A dois passos do paraíso

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A DOIS PASSOS DO PARAÍSO Ivan Lacerda



A DOIS PASSOS DO PARAÍSO Baú das Letras

1º Edição

2009


Agradecimento: Rosana Benedetti, Ivani Cavalcanti e Silvio Gonçalves Capa: Ivan Lacerda Fotos: Ivan Lacerda Capa: Borboleta Monarca: Jorge A. Flores Dias Santa de Guadalupe de Ben Earwicker Revisão: Camila Camargo Diagramação eletrônica e direção de arte: Ivan Lacerda Cavalcanti 1º Edição Dezembro de 2009

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Cavalcanti, Ivan Lacerda Registro na Biblioteca Nacional com o ISBN nº 978-85-902370-2-0 Título: A DOIS PASSOS DO PARAÍSO CGC editora: 08736442801902 Assunto: 869-3B Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida – por qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. – nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorização da editora. Os infratores serão punidos pela Lei nº 9.610/98. NOTA: Esta é uma obra de ficção. Os vários personagens verídicos que permeiam a trama embora inseridos no contexto histórico são tratados de forma ficcional numa mescla de fantasia e realidade. Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº. 54, de 1995). Informações ou solicitação de exemplares poderão ser feitos através do site:

www.ivanlacerda.com.br Impresso no Brasil / Printed in Brazil


Dedico esse livro as lagartas do meu pĂŠ de maracujĂĄ



Caro leitor, Sou apaixonado pela natureza, aprendo muito com cada singelo gesto de evolução. Gosto de podar as plantas e transplantá-las, retirar as pragas da grama, enfim, serve como uma espécie de “descarrego” e também um meio de recarregar as baterias. Desligar da rotina maluca de uma cidade grande como São Paulo, ou outras tantas nesse país. Faço minhas experiências com as orquídeas, crio inúmeras mudas de hibiscos, arundinas, palmeiras, flamboyants, primaveras e mais recentemente tento, em vão, levar adiante o pé de maracujá que ganhei de um grande amigo. Ocorre que suas folhas devem ser muito saborosas, pois é atacado constantemente por lagartas. Já tive o ímpeto de fazer uma chacina, um verdadeiro “lagartocínio”. Mas lembrei do velho ditado, “Se não pode com elas, junte-se a elas”. Cheguei a imaginar que cada voo rasante das borboletas, é na verdade um maracujá voador. Mas pensando bem, conclui que para esse nosso mundo cada vez mais acinzentado pela poluição, não farão falta alguns maracujás azedos e as borboletas dão um colorido no céu. Sabendo do grande aprendizado que é a trajetória desses insetos desde a postura do ovo até o primeiro voo, resolvi acompanhar cada etapa dessa evolução. Admito que vivenciei um dos grandes aprendizados em minha vida, tanto é que envolvido nesse universo de ovos, lagartas, crisálidas e borboletas, percebi o quanto elas do seu jeito queriam me dizer alguma coisa. Na verdade, queriam me contar uma linda história de amor de uma Mariposa Apaixonada de Guadalupe. Como não sou egoísta, apenas transcrevi, o que aconteceu no “dia que seria o dia do dia mais feliz de sua vida...” Espero que gostem. Um grande abraço. Ivan Lacerda



“Há aqueles que lutam um dia; e por isso são bons; Há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito bons; Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda; Porém há aqueles que lutam toda a vida; Esses são os imprescindíveis.” Brecht



A dois passos do paraíso

CAPÍTULO 1

A amiga O moleque dormia de lado, inerte, como nos últimos cinco anos. Metade do rosto afundado no travesseiro sem fronha, coberto apenas por fino lençol de algodão amarelado. Vestia o mesmo pijama surrado que deixava aparecer as suas pernas brancas imóveis com manchas vermelhas pintadas com picadas de pernilongo. O quarto escuro e o ar pesado davam à impressão de se tratar de uma cela. Sua mãe já tinha feito o asseio matinal. Não podia perder muito tempo com o trato do filho paralítico, tinha muita trouxa de roupa da vizinhança pra lavar. Desde que perdeu o marido numa briga de bar, depois de uma partida de truco, era obrigada a se desdobrar para dar o sustento aos filhos. Se bem que Dona Isaura o preferia morto mesmo, pois se o traste estivesse vivo talvez nem a casa lhe restasse. O caçula nasceu uma criança normal, forte, sorriso fácil, olhos ávidos por novidade. Ganhou o nome do avô por parte de mãe, Arlindo. Com ciúmes da homenagem, o pai, alcoólatra e jogador, ao registrar o filho decidiu, sem consultar a mulher, incluir o próprio nome na frente, Orlando. Como toda criança sadia, era cheio de energia e corria pelos corredores da casa, brincando e gritando. Talvez por notar o clima pesado, tentava contribuir trazendo alguma alegria e alento ao ambiente. Dizem que deixou de andar depois de ver o pai batendo na mãe. Quis impedir, colocando-se na frente dela, tentando evitar os golpes e foi arremessado como uma cadeira velha contra a parede. Desde então, 12


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nunca mais conseguiu mover as pernas. Vive entrevado na cama, trancafiado no seu mundo particular. O pai com remorso, passou a beber ainda com mais frequência. Já não cuidava dos negócios que estavam degringolando, o que também passou a ser um pretexto para se encharcar na bebida. Perdeu o sítio numa mesa de bar, tentou blefar contra o Zap. Perdeu o armazém nas dívidas com o banco pra pagar o que restou do caminhão batido. Tinha acabado de comprar o Mercedes Benz L321, mais conhecido carinhosamente como “Cara chata”. O primeiro a circular e levantar poeira nas ruas de Miracema do Norte. Depois do costumeiro carteado, Orlando bêbado, se atreveu a dirigir. Percorreu nem dois quilômetros e deu de cara com um enorme Flamboyant. Por sorte não morreu e nem matou ninguém. Sobrou apenas a carroceria intacta, o chassi e pneus. Orlando foi bebendo o caminhão aos poucos. Sem trabalho, bebeu os bancos, os pneus, as rodas, o câmbio, a carcaça do motor e os acessórios, por fim embriagouse com a carroceria. O que sobrou, ficou no quintal estorvando e ocupando espaço que bem poderia ser destinado ao varal de roupas. A cabine batida e enferrujada, servia de esconderijo para as brincadeiras das crianças e depósito de lixo e teias de aranha, além de um ótimo local para a reclusão e hibernação das lagartas, antes de se metamorfosearem em borboletas. A diversão de Arlindo Orlando era ver pela janela seus irmãos, os moleques e as meninas da vizinhança brincando no quintal e no que sobrou da cabine do caminhão. O pai arrependido do gesto bruto, antes de morrer, ainda levou o menino a diversos médicos da cidade, inclusive a um especialista em Goiânia, mas o caso era dado como encerrado, ou como se diz na linguagem jurídica, transitado e julgado. O garoto estava fadado a viver numa cadeira de rodas ou largado num leito. Voltar a andar, só mesmo se fosse um milagre. Dona Isaura, fiel a nossa Senhora Aparecida, durante a viagem a Capital, aproveitou e 13


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visitou a Catedral, pedindo que amenizasse o sofrimento dela e prometeu não cortar mais o cabelo se o filho voltasse a andar. O moleque acordou assustado, como nos últimos cinco anos. O rosto marcado pelo travesseiro sem fronha. Limpou com os punhos do pijama a baba que escorria involuntariamente. Tentou se localizar e levantar da cama, mas já devia saber que era em vão. Lembrou que estava destinado a cumprir pena no leito. Era quase meio dia, perto da hora do almoço. Sem forro, o sol esquentava as telhas que propagavam o calor para o ambiente, o que fazia da cela também um forno. Talvez o ar carregado lhe pesasse a cabeça e tenha lhe acordado. Para aliviar e tentar uma corrente de ar fresca, o garoto, como nos últimos anos, empurra as folhas da janela. A luz invade, os olhos ardem, a brisa areja o ambiente. Arlindo Orlando busca a presença dos irmãos no quintal. Estava um sossego só. Concluiu que deviam estar na escola. Na verdade a casa toda estava em silêncio. Provavelmente sua mãe estivesse fazendo a faxina em algum vizinho. Decidiu se ajeitar na cama e afundar a nuca no travesseiro despido. Sentiu um formigamento no pé. Achou engraçado, pois nos últimos cinco anos sequer sentia a perna. Algo caminhava tão delicadamente, mas com uma leveza tão surpreendente que chegou a sentir cócegas. Pensou que estivesse sonhando acordado. Ficou estático, com medo de acabar com a sensação de prazer se fizesse algum movimento. A sensibilidade deixou o calcanhar, percorreu a planta do pé, passou pelo peito e pausou no tornozelo. Arlindo Orlando não conseguiu segurar o riso. A curiosidade era maior. Começou a rezar agradecido, afinal, ouvia todas as noites a mãe orando a Nossa Senhora da Aparecida, prometendo que se algum dia seu filho voltasse a sentir as pernas, ela percorreria de joelho sda porta da igreja até o altar de Miracema do Norte. Findou a oração e não resistiu, levantou o pescoço e avistou algo estranho caminhando canela acima. Teve o ímpeto de dar um tapa no bi14


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cho, mas a sensação de prazer o impediu. Fez um pacto com ele, caso o queimasse lhe daria um peteleco. Do contrário, deixaria o animal à vontade, seguir o seu rumo. Era uma lagarta obesa, com listras amarelas, pretas e brancas. Com duas antenas pretas grandes na frente e duas menores atrás. Seis pares de ventosas eram o motivo da sensação de cócegas. Lenta e sincronizadamente, eslocava-se perna acima. Depois de um tremendo esforço descansou na rótula. Determinada, afinal devia estar atrasada a um compromisso, a lagarta respirou fundo e como se fosse à mãe de Arlindo Orlando, cumprindo uma penitência, percorreu a coxa, passando por cima do pijama surrado, decidiu pegar um atalho, chegou ao ombro direito, alcançou o travesseiro babado, a lagarta deve ter sentido repugnância, prendeu a respiração, acelerou o passo e repousou na lateral da cabeceira da cama. Talvez exausta e confiante com a presença do garoto, que observava encafifado o seu desfile, decidiu permanecer por lá mesmo. Ou talvez fosse uma lagarta exibicionista e queria platéia para assistir a sua metamorfose. O inseto passou a ser o centro das atenções de Arlindo Orlando. Decidiu não contar a ninguém sobre a presença intrigante da companheira. Sua mãe com mania de limpeza poderia expulsá-la com o pretexto de ser mau agouro. Seus irmãos, curiosos, iriam cutucá-la, incomodando-a. A vida do garoto passou a ter algum sentido. Agora tinha um cúmplice que vivia a mesma agonia. Ele entrevado na cama. A lagarta grudada na cabeceira. Viu a nova hóspede se desfazer de suas pernas, imitando o garoto, impossibilitada de andar. Notou a última troca de pele, enquanto tecia o invólucro e imergia no seu próprio universo. Durante um mês, um observava o outro. Com a diferença de que o casulo com o tempo ficava transparente e podia-se notar a presença de algo se transformando e evoluindo dentro dele. Enquanto que o garoto permanecia imóvel, tolhido na cama. 15


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CAPÍTULO 2

O milagre O moleque agora tinha uma companheira. Na verdade uma confidente. Nos seus doze anos de vida, poucos tiveram tempo ou paciência para ouvi-lo. Não que não tivessem afeto, mas a mãe envolvida nas tarefas da casa e no trabalho duro não podia se dar ao luxo de desperdiçar preciosos minutos do dia. Os irmãos ocupados em brincar no quintal ou parte do tempo, ajudando no sustento da casa com o trabalho na roça, não tinham muita paciência com o filho enfermo. Devo fazer justiça aqui a Maricota. Uma menina com traços indígenas, cabelos longos pretos e lisos. Falante e olhar curioso como toda mulher. Desde que soube da situação de Arlindo Orlando, ela por piedade ou talvez por bisbilhotice, sempre que podia, escapava escondida para brincar no quintal ou na cabine do caminhão e aproveitava para sorrateiramente visitar o leito do amigo desvalido. Arlindo Orlando podia usar os ouvidos da lagarta como uma espécie de confessionário. Se bem que em sua breve estadia na terra, talvez fosse ainda um santo. Qual pecado teria cometido se praticamente nasceu e foi largado na cama? Pelo contrário, no saldo de sua vida, já tinha um ato de heroísmo no currículo. Salvar a mãe da surra. A lagarta permanecia preocupada em administrar a maior mudança da sua vida, deixando de ser um bicho rastejante, lento e pesado. Presa na crisálida aguardava virar uma borboleta, tão leve, tão linda. Durante a metamorfose, ouvia os lamentos do menino. Na posição de confidente, soube dos traumas de Arlindo Orlando. O medo que tinha do pai. De16


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testava o cheiro de aguardente expelido por ele sempre que chegava tarde da noite em casa praguejando a vida. Tinha pesadelos constantes. Um homem fardado, de bigode muito bem aparado lhe batia nas pernas com uma cinta de couro e o lado da fivela marcando a pele até sangrar. Chegou a pensar que era inválido devido às surras do homem do bigode. Tinha o mesmo ar cruel do pai quando partia em direção a mãe para surrá-la. Mas nem só de tristeza era o teor da confissão. Segredou que sentia o coração apressado quando recebia a visita da menina curiosa. No início tinha aversão. Ela perguntava demais. Queria saber de tudo. Tagarelava tanto que quase não respirava. Mas com o passar do tempo e sendo ela a única pessoa a lhe destinar atenção, Arlindo Orlando passou a gostar e desejar a presença da amiga falante ao lado do leito. Adorava o perfume dela invadindo o quarto abafado. Os carinhos inocentes de quando a moçoila decidia brincar de cabeleireira, penteando os seus cabelos loiros. Talvez fosse o único contato físico e carinho que recebia de alguém. Por diversas vezes desejou retribuir os afagos, revelando o segredo da lagarta para a garota, mas tinha medo que a curiosidade dela apressasse o processo de transformação da confidente. Provavelmente desejaria cutucar o casulo e ver o que tinha dentro, antecipando e atrofiando as asas da futura borboleta. Não seria justo condenar e privar o pobre inseto da liberdade. Já bastava ter um aleijado no quarto. Deixou escapar a ouvinte imóvel que o maior sonho que tinha na vida era voltar a andar. Queria poder brincar no caminhão, correr de um lado para o outro. Ir ao banheiro sozinho, subir no Flamboyant, brincar com o cachorro, pular. Se fosse pedir demais, desejava voar como uma borboleta. Ou quem sabe um piloto de avião. Conhecer todas as cidades, os outros países. Como toda criança, sonhava com a liberdade. O inseto, estático, permanecia na sua reclusão ouvindo os lamentos do garoto sem 17


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poder fazer nada. O embrulho era perfeito. De tão transparente, podiam-se ver as asas alaranjadas com riscos pretos e pintas brancas. Antecipando a surpresa, Arlindo Orlando desenhava num caderno variações de borboletas. Provavelmente o seu gosto pela pintura iniciou nessa fase, deitado na cama pintando as asas da companheira confidente. Os irmãos e a mãe estranharam o repentino gosto do garoto pelos invertebrados da classe dos lepidópteros. Vivia perguntando sobre tudo que fosse relacionado às lagartas e borboletas. Queria saber quanto tempo vivia, o que comia no casulo, porque antes de ser borboleta era uma lagarta. E depois de borboleta no que iria se transformar. Cansados das perguntas, o irmão mais velho trouxe da biblioteca da escola um livro especializado no inseto. Arlindo Orlando consumiu o livro vorazmente, como uma lagarta devora uma folha de maracujá. Ansioso, aguardava a libertação da amiga. A surpresa ocorreu numa manhã de domingo. Como de costume a mãe foi à igreja rezar e pedir a Nossa Senhora Aparecida por dias melhores e se não fosse abuso, que concedesse o milagre que fizesse o seu caçula voltar a andar. Seus irmãos, aproveitando a folga da escola e o descanso do trabalho da roça, foram ao campo da várzea ver o jogo de futebol do time da cidade. Arlindo Orlando para variar estava sozinho, para ser justo, tinha a companhia da sua amiga silenciosa. Com o gesto mecânico, o garoto abriu a janela, permitindo a renovação do ar. A luz que entrou, provavelmente estimulou o inseto a se desprender e abandonar o casulo. Começou a rasgar lentamente as vestes, um esforço tremendo para romper as paredes transparentes da crisálida. Passados alguns minutos, finalmente conseguiu se livrar da prisão. Espreguiçou-se, como se estivesse acordando de um sono profundo. O sucesso e perfeição das asas dependiam desse ritual. O garoto teve o ímpeto de ajudá-la, mas o aprendizado 18


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adquirido com a leitura impediu que interferisse no processo de transformação e re-nascimento. Não seria justo com a amiga, condená-la e privá-la da liberdade. Sempre se reprimia lembrando que já bastava um paralítico no quarto. As asas estavam ainda molhadas e envoltas em um líquido gosmento. Arlindo Orlando espantado e torcendo pela amiga, assistia o esforço dela em se equilibrar na base da cabeceira. A borboleta era laranja, com riscos pretos e pintas brancas. Por coincidência, muito semelhante aos diversos desenhos do garoto. Era uma Monarca. Aproveitando os raios de sol que penetravam no quarto, ela continuava o ritual de esticar as asas. As reações do menino eram as mais diversas, ia da felicidade de presenciar um fato raro que é o nascimento de um novo ser, até a tristeza por saber que a sua companheira também o abandonaria. Pensou em aprisioná-la nas mãos. Reprimiu o desejo. Projetou no inseto o seu desejo de voar. Imaginou que ela ao percorrer os caminhos do céu, levaria consigo os seus segredos e desejos. Arlindo Orlando não resistiu e chegou a assoprar, estimulando e apressando o primeiro voo da amiga. Mas talvez ela sentisse o mesmo. Estava triste por ter que se separar do seu companheiro observador. Chego a pensar que a borboleta se apaixonou pelo menino. Ou quem sabe, o garoto estimulou o seu instinto materno, fazendo com que se sentisse meio mãe dele. Estava acostumada com a presença inerte do amigo. Um olhava o outro, como se fosse um casal de namorados na estação de trem, obrigados a se separarem porque ele vai servir o exército. No caso, quem viajaria era a borboleta e o garoto ficaria no leito vendo a amiga decolar. Enfim o grande momento! Arlindo Orlando olha para o quintal e vê o céu azul. A monarca, como uma verdadeira rainha, abre totalmente o manto alaranjado, movimenta as asas sem sair do lugar, uma espécie de treinamento, ou talvez estivesse criando coragem. De repente, avança até a base da janela. Um voo bre19


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ve de alguns centímetros. Precavida, queria checar os comandos antes de alçar um voo mais longínquo. Arlindo Orlando sorriu. Torceu para que ela voltasse à cabeceira da cama. No fundo queria que ela voltasse para dentro do casulo e permanecesse ao seu lado para sempre. Mas para sua surpresa, a amiga com todo o espaço do mundo para voar e ser livre indo em direção ao quintal, podendo ir até o varal, ou pousar no teto do caminhão batido, ou ainda, beijar as flores do Flamboyant, decidiu dar meia volta e circular por todo o quarto escuro e abafado. Pousou na imagem de Nossa Senhora Aparecida, justamente onde as mãos juntas formam asas. Ficou por alguns segundos. Depois desceu e pousou na cruz sobre o altar da penteadeira onde sua mãe tanto rezava e implorava por um milagre. Não contente, o inseto respirou fundo e saiu em disparada num voo rasante até a liberdade. Arlindo Orlando acompanhava boquiaberto cada movimento. Sua cabeça balançava de um lado ao outro como se estivesse controlando o voo da amiga por telepatia. Quando se deu conta, perdeu o contato visual. Um sentimento de vazio percorreu seu corpo, da cabeça até a cintura, já que das pernas pra baixo, não sentia mais nada. Vasculhou sua breve vida e não teve registro de ter se sentido tão só. Concluiu que além dos seus segredos, a borboleta levou uma parte de sua vida. Seus olhos se encheram de lágrimas. Pensou em fechar a janela e voltar a se trancar no quarto escuro, mas antes que tivesse qualquer gesto, percebeu a amiga do mesmo jeito que saiu, regressando até imagem de Nossa Senhora Aparecida. O sorriso brotou nos lábios do garoto. Da imagem ela voou até a perna direita de Arlindo Orlando. Como se fosse à lagarta, fez o caminho inverso, da cintura até o pé. Depois pousou no pé esquerdo e sobrevoou a perna imóvel até a cintura. Alçou voo e finalizou aterrissando na testa do garoto. Como se desse um beijo de despedida, dessa vez ganhou a liberdade. Arlindo Orlando não conteve as lágrimas. Percebeu 20


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que nunca a veria novamente. Decifrou a atitude da amiga. Ela retornou para se despedir e agora corria contra o tempo para seguir sua missão. Ao garoto restava agora voltar a sua rotina. Arlindo Orlando enxuga as lágrimas com os punhos do pijama surrado. Sente uma pontada na cabeça. Uma dor aguda. Um arrepio percorre a coluna cervical. Dessa vez ele sente um calor descendo as pernas. Estranhou a sensação. Sentiu o peso das pernas e o formigamento, depois os dedos ávidos em esticar. Um calafrio tomou o rumo inverso, dos pés a cabeça. Seu corpo estava descontrolado, um acesso de tremedeira, assustado começou a rezar pedindo proteção a Nossa Senhora Aparecida. Foi prontamente atendido. Fechou os olhos e sentiu uma mão feminina e delicada percorrendo todo o seu corpo, acalmando os batimentos cardíacos e o acesso de tremedeira. Abriu os olhos lentamente, não enxergou ninguém. Em seguida teve a sensação de ver um homem negro, com cachimbo na boca. Sentiu o cheiro do fumo invadindo o quarto. Depois pensou que pudesse ser sua imaginação. Sentiu as suas pernas movimentando-se involuntariamente. Surpreso, tentou segurá-las com as mãos. Percebendo a mancada, freou o ímpeto. Postou as mãos tal qual a imagem da Santa e feliz, olhou para o céu, começou a rezar agradecendo a Deus e a sua amiga borboleta o milagre. Agora podia sentir as pernas. Restava reaprender a dominá-las.

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CAPÍTULO 3

O primeiro milagre Passado o susto da mãe e dos irmãos ao vê-lo de pé encostado na cabine do caminhão, a notícia do milagre se espalhou feito rastilho de pólvora. Não demorou muito para o moleque passar a ser o centro das atenções. Todos da cidade queriam tal qual São Thomé, ver pra crer no milagre. No bairro, Arlindo Orlando era muito conhecido e tratado com piedade, já que tomava por certo que o próprio pai é que o deixou paralítico. Agora, ao vê-lo aprendendo a se equilibrar e caminhar no quintal era motivo de curiosidade aos vizinhos. Inclusive Maricota, que agora, mais do que nunca, era a sua mais constante companhia. Se existe alguém que desde pequena ouvia falar em milagres era a menina com traços indígenas. Mal completou seis meses de gestação, nasceu. Sua mãe nem bem abandonou as bonecas e já engravidou. Estabanada, curiosa em ser de fato mulher, foi seduzida e caiu na lábia de um caixeiro viajante falante, sorridente e de olhar penetrante. Provavelmente em troca de um perfume da capital ou de um vestido, bolsa ou colar banhado a ouro falso, ela se deitou com o sujeito. Como era de se esperar, foi abandonada pelo vendedor depois que ele conseguiu seu intento. No início da gravidez, tentou esconder. Quando já era difícil disfarçar a barriga saliente, pensou em abortar. Tomou os mais diversos tipos de chá, mas no fundo não queria mal a criança, apenas tinha medo da reação do seu pai, um guarda policial que trazia a família na rédea curta. Teve êxito na simulação até o quinto mês. A mãe desconfiava, mas não querendo acreditar na 22


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intuição, talvez tentasse se enganar, evitando tocar no assunto ou interrogar a filha. Mas não teve jeito, ao entrar no sexto mês, as dores constantes e com o safanão do pai ao saber da notícia, a moça entrou em trabalho de parto. Foi levada as pressas para o hospital justamente no caminhão novinho em folha do Seu Orlando. Talvez esse tenha sido o seu gesto de maior caridade na vida e tenha lhe amenizado o débito com São Pedro. Tiveram que fazer o parto as pressas. A moça sem se alimentar como deveria, e tendo todas as energias sugadas pela nova vida no seu ventre, estava anêmica. Fraca, sem o vigor da mocidade, a mãe não resistiu à cirurgia. Os médicos ainda tentaram a todo custo salvar a criança. Mas de antemão, não deram muitas esperanças aos familiares. Prematura e sem os recursos hospitalares de uma cidade grande, a recém nascida não teria muitas chances de sobrevivência. Só mesmo um milagre ou muita vontade de viver, para que aquele corpinho com a pele ainda transparente e olhos saltados pudesse progredir. Mas milagres acontecem. A avó da recém nascida se apegou a sua santa protetora, Nossa Senhora de Guadalupe. Descendente de mexicanos, desde que se conhece por gente, ouvia a matriarca da família, rezar com o sotaque carregado para a Santa pedindo proteção. Sua mãe, também induzida pela tradição, fazia o mesmo. E mantendo o costume a nova avó de Miracema do Norte, seguia o mesmo caminho. Prometeu que se a neta sobrevivesse lhe daria o nome de Maria, em homenagem à mãe de Deus. Economizaria cada centavo e a levaria a Basílica da Nossa Senhora de Guadalupe na Cidade do México. Pelo que se tem notícia, até hoje Maricota, como era carinhosamente chamada, sequer saiu do estado, quanto mais do país. De qualquer forma, a Santa concedeu o milagre sem lhe cobrar nada em troca. A garota está viva, a avó também. Portanto, ainda é possível cumprir a promessa. 23


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CAPÍTULO 4

O peso do milagre As duas crianças cresceram com o peso do milagre em suas costas. Maricota nem dava muita importância, achava normal os olhos curiosos dos idosos em sua direção. Muitos deles não resistiam em apenas olhar, queriam passar a mão em sua cabeça, crendo que a garota fosse Santa também. Desde que nasceu sempre foi tratada como sendo especial. Referiam-se a ela como: “A garota abençoada pela Santa de Guadalupe”. Sua avó, colhendo os louros da notoriedade da neta, fazia questão de a cada nova pessoa que era apresentada na cidade, ou a cada manhã de domingo, durante a missa, relembrar o fato marcante. De tanto que era repetido, o padre já nem aguentava mais ouvir a história. A avó achava que era descaso dele, pois o crédito do milagre tinha sido concedido à santa mexicana e não a nenhuma santa nacional. Arlindo Orlando teve que se adaptar a nova situação de celebridade da cidade. A casa sempre cheia de curiosos. Todos os domingos era obrigado a seguir com a mãe a igreja para ser objeto de apreciação dos romeiros e penitentes. Nos primeiros dias e semanas gostou da situação, sentia-se importante. O vigário citava o milagre durante a missa com grande ênfase. Fazia questão de atribuir a Nossa Senhora Aparecida o feito. Essa atitude só ratificava a intuição da avó de Maricota, que por consequência, acabou por transferir a birra que alimentava pelo pároco ao garoto e sua mãe. Evitava sentar nas primeiras fileiras só para não ter que ouvir a voz orgulhosa do padre contando em detalhes de 24


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sua própria imaginação o milagre da santa brasileira. Com o passar dos meses, o garoto começou a se incomodar com o fanatismo. Queria tirar o atraso da infância perdida. Queria ser um adolescente normal e poder jogar bola no campo de várzea junto com os irmãos. Queria abusar da fantasia e ser o Rivelino. Sonhava ter a “patada atômica” do Reizinho do Parque. Mesmo distante de São Paulo, passou a ser torcedor fanático do Corinthians, depois de ver os dribles desconcertantes com a mágica perna esquerda. Projetava nas pernas do craque o desejo de sair da sua inércia e invalidez. Se pudesse fazer mais um pedido a Santa Milagrosa, seria poder imitar aqueles elásticos do camisa 10 do Timão. Para o ex-aleijado era o que mais se aproximava da perfeição. Mas voltando a realidade e deixando o futebol de lado, já se dava por satisfeito em poder correr no quintal, brincar no velho caminhão enferrujado e aposentado tão precocemente. Ou ainda, subir no flamboyant ou aproveitar as horas vagas para estar a lado de Maricota, o seu amor platônico. Na verdade, o fato de terem algo em comum, era a única coisa boa da história. Pois um sentindo na própria pele o peso do milagre do outro, acabavam por se aproximarem cada vez mais. No entanto, Dona Isaura, querendo prorrogar ao máximo o período da popularidade do filho, fazia questão de interromper o início do romance e chamá-lo na sala a cada nova visita na casa. Ou para onde quer que ela fosse, fazia questão de levar consigo o filho abençoado para poder ter assunto e comprovar o feito. Arlindo Orlando chegou a pensar que isso fazia parte da paga da promessa. O casal de abençoados deixou para traz a adolescência e entraram mocidade adentro cada vez mais unidos. Não conseguiam mais disfarçar o sentimento alimentado durante toda a infância. Lutando contra a timidez, os dois descobriram ao mesmo tempo, a magia de um abraço apaixonado, do toque inocente das mãos e o doce sabor do primeiro beijo. 25


Caro leitor/editor, Buscando me aproximar dos leitores e também dos editores, decidi publicar parte de minhas obras. Esse livro está com projeto gráfico finalizado. Incluindo capa, material publicitário. Obviamente que ainda é possível fazer ajustes necessários e também uma revisão ortográfica mais aprofundada. Caso deseje ter acesso à obra completa, gentileza entrar em contato. http://www.facebook.com/ivan.lacerda http://ivanlacerda.wordpress.com/ www.twitter.com/ivanlacerda Home page: www.ivanlacerda.com.br

Livro: Presente que ninguém esquece.


Obras do autor Publicações Sobretudo - 1997 - Poesias - Parte da renda revertida para AACD — Associação de Assistência à Criança Deficiente, entidade que há mais de meio século trata, educa e reabilita, trazendo ao convívio social crianças portadoras de deficiência física. Passando tudo a limpo - 2002 - Romance - Empresário que teve uma origem muito humilde, educado com rigor e a disciplina de uma família religiosa, mas que com o passar dos anos e a ascensão financeira deixou tudo em segundo plano. Após vários anos trabalhando no limite da sua capacidade física sofre um ataque cardíaco, passando 15 dias em estado de coma. Justamente nesse período e com a ajuda do seu anjo da guarda faz uma retrospectiva de sua vida, passando tudo a limpo, voltando aos fatos que de uma forma ou de outra foram marcantes em sua vida. Os filhos bastardos do presidente - 2000 - Romance - Capitão, Jornalista recém aposentado, fundador de um grande jornal, pesquisou por mais de quarenta anos, toda a trajetória política de um Presidente da República bonachão, corrupto e sem caráter. Durante a campanha para o Palácio do Planalto, o político acaba tendo casos com inúmeras mulheres em todo o Brasil. No dia 1 de abril de 1960 nascem quatro crianças, um filho legítimo e três provenientes desses casos amorosos. Os jovens, sem saber que são irmãos, acabam se esbarrando e influenciando um a vida do outro com suas atitudes, durante todo o transcorrer da história. Companheira Solidão - 2008 - Romance – Através de uma narração envolvente, o livro conta a trajetória de Natan Castro, um famoso economista que no auge de sua carreira profissional,


se vê solitário e questionando se realmente é uma pessoa feliz. Ao avaliar a sua vida, uma questão lhe atormenta, percebe que nunca sorriu que não teve amigos nem um grande amor. Que a sua única companheira durante toda a vida foi a solidão. O livro nos força a refletir sobre o que um ser humano precisa de fato para ser feliz. Quantas pessoas estão nessa mesma situação, de ter tudo o que desejam na vida e ao mesmo tempo, sentirem-se totalmente isoladas. Poesias In Twittivas - 2009 - Poesia – O primeiro livro de poesias baseado na “Era Twitter”. Ou seja, utilizando o limite de até 140 caracteres em cada poesia. Como a ferramenta Twitter é gratuita o autor decidiu tornar o livro também gratuito disponibilizando para downloads no site do autor www.ivanlacerda.com.br Loucos Por Ti Corinthians - 2010 - Livro com crônicas narradas por São Jorge em homenagem ao primeiro centenário do Sport Club Corinthians Paulista. Com imagens de Ivan Lacerda e ILustrações de Vitor Lima e Ton Ferreira. Quintal de casa - 2010 - Livro com imagens, reflexões e poesias, em comemoração ao Ano Internacional da Biodiversidade. Inéditos: La Serenissima e Eu sei que você está lendo.

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