê-lo... A manhã de verão está, ainda assim, um pouco fresca. Um leve torpôr de noite anda ainda no ar sacudido. Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim. E o paquete vem entrando, porque deve vir entrando sem dúvida, E não porque eu o veja mover-se na sua distância excessiva. Na minha imaginação êle está já perto e é visível Em toda a extensão das linhas das suas vigias, E treme em mim tudo, toda a carne e toda a pele, Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado oblíqùo.

When our entrails are gripped up 110 And a vague sensation resembling a fear – The ancestral fear of going away and leaving, The mysterious ancestral terror of Arrivals and New Things – Grips up our skin and gives us qualms And all our anguished body feels, As if it were our soul, An unexplained desire to feel this in some other way: A regret at something, A perturbation of tendernesses towards what vague fatherland? What coast? what ship? what quay? 120 That thought sickens within us And only a great vaccum remains in us, A hollow satiety of naval minutes, And a vague anxiety that would be weariness or pain If it knew how to be that… The summer morning is, nevertheless, slightly cool, A slight night-dullness lies yet on the shaken air. The wheel within me quickens its motion slightly. And the steamer keeps on coming in, because surely it must coming in, And not because I see it moving in its excessive distance. 130 In my imagination it is already near and visible In all the extent of the lines of its portholes, And everything trembles in me, all my flesh and all my skin, On account of that creature that never arrives in any ship And whom I have come to await to-day on this quay, through an oblique command.

[…]

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