Globos Coronelli

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GLOBOS

INSTITUTO PORTUGUÊS DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO





GLOBOS CORONELLI SOCIEDADE DE GEOGRAFIA


Ficha Técnica Direcção Texto

Conservação e Restauro

Estudos Laboratoriais Documentação fotográfica e radiográfica

Figuras Edição

Design gráfico Impressão Colaborações

Agradecimentos

ISBN: Depósito legal:

Ana Isabel Seruya Mário Pereira Alexandre Pais António Estácio dos Reis Joana Campelo Alain Roger Ana Fernandes Anabela Almeida Lília Esteves Maria Gabriela Carvalho - coordenação Ana Fernandes, Filomena Vaz, Joana Campelo Andreia Ribeiro, Francisca Alberty Arménio Fontes, Belmira Maduro Alain Roger - consultadoria - Bibliothèque National de France Ana Mesquita e Carmo, Isabel Ribeiro, Lília Esteves Pedro Sousa - coordenação Luís Piorro, © IPCR – Introdução: fot. 1,2; Histórias de globos: fot. 3; História: fot. 5, 10, 12, 13, 20, 21, 26, 32, 35, 38, 39, 40; Conservação e Restauro: 52, 83, 125, 126, 131. Pedro Sousa, © IPCR – Conservação e restauro: Radiografia,fot. 59 Isabel Ribeiro, © IPCR – Conservação e rest.: fot. 75, 76, 79,81,102. Anabela Almeida – Conservação e restauro: fot. 135, 136. Miguel Garcia – Conservação e restauro: fot. 99. Andreia Ribeiro – Conservação e restauro: fot. 100, 101, 132. Museu de Marinha © – Histórias de globos: fot. 1, 2. Biblioteca Nacional © – História: fot. 6. Museu da Cidade © – História: fot. 7. Ana Fernandes, Francisca Figueira, Joana Campelo – restantes imagens. João Pedro Pimentel Carvalho– fig. 5, 6. Joana Campelo – restantes figuras. Rui Ferreira da Silva- coordenação Alexandre Pais, Nazaré Garcia Escobar Nuno Diogo - digitalização In Two, design António Coelho Dias, S.A. Agostinho Oliveira,Alexandrina Barreiros,Ana Clara Sousa Rocha Filomena Rodrigues, Isabelle Suire, Francisca Figueira Margarida Cavaco,Teresa Homem de Mello, Pedro Abreu Sebastião Lopes Alexandra Curvelo Guilherme de Almeida Maria Trindade Mexia Alves Marica Milanesi Marie Therèse Mandroux França Miguel Faria Monique Pelletier Pedro Azevedo Vitor Milheirão 972-95724-8-8 221450/05

Apoio: © Instituto Português de Conservação e Restauro Rua das Janelas Verdes, 1249-049 • Tel.: 213 934 200 · Fax: 213 970 067 · e-mail: ipcr@ipcr.pt * As metodologias de Conservação e Restauro descritas nesta publicação foram estudadas especificamente para o núcleo/peça intervencionado (a), não devendo ser entendidas como normativas para trabalhos em espécies, aparentemente, afins. * O IPCR não pretende com esta publicação estabelecer normas de actuação mas divulgar uma orientação ética de Conservação e Restauro, demonstrando, simultaneamente, as possibilidades de conhecimento alcançadas pela interdisciplinariedade dos diversos ramos do saber. * O relatório detalhado do Departamento de Estudos de Materiais encontra-se disponivel em www.ipcr.pt


Projecto “ Estudos e Investigação sobre o Património Cultural” Ana Isabel Seruya – Directora do IPCR Mário Pereira – Subdirector do IPCR Subordinados ao projecto "ESTUDOS E INVESTIGAÇÃO SOBRE O PATRIMÓNIO CULTURAL", viabilizado pelo apoio do Programa Operacional da Cultura,desenvolveram-se trabalhos que incidiram sobre um diversificado leque de tipologias de bens culturais. Todas as intervenções, quer fossem em áreas em que é comum intervir, como é o caso da pintura, da escultura, dos têxteis, ou da ourivesaria, quer em outras em que é o menos frequente, como globos ou armaduras de laca, tiveram como preocupação um mesmo denominador - o seu elevado grau de complexidade e o facto de serem peças emblemáticas do nosso Património. O Instituto Português de Conservação e Restauro quis, com estes "Estudos", cumprir uma das suas mais importantes atribuições: efectuar trabalhos de Conservação e Restauro de bens culturais de reconhecido valor histórico, artístico, técnico ou científico que possam constituir-se como referência da actividade de salvaguarda e conservação do património cultural, nomeadamente no que diz respeito ao trabalho em equipa pluridisciplinar, ao campo do diagnóstico, do estudo dos materiais e das técnicas, às abordagens e metodologias de intervenção e, também, à formação de uma nova geração de conservadores-restauradores. Por outro lado, o processo de renovação e actualização dos equipamentos dos laboratórios e das oficinas herdados do Instituto de José de Figueiredo, ajustando-os às novas exigências técnico-científicas do estudo e conservação dos bens culturais, constituíram um contributo essencial para garantir o enquadramento adequado à prossecução deste projecto. A designação de estudos não foi abusiva porque quis o Instituto que estes trabalhos se inserissem num projecto de divulgação para dar a conhecer novas metodologias de intervenção e o que isso supõe do conhecimento das técnicas da produção artística e da ciência dos materiais. Cada intervenção implica uma abordagem interdisciplinar que nos permita conhecer e caracterizar a realidade intrínseca de cada peça e, só a partir desse momento, determinar a metodologia de intervenção mais adequada à sua natureza. Queremos deixar claro que o estudo conducente ao conhecimento dos materiais, o desenvolvimento científico para obtenção de análises e interpretações mais esclarecedoras e a definição de critérios de intervenção, passam, hoje, por vários saberes que convergem no estudo aprofundado de cada peça. Como intervenções modelares que pretendíamos que fossem, escolhemos criteriosamente as peças que foram objecto destes “Estudos”. Assim, tivemos a "sorte" de poder contar com um vasto leque de peças paradigmáticas do que se desejava para cada tipologia de bens. Na pintura, ao escolhermos as “Tábuas da Charola do Convento de Cristo” e o “Políptico da Misericórdia de Ferreira do Alentejo”, demos sequência e profundidade aos trabalhos que já vínhamos desenvolvendo sobre a Pintura Quinhentista Portuguesa. Na escultura, o “Presépio da Basílica da Estrela” apresentou-se-nos como aquela opção que simultaneamente nos propiciava o desenvolvimento do estudo iniciado com o projecto Policromia e nos permitia estudar as terracotas enquanto suporte artístico. Num momento em que se acompanha com interesse os estudos da arte luso-oriental, a nossa proposta para o

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estudo das lacas e a apropriação e domínio da sua tecnologia de conservação e restauro, pelo que, com recurso a especialistas mundialmente reputados, intervencionámos um “Biombo chinês”, do Museu Nacional de Arte Antiga (4 folhas) e do Museu dos Condes Castro Guimarães (5 folhas) e uma “Armadura japonesa”, do Museu Municipal da Figueira da Foz. Nesta vasta área de expressão artística foi ainda estudado e intervencionado um “Biombo de papel”, do Museu Nacional de Arte Antiga,de produção macaense,com representações de batalhas da Guerra da Restauração. Porque temos um património cartográfico notável e uma importantíssima colecção de globos, com muitos a necessitar de ser intervencionados, decidimos, com o apoio técnico da Bibliothéque Nationale de France, estudar e restaurar um par de “Globos Coronelli” (séc. XVII), pertencentes à Sociedade de Geografia, e que são dos mais espectaculares que se conhecem. Dada a importância, majestosidade e riqueza documental das “Vestes da Nossa Senhora da Oliveira”, algumas oferecidas por D. João V, não podíamos deixar de estudar, consolidar e conservar este importante conjunto de vestes do Museu Alberto Sampaio, de Guimarães. Dando continuidade a uma área com tradição no Instituto, decidimos aprofundar o estudo, já iniciado, de três fragmentos têxteis do relicário, dito “de D. Luís Vasques da Cunha”,do Museu Alberto Sampaio.Este estudo,de carácter introdutório,será o ponto de partida para um projecto mais vasto sobre têxteis medievais, que irá abranger um conjunto muito significativo de testemunhos provenientes de diversas instituições, nomeadamente, do Museu Nacional Machado de Castro ( Coimbra), do Museu Nacional de Soares dos Reis (Porto) e dos Tesouros das Catedrais de Lisboa e Braga. No tocante à ourivesaria, o IPCR optou por estudar e intervencionar a peça mais emblemática da ourivesaria medieval portuguesa – o “ Retábulo da Natividade”, do Museu de Alberto Sampaio. Esta peça, envolta em lendas, relacionada com a batalha de Aljubarrota e oferecida por D. João I à Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, há muito que carecia do estudo e da intervenção que agora foram efectuados. Procurámos que em todos estes "Estudos" se vivesse um ambiente de trabalho multidisciplinar. Partilhámos dúvidas e hipóteses, momentos menos bons e alegrias, que são afinal o fermento de qualquer trabalho que implica o envolvimento das diferentes personalidades, formações e sensibilidades próprias de historiadores de arte, conservadores-restauradores, físicos, químicos, biólogos, fotógrafos e bibliotecários. Mas julgamos que as obras que agora trazemos a público são bem o espelho de um empenhamento esforçado e esclarecido que pretendemos venha a ser o modus operandi no Instituto Português de Conservação e Restauro. Não poderíamos colocar um ponto final neste ambicioso programa de trabalho, sem manifestar o nosso mais vivo agradecimento a todos quantos nele colaboraram. O seu empenhamento, o seu entusiasmo e rigor científico, são uma alavanca para que possamos continuar a trabalhar, colocando a obra de arte no lugar central, deixando que seja ela, em toda a sua integridade – material e imaterial – a conduzir e a determinar as opções de qualquer projecto de intervenção. Estes "Estudos" são assim a demonstração de que há hoje novas abordagens passíveis de fazer avançar o conhecimento que temos não só das técnicas de produção artística como da História de Arte. Os historiadores, os conservadores-restauradores e os cientistas quiseram e souberam articular os seus saberes, quiseram e souberam interpretar os seus olhares e quiseram e souberam fazer uma leitura "total" da obra de arte.


Sociedade de Geografia de Lisboa Os dois globos de Marco Vicenze Coronelli (século XVII), que a Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL) possui, foram construídos em 1693 e dedicados ao Príncipe Francisco Marosini, doge de Veneza.Admite-se que estes globos tenham sido oferecidos a D. João V pelo doge Giovanni Comer. Um deles representa a esfera terrestre e outro a esfera celeste e têm de altura, com a base, 1,85 m e o perímetro de 3,44 m. Coronelli, frade da Ordem dos Menores, foi um dos mais célebres construtores de globos e cartas geográficas do século XVII. Deve-se a Luciano Cordeiro a acção relevante de salvamento destes globos. Com efeito estes globos encontravam-se, em 1878, no Arsenal do Exército em um depósito de objectos inutilizados... Foi o primeiro-tenente de artilharia, Fernandes Costa, que informou o então Secretário-Geral da SGL, Luciano Cordeiro, daquela existência e do perigo de virem a ser usados como combustível em um forno de fundição! As diligências de Luciano Cordeiro conduziram a que, por despacho do Ministro da Guerra da época, estes globos viessem a ser doados à SGL onde têm permanecido. Nas palavras de Luciano Cordeiro "a ele (ao tenente Fernandes Costa) e à Sociedade de Geografia deve o paíz não contar hoje mais esta vergonha, sobre tantas do mesmo género, de deixar inteiramente perder esta preciosidade histórica e scientífica". Já em 1903, aquando da Exposição de Cartografia Nacional, inaugurada por D. Carlos a 2 de Dezembro, estes globos foram expostos com o devido realce. Desde então estes globos têm estado em exposição, ultimamente na Biblioteca da SGL.Tem sido preocupação das várias Direcções da SGL providenciar para o adequado restauro destas tão belas quanto valiosas peças do nosso património cultural e histórico. Foi possível, mercê de contactos estreitos com o Instituto Português de Conservação e Restauro (IPCR), beneficiar da comparticipação do Plano Operacional da Cultura e promover as adequadas operações de conservação e restauro destes globos. Sendo discreta a prática de conservação e restauro de globos no nosso país, providenciou o IPCR a obtenção do apoio de técnico reputado neste domínio. Foi assim que se conseguiu ter a colaboração estreita de M.Alain Roger da Bibliothèque Nationale de Paris, a que se juntou a participação do Comandante Estácio dos Reis. Contámos com a colaboração eficiente da equipa do IPCR de que queremos salientar os nomes das Conservadoras–Restauradoras Joana Campelo,Ana Fernandes e Filomena Vaz. Por fim, é evidente que sem a amável, pronta e eficiente acção da Directora do IPCR, Prof. Doutora Ana Isabel Seruya, nada se poderia ter feito. A Sociedade de Geografia de Lisboa sente-se imensamente satisfeita com a acção de conservação e restauro empreendida e, para além dos agradecimentos apresentados, convida os interessados no estudo da problemática relativa aos globos históricos e ás figurações geográficas e cosmológicas neles representadas a visitarem os seus globos Coronelli devidamente recuperados e instalados em adequadas condições na sua sede. Prof. Luís Aires-Barros Presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa

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ÍNDICE

Projecto “Estudos e Investigação sobre o Património Cultural”

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Sociedade de Geografia de Lisboa

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Introdução ao Projecto

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Constextualização Histórica

Conservação e Restauro

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HISTÓRIAS DE GLOBOS - António Estácio dos Reis

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HISTÓRIA BREVE DOS GLOBOS

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AS ESFERAS DE 31/2 PÉS DE VINCENZO CORONELLI

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OS GLOBOS DA SOCIEDADE DE GEOGRAFIA A INFORMAÇÃO NO GLOBO TERRESTRE A INFORMAÇÃO NO GLOBO CELESTE A ICONOGRAFIA CELESTE E AS INFLUÊNCIAS DECORATIVAS

51 A CONSTRUÇÃO DE GLOBOS A CONSERVAÇÃO DOS GLOBOS ELEMENTOS CONSTITUINTES. ESTADO DE CONSERVAÇÃO 67 A INTERVENÇÃO

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Bibliografia

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A ESFERA CELESTE E OS GLOBOS CELESTES Guilherme de Almeida



INTRODUÇÃO O Instituto Português de Conservação e Restauro iniciou com este projecto um estudo e desenvolvimento de técnicas de conservação e restauro adaptadas à recuperação de globos, tendo como objecto de trabalho os dois globos Coronelli, de grandes dimensões, pertencentes à Sociedade de Geografia de Lisboa. Atendendo à especificidade desta intervenção recorremos à colaboração de Alain Roger, Conservador-restaurador da Biblioteca Nacional de França1, com larga experiência na conservação de globos, nomeadamente de vários exemplares de Vincenzo Coronelli. Contámos também com a colaboração de Estácio dos Reis, autor de um levantamento precioso das colecções destes objectos existentes no nosso património2. Uma intervenção em globos, atendendo à complexidade e variedade de materiais existentes: madeira; metal; tela; papier mâché; gesso; papel; vernizes, implica a colaboração de especialistas de várias áreas da conservação e restauro. Este projecto proporcionou um trabalho pluridisciplinar entre diferentes áreas do IPCR: Departamento de Conservação - Papel, Mobiliário, Pintura, Escultura, Metal, Oficina especializada (marcenaria); Departamento de Estudos de Materiais; Divisão de Fotografia e Radiografia; Divisão de Documentação e Divulgação. 1

Os globos, um terrestre e um celeste, da Sociedade de Geografia são reduções feitas a partir das esferas conhecidas como “Globos de Marly”, com quatro metros de diâmetro, executadas em Paris, pelo cartógrafo Vincenzo Coronelli (1650-1718) e oferecidas ao Rei de França, Luís XIV (1638-1715). De acordo com a tradição3, os exemplares em estudo teriam sido oferta de um soberano estrangeiro, provavelmente o doge de Veneza, a D. João V (1689-1750). A sua dimensão, com um diâmetro aproximado de 1,10 metros, o desenho gravado de grande qualidade e uma paleta de cores variada impressionam o observador. Vincenzo Coronelli elaborou e coordenou várias edições de fusos destes globos. Do globo terrestre conhecem-se quatro edições realizadas em Veneza, sendo a primeira de 1688; as restantes de 1693, 1699 e 1707 mantêm a data da primeira edição e não apresentam, aparentemente, diferenças significativas entre si. Do globo celeste são conhecidas quatro edições, duas realizadas em Veneza (1693, 1699) e duas em Paris (1688 e 16934)5.A partir da bibliografia disponível podemos afirmar que os globos da colecção da Sociedade de Geografia utilizaram as edições executadas em Veneza e publicadas em 1693. (Imagens 1 e 2)

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Chef de Travaux d’Arts da Bibliothèque Nationale de France. REIS, Estácio, - Old Globes in Portugal. Coimbra, 1994. Sep. Bol. Bibl. Univ. Coimbra, vol. 42, 1994. CORDEIRO, Luciano, - «Globos terrestres e celestes», p. 259. 4 Marica Milanesi considera a edição parisiense de 1693 um segundo estado da gravura utilizada na primeira edição de 1688. MILANESI, Marica, - «Coronelli’s large celestial printed globes: A complicated history», p. 156. 5 PELLETIER, Monique, ROGER, Alain, - «La renaissance des globes de Coronelli (1650-1718) au Musée des Beaux-Arts de Lille», p. 69. Na bibliografia disponível encontramos as datas de 1692 e 1693 para a segunda edição de Veneza. Por impossibilidade de confirmar com as fontes qual a correcta, iremos utilizar sempre a data 1693. 2 3

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Hist贸rias de Globos


Como nasceram os globos

HISTÓRIAS DE GLOBOS Tudo começou quando, um dia, Maria Helena Mendes Pinto se deslocou ao Museu de Marinha, se bem me recordo, para participar numa reunião. Quando passávamos por aquela grande sala onde estão expostos os instrumentos de navegação, veio a propósito falarmos de globos.Vim a saber que, na Casa Pia de Lisboa, existia um par em avançado processo de deterioração. Fui vê-los. De facto, a traça já tinha feito os seus estragos nos gomos de papel que, em cada uma das esferas representavam o céu e a terra, enquanto as térmitas destruíam as respectivas bases de madeira. Tornando-se indispensável e urgente proceder ao seu restauro, e não dispondo a Casa Pia de verbas disponíveis para o efeito, admitimos que a melhor solução seria transferi-los para o Museu de Marinha, onde esse restauro poderia ser efectuado. Mas havia ainda outro aspecto que não podia ser esquecido. Os globos, como duas belas peças que eram e pelo seu valor histórico, uma vez recuperados, poderiam ser apreciados por um quarto de milhão de pessoas, pois era este o número de visitantes que passava anualmente por aquele museu. Iniciaram-se negociações que chegaram a bom termo e um protocolo foi assinado, tendo-se trocado os dois globos por três telas a óleo existentes nas reservas do Museu. A fase seguinte era, naturalmente, o restauro dos globos. Para o efeito, tivemos a oportunidade de saber por Günter Schilder, director do Instituto Geográfico da Universidade de Utrecht, que, na Europa, uma das oficinas de maior prestígio estava adstrita à Biblioteca Nacional de Viena de Áustria. Enviaram-se fotografias pormenorizadas dos globos (cuja estrutura estava impecável) e dos horizontes de cada um deles para ser apreciado e avaliado o trabalho de beneficiação do papel, dado que foi decidido fazer a reparação das bases nas oficinas do Museu de Marinha. Conseguiu-se a verba indispensável e o restauro foi primorosamente executado por uma equipa da referida oficina chefiada por Gerda Mojesch1 (Imagem 1 e 2).

Enquanto nos empenhávamos com a recuperação dos Blaeu, fomos descobrindo a história destes belos instrumentos científicos. Um dos primeiros globos celestes é mencionado por Arquimedes (287-212 a. C.). Cícero descreve-os no seu tratado De Republica. No tempo dos Romanos, estes globos eram usados como ornamento. Todavia, o uso dos globos celestes,como instrumento científico,foi introduzido na Europa pelos árabes, que desempenharam um papel de grande relevo no estudo da astronomia. Os dois mais antigos globos existentes no chamado mundo ocidental, pertenceram ao cardeal Nicolaus Cusanus (1401-1464), originário de Cusa, sobre o Mosela, na Alemanha Ocidental. Um destes globos foi adquirido no ano de 1444, em Nuremberga, na Baviera, sem dúvida, um local privilegiado, pois pode considerar-se o berço dos modernos globos. No que respeita a globos terrestres, o desconhecimento da forma da terra atrasou, naturalmente, a sua representação. De facto, apesar de Platão (429-347 a. C.) considerar que a Terra era redonda e Aristóteles (384-322 a. C.) ter demonstrado cientificamente a sua esfericidade, baseandose na forma circular da sombra da Terra nos eclipses da Lua, só no fim da segunda metade do século XV apareceram as primeiras notícias de globos terrestres. O mais antigo que actualmente se conhece foi mandado construir por Martin Behaim (1459-1506). Este globo, que se encontra no Museu Nacional Nuremberga,tem 51 cm de diâmetro e a sua estrutura é recoberta por gomos de papel pintados a têmpera por Georg Glockendon, o Velho. Como é sabido, Martin Behaim, conhecido em Portugal por Martinho da Boémia, nasceu em Nuremberga e era filho de um rico comerciante. Destinado à carreira comercial estabeleceu-se em Antuérpia e aí conviveu com flamengos que tinham relações com Portugal. Em 1484 estava no nosso país, tendo possivelmente participado na segunda viagem de Diogo Cão (a que alguns historiadores põem reservas), viagem que demorou 19 meses e durante a qual se descobriu o Zaire. De regresso a Lisboa, foi armado cavaleiro pelo monarca. Martinho casou com D. Joana de Macedo, filha de Josse de Hurtere, primeiro donatário das ilhas do Faial e do Pico, e de D. Brites de Macedo. Em 1490 regressa a Nuremberga e em 1492 já estava concluído o seu famoso globo que, aparte das iluminuras que tanto o embeleza, representa as novas terras descobertas pelos Portugueses. Verifica-se, no entanto, que o desenho das terras neste globo segue,muito de perto,o célebre mapa de Germanus Martellus de 1489. No que respeita a gomos impressos o globo mais antigo que se conhece tem a data de 1509, sendo provavelmente o seu autor Martin Waldeseemuller. Todavia, neste exemplar, de cerca de 8 cm de diâmetro, os gomos são constituídos por gravuras usando matrizes de madeira e não de metal, como viria a ser habitual.

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Globo terrestre, oficina de William Blaue, c. 1645. Cortesia Museu de Marinha, Lisboa.

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Globo celeste,William Blaue, c.1700. Cortesia Museu de Marinha, Lisboa.

Existem globos das mais variadas dimensões. No Museu de Marinha, em Lisboa, encontram-se três pequenos exemplares com 7,5 cm de diâmetro. São chamados globos de bolso.

Para melhor conhecer estes globos, recorremos a Peter van der Krogt, que se ocupa do estudo da globologia, especialmente do fabricante Willem Blaeu, e é autor de uma obra da maior importância denominada Old globes in Netherlands. Com a sua ajuda ficamos a conhecer melhor Willem Jansz Blaeu, considerado o mais prestigiado fabricante holandês de globos. Nascido em Alkmaar, no ano de 1571, conviveu com o astrónomo Tycho Brahe e, depois de se ter estabelecido na sua terra natal, mudou-se para Amsterdão por volta de 1598, onde publicou mapas, livros, globos e, mais tarde, atlas. Fabricou globos com diâmetros que se situam entre os 10 e os 68 cm. Depois da sua morte. em 1638, o negócio foi continuado por seu filho Joan tendo a oficina mudado várias vezes de proprietário, mantendo todavia o nome de Blaeu até ao princípio do século XVIII, mas actualizando as chapas de impressão. No que respeita aos anos de fabrico dos globos. aproveitamos ainda o saber de van der Krogt que, numa visita a Lisboa, datou o celeste de cerca de 1700 e o terrestre de cerca de 1645.


Outros há que foram concebidos para serem colocados em cima de uma mesa ou secretária e os seus diâmetros vão até cerca de 45 cm. Os maiores, com bases mais sólidas, são postos no chão, como, por exemplo, os de Willem Blaeu de que temos vindo a falar e os fabricados por Vincenzo Coronelli, dois dos quais se encontram na Sociedade de Geografia de Lisboa e que merecem a nossa atenção. Na realidade, estes dois últimos exemplares - aliás, os mais belos e maiores (têm 110 cm de diâmetro) existentes em Portugal - são responsáveis por este nosso texto.A eles iremos voltar porque, além de tudo, são protagonistas de uma história que merece a pena contar.

Coronelli e os seus gigantes Marco Vincenzo Coronelli nasceu a 15 de Agosto de 1650 na cidade de Ravena, de uma família originária de Veneza. Fez os estudos em Roma, no Colégio de S. Boaventura, tendo-se doutorado em 1673. Vai então para Veneza, instala-se no Convento de S. Nicoló della Lattuca. É nomeado Cosmógrafo da Sereníssima República e obtém, por 25 anos, o exclusivo da manufactura de mapas e construção de globos (Imagem 3).

Isolario. Este último tem particular interesse para nós portugueses porque, para além de uma carta dos Açores, apresenta, para cada uma das ilhas, profusa informação - nem sempre correcta - respeitante a vários aspectos, tais como história, geografia, agricultura, e outros. Na Biblioteca Nacional de Lisboa existem dois exemplares daquela carta, um deles colorido. Quando nos referimos a Coronelli não podemos ignorar a sua iniciativa de ter criado a Academia Cosmográfica dos Argonautas, que foi a primeira sociedade geográfica do mundo e que tinha, entre os seus objectivos, a publicação de mapas. Os membros, pagando 3 liras por mês, recebiam 6 mapas em cada mês até ao total de 260. O universo desta sociedade era tal que, em 1688, tinha 200 membros dos quais 74 residiam em Veneza e 79 em Paris. Os globos eram também vendidos por subscrição. O prestígio de Coronelli na arte de fazer globos era tal que, durante a visita que, em fins de Janeiro de 1681, o cardeal César d’Estrées fez a Roma, onde seu irmão era embaixador, encomendou dois grandes globos a Coronelli para serem oferecidos a Luís XIV. Para o efeito, Coronelli deslocou-se a Paris, em Agosto de 1681, para efectuar a construção dos globos e ali permaneceu até Dezembro de 1683. Os globos, um celeste outro terrestre, tinham ambos o diâmetro de 3,85 m. O local escolhido foi a residência Lionne de César d’Estrés e, terminado o seu fabrico, ali ficaram em depósito. Como aquela residência foi vendida, os globos passaram para o castelo de Marly (por isso são conhecidos como os globos de Marly) enquanto não seguiam para Versailles, certamente o seu destino, mas onde ainda não havia um compartimento adequado. Entretanto, são enviados para Paris, passam algum tempo no Louvre até que, em 1722 são transferidos para a Biblioteca Real, onde foram expostos a partir de 1782, num salão preparado para o efeito. Monique Pelletier, que estamos a seguir, diz-nos que, em 1901, os globos foram metidos em caixotes e encafua-dos na Orangerie do Palácio de Versailles. A mais importante obra de Coronelli parecia condenada ao esquecimento, até que os organizadores da exposição Cartes et Figures de la Terre, os apresentaram com toda a sua beleza, depois de sujeitos a cuidadoso restauro.Vimo-los em 1980, no Centro Pompidou, onde teve lugar aquela exposição.

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Vincenzo Coronelli, Globi Celeste e Terraqueo del P. Coronelli. Biblioteca do Palácio de Mafra. Cortesia do Palácio Nacional de Mafra // IPPAR.

Em 1686, é feito sub-diácono no Convento de Santa Maria Gloriosa dos Frades.Aqui terá a sua oficina até falecer em 9 de Dezembro de 1718. No que respeita a globos fabrica-os nas seguintes dimensões: 3 1/2 pés, que são os de 110 cm, como os da Sociedade de Geografia, de 1 1/2 pés, de 6 polegadas, de 4 e, ainda, de 2 polegadas. Coronelli deixou-nos, além do Livro dos Globos, onde mostra a construção destes instrumentos científicos e reproduz fusos como os utilizados para cobrir estas esferas. Publicou mais de 400 cartas geográficas, muitas delas reunidas em atlas como o Atlante Veneto, o Corso Geográfico e o

Repletos de centenas de figuras pintadas por Jean-Baptiste Corneille, célebre artista parisiense, estes dois globos são verdadeiras obras de arte. No aspecto científico, foram utilizados todos os recursos geográficos e cosmográficos. No globo celeste, por exemplo, a posição dos planetas está referida a 5 de Setembro de 1638, dia do nascimento do rei e todos os astros são representados em bronze dourado. Terminamos esta referência sem saber qual será o seu destino. Há alguns anos, quando vivíamos em Paris, François Bellec tentou recebê-los no Museu de Marinha de Paris, onde era director, acabando por deixar aquelas funções sem conseguir arranjar-lhes a última morada. Não foram, porém, estes os maiores globos de que há memória.

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De facto, há notícia de um terrestre, que se deve a Phillppe Vandermaelen, fundador do Instituto Geográfico de Bruxelas, globo esse que foi construído a partir dum atlas de vários volumes, publicado entre 1825 e 1827. O atlas continha 373 folhas, de cerca de 48,5 x 57 cm, representando exclusivamente as terras, e não os mares, pois o número de folhas para cobrir todo o globo seria da ordem de 1000. Este globo foi uma única vez montado no Instituto Geográfico de Bruxelas. O seu diâmetro quase atingia os 8 metros. Todavia, o globo terrestre de maiores dimensões foi construído em Londres, na Leicester Square, e inaugurado em 1851, durante a primeira exposição mundial, tendo ali permanecido até 1862. O seu autor, o cartógrafo James Wyld, concebeu-o em negativo, isto é, para ser visto por dentro. O edifício que albergou este georama, tinha 23 metros de altura e 20 de diâmetro. Quatro plataformas permitiam que os visitantes se deslocassem a vários níveis.

Globos existentes em Portugal Quando tratámos do restauro dos globos da Casa Pia que foram transferidos para o Museu de Marinha, como já o dissemos, tivemos contactos com Günter Schilder e Peter van der Krogt. A partir desta ligação tivemos a oportunidade de estabelecer diálogo com a Sociedade Internacional Coronelli, que tem sede em Viena de Áustria e se dedica ao estudo de globos.Tendo ido buscar o seu nome ao famoso fabricante de globos, o italiano Vincenzo Coronelli, aquela Sociedade tem, entre os seus objectivos, procurar que os países apresentem a relação dos globos antigos que possuem dentro das suas fronteiras, tendo em vista a elaboração de uma lista a nível mundial. Fizemo-nos membro da referida Sociedade de que era Presidente Rudolf Schmidt, uma figura que merece um lugar destacado, no âmbito da História da Ciência, quando falamos de globos antigos. Rudolfo Schmidt, nascido em 23 de Janeiro de 1924 em Berlim, é filho de um empresário que se dedicava à indústria do aço em Viena. Não conseguiu terminar os seus estudos de engenharia dado que, terminada a 2ª Guerra Mundial, teve que ajudar o seu pai. Em 1950, após o falecimento do seu progenitor, tomou conta da empresa. Rudolf, para além dos seus afazeres profissionais e da grande actividade que teve nas áreas da arte, música e história da tecnologia, interessou-se, muito especialmente, pela representação da Terra e do Céu na forma de globos. Em 1957, Rudolf tornou-se membro da Associação Mundial Coronelli dos Amigos dos Globos, fundada cinco anos antes em Viena. Dado o seu empenhamento na Sociedade, é escolhido para a direcção em 1962, vindo a ocupar o lugar de vice-Presidente em 1967. No ano seguinte, eleito Presidente, muda o nome da sociedade para Sociedade Internacional Coronelli. Nestas novas funções, Rudolf Schmidt promove estudos e colóquios sobre globologia, dedicando-se, ele próprio, aos globos construídos depois de 1850. E, ainda, para além da

pesquisa que vai fazendo, Rudolf escreve artigos de divulgação sobre globos e a sua história, que vai publicando em jornais e revistas. Dá nova vida ao Jornal sobre o estudo de Globos e Instrumentos relacionados. Entretanto vai adquirindo globos constituindo, seguramente, a maior colecção privada do Mundo que vai apresentando em público. Há alguns anos vimo-la em Budapeste. Rudolf Schmidt deixou recentemente as funções, mas a sua acção ao longo dos anos em que foi responsável pela Sociedade Coronelli, não pode ser esquecida e, por isso, aqui lhe deixamos a nossa homenagem. Numa das primeiras cartas que recebemos da Sociedade Coronelli, Rudolf Schmidt fazia-nos a seguinte pergunta: estaríamos nós interessados em elaborar a lista de globos antigos existentes em Portugal? Ainda nos dizia que este pedido já tinha sido apresentado a instituições culturais ou científicas portuguesas, mas sem qualquer resultado.Aliás, no que respeita a outros países, poucos tinham sido os que responderam ao apelo. Confrontados por este desafio, decidimos envolver-nos na procura de globos para, assim, dar uma esperança à Sociedade Coronelli, apesar de não termos qualquer experiência nesta área de investigação. Mas fazer o inventário dos globos existentes em Portugal tinha, para nós, um interesse acrescido. De facto, vivemos num país onde se tem cuidado pouco do património artístico e cultural. E, por isso, consideramos que a primeira medida a tomar, tendo em vista a protecção desses valores é, sem qualquer dúvida, saber exactamente quais são os bens que possuímos. Iremos ver que, no caso dos globos, a segunda medida a tomar - e com brevidade - é proceder ao restauro, dado que a quase totalidade dos exemplares que encontrámos exige uma intervenção urgente. Começámos a pesquisa em 1983, recorrendo aos bons ofícios do Instituto Português do Património Cultural para saber se existiam globos nas instituições dele dependentes, continuando com o envio de circulares para outros museus e arquivos, bibliotecas, escolas e universidades, academias e observatórios. A Igreja e as Forças Armadas não foram esquecidas, assim como diversos organismos que foram surgindo ao longo da procura que estávamos a realizar. Fomos recebendo respostas e organizando o ficheiro. Admitimos que haveria muitos globos em casas particulares, mas a dificuldade era saber onde os encontrar. Uma verdadeira pesquisa no escuro. Por isso, sempre que tínhamos uma oportunidade, falávamos no assunto aos parentes, amigos e conhecidos e, por vezes, a sorte bafejava-nos. Foi assim que, certo dia, Nuno Valdez dos Santos nos veio dizer que tendo estado numa velha mansão do Alentejo, ali tinha visto um belo globo.Trazia-nos informação das suas características.Tratava-se de um globo terrestre fabricado cerca do ano 1800. Como os globos eram normalmente adquiridos aos pares, um terrestre outro celeste, dirigimo-nos directamente ao proprietário, pertencente a uma família com uma longa tradição.Admitíamos


que o par do globo tivesse passado para algum dos seus parentes, em resultado de partilhas. Feita a pesquisa, tivemos a satisfação de, algum tempo depois, receber um telefonema pelo qual viemos a saber que o outro globo, este celeste, tinha passado de um sótão empoeirado, onde se encontrava há longos anos esquecido, para a posse do já referido e agora afortunado proprietário.Assim, após várias dezenas de anos de separação, estes irmãos voltaram a encontrar-se. Mas este episódio não termina aqui. Sugerimos o restauro e o globo agora acasalado - passou a ser de um objecto de veneração. Em 1986, terminamos a nossa lista de globos antigos existentes em Portugal, lista que apresentamos, em Outubro desse ano, no VI Simpósio da Sociedade de Instrumentos Científicos, que teve lugar em Florença. Tínhamos identificado 96 globos existentes em instituições e na posse de privados. A lista foi publicada no ano seguinte nos Annali de Storia della Sciencia2. Em Março de 1988, apresentamos uma comunicação na Academia de Marinha e fizemos referência à lista de globos em Portugal. No fim da sessão entregámos um exemplar da lista a cada um dos presentes, pedindo que nos informassem se, porventura, encontrassem algum exemplar que não figurasse aí. A nossa iniciativa resultou pois, ao longo de poucas semanas, recebemos algumas informações que nos permitiram identificar mais 13 globos, o que aumentou o número para 109, tendo esta nova lista sido apresentada no Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra3 e ficando assim constituída: 1 do século XVI, 10 do século XVII, 30 do XVIII e 68 do XIX, tendo sido considerado o ano 1900 como limite do fabrico. Esta nossa lista, para além de ter permitido catalogar um património que estava completamente esquecido no nosso país, mostrou-nos que, de uma maneira geral, a grande maioria dos exemplares está em mau estado de conservação. O seu restauro é uma medida indispensável e urgente. Todavia, há um caso que não queremos deixar de relatar pela importância que teve na pesquisa. Uma das pessoas a quem distribuímos a nossa lista foi Ruben Amaral Júnior, na altura, vice-cônsul do Brasil em Lisboa, e que, além de ser nosso amigo, continua um grande apaixonado por temas culturais. Rubem falou-nos de três globos que não constavam da lista. Dois deles estavam num antiquário, mas o terceiro encontrava-se no Palácio Nacional de Sintra, tendo passado pelas malhas da pesquisa que fizemos através do IPPC.Aliás, viemos a saber que tinha sido a directora daquele magnífico Palácio,Matilde de Sousa Franco, a dar a este último globo a devida importância, tirando-o de um armário onde estava encafuado, e expondo-o ao público. Trata-se de um globo que nos dá a imagem do céu, feito em 12 gomos de metal amarelo, cravados numa estrutura interior.Tem 42 cm de diâmetro e dispõe de um meridiano também em metal.A base está perdida. Christoph Schissler (1530-1608), fabricou este globo no ano de 2

1575, o que significa que se trata do mais antigo que se conhece no nosso país. Todavia, este globo celeste, além da sua antiguidade, distingue-se pelas figuras que representam as constelações, que são de grande beleza.Tem também gravados dois brasões, um que presumimos ser uma alegoria à profissão do próprio Schissler, por incluir os desenhos de esferas armilares e do Sol e, outro, com as armas de Augsburg, onde este artista trabalhou e que exibe as iniciais A V, de Augusta Vindelicorum, que era o nome romano desta cidade4. Sabe-se da existência de numerosos instrumentos, chamados de matemática,produzidos por este fabricante,mas,além do exemplar referido, só se conhece um outro globo, com a sua assinatura, também metálico, que se encontra no Museu de Greenwich . Este, fabricado em 1597, representa a esfera terrestre, que é suportada pela figura de Atlas ajoelhado sobre uma base ricamente ornamentada. A esfera é de dimensões inferiores à do globo de Sintra.A altura total do conjunto é de apenas 51 cm. São raros os globos metálicos. A estrutura de um globo é, normalmente, constituída por pasta de papel coberta de gesso e, assim, compreende-se que seja extremamente frágil. Quando um globo cai ao chão, em especial aqueles que se usam em cima de uma mesa, porque tombam de mais alto, a sua estrutura tem grandes probabilidades de se partir, e o seu destino é, quase sempre, o sótão, quando o há. Isto, quando o proprietário não toma uma decisão mais drástica. De facto, a recuperação de um globo nestas condições é extremamente trabalhosa delicada e, além disso, dispendiosa.

Globos no Mundo A primeira tentativa que foi feita no sentido de estabelecer, a nível mundial, o inventário de globos antigos, deve-se seguramente a Edward L. Stevenson que, em 1921, publicou a obra Terrestrial and Celestial globes, their history and construction, e que contém a primeira tentativa de um inventário a nível mundial. Foi, a nosso ver, um trabalho magnífico para a época, pois Stevenson conseguiu encontrar mais de 4 000 exemplares, tanto mais que considerou o ano de 1800, como limite da pesquisa. A partir da segunda metade do século XX a procura passa a ser incentivada pela Sociedade Coronelli, em especial, graças ao entusiasmo de Rudolf Schmidt. Para dar uma ideia dos globos conhecidos a nível mundial, apresentamos os quantitativos correspondentes a listas nacionais, muitas delas publicadas na revista da Sociedade Coronelli. Esclarece-se,no entanto,que estas listas,de um modo geral,dizem respeito a globos fabricados até 1850, em alguns casos até 1900, como acontece, por exemplo com Portugal e por vezes incluem, também, conjuntos de gomos em papel, como acontece com a Holanda. Os resultados, que a seguir apresentamos – e que, pelas razões apontadas, não são uniformes - devemo-los a Heide Wohlschläger6, que nos informou que a sua lista já se encontra mais alargada, pois, actualmente, já conseguiu chegar aos 4500 fabricados antes de 1850.

“List of old globes in Portugal”, in Annali di Storia della Scienza, Florença, Anno II, 1987, Fasc. 1. Esta lista foi também publicada no Journal for the Study of globes and related instruments,Viena de Áustria, Nr. 35 -37. “Old globes in Portugal”, in Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra, Coimbra, vol. 42, 1994 A descrição deste globo pode ver-se em “The oldest existing globee in Portugal”, in Journal for the Study of globes and related instruments,Viena de Áustria, Nr. 38 /39 e também em “Schissler’s celestial globe of 1575”, in Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra, Coimbra, vol. 42, 1994. 5 Jacques Van Damme, chamou-nos a atenção para um outro globo celeste, assinado por Schissler, que pertenceu à colecção de Henri Michel, colecção esta que, foi, quase totalmente, adquirida por J. A. Billmeir que, mais tarde, a doou ao Museu da Ciência de Oxford. 6 Agradecemos a informação de Heide Wohlschläger, membro da Sociedade Coroneli, que se tem empenhado na elaboração da lista mundial de globos. 3 4

18 19


PAÍS

Alemanha Bavária Hessen Schleswig-Holstein Rheinland-Pfalz Baden-Württemberg Berlim Ex Alemanha de Leste Austrália Áustria Bélgica Canadá Public Archives, Otawa Museu Stewart, Montreal Checoslováquia Dinamarca Estados Unidos América França Grã-Bretanha Museu Marítimo de Greenwich Holanda Hungria Itália Friuli-Venezia Guilia Japão Noruega Polónia Portugal Ex-União Soviética Suécia

NÚMERO DE GLOBOS

DATA DE INVENTÁRIO

268 92 8 59 109 43 169 13 630 82

1962/1983 1980 1959 1992 1998 2001 1963 1988 1997 1989

19 43 247 110

1992 2000 1964 1995 402

231

1968

Caso a carta, acima mencionada seja da autoria de Bartolomeu Velho, sugere-nos que este cartógrafo se dedicava também à manufactura de globos. De facto, num célebre memorial que apresentou ao rei de França, consta uma longa “Declaration de plusieurs rares instruments universels, Globes, Cartes de naviguer et Avis”, que ele, Bartolomeu Velho, se propunha construir e, dando o devido desconto à fantasia deste cartógrafo, que era no entanto um belo desenhador, encontram-se variadas referências a globos. Numa delas aparece-nos uma proposta curiosa: “arte para facilmente se cartear num globo, com os rumos como numa carta de navegar, e sem quaisquer cerimónias”. Chegaram até nós outros textos de autores portugueses que nos falam de globos, como, por exemplo, o capítulo VIII do Tratado de Hidrografia, onde o padre Francisco Costa pormenorizadamente descreve,por volta de 1596,o fabrico de globos em moldes muito semelhantes aos que atrás apresentamos.

1970

346

1999 336 27

213 25 100 115 82

1985 1967 1963 1993 1990 1987 1966

109 65 279

técnicas usadas pelos cartógrafos portugueses, pois não encontramos qualquer notícia respeitante a gomos impressos a partir de matrizes de madeira ou de cobre.

Não obstante existirem várias referências historiográficas, a verdade é que não chegaram até nós exemplares fabricados por portugueses, a não ser um globo que se encontra na British Library, de Londres, e que foi oferecido a esta instituição por Sir Percival David, no ano de 1962. A esfera, de madeira pintada e lacada, tem o diâmetro de 59 cm, o que corresponde a uma escala de 1/21.000.000. Foi executado em 1623, na China, pelos padres jesuítas Manuel Dias, o Jovem, e Nicolo Longobardi (1559-1654), este natural da Sicília.

1994 1972 1965

Onde estão os globos portugueses? Existem na historiografia dos Descobrimentos várias referências a globos, como por exemplo aquele que foi levado pelos portugueses que participaram na célebre Junta de Badajoz-Elvas em 1524, na qual se discutiu, aliás, sem qualquer êxito, a exacta posição do meridiano de Tordesilhas (Imagem 4). Ou, aquele outro, feito por um famoso e grande piloto que se emborrachava e que Armando Cortesão sugere que seja João Dinis Solis. Ou, então, o que estava a ser fabricado em Sevilha no ano de 1519, pelo cartógrafo Jorge Reinel, para ser usado por Fernão de Magalhães na sua viagem de circumnavegação. Na Biblioteca Nacional de Paris existe uma carta anónima que vem reproduzida na Portugaliae Monumenta Cartographica e que os seus autores atribuem a Bartolomeu Velho. Tem as dimensões de 365 x 433 mm, está colada num cartão e encontra-se bastante desbotada.Esta carta tem a particularidade de estar desenhada em gomos, sugerindo a sua aplicação num globo, depois de recortados. Aliás este processo, ou a pintura executada directamente na superfície do globo, teriam sido as

4

Legenda do Tratado de Tordesilhas, globo terrestre.

No que respeita a Dias,afinal o único autor português dum globo ainda existente,apesar da obra ter sido feita de parceria,sabemos que nasceu em Castelo Branco no ano de 1574, fez o noviciado em Coimbra, passou à Índia em 1601 e a Macau em 1607, acabando por se estabelecer na China em 1611, donde acabaria de ser expulso cinco anos mais tarde.Transfere-se para Macau, onde ditou teologia, regressando à China no ano de 1621, e aqui,


juntamente com Longobardi é designado para reformar o exército e especialmente a artilharia, missão que estes devotos jesuítas consideravam oposta aos seus verdadeiros desígnios. De facto Dias, na Relatione delle cose pui notabili... que se passaram na China nos anos de 1619, 1620 e 1621, mas escrita em 1624, diz-nos que, para além dos caminhos da fé,os interesses dos jesuítas naquele país são as matemáticas,para o estudo das quais dispõem de livros e instrumentos em número suficiente, e a preparação da reforma do calendário e de projectos similares que, até então, tinha sido impossível de levar a efeito. Para além da participação na construção do chamado globo terrestre chinês, Manuel Dias deixou quinze obras, algumas em língua sínica, todas de temática religiosa, à excepção de uma, inspirada na Geographia de Ptolomeu,a que deu o nome de T’ien wen lueh,e que é a descrição da esfera celeste. Morre na China no ano de 1659. O globo chinês, baseado nos conhecimentos geográficos da época mas, especialmente, apoiado no planisfério desenhado pelo padre Matteo Ricci em 1602, mapa este que, juntamente com o globo, constituem as duas mais importantes relíquias da cartografia europeia na China, apresenta uma aceitável correcção no contorno dos continentes, que se distinguem por cores. Assim, a Ásia é amarela, contornada a vermelho. Os mares são verdes. Além disso o globo tem numerosa informação sobre os conhecimentos cosmográficos da época. Enfim, uma bela peça que os portugueses tiveram oportunidade de apreciar durante a XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura que se realizou em Lisboa no ano de 1983. Chegados aqui, a pergunta que nos parece oportuno fazer é a seguinte: como explicar o completo desaparecimento de globos antigos portugueses,quando há provas concretas da sua existência? A resposta é, sem dúvida, igual a muitas outras em que perguntássemos onde estão os astrolábios náuticos, os quadrantes, as balestilhas, as agulhas de marear, as ampulhetas, tudo isto instrumentos que foram igualmente fabricados no nosso país e usados pelos nossos pilotos do tempo dos Descobrimentos e dos quais os Portugueses não souberam guardar um único exemplar. No caso dos globos, podemos eventualmente atribuir o facto à política de sigilo imposta pelos nossos soberanos, política que alguns historiadores, hoje em dia, põem em causa. No entanto, é bem conhecido o célebre alvará de D. Manuel, com data de 13 de Novembro de 1504, que reza assim: ”...defendemos [proibimos] que não façam nenhuns mestres das cartas de marear, nem outros oficiais nenhumas pomas [globos] grandes nem pequenos, de pouco, nem de muito, porque não queremos que se façam em maneira nenhuma...”. Fica assim bem claro que o rei proibia a manufactura de globos, o que pode justificar, na época, a sua raridade e explicar que, actualmente, apenas se conheça o exemplar atrás referido, mas que foi feito na China já no século XVII. Em todo o caso, o mesmo não se passou com a cartografia de que existe um património notável, se bem que (e talvez por isso) a maior parte se encontre no estrangeiro. De qualquer modo, com ou sem globos de origem portuguesa,

o que acima de tudo interessa é que, actualmente, haja consciência do valor inestimável destes instrumentos científicos que, juntamente com a cartografia, são documentos do maior interesse para estudar a evolução da descoberta do Mundo, de que os Portugueses foram pioneiros. Sejam minúsculos objectos de trazer no bolso ou tão grandes que não se encontre local para os exibir, sejam de madeira, de metal,de papier mâché ou até de papel que tomam forma quando se sopra neles, como num balão, sejam simplesmente a representação da Terra ou do Firmamento e, ao mesmo tempo, uma bela obra de arte, repleta de iluminuras com bases ricamente trabalhadas, que não destoariam numa sala do palácio do Rei Sol ou do nosso D. João V, o que interessa é chamar a atenção para estes instrumentos científicos, os quais, devida à sua fragilidade, são extremamente vulneráveis. Necessitam, portanto, de cuidados especiais para a sua adequada conservação, pois só assim se conseguirá prolongar-lhes a vida para que possam ser admirados pelas gerações futuras.

Os Coronelli da Sociedade de Geografia Quando elaboramos a lista dos globos antigos existentes em Portugal - já o dissemos - constatámos que, grande parte dos exemplares, se encontrava em estado precário, necessitando de restauro. De facto, julgamos que só assim conseguiremos proteger este património que - também já mostramos - é extremamente sensível ao tempo e aos homens. Ganhamos algum conhecimento sobre o assunto quando nos envolvemos no processo do restauro dos globos Blaeu do Museu de Marinha e, a partir daí, fizemos o que nos foi possível para transmitir esta preocupação aos organismos que podiam eventualmente resolver este problema. Passaram alguns anos, mas agora é agradável saber que o Instituto Português de Conservação e Restauro conseguiu reunir as condições que lhe permitiram iniciar esse demorado e, por consequência, dispendioso trabalho que vai permitir prolongar a vida desses magníficos objectos de arte e ciência de que nos estamos a ocupar. Devemos esta medida a Ana Isabel Seruya e a Mário Pereira, respectivamente directora e sub-director do referido Instituto e, também, a Joana Campelo que tem a responsabilidade da execução do projecto. Como se trata de um trabalho pioneiro no nosso país, foi decidido pedir o conselho técnico da Biblioteca Nacional de Paris, onde existe um departamento de restauro de globos. Essa ajuda tem sido dada por Alain Roger, grande especialista na matéria. Os primeiros globos que foram escolhidos para restauro foram, exactamente,os que se encontram na Sociedade de Geografia de Lisboa, da autoria de Vicenzo Coronelli, já várias vezes mencionado.Estes globos têm uma história curiosa.De facto,nos últimos dias de Junho de 1878, o primeiro-tenente de artilharia Fernandes Costa informou o secretário-geral daquela Sociedade que, no Arsenal do Exército, se encontravam, num depósito de objectos inutilizados, dois grandes e velhos globos que lhe pareciam valiosos e que, segundo uma antiga tradição, corrente

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naquele estabelecimento, tinham sido oferecidos por um soberano estrangeiro ao nosso D. João V. Mesmo assim, algum tempo atrás, chegara a vigorar a ideia de aproveitar aqueles notáveis objectos como combustível para um forno de fundição7. Luciano Cordeiro, a quem estamos a recorrer, diz-nos que os globos, infelizmente, muito deteriorados pelo brutal abandono de longos anos, foram cedidos à Sociedade de Geografia (Imagem 5), por despacho do Ministro da Guerra. Luciano Cordeiro, que também fez o seu estudo, admite terem sido construídos entre 1692 e 1694, ano em que morreu o doge Francesco Morosini e ao qual, conforme é mencionado numa das cartelas, foi dedicado um dos globos.

5

Exposição Oceanographica, Sala da Índia, Sociedade de Geografia,

Nós já referimos este episódio mais de uma vez, em artigos que escrevemos sobre o assunto, repetindo - como fez Luciano Cordeiro - que os globos tinham sido oferecidos por um soberano estrangeiro ao rei D. João V. Todavia, quando o Instituto de Conservação e Restauro nos pediu um texto para inserir numa publicação dedicada ao início do restauro de globos no nosso país, achámos que devíamos tentar saber algo mais sobre esse enigmático soberano estrangeiro e qual a razão que motivou tal oferta. Assim, sabendo que Vicenzo Coronelli era veneziano e o facto ter sido o mais famoso fabricante de globos do seu tempo, admitimos que um par de grandes globos poderia ser uma prestigiante oferta feita pela Sereníssima República de Veneza. Mas qual teria sido o motivo dessa oferta? É bem sabido que Portugal eVeneza tiveram uma causa em comum quando D. João V decidiu ajudar aquela República mediterrânea a contenção perigo Turco. Aliás foi o único soberano cristão que atendeu às solicitações insistentes do Papa Clemente XI. O primeiro pedido foi feito pela breve de 17 de Janeiro de 1715, em que o Sumo Pontífice solicitou ao nosso rei Magnânimo que acudisse à defesa da salvação pública contra um “encarniçado inimigo”8. Novo pedido de auxílio e com urgência, em 6 de Janeiro de 17169; e logo no dia seguinte, um apelo a D. Maria Ana 7

de Áustria, para que interceda junto do real esposo, e advogue e promova “com todo o esforço e empenho esta pia e justíssima causa”10; e torna a pedir que “mande para reforço da armada cristã o maior número de navios que puder” e que esses navios “estejam no princípio, ou pelo menos, antes do meio de Abril nas águas de Malta”11. Após este apelo, de 18 de Janeiro, D. João V, envia uma carta ao doge de Veneza, com data de 16 de Julho, informando-o que já tinha mandado “prevenir uma esquadra composta dos navios que se poderão aprestar dentro do pouco tempo que Sua Santidade desejava” e que essa esquadra “partiu com efeito em quatro do corrente”12. Na realidade, esta esquadra, comandada por Lopo Furtado de Mendonça, conde de Rio Grande, regressou a Portugal sem ter tido qualquer acção. Todavia, ainda no mesmo ano, a 14 de Dezembro, o Papa volta a pedir reforços apressados, de modo a que “todas as naus e galeras auxiliares da armada cristã estejam pelo menos em meio do próximo mês da Abril nas águas de Corfu”13. D. João V envia nova esquadra, em 1717, comandada pelo mesmo almirante conde do Rio Grande, a qual, em conjunto com as forças venezianas sob o comando de André Pisani, destroça os Turcos, na batalha que se desenrolou na enseada de Hapan, a cerca de 25 milhas do cabo Matapan, mas que ficou na Historia com este último nome. Existem numerosos relatos desta bem sucedida intervenção naval, mas fomos encontrar na obra de Mário Domingues, D. João V, o Homem e a sua Época14, a preciosa informação que “o senado veneziano enviou depois a Portugal, a fim de agradecer a D. João V tão altos serviços prestados, o seu embaixador João Mocenigo, que mais tarde viria a ser ‘doge’ de Veneza”15. Este autor é pouco generoso no que respeita à indicação de fontes e, assim, nada mais ficamos a saber acerca deste embaixador e da sua acção junto da corte portuguesa.Todavia, a Gazeta de Lisboa, assinala que “O Senhor D. João Mocenigo, ministro extraordinário da Sereníssima República de Veneza, para Sua Majestade Que Deus Guarde, chegou a esta Corte no dia 27 do mês passado [Novembro de 1717] e fica alojado nas casas que foram do Inquisidor Francisco Barreto de Menezes”15. A mesma Gazeta, cerca de um mês depois informa que “O ministro de Veneza teve audiência particular de Sua Majestade, na qual em nome da sua República lhe agradeceu o socorro com que este ano reforçou a sua Armada naval expressando deverse à esquadra Portuguesa grande parte da vitória que se alcançou dos Turcos”16. O sucesso da sua passagem pela Corte de Lisboa poderá estar reflectido numa carta para o Doge de Veneza, datada de 1718, onde se refere que o “(...) ditto Cavalleiro Luís (sic) Mocenigo, que pellas suas singulares prendas e consumada prudência se f.s digno de maiores empregos (...)” Teriam os globos Coronelli sido trazidos pelo embaixador João Mocenigo, como expressão do reconhecimento da Sereníssima República de Veneza, pela nossa participação na batalha do cabo de Matapan? Não sabemos. No entanto, este tipo de oferta foi prática frequente ao longo dos tempos. Aliás, e ainda sobre este mesmo acontecimento, o Papa, agradecido pela participação portuguesa, enviou ao “amado filho nobre varão Lopo Furtado

Luciano Cordeiro,“os globos venezianos da Sociedade de Geographia de Lisboa”, in Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa, n.º 2, 1887, pp. 242-5. Supplemento á Collecção dos Tratados, Convenções, Contratos e Actos Publicos celebrados entre a Corôa de Portugal e as mais Potencias desde 1640, compilados, coordenados eannotados pelo visconde de Borges de Castro e continuação por Julio Firmino Judice Biker,Tomo X, Lisboa, 1873, p.271 e 273. 9 Idem, p.275 e 277. 10 Idem, p. 279. 11 Idem, p. 281 e 283. 12 Idem, p. 284-5. 13 Idem, p. 287 e 279. 14 DOMINGOS, Mário, D. João V. O Homem e a sua Época. Romano Torres, Lisboa, 1964, p.203. 8


de Mendonça, conde do Rio Grande, almirante da esquadra portuguesa pela mão dum tal Afonso de Horanza, um “rosário de heliotrópio oriental, enriquecido com sagrados tesouros de indulgências”17. E esta oferta aumentou a nossa expectativa. Como não encontrámos, nos arquivos nacionais, documentação respeitante às relações diplomáticas entre Portugal e a República de Veneza, que pudessem sustentar a nossa conjectura, decidimos deslocarmos a Veneza, na esperança de aí existirem fontes capazes de nos esclarecer que prenda teria trazido - se trouxe - o tal embaixador Mocenigo a D. João V, como reconhecimento pela generosa participação na batalha de Matapan. Marcamos,para o efeito, passagem de avião para nos deslocarmos a Veneza e aí tentarmos procurar efectuar a necessária pesquisa. Entretanto, a equipa de trabalho do Instituto de Conservação e Restauro, tendo-se interessado, como nós, pela proveniência dos globos da Sociedade de Geografia, recorreu a Marie Thérèse Mandroux França que se dedica, há longos anos, ao estudo do reinado de D. João V, no sector de História de Arte, onde os nossos Coronelli, sem qualquer esforço, se podem situar. Pois bem, a autora dessa magnífica obra, recentemente publicada com o título Catalogues de la collection d’estampes de Jean V, roi de Portugal, amavelmente informou que, durante as suas pesquisas, tinha detectado a referência a dois globos daquele mesmo fabricante no Arquivo Tarouca. Estamos agradecidos a Marie Thérèse Mandroux França, por esta preciosa ajuda que veio, definitivamente, esclarecer uma dúvida que se mantinha há mais um século. Duas cartas do conde de Tarouca trazem-nos uma certeza e duas dúvidas. De facto, ficamos com a certeza de que os globos da Sociedade de Geografia, foram adquiridos em Haia pelo conde de Tarouca. Fica no entanto por esclarecer, em primeiro lugar, se estas belas peças foram aceites por D. João V para serem integradas na Biblioteca Real.Admitimos que sim. A este propósito, é oportuno que se diga que os globos (quase sempre aos pares), além de fornecerem a configuração do céu e das terras, eram também instrumentos de prestígio que não faltavam nas grandes bibliotecas, fossem elas do Estado ou privadas. No Palácio e Biblioteca da Ajuda encontramos quatro globos (dois deles William Blaeu, infelizmente inutilizados, devido ao rescaldo de um fogo) e na Biblioteca do Palácio de Mafra, dois da primeira metade do século XVIII. António Galvão de Castelo Branco que no ano de 1727, por ordem de D. João V, andou a visitar as “livrarias” de Cambridge e Oxford, respondendo à pergunta 10ª que lhe foi dirigida pelo secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte Real escreve: “ A 10ª, sobre globos, somente na livraria pública de Oxford os há e estes são dos maiores”18, o que permite deduzir que os globos eram objectos de interesse para D. João V e, muito provavelmente, para o recheio da Biblioteca Real. É evidente que fica por esclarecer como é que os dois belos Coronelli foram parar ao Arsenal do Exército.Acreditamos que tal tenha acontecido durante ou após o fogo que se sucedeu ao Terramoto em que era urgente arranjar depósitos para os

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salvados. Depois, o desinteresse e a ignorância fizeram o resto. Chegados a esta situação parece que poderíamos encerrar este assunto pois já não se justificava a procura que desejávamos fazer nos arquivos de Veneza. Acontece que,devido ao tipo de viagem aérea que escolhemos,foinos impossível cancelar o voo.Assim sendo,não tivemos alternativa: seguimos mesmo para Veneza e, naturalmente, aproveitamos para saber quem foi esse tal João Mocenigo, embaixador em Portugal e futuro doge, como nos diz Mário Domingues. O único Giovanni Mocenigo que encontrámos e que veio a ser doge de Veneza, foi Alvise Giovanni Mocenigo, que ficou na História com o nome de Alvise IV. Era membro de uma nobre família de Veneza que se estendeu por séculos. Este Giovanni é filho de Marcantónio - que viria a ser o doge Alvise III, de 1722 a 1732 - nasceu a 19 de Maio de 170119 e, assim, quando chegou a Portugal como embaixador tinha apenas 16 anos. Poderemos aceitar esta informação como certa? Que Giovanni foi embaixador em Portugal, parece não haver dúvida, pois tal é afirmado numa pequena obra escrita por Vittoria Mocenigo20, em 1905, que nos diz que, com apenas 30 anos, Alvise Giovanni foi embaixador em França de 1730 a 1733. Nessa mesma obra somos ainda informados que Alvise foi, mais tarde, embaixador extraordinário ao Vaticano por ocasião da eleição do Papa Benedito XIV, em 1740 e, neste mesmo ano, exerceu funções idênticas junto do rei D. João V. É certo que Vittoria dá-nos a garantia que Giovanni foi embaixador em Lisboa, mas a data não confere com a realidade. De facto, no Arquivo do Estado de Veneza, existe um índice com os despachos dos embaixadores, que nos remete para uma série de cartas escritas por Alvise Mocenigo.A primeira dessas cartas foi enviada de Lisboa, tem a data de 30 de Novembro de 1717, e descreve a audiência que lhe foi concedida por D. João V, uma semana antes, isto é, no dia 23, como foi noticiado na Gazeta de Lisboa. Assim, parece não restar dúvidas que o primeiro posto diplomático foi Lisboa e não Paris como sobressai do texto de Vittoria Mocenigo, acima transcrito. Deste modo teremos de admitir que Giovanni foi embaixador – aliás com uma missão bem modesta – com a idade de 16 anos. O que talvez possa ser facilmente aceite atendendo a que ele era um Mocenigo. Curiosamente, Giovanni veio entregar as suas credenciais a um D. João que tinha sido rei, exactamente, com aquela mesma idade. Para terminar importa dizer que a carta com a data de 30 de Novembro, acima referida, e que relata a audiência que foi concedida a Giovanni Mocenigo, não refere que este tenha trazido alguma lembrança para o Rei Magnânimo. Possivelmente, não era prática seguida pela Sereníssima República de Veneza.

Gazeta de Lisboa, 9-12-1717. Idem, 23-12-1717. Supplemento á Collecção dos Tratados..., p.297 e 299. 18 Biblioteca da Academia das Ciências, ms. 602-A, transcrito por Luís Ferrand de Almeida,“D. João V e Biblioteca Real”, in Revista da Universidade de Coimbra, volume XXXVI, Coimbra, 1991, p.432. 19 Vittoria Mocenigo, Alvise IV Mocenigo Doge di Veneza, Misc. C 11627 da Biblioteca Nazionale Marciana, em Veneza. 20 Archivo di Stato di Venezia, Dispacchi degli ambasciatori al senato. Indice, Roma, 1959 16 17

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HISTÓRIA BREVE DOS GLOBOS A representação da Terra e especialmente do firmamento celeste, em Globos, ilustra a tentativa humana de encontrar respostas para a angústia metafísica que acompanha o Homem desde o seu nascimento, ou seja, saber qual o lugar que ocupa no Universo. Para o pensamento clássico, encabeçado por Ptolomeu, a execução destes instrumentos é a passagem para o mundo visível e à escala humana, dos Mistérios do Cosmos, tornandose, assim, o elo metafísico entre a fragilidade do mundo humano e a imensidão que o rodeia. Símbolo de saber, a construção e manipulação de globos colocam o Homem no plano da “mecânica celeste”, atribuindo-lhe um papel similar ao do “Grande Arquitecto”, construtor do Universo. Esta ideia é patente na maioria dos globos celestes onde o observador se posiciona como Deus, observando a sua criação a partir de um plano exterior ao próprio Cosmos. Isso constata-se quando nessas esferas as constelações são representadas de costas para o nosso olhar, olhando para a Terra que lhes ficaria abaixo. Também a execução do globo terrestre pode fomentar o respeito pela criação divina, acentuando a humildade do Homem na vasta dimensão do Mundo. No entanto, ele dá ao seu possuidor, simultaneamente, uma sensação de poder, acentuando, por vezes, traços de megalomania no domínio do planeta. A presença dos eixos e coordenadas da Terra na esfera celeste dão ao homem a ilusão de compreender o Mundo e o Universo, transportando para espaço o tempo humano. O agrupamento das estrelas em constelações com sentidos míticos, representa a soma dos conhecimentos acumulados ao longo de três milénios e corresponde a uma mesma tentativa humana, o dar sentido ao que nos rodeia através de códigos e referências que conhecemos e compreendemos. O astrónomo e o geógrafo utilizam os globos celeste e terrestre como instrumentos de trabalho onde, com o auxílio de um sistema de coordenadas (lat. e long.) representam, sobre as esferas, as estrelas e terras que descobrem. Tudo é indicado nos principais círculos de coordenadas: os coluros dos Equinócios e dos Solestícios, passando pelo eixo dos pólos e perpendiculares a eles; o Equador; os Trópicos; os Círculos Polares e o círculo da Eclíptica, tangente aos trópicos e inclinado cerca de 23º1/2 em relação ao Equador (cf.Anexo).

constelações. Também a ele se deve a primeira informação escrita de como construir um globo celeste (Sintaxes, 8,3), assinalando que as estrelas devem ser representadas em amarelo e vermelho sobre fundo escuro e que, no caso de constelações, devem estar ligadas entre si, para melhor definir o desenho. Foi através dos astrónomos árabes que começou a haver maior familiaridade com o uso e manufactura de globos celestes, tendo chegado através dessa cultura à Europa Ocidental no final do século X. Os estudiosos árabes não estavam interessados no globo terrestre e só após a publicação de uma nova edição da Geographia de Ptolomeu, no século XV, ressurgiu o interesse por este. Os Descobrimentos impulsionaram essa ciência e a execução de mapas e globos terrestres foram o meio de traduzir a constante renovação das descobertas. Isto era particularmente importante para estadistas e diplomatas, interessados num novo equilíbrio de poder na sequência do Tratado de Tordesilhas, tema ainda referenciado no globo terrestre de Coronelli através de uma cartela alusiva. A representação da Terra num globo é mais precisa que num mapa, pois a sua superfície permite indicar maior número de nomes e lugares. A cartografia até ao século XVI foi dominada por uma única projecção oval da Terra. Cerca de 1560, com a colocação conjectural do estreito de Anian, a separar a Ásia da América do Norte, foi necessário dividir a esfera em dois círculos simétricos, uma imagem equilibrada do Novo e Velho Mundos, outra referência que no globo de Coronelli possui uma cartela específica. O primeiro globo terrestre europeu que chega até nós, data de 1492, executado por Martin Behaim, sob encomenda do Conselho da Cidade de Nuremberga6. Este globo manuscrito é contemporâneo das primeiras edições da Geografia de Ptolomeu, que o florentino Jacopo Angelo de Scarperia traduziu para latim no início do séc. XV, e é ilustrado com mapas desenhados a partir de fontes documentais gregas. Como o mundo conhecido de Ptolomeu não abarcava todo o globo terrestre, os cosmógrafos do Renascimento completaram-no, com traçados fornecidos pelas novas cartas marítimas e acrescentando-lhes diversas hipóteses relativamente a regiões ainda inexploradas. No globo de Coronelli ainda ocorre esta metodologia, sendo o exemplo mais flagrante a representação da Califórnia desenhada como uma ilha (Imagem 1).

A construção do primeiro globo celeste terá sido obra de Eudóxio de Cnido (c. 360 a. C.) tendo havido outros, como o executado por Arquimedes. No entanto, o grande estudioso da Astronomia Clássica foi Ptolomeu (c. 150 d. C.) herdeiro da obra de Hiparco (c. 150 a. C.). Foi ele o primeiro que estabeleceu as coordenadas das estrelas e, numa obra hoje perdida, o Almagesto, compôs um catálogo das constelações então conhecidas, identificando 1022 estrelas, dispostas em 48 1

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REIS, António Estácio dos- «Globos antigos em colecção imaginária». Oceanos. Nº 9 (1992); p. 41.

Representação da Califórnia como uma ilha. Globo terrestre


A utilização dos globos celestes que se generaliza na Europa no séc. XV, conhece a sua idade de ouro em meados do séc. XVI, altura em que as regras para o seu fabrico se fixam. Pintados e coloridos por excelentes artistas, são ornados de figuras mitológicas, animais e objectos representando as constelações tradicionais. Habitualmente encontramos os globos terrestres e celestes montados sobre bases idênticas7, constituindo um par, conceito introduzido por Johannes Schöner (1477-1547). Os pares impressos mais antigos – que seguem a metodologia que Coronelli irá empregar posteriormente, de fusos colados sobre uma esfera – datam de 1515-1517 e provêm da oficina de Schöner, instalada em Nuremberga. A partir de meados do século XVI, a produção de globos tornase numa actividade florescente e muito lucrativa, com particular incidência na Holanda, na Flandres e, posteriormente, em Itália. Para a sua vasta difusão terá contribuído o facto da Companhia das Índias Orientais ter tornado obrigatório, por decreto de 1602, a presença dos dois globos - celeste e terrestre - a bordo dos seus navios8. A ideia de os comercializar em pares deveu-se a Gerard Mercator (1512-1594) que combinava o conhecimento científico de um cartógrafo, à sua habilidade de gravador e ao facto de ser um editor. Entre 1541 e 1551, as suas vendas alcançaram uma popularidade e um renome sem precedentes na Europa. Para além da sua utilização na marinha, estes objectos contribuíam para o aparato e decoração das bibliotecas. Este uso deu origem a uma produção de grandes globos, cujas vantagens daí decorrentes não podiam escapar aos sempre atentos fabricantes holandeses, que contavam como clientes e mecenas, alguns importantes detentores de poder político e económico. Assim, por encomenda da Companhia das Índias Orientais, Willem Blaue construiu, em 1650, uma esfera em cobre coberta com papel pintado com mais de quatro metros de diâmetro, representando a Terra, para o príncipe Makasar. O czar da Rússia também recebeu um globo de 2,13 metros de diâmetro, produzido por Blaeu, hoje conservado no Museu de História de Moscovo. Adam Olearius (1603-1671) produziu um globo para o Duque Frederico III de Schleswig-Holstein-Gottorp, entre 1650 e 1664, o qual permitia o acesso ao seu interior, pois tinha mais de três metros e meio de diâmetro. Na sua superfície externa, coberta com finas placas de cobre, estava gravada a geografia da Terra e a revestir o interior, que abrigava um pequeno globo terrestre, a carta do céu. Este espaço, configurando uma pequena sala, continha uma mesa e seis cadeiras, podendo-se observar a rotação do nosso planeta efectuada em vinte e quatro horas. Este conjunto foi oferecido ao czar Pedro, o Grande, que o instalou em São Petersburgo em 1717, tendo sido destruído num incêndio. 7

Será,no entanto,um veneziano,Vincenzo Coronelli,o responsável pela divulgação do gosto por grandes globos na Europa.

Os globos barrocos Para além da própria concepção de um globo propiciar uma função decorativa, eles podem estar igualmente sujeitos a uma imagem política, quando associados à presença de um monarca. Isto ocorre quando a esfera é apresentada por figuras alegóricas, como a Vitória ou a Justiça, ou integrando emblemas reais. Assim, compreende-se a presença de globos e esferas armilares nas divisas e frontispícios de obras importantes ou quando surge nos retratos oficiais de reis, aqui como expressão da amplitude de visão política. Dentro desta óptica foram criadas constelações com alguma conotação política. Duas podem ver-se no globo celeste de Coronelli, aqui indiscutivelmente associadas à monarquia francesa, pois estes objectos constituem reduções do que originalmente foi criado para Luís XIV. A primeira é a constelação do Lírio ou Flor de Lis, forma como aqui é representado este símbolo da monarquia francesa. O segundo elemento é a constelação do Ceptro (Imagem 2) que, infelizmente, no globo da Sociedade de Geografia perdeu a

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Ceptro

legenda, mas, nos fusos da edição de Paris de 1688 executados para a actual intervenção de Conservação e Restauro, pode ler-se “Nova Constelação feita no Grande Globo de S(ua) M(agestade) Cristianíssima de Estrelas ainda sem motivo as quais quando passam sobre o Meridiano de Paris são verticais a aquele Reino”9. Deste modo, o firmamento e por correlação o próprio globo tornam-se suportes objectivos da demonstração régia do direito divino. Os globos de Coronelli representam o apogeu desta arte, sendo objectos únicos, destinados a uma selecta clientela de patronos exclusivos. Ainda que considerem o conhecimento científico coevo - a inclusão dos nomes árabes das constelações é um aspecto incomum demonstrativo do respeito pela História e Epistemologia, que caracteriza o trabalho deste cosmógrafo - o principal propósito destes objectos é, essencialmente, artístico. A espectacular concepção escultórica do desenho das figuras, indiciadora do gosto Barroco cuja raiz se

MCKLINTOCK,T.K., Observations on the conservation of globes, p. 136. FERRONI, Alice, Tecniche di costruzione dei globi e problemi di conservazione, p.66. Tradução de “Nuova Costellatione eretta nè Gran Globi di S. M. Cristianiss di Stelle prima Informi le quali, quando passano sotto il Meridiano di Parigi sono verticali àquella Reggia”. 10 Estudou em Paris,Veneza e Roma.Trabalhou com Le Brun, em Versalhes. Grande número das suas obras encontra-se em edifícios religiosos de Lille, Cambrai e Douai. 11 Gravador de buril e editor, aluno de Nicolas de Poilly.Viajou para Itália para prosseguir os seus estudos onde conheceu as obras de alguns pintores que influenciaram profundamente o seu trabalho, como Anniballe Carracci e Nicolas Poussin.Teve o título de “Gravador do rei a talhe-doce”. PELLETIER, Monique, ROGER, Alain, - «La renaissance des globes de Coronelli (1650-1718) au Musée des Beaux-Arts de Lille», p. 69. 12 Um dos pares pode ser observado no Museu de Cerâmica de Ruão, proveniente do castelo de Boisguilbert, um segundo par encontra-se no castelo de Choisy, nos aposentos de Rei Luís XIV, o terceiro par figura na colecção científica de Joseph Bonnier de la Mosson (1702-1744), tesoureiro do estado do Languedoc. O diâmetro destas peças é de 45 cm. 13 Na sua Bibliotheca Universale Coronelli publica o Privilegio del Rè Cristianissimo ne’di lui Stati alle Opere tutte del Padre Cosmografo Coronelli, ovunque siano stampate. Neste texto, refere-se que “... Cugino il Cardinal d’Estrees, à fare 2. Globi, l’uno Celeste, l’altro Terrestre, li più grandi, che siano giammai stati fatti, e che sono destinati pe’l nostro Castello di Versagli...” tendo passado para Marly, por não haver espaço em Versalhes para os colocar. 8 9


pode encontrar nas influências que nortearam a obra de Arnould de Vuez (1644-1729)10 e Jean Baptiste Nolin (16571725)11, subalterniza a posição das estrelas, tornando-o mais um objecto estético do que um instrumento científico. O sucesso e requinte destas peças teve uma manifestação incomum pois, em 1725, Pierre Chapelle executa em Ruão, na manufactura de Madame Lecocq de Villeray, três pares excepcionais de peças em faiança a partir do Libro dei Globi12. A reputação de Vincenzo Coronelli firmou-se em 1681 com a execução dos chamados Globos de Marly13, para Luís XIV e com um diâmetro de quase 4 metros. O globo celeste apresentava uma decoração pintada unicamente em tons de azul, o que, normalmente não ocorre nas suas reproduções menores14. Estas obras “d’esquisito lavoro”, como refere Coronelli na sua Bibliotheca Universale15 poderiam surgir em quatro tamanhos16. A produção de globos impressos com um metro de diâmetro, é uma empresa que requer considerável investimento da parte do seu executante.Um globo com cerca de 32,5 cm de diâmetro possui uma área de c. 3300 cm2, um globo com 1 metro tem 9 vezes esta medida, c. 300 000 cm2 e pode facilmente conter informação equivalente a um atlas médio de cerca de 50

Assim, Coronelli transformou os seus globos de 1 metro em enciclopédias tridimensionais, apresentando o Mundo e a sua História em belas cartelas, decoradas com alegorias que conjugavam informações correctas - como as variações magnéticas observadas na viagem de S. Chaumont no barco L’Oyseau, de Brest a Sião em 1686 - com erros, compreensíveis por algum desconhecimento do mundo. É notória a preocupação de rigor em referenciar as fontes informativas, como no caso dos cometas assinalados no Globo celeste, mencionando percursos, observadores e datas de registo ou a listagem dos vários ângulos considerados entre o Equador e a Eclíptica, com as considerações de astrónomos desde Aratus (c. 315/310-240 d.C.) a Giovanni Cassini (1625-1712). Os oceanos surgem despovoados de monstros, mas percorridos por numerosos barcos de diferentes proveniências, mencionando-se a sua origem e propósito. Mais do que um astrónomo, Coronelli foi um inteligente negociante que inventou um novo método de venda. Os seus globos eram vendidos em fusos, por subscrição, e, posteriormente, montados por artífices locais da região do comprador. Isto permitiu a difusão destas peças por toda a Europa, divulgadas, à época, como os maiores globos gravados jamais realizados. Esta engenhosa ideia resolvia duas questões, reduzia significativamente o seu preço e o complexo problema de enviar estas grandes esferas para os seus diversos destinos. Esta metodologia acarreta hoje algumas dúvidas para os investigadores, pois as peças nem sempre foram montadas em época próxima da compra dos fusos. Exemplo disso é o Globo do National Maritime Museum de Greenwich com fusos impressos em 1707, montado somente em 1752, perto de Viena, pelo monge franciscano Tobias Eder, com o apoio de Matthias Heinen19.

3 Legenda 17 páginas . da constelação Ara. Globo celeste

À concentração de informação patente nas peças de Coronelli não será alheia a publicação da sua Bibliotheca Universale, cujas entradas referentes a cada constelação explicam algumas das ideias expressas de forma sucinta no globo. Um exemplo pode ser observado na Ara que na Bibliotheca surge como: “ ALTARE. Lat. Ara. Ræ f. I. Nome d’una Celeste Costellazione, ch’è la Lv. E XV. Meridionale, detta altrimente Thuribulum, Altarium, Pharus, Sacrarium, Puteus,Templum, Focus,Tripos, Promorum, Receptaculum Ignitabulum, e da’ Grec. Fú questa già composta di 4 sole stelle; ma nel nostro Globo vien ella figurata com 9 ...”18. No globo celeste a mesma legenda resumiu-se a “...Thuribulum, Altare, vel Altarium, Pharus, Sacrarium, Puteus, Templum. Focus, Promorum, Receptaculum...” (Imagem 3).

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De acordo com o estudo de E. Bernleithner foram registados 58 globos celestes de Coronelli com 1,10 m20. O da Sociedade de Geografia pertence à primeira edição dos globos côncavos, mais raros, com outros exemplares nas Bibliotecas: Comunale de Faenza, do Seminário Patriarcal de Veneza, na Nacional de Viena, e ainda na Abadia beneditina de Melk, no Museu Joanneum, em Graz, e no Bayerisches Nationalmuseum de Munique. Em finais do séc. XVII, a cartografia da Terra estava muito desenvolvida e a divulgação de novas técnicas de cálculo, seguidas da introdução do octante a bordo dos navios, tornaram os frágeis globos objectos obsoletos. Com este período finda a época áurea do seu fabrico, no entanto, eles irão permanecer por muito tempo como instrumento didáctico, sempre presente nas grandes colecções das mais importantes bibliotecas históricas.

Conhece-se, somente, um único exemplar com 1 metro de diâmetro com estas características, na Biblioteca Comunale de Faenza CORONELLI,Vincenzo, Bibliotheca Universale Sacro-Profana, Antico-Moderna, in cui si Spiega com ordine Alfabetico ogni voce, Anco staniera, che puo avere significato nel nostro Idioma Italiano, Appartenente Á qualunque Materia., vol. I. 16 “...Globi di varie grandezze. Celeste, e Terraqueo di 3 piedi, e mezzo di diamettro, corretti, ed accresciuti di molte Stelle, e di nuovi Paesi; miniati, e com vernice senza Piedestalli. Detti com loro Piedi, e Meridiani d’ottone. Detti di 6 oncie Diametro con i loro Piedi, e Meridiani. Dettidi 4 oncie di Diametro con i loro Piedi, e Meridiani. Detti di 2 oncie di Diametro com i loro Piedi, e Meridiani...” in CORONELLI,Vincenzo, Bibliotheca Universale Sacro-Profana, Antico-Moderna, in cui si Spiega com ordine Alfabetico ogni voce, Anco staniera, che puo avere significato nel nostro Idioma Italiano, Appartenente Á qualunque Materia., vol. I, s.p.. 17 DEKER, Elly, Globes at Greenwich, p. 112. 18 CORONELLI,Vincenzo, Bibliotheca Universale Sacro-Profana,Antico-Moderna, in cui si Spiega com ordine Alfabetico ogni voce,Anco staniera, che puo avere significato nel nostro Idioma Italiano,Appartenente Á qualunque Materia.Venezia, A spese di Antonio Tivani, M.D.CCI, vol. II, p. 1174. 19 DEKER, Elly, Globes at Greenwich, p. 112 20 BERNLEITHNER, E.- «Die österreichische Sonderpostmarke zum V. Internationalen Symposium des Coronelli-Weltbundes der Globusfreunde». Der Globusfreund, cit. por KUNITZSCH, Paul - «European celestial globes with arabic inscriptions». Der Globusfreund, p. 137. 15


AS ESFERAS DE 3 1/2 PÉS DE VINCENZO CORONELLI Coronelli inicia a sua vida religiosa aos quinze anos na Ordem dos Frades Menores Conventuais, sendo nomeado Doutor em Teologia pelo Colégio Santo-Bonaventura de Roma em 1673. A 12 de Março de 1685 é nomeado pelo Senado veneziano, Cosmógrafo da República e, em 1689, Professor Público de Cosmografia “Lettore Publico”21. A documentação reunida por Coronelli até 1683 vai alimentar uma obra cartográfica abundante. Explorando ao máximo esse acervo e privilegiando o seu uso em numerosas publicações em detrimento de uma constante actualização, ao contrário de cartógrafos seus contemporâneos, foi perdendo progres-sivamente alguma influência no meio científico da época22. No entanto, encontramos nos globos a que se refere este estudo, a introdução de dados recentes à época de execução, como o itinerário marítimo de um navio francês de Sião a Brest, em 1685-86, anterior dois anos à sua publicação23. (Imagem 4)

vários artistas, entre estes Filipp Kilian de Augsburg, que gravou a cartela da dedicatória do globo terrestre publicado em 168825. É nesta altura que cria uma oficina de gravura no Convento da Santa Maria Gloriosa dei Frari, em Veneza, e propõe-se criar um centro de produção cartográfica nesta cidade. Embora os fusos de globos tenham sido publicados sob a forma de mapa desde meados do séc. XVI, Coronelli é o primeiro cartógrafo a produzir “atlas de globos” numa obra denominada o “Libro dei Globi”, com primeira edição em 169726. Esta obra é composta por mapas do mundo, cartas das ilhas, vistas e plantas das vilas inspiradas nos atlas holandeses e os fusos para quatro pares de globos com diâmetros diferentes27. Com o intuito de conseguir melhores recursos técnicos e financeiros, volta a Paris em 1686 e, através de diploma e privilégio concedidos por Luís XIV, negoceia um contrato comercial com o gravador Jean Baptiste Nolin (1657-1725). Neste contrato, datado de 19 de Agosto, Nolin compromete-se a fornecer as chapas gravadas com base no desenho do pintor francês Arnould de Vuez (1644-1729), destinadas à publicação dos fusos para o globo celeste, enquanto o globo terrestre, de execução menos difícil, era gravado em Veneza. A relação com Paris favorece as suas publicações, proporcionando a criação da Societas Gallica, congénere da Accademia degli Argonauti de Veneza, ambas sociedades geográficas e editoras. Em simultâneo, à medida que os seus gravadores de Veneza avançam em perícia e experiência, Coronelli torna-se menos dependente dos seus relacionamentos com Paris28. O contrato com Nolin parece não ter sido escrupulosamente respeitado e as chapas do globo celeste permanecem em Paris (encontrando-se ainda hoje no Departamento de Calcografia do Museu do Louvre).

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Viagem de Sião a Brest. Globo terrestre

Embora os primeiros exemplares destes globos da autoria de Coronelli surjam em 1688, sabemos que iniciou a abertura das chapas em 1685: “Iniciei a abertura dos globos Parisienses, reduzidos a três pés e meio, para a sua publicação em gravura … destinam-se a ser oferecidos a todos os Soberanos de modo a inspirá-los a tornarem-se patronos dos Atlas que estou planeando”24. Ao longo dos anos seguintes, estes fusos foram sendo alvo de várias tiragens e edições, sendo as diferenças mínimas no exemplar terrestre, podendo-se afirmar que se repetem várias tiragens da primeira edição. O mesmo não se passa com o exemplar celeste que, embora seguindo um mesmo padrão inicial, apresenta diferenças consideráveis no tratamento da imagem e de alguns textos. Em Março de 1685, Coronelli assegura o apoio do Senado da sua cidade natal,Veneza, para a publicação de uma grande série de atlas, o “Atlante Veneto”. Nesta época, consegue atrair aí 21

Da versão de Paris de 1688, Coronelli apenas recebe as provas em papel que, de acordo com o contrato firmado, Nolin lhe envia para correcção.É com estas provas que o italiano constrói o globo que dedica em cartela própria e oferece ao Doge a 1 de Fevereiro de 1689. Neste, hoje no acervo da Biblioteca Marciana de Veneza, as inscrições, os nomes das constelações e estrelas, a magnitude em numeração árabe, os símbolos planetários e zodiacais, as letras gregas e latinas todos foram manuscritos no Laboratório dei Frari29. Alguns exemplares destes globos apresentam a grande cartela de dedicatória ao doge Morosini sem inscrições gravadas. Coronelli publica os seus globos com grande visão comercial, alterando a dedicatória de acordo com o comprador. De notar que as alterações que podem ocorrer nas ovais de menor dimensão eram pouco dispendiosas, recorrendo-se a pequenas gravuras coladas sobre as cartelas respectivas, enquanto a alteração da grande dedicatória implicaria a gravação de uma nova chapa correspondente ao fuso onde se encontra localizada30.

CORDEIRO, Luciano, - op.cit., p. 260. PELLETIER, Monique, ROGER, Alain, - op. cit. p. 69. BONELLI, Maria Luisa, - Catalogo dei globi antichi conservati in Italia. I globi de Vincenzo Coronelli,.p. 34. 24 “Ho dato principio ad intagliare gli globi, che feci in Parigi ridotti in grandezza di diametro di tre piedi, e mezzo per publicare alle stampe … per farne d’essi presente a tutti li Principi per maggiormente animarli alla protettione degl’Atlanti, che vado disponendo”. Carta de Coronelli a Magliabechi 18/08/1685, Florença. Apud, MILANESI, - p. 143-144. 25 WALLIS, Helen, - «Coronelli"s Libro dei Globi», p. 124. 26 WALLIS, Helen, - op.cit., p. 124. 27 PELLETIER, Monique, ROGER, Alain, - op. cit., p. 72. 28 WALLIS, Helen, - op. cit., p. 126. 29 MILANESI, Marica, - op. cit., p. 147. 30 Em época mais tardia acaba por se decidir pela dedicatória permanente ao doge Morosini, que morre em 1694, mantendo-se o mesmo texto nas edições posteriores. SCIANNA, Nicolangelo, - «The Coronelli’s three and a half globes», p. 173-175. 22 23

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As dedicatórias iniciais para o Cardeal d’Estrées eram gravadas em chapas de menor dimensão e impressas nos espaços em branco das cartelas correspondentes, ou omitidas se necessário, para inclusão de outra dedicatória.

número de catálogo, correspondente ao que Coronelli viria a publicar no Epitome Cosmografico. Um complicado sistema de coloração, baseado na obra de Royer,tinha como objectivo permitir a distin-ção das estrelas observadas por diversos astrónomos.

É também em 1689 que os subscritores da Academia de Veneza recebem os primeiros exemplares do globo terrestre prometidos para 1687. A partir dessa data, exemplares deste globo são regularmente despachados para os subscritores,na forma de fusos ou montados em esfera. O seu transporte era difícil e dispendioso e as versões montadas, terão sido vendidas essencialmente em Veneza e nas cidades com comércio marítimo31.

Os subscritores franceses recebem em 1693 os exemplares do globo celeste que Nolin publica, já com os textos que estavam em falta na versão enviada a Coronelli, numa edição custeada pela Societas Gallica. Não sabemos como nem quais destes subscritores recebem o globo terrestre, mas sabemos, no entanto, que nenhum exemplar deste chegou a França vindo de Veneza, antes da publicação por Nolin do seu par celeste.

Nesses anos, como o globo celeste apenas é comercializado através de Nolin, o veneziano foi obrigado a executar uma nova gravura reproduzindo os seus desenhos. Em 1693 foi publicada a primeira versão veneziana do globo celeste de 31/2 pés, com desenho gravado por Alessandro della Via32, um dos gravadores mais conceituados da oficina de Coronelli. Fazendo desaparecer grande parte do sombreado e dando maior relevo aos contornos das constelações, enquanto trabalho de gravação resultava menos dispendioso, exigindo menor perícia dos abridores da chapa, mas obrigava a um processo de pintura mais elaborado, de modo a tornar o desenho mais legível e agradável à vista. Sabemos que alguns subscritores se recusaram a pagar o excedente do valor acordado inicialmente, mas também manifestaram satisfação pelo resultado atingido. Em simultâneo com esta versão publicava nova tiragem do globo terrestre de 1688 e a versão convexa do globo celeste33.

Em 1699 Coronelli publica nova edição do globo celeste, agora em versão convexa. Segundo a inscrição da dedicatória, este teria sido iniciado para Pietro Ottoboni, Papa Alexandre VIII, mas concluído após a sua morte. Ao contrário das versões anteriores,em vinte e seis chapas,este foi gravado em cinquenta chapas de menores dimensões, mais fáceis de abrir, de publicar em livro e proporcionando uma maior facilidade de montagem dos fusos na esfera de suporte36.

A grande inovação dos globos de Coronelli é a versão côncava da esfera celeste, com a designação “direito”, de que a peça da Sociedade de Geografia é um dos raros exemplares. Até então, convencionava-se representar o céu como apareceria a um observador exterior, visão “divina”, designado hoje por “avesso”. Carlos Malavista numa comunicação apresentada em Dezembro de 1692 na Accademie Fisico-Matematico, traduz essa profunda mudança fundamental:“Estando na terra, o céu aparece sobre nós, e observamo-lo côncavo e não convexo”34. Nos globos anteriores, Coronelli seguiu essencialmente Augustin Royer, apresentando a maioria das constelações com figuras humanas de costas. O globo veneziano de 1693 pretende dar ao espectador a ilusão de olhar o céu, posicionado na Terra, o que obrigou a um ajuste das figuras, tendo sido necessário rodá-las de Este para Oeste de modo a alterar as suas posições. Podemos supor que Coronelli estaria essencialmente interessado em criar algo diferente do representado anteriormente, como forma de atrair mais público. Estranhamente, este globo não foi publicitado como sendo o primeiro globo côncavo publicado, o que lhe valeu a acusação injusta de engano na gravação das constelações35.

O globo terrestre, ao contrário do celeste, não apresenta diferenças significativas ou actualizações geográficas,nas suas várias edições. As encontradas, indiciadoras de diferentes gravuras, podem ser explicadas pela deterioração das chapas, provocada pela repetição das tiragens, ou por erros de interpretação na passagem do desenho para as novas matrizes. O único elemento variável deste globo é o título em que é apresentado Coronelli37. Encontramos exemplares destes globos em várias instituições europeias, montados sobre pés de estilos diferentes, correspondentes ao gosto dos clientes ou ao talento dos marceneiros. O sucesso destes globos deve-se a três factores principais: o declínio da produção holandesa que tinha dominado na Europa durante a maior parte do séc. XVII; o facto de reproduzirem, em redução, os célebres globos de quatro metros de diâmetro, pintados sobre tela, oferecidos ao Rei-Sol pelo Cardeal d’Estrées; e a habilidade comercial do veneziano que, após realizar uma obra cartográfica considerável, investiu numa boa divulgação dos seus globos, mapas e atlas, constituindo desde 1684 a primeira sociedade de geografia europeia, a Accademia degli Argonauti38. (Imagem 5)

Em 1693, quando Coronelli descreve este globo refere-o como sendo superior ao apresentado ao Doge em 1688 e mesmo ao oferecido a Luís XIV. Isto porque apresentava para além da grelha dupla, eclíptica e equatorial, como no do rei francês, caracteres árabes nashki, flechas de indicação de alteração de longitude em todas as estrelas (e não apenas em algumas) e, pela primeira vez, as estrelas apresentavam não só a classificação de Johann Bayer por magnitude das estrelas, mas também um 5 31

Frontespício de Globi Celeste e Terraqueo del P. Coronelli. Biblioteca do Palácio de Mafra. Cortesia do Palácio Nacional de Mafra // IPPAR.

MILANESI, - op. cit., p. 148. WALLIS, Helen, - op. cit., p. 126. MILANESI, Marica, - op. cit., p. 149-150. 34 WALLIS, Helen, - op. cit., p. 126. 35 MILANESI, Marica, - op. cit., p. 150-151. 36 MILANESI, Marica, - op. cit., p. 149-156. 37 MILANESI, Marica, - op. cit., p. 146. Em 1685 é nomeado Cosmografo Publico; em 1689 Lettore Publico; em 1701 Generale dell’Ordine dei Minori, em http://www.bo.astro.it/dip/Museum/MuseumHome.html, 30-08-04. Wallis indica alterações geográficas numa edição de 1707.WALLIS, Helen, - op. cit., p. 128. 38 PELLETIER, Monique, ROGER, Alain, - op. cit., p. 66. Cf. Catalogues de la collection d’estampes de Jean V, Roi de Portugal, Marie-Thérèse Mandroux-França e Maxime Préaud, p. 64-69. 32 33


OS GLOBOS DA SOCIEDADE DE GEOGRAFIA No quadro de aquisições efectuadas por D. João V encontram-se evidências de objectos relacionados com Astronomia e Cartografia. Uma leitura simplista poderia ver aí a ideia de expansão do Império, no entanto, tratava-se também de uma manifestação que se enquadrava plenamente na época, a procura de uma explicação racional para o Universo. Este estado de espírito que corria a Europa de então teve diversas manifestações das quais, a que interessa realçar, prende-se com a criação de um número cada vez maior de instrumentos científicos e matemáticos. À luz deste quadro mental não surpreende que o Rei, que fazia ele próprio observações astronómicas, ordenasse aos seus embaixadores que adquirissem nas cortes onde residiam tudo o que aí existisse de mecanismos científicos, para ser remetido à Corte de Lisboa39. No entanto, D. João V não se limitou às aquisições de instrumentos existentes, encomendando outros, como os que Jacques Cassini (1677-1756) executou para o monarca. Assim, vêm para Lisboa telescópios, sextantes, quadrantes, barómetros, pêndulos, enfim, tudo o que então se podia criar para melhor conhecer a Terra e o Universo. Assiste-se, portanto, a uma tentativa de renovação da cartografia portuguesa, quadro onde se inserem as constantes aquisições de Atlas e Cartas geográficas, nomeadamente, pelo Conde de Tarouca, D. João Gomes da Silva (1671-1738), embaixador português em Haia (Imagem 6).

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Conde de Tarouca, gravura de Bernard Picart, 1725. Biblioteca Nacional de Lisboa, Arquivo Tarouca, (Reservados)

A presença dos dois globos da Sociedade de Geografia inseriuse nesse contexto de aquisições, iniciadas a partir de 1724, conforme se pode constatar através de uma carta de 12 de Julho desse ano, publicada no importante estudo de Marie Thérese Mandroux França40. Esta carta, escrita pelo Secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte-Real, em nome de D. João V, é uma circular enviada para todos os diplomatas portugueses que se encontravam nas principais cortes europeias. Nela é solicitado que reúnam o maior número de gravuras publicadas

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nos seus países de residência, nos últimos trinta anos - sendo deixado a cargo de cada um a organização das respectivas colecções - e os instrumentos científicos que considerem mais significativos para integrar as colecções régias. Esta iniciativa que surge como um negócio de Estado, segue a mesma linha política de afirmação de Portugal levada a cabo no estrangeiro por este monarca. Entre os diplomatas colocados em postos europeus sobressaiu o Conde de Tarouca, que enviou para Portugal três grandes Bibliotecas. Ainda que tivesse recebido estas ordens em 1724, já anteriormente, em 1721, o embaixador havia iniciado o envio de material cartográfico para integrar as colecções régias. A primeira Biblioteca que adquiriu foi a de Theodorus Boendermaker (1682-1720) membro de uma importante família de mercadores alemães. Este havia reunido muito material cartográfico numa série de 103 volumes, conhecido como o Atlas Boendermaker. Estas cartas geográficas eram consideradas as mais modernas então conhecidas, datando as primeiras de 1680. A obra foi adquirida em 13 de Janeiro de 1722, sendo a primeira colecção destinada especificamente à grande Biblioteca Joanina. No final do ano anterior, o Embaixador havia adquirido os seis volumes do Grande Atlas de Guillaume Delisle, mas esta aquisição não parece ter tido o peso institucional que a colecção Boendermaker viria a ter. Infelizmente, um incêndio na residência do Conde de Tarouca, em Haia, viria a destruir parte desta grande colecção só tendo sido recuperados 60 dos 103 volumes iniciais. Uma das incumbências então dada ao diplomata foi a de refazer os livros em falta, adquirindo, para isso, novos exemplares dos mapas perdidos. Em Setembro de 1723, adquiriu em Haia a Biblioteca Dalmaniana e dois anos depois, em 1725, a Biblioteca do Cardeal Dubois, Primeiro Ministro do regente Filipe de Orleans, que morrera em 1723. Esta gigantesca colecção, com 6.000 volumes,vendida por Jean Swart e Pierre de Hondt,foi expedida para Portugal em 31 “cofres”. A atenção do Conde não se centrava só em livros, conforme se pode ler numa missiva redigida em Abril de 1723, onde refere que se encontravam à venda em Haia dois grandes globos, que ele considerava dignos da colecção real: “O intento que S. Mag.de que Deos G.de tem de formar hua grande Bibliotheca, e o muito que eu Estimo haver concorrido para essa epitoma Execução das suas Reais ordens me faz desejar que se ponhão nellas huns excellentes Globos, que sehão de vender aqui brevemente em leilão: São os milhores, que se virão nestas Provicias feitos pelo Padre Coronelli, e mayores que huns que conheço do Conde da Ericeira porq. tem cinco palmos de Diâmetro, E estão mui bem montados: Entendese que o preço hadeser entre tresentos e quatrocentos mil reis: Queira Vm. Responder-me sem demora se será do agrado de S. Mag.de que os compre, e remeta. Em consequência do que se remetem ordenado ínvio o Catálogo incluso, Guarde Deos a Vm. Muitos anos… Haya, 8 de Abril de 1723”41 Esta missiva, que assinala a pré-existência de um projecto de aquisições para a Biblioteca Real, que só seria oficializado no ano seguinte, enfatiza a qualidade atribuída à obra de Coronelli, não só pelo custo dos globos como pelo facto de referir que

Cf. Catalogues de la collection d’estampes de Jean V, Roi de Portugal, Marie-Thérèse Mandroux-França e Maxime Préaud, p. 64-69. Agradecemos a Marie-Thérèse Mandroux-França a informação que nos permitiu descobrir a origem dos dois globos da Sociedade de Geografia e da correspondência do Conde de Tarouca na publicação acima citada. Biblioteca Nacional de Lisboa, Arquivo Tarouca - Negociaçoens do Conde de Tarouca em Holanda e em Utrecht,Tomo XVI, Cartas do Conde para o Secretário de Estado, Anno de 1723, p. 18. [BNL, Res., 17920]

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“...São os milhores, que se virão nestas Provicias...”. O seu custo, enorme para a época, não deveria ser muito diferente dos valores então negociados para estas peças42. No volume II da sua obra Viaggi d’Italia in Inghilterra, publicada em 1697,Vincenzo Coronelli faz referência aos preços dos seus globos, quando novos: 620 liras venezianas para os terrestres e celestes, sem bases, e 1.240 com estas43. O Libro dei Globi, onde se publicavam os fusos que permitiam a execução destas peças era o dobro de qualquer outro volume da sua obra Epitome Cosmografico, ou seja, 310 liras mais caro. Quase um mês depois, o embaixador redige nova missiva, referindo que o leilão ocorrera entretanto e que adquirira os globos, pois mesmo que o monarca os não quisesse estes ficariam na sua colecção: “Em 8 de Abril pedi a Vm. Que me dissese se seria do agrado de S. Mag.de que Deos g.de que eu comprasse huns famosos Globos, que se vendião aqui em leilão por ter falecido seu dono: Elles se arrematarão por tresentos e setenta mil reis, e com as despezas que fizerem ate estarem nesse porto virão a custar quatrocentos e quarenta mil reis. Achey-os tão raros pela grandeza, e erão tão geralmete gavados, que ainda que não tinha, nem cabia no tempo ter resposta de Vm. Me resolvi a compralos por minha conta no cazo que S. Mag.de os não queira para a Real Bibliotheca, da qual na verdade me parece que são bem dignos. Já ficão embarcados,e remeto incluso o conhecimento do Capitão que os leva.Guarde Deos a Vm.Muitos annos,Haya 6 de Mayo de 1723”44 Não foi possível identificar em que navio terão viajado estas peças pois partiram de Haia, neste período, duas embarcações: o Santa Theresia, comandado por Pieter Ruurds Roodenburg e o Santa Maria Santa Fresca, cujo capitão era Joseph Weldon, surgindo assinalado, ainda que sem referência à função, o nome de Arnoldo Silva45. A presença deste nome poderia levar-nos a crer ser ele o intermediário no transporte de duas peças tão valiosas.

torreão do Paço da Ribeira, provavelmente num gabinete onde se guardariam as peças mais valiosas (Imagem 7). Aí terão permanecido até ao Terramoto de 1755. No entanto, os globos não deverão ter escapado incólumes, pois os vestígios de fracturas que apresentam na sua superfície poderão ser-lhe atribuídos.

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Ruínas do Palácio Real, João Ferreira Vienha, cópia de 1922, Museu da Cidade, Lisboa, inv. MC. DES. 1365. Cortesia Museu da Cidade, Lisboa.

Daí é provável que tenham passado para o Arsenal do Exército, espaço relativamente próximo e concordante com a vertente científica destes objectos, ainda que fossem então obsoletos. Será neste local que Luciano Cordeiro os irá encontrar em 1878, já sem memória da sua glória passada, terminando o seu percurso na Sociedade de Geografia onde actualmente se encontram.

No período que decorreu entre 8 de Abril e 6 de Maio de 1723, foram publicados na Holanda doze livros relacionados com leilões que aí decorreram46. Um dos leilões, realizado pela firma de Rudolf e Gerard Wetstein a partir de 14 de Abril, talvez o mais importante então ocorrido, colocou em hasta os bens de Johannes Theodorus Schalbruch, Professor de História e Reitor da Universidade de Amsterdão. Ainda que não sejam mencionados no respectivo catálogo quaisquer globos, isso não invalida que eles não existissem e, assim, possam ter sido leiloados47. É possível, portanto, que os dois globos Coronelli pertencessem a esta importante colecção, pois este professor possuía um número importante de atlas, surgindo mencionado como lote 581 o Orbis antiquus, nitidissime pictus e com o 582 um Cellarri Atlas coelestis, nitidissime pictus. Após a sua chegada ao nosso país, os globos terão ingressado na grande Biblioteca Real, localizada no primeiro piso do

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Para comparar este custo, cerca de 20 anos depois, em 1742, numa referência ao preço elevado do azeite em tempos de carestia surge no folheto do Anno Noticioso e Histórico que “... Está o azeyte em tanta esterelidade, que nam se compra por menos de 3 mil reis o cantaro...”. Notícia de 15 de Setembro de 1742, Folheto nº 37 in DELGADO, Maria Rosalina, Anno Noticioso e Historico – 1742, Lisóptima Edições / Biblioteca Nacional de Lisboa – 1996, p. 13. 43 WALLIS, Helen - «Coronelli’s Libro dei Globi», Der Globusfreund. Nº 18-20, Maio de 1970, p. 126. 44 Biblioteca Nacional de Lisboa, Arquivo Tarouca - Negociaçoens do Conde de Tarouca em Holanda e em Utrecht,Tomo XVI, Cartas do Conde para o Secretário de Estado, Anno de 1723, p. 23v. [BNL, Res., 17920] 45 Agradecemos a Mário Pereira estas informações, recolhidas no Gemeentearchief de Amsterdão. 46 Contactada a Koninklije Bibliotheek de Haia, foi possível saber que possuem unicamente um destes livros, o do leilão Schalbruch, que ocorreu em 14 de Abril de 1793, o qual não menciona nenhum globo. De acordo com o seu Bibliotecário, J.A. Gruys, os restantes são conhecidos através de fontes arquivísticas, anúncios de jornal não sendo conhecidos aspectos particulares dos objectos leiloados. 47 Agradecemos a Giles Mandelbrote, Conservador da British & Early Printed Collections da British Library, todas as informações relativas a este leilão. Na sua opinião é possível que os globos possam ter sido leiloados, sem referência no catálogo respectivo.


A INFORMAÇÃO NO GLOBO TERRESTRE O globo terrestre de Vincenzo Coronelli, ainda que provoque menor impacto que o seu par celeste, é um interessante repositório de elementos que caracterizam de forma exemplar a mentalidade do período barroco. De enorme riqueza iconográfica, pelas imagens de outras culturas, povos e animais, nele está patente o gosto pelo exótico - leia-se primitivo - pois para uma visão europocentrista todos os mundos então descobertos eram sempre culturalmente atrasados. A Europa é precisamente o único continente neste globo onde não surgem quaisquer representações, mas apenas o contorno das terras colorido, provavelmente numa intenção geo-política de afirmação das diferentes nações estando ausente o que se considerava serem os hábitos estranhos de outros povos. Nas representações relativas aos restantes continentes, desfilam perante os nossos olhos imagens de antropofagismo no Brasil (Imagem 8), de lutas contra gigantes na Patagónia (Imagem 9), de animais exóticos em África (Imagem 10), de esquadras de embarcações no Japão (Imagem 11), da caça à baleia junto ao Ártico (Imagem 12), de cidades fortificadas na América central (Imagem 13) e de naus, assinaladas como portughesi, no Oceano Índico (Imagem 14).

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Mar do Japão

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Pesca da baleia no Ártico

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8

Antropofagismo no Brasil

9

Patagónia

10

África

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Fortificação na América central

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Nau portuguesa


Estamos perante representações consideradas “reais”, pois daqui foram banidos os monstros fantásticos que povoavam a cartografia de alguns anos antes.Aqui não se encontram sereias, tritões, dragões e horrendos animais marinhos, pois este é um objecto que pretendia expor o conhecimento, não se deixando dominar pela fantasia, no tocante ao desconhecido. Isto não significa que o mundo aqui representado esteja correcto, para tal basta observar a Califórnia ainda encarada como uma ilha,embora exista uma tentativa de rigor,expressão do espírito esclarecido de renovação racionalista e experimental que então se vivia.

As alegorias O elemento fantástico presente surge unicamente em seis alegorias colocadas em diversos pontos deste globo. Destas, duas são panegíricas, ou seja evidenciam o carácter dos patronos de Coronelli, as restantes remetem para aspectos histórico-geográficos importantes na definição do mundo. Do primeiro grupo consta a cartela de maiores dimensões aqui representada, referente ao Doge Morosini48 (Imagem 15). Ao centro, a personificação régia da República Veneziana49, sentada, com manto de arminho,tendo em segundo plano,junto ao trono, o seu símbolo, o leão de São Marcos. Ela olha para a sua esquerda na direcção de três figuras: a Geografia, de pé, com a mão erguida; a Matemática, sentada em segundo plano, com um compasso medindo a figura deitada da Terra, coroada com torres. Estas três personagens são desveladas por um conjunto de serafins e num dos cantos superiores a Fama toca uma trombeta com a divisa “Plus Ultra”,da Accademia Cosmografica Degli Argonauti.À direita da República Veneziana, a Astronomia, com uma veste decorada com estrelas, apresenta os Quatro Elementos: o Fogo, personificado por uma jovem com uma estrela na fronte e um fogaréu na mão esquerda; a Terra, uma mulher africana com uma auréola solar, com a mão esquerda segura duas setas e com a direita ergue a saia com plantas diversas; o Ar, um ancião ajoelhado, também coroado com uma estrela, tendo junto dele um putto; a Água, um guerreiro de armadura, também ajoelhado, que se volta na

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Curiosa nesta relação de personificações é a troca de género entre as representações do Fogo e da Água. Este último elemento é vulgarmente figurado por uma mulher, sendo o outro personificado por um homem guerreiro. A modificação poderá dever-se ao facto de Veneza ser uma potência marítima, que se via a si mesma como forte e belicosa, escolhendo, assim, uma alegoria mais vigorosa que reporta para este elemento do qual era tão dependente. De qualquer modo, isto não explica o facto dos signos representados na armadura da Água não surgirem enquanto estilizações, mas como imagens completas. Na base do panejamento, onde se encontra a inscrição referente ao Doge Morosini, aos pés de Veneza e junto das alegorias da Matemática, Geografia e Terra, três putti coroados de louro descobrem uma medalha com a imagem de Vincenzo Coronelli50. Curiosamente, neste globo, antes da intervenção agora levada a cabo, esta representação encontrava-se coberta de massa. Aparentemente isto ocorrera de origem, ou seja, o “apagar” da figura de Coronelli terá acontecido aquando da construção da esfera, pois as massas aí colocadas encontravam-se sob o verniz, não tendo sido possível, no entanto, determinar se este era original ou fora colocado numa intervenção posterior. O motivo porque isto aconteceu não é conhecido. Teria o encomendante tido alguma desavença com o cartógrafo, na sequência de pagamentos feitos e que posteriormente se revelaram insuficientes, tendo sido necessário pagar mais pelos fusos gravados dos globos? Seria uma demonstração de desprezo da parte de um cientista por um homem que os contemporâneos consideraram pouco inovador, no que respeita ao estudo da cartografia? Não foi possível encontrar referências a uma situação semelhante a esta, relativamente a Coronelli a única menção a uma cartela também dissimulada com massa surge no globo do Seminário Patriarcal de Veneza, desaparecendo neste globo o retrato do Cardeal D’Estrées51, ausente da peça da Sociedade de Geografia52. Também, neste caso, não foi possível determinar se isto ocorrera na origem ou em restauro anterior.

Alla Sereníssima Republica…

direcção do observador fazendo menção de retirar a espada da bainha, num gesto em defesa da rainha, Veneza. Estas quatro personagens apresentam os símbolos astrológicos a que reporta cada elemento: o Fogo tem nos galões que debruam o vestido os signos ^ (Carneiro), b(Leão) e f(Sagitário); a Terra possui no cinto as marcas do _ (Touro), c(Virgem) e g(Capricórnio); no Ar só é possível

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distinguir, também no cinto da personagem, a d(Balança), pois a cabeça do putto que o acompanha oculta os restantes; a Água que apresenta não símbolos mas representações dos próprios signos: no elmo o Escorpião; na espaldeira, sobre o ombro, o Caranguejo e no braçal os Peixes.

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Il Génio della Virtò raccomandô all’Eternitá…

ALLA SERENISSIMA REPUBLICA / E / SERENISSIMO PRENCIPE / FRANCESCO MOROSINI, / DOGE DI VENETIA, / Capitan Gen: / Da Mare, / & c. A importância que Coronelli atribuía à sua Pátria de origem,Veneza, levou a que no globo terrestre marcasse os seus antípodas. 50 Sobre o panejamento que ocultava o retrato, encontra-se a legenda “F Vincenzo Coronelli M. C / Signato Cosmógrafo e Lettore / Publico / Atlante Veneto”, reforçada, na moldura deste com “P.V. Coronelli MC Cosmogr. Publ.” 51 SCIANNA, Nicolangelo,The Coronelli’s three and a half foot globes, Der Globusfreund, p. 173 52 Algumas das cartelas vazias, nomeadamente as que respeitavam a patronos seriam para preencher com figuras que financiassem a construção dos globos. Este engenhoso artifício de Coronelli, permitia-lhe adaptar o produto ao mecenas do momento, pela justaposição de uma chapa ao espaço da cartela disponível. 49


A segunda alegoria panegírica aqui presente refere-se, precisamente, ao Cardeal D’Estrées, o patrono de Coronelli que o havia enviado a Paris executar os globos para Luís XIV (Imagem 16).Sobre uma pirâmide a personificação da Eternidade, de acordo com as representações de Cesare Ripa (1560? 1625?)53. Trata-se de um busto feminino, desnudo, de longos cabelos, que nas duas mãos erguidas segura dois globos e cuja cintura se prolonga num círculo, decorado com estrelas, que a

A segunda representação histórica refere-se ao Tratado de Tordesilhas (Imagem 18). Sobre um plinto quadrangular, sustido por génios aquáticos e alados, sentado num trono com um grande baldaquino com panejamentos erguidos por dois serafins, o Papa Alexandre VI inclina-se para a sua esquerda, na direcção de D. João II, Rei de Portugal. Do outro lado, também ajoelhado e também abraçado pelo Papa, encontra-se o Rei de Espanha, Fernando, o Católico. Nos degraus, as espadas e os escudos dos monarcas, junto da planta de uma fortificação. Em segundo plano, serafins, o da direita apaga a chama da Discórdia e à esquerda dois beijam-se fraternalmente, em alusão à Paz.

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Del Fiume Nilo...

emoldura. Dois serafins coroados de louro, em primeiro plano, sustendo uma cartela. Na base da pirâmide, que se projecta da água, quatro pequenos tritões alados: dois tocam búzios e os outros, em primeiro plano, seguram um medalhão vazio54.

Dello Stretto D’Anian...

O terceiro grupo remete para a passagem do Estreito de Magalhães, narrado numa grandiosa cartela arquitectónica, com uma configuração em ferronerie. Este elemento insere-se numa paisagem de sabor africano, com uma serpente e dois leões. Coroando o conjunto, Fernão de Magalhães dialoga com Mercúrio, deus do Conhecimento e do Engenho, que lhe aponta um globo escondido sobre um panejamento.

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Della línea d’Alessandro VI, ó della Demarcazione...

Relativamente às quatro alegorias históricas, uma refere-se à mítica nascente do Nilo (Imagem 17). Junto de uma arquitectura arruinada, a personificação do Rio, um velho reclinado sobre uma ânfora e segurando um remo, olha para a sua direita na direcção de um homem empoleirado sobre um globo, junto de um fogaréu. Este geógrafo (Ptolomeu ?) escreve a história das ideias acerca da nascente do Nilo, sobre um panejamento que cobre toda a arquitectura da representação. Sobrevoando a cena, a Fama, tocando trombeta, transporta uma filactera onde se lê Del Fiume Nilo ou Do Rio Nilo. Em segundo plano, um anjo afasta um véu da gruta onde nasce este Rio.

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A última alegoria e a mais complexa remete para o Estreito de Anian, que separaria a Ásia da América do Norte (Imagem 19). Junto de um bloco quadrangular, tendo numa das faces essa narrativa desvelada, à direita, por um anjo, surgem diversas personagens. A Verdade, desnuda, com uma capa sobre os ombros e coroada com um sol, aponta para a narrativa e observa um quadrante na mão direita da Ciência Naútica. Esta surge reclinada, junto à popa de um navio e de uma bússola. Em segundo plano, Saturno, o Tempo, alado, com a sua foice e ampulheta, argumenta com Júpiter, o senhor dos deuses, sentado, com o respectivo atributo, a águia. Em segundo plano, sobre a base quadrangular, o Erro, com orelhas de burro, esconde-se debaixo do panejamento, tendo junto de si um cão, a Ganância referida no texto como o Império Espanhol de Filipe III por não divulgar aos outros povos a existência deste Estreito. Ao contrário do que acontece com a contraparte celeste, as representações alegóricas presentes neste globo deverão ter sido criadas propositadamente.

Autor da obra que mais influenciou as Artes figurativas até inícios ao século XIX. O seu vasto contributo pode-se resumir no facto de ter utilizado as figuras da mitologia clássica, retirando-as do seu contexto narrativo e transformando-as em personificações de abstrações filosóficas. Cf. RIPA, Cesare, Iconologia, p. 152. Neste medalhão estaria colocado o retrato do Cardeal D’Estrées, patrono de Coronelli.




A INFORMAÇÃO NO GLOBO CELESTE Ao contrário do par terrestre, as cartelas neste globo não apresentam qualquer elemento alegórico. Essencialmente decorativas, com desenhos de carácter vegetalista, quer sejam feixes de louro ou folhagens de acanto (Imagem 20), estes elementos discretos diluem-se na exuberância cromática das representações que preenchem esta esfera.

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fuso direito, no início da impressão, surgindo o rosto em posição frontal, naquela que é talvez a versão mais comum nestes globos. Isto não ocorre só com a figura mas, igualmente, com o início do discurso aí localizado. Sobre esta primeira prova, realizada num canto do fuso, ter-se-á impresso nova versão, desta vez com a face correcta, a três quartos. Outra característica curiosa no interior desta cartela é a existência de uma anotação manuscrita, a tinta vermelha, onde é mencionado que no globo não foram seguidas as cores convencionadas para as estrelas55. A tinta aí empregue parece semelhante à que identifica a passagem dos cometas na superfície da esfera, o que torna provável que esta indicação tenha sido feita pelo mesmo pintor que executou este trabalho.

Alla Sereníssima Republica e Sereníssimo Prencipe Francesco Morosini...

Das quatro cartelas presentes só uma possui decoração distinta, envolta num concheado exuberante e coroada por uma spagnolette (Imagem 21). No seu interior inscreve-se a legenda intitulada Amico Lettore, referente ao modo como neste globo são posicionadas as constelações, tal como viriam a surgir daí a sete anos, em 1700. Outra particularidade aí mencionada é o facto delas surgirem tal como são observadas da Terra, ou seja, no que se convencionou designar como uma versão côncava. Isto constituía uma novidade na execução destes instrumentos, até aí representados na versão convexa, reconhecível pelo facto das constelações figurativaurgirem sempre de costas para o observador.

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Pigmento de prata nas estrelas da Taça

O cuidado na pintura das constelações pode ser igualmente observado em pormenores subtis, como as estrelas terem os centros assinalados com pigmento de prata (Imagem 22), ou noutros globos também com cabeças de pregos. Ainda que seja sempre referenciado que, relativamente às edições de Paris e Veneza, as representações do Globo celeste são semelhantes nas figuras, divergindo no modo de gravação, ocorrem algumas mudanças. Assim, por exemplo, a edição de Paris de 1703 apresenta o remo do Navio mais rectangular do que se vê no globo de Lisboa, onde se prolonga num bico. Também a figura da Virgem, surge na edição de Paris com o peito descoberto e na da Sociedade de Geografia vestida. As constelações Na Esfera Celeste da Sociedade de Geografia encontram-se 73 constelações, na generalidade as que ainda hoje são

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Cartela Amico Lettore

Um pormenor curioso, nesta cartela, é o facto do rosto feminino que aí se encontra surgir sobreposto, no fuso da direita, a partir de duas versões diferentes. Assim, parece ter havido a intenção de colocar a figura a três quartos, mas, aparentemente, terá ocorrido uma troca (?) com a chapa do 55

23

Flor de Lis

“Non se Osservata nel dist(ribuizi)one de Colore nelle Stelle (....ilegível....)” assinando com um monograma. 56 O Ceptro (Sceptrum), também dito Mão da Justiça (Manus Justiciæ) foi introduzido por Augustin Royer no seu Mapa Celeste de 1679, para comemorar Luís XIV. Cf. RIDPATH, Star Tales, p. 144 57 Esta constelação que enaltecia o símbolo da realeza francesa, a Flor de Lis, surgiu no Mapa Celestial de Ignace Gaston Pardies, publicado em 1674. No atlas de Johannes Hevelius, em 1687, ela vem designada como Mosca Boreal, substituindo a anterior referência a esta constelação como Vespa, introduzida no Mapa Celeste de Jacob Bartsch em 1624. Esta última, por sua vez, substituíra a constelação de Apes, a Abelha apresentada por Petrus Plancius no Globo celeste que executou com Pieter van den Keere, c. 1612. Cf. RIDPATH, Star Tales, p. 145/146. 58 Este rio e o Tigre surgem pela primeira vez no Globo Celeste que Petrus Plancius e Pieter van den Keere executaram c.1612. Cf. RIDPATH, Star Tales, p. 144 e 150. 59 Esta constelação foi referida por Ptolomeu (85-160 d.C.) no seu Almagesto, c. 140 d. C., e representada pela primeira vez no Globo Celeste de Gerard Mercator, em 1551. Ela ocupava um conjunto de estrelas a sul da


Plancius (1552-1622)64 entre 1592, a primeira, e 1613, as restantes65. Curiosamente, Coronelli não considerou, talvez pela sua modernidade face à execução do projecto do Globo, as constelações propostas por Johannes Hevelius (1611-1687), ainda hoje representadas66 e publicadas, postumamente, em 1690, no Firmamentum Sobiescianum67. Junto de cada figura surgem legendas que permitem ao observador conhecer melhor as representações aí desenhadas68. Na generalidade, as constelações estão indicadas em parágrafos sobrepostos, tendo em primeiro lugar a designação italiana, seguindo-se a francesa e, em terceiro, a latina69 (Imagem 27 ). Sob estas pode surgir um texto, com os nomes 24

Antinoo

reconhecidas pela Astronomia. Destas, cinco já não são consideradas nos modernos mapas estelares, o Ceptro56, localizado junto da mão direita de Andrómeda, o Lírio ou Flor de Lis57 (Imagem 23), junto do pé esquerdo da mesma figura, o Rio Jordão58 rodeando a Ursa Maior e o Rio Tigre, entre Pégaso e Hércules.A constelação de Antinoo59, pela sua proximidade com a Águia, acabou por constituir um todo associando-se-lhe a figura masculina de Ganimedes60 (Imagem 24). 27

Lebre, legenda

38 39 25

Pomba

No mapa de Coronelli estão desenhadas as 48 constelações clássicas, ditas Ptolomaicas61; as 12 que se consideraram junto ao pólo sul62 introduzidas pelos navegadores holandeses Pieter Keyser e Frederick de Houtman, entre 1596 e 1603, incluídas pela primeira vez no Atlas Uranometria publicado neste último ano por Johann Bayer, e as representações da Pomba (Imagem 25), da Girafa e do Unicórnio63 (Imagem 26), propostas por Petrus

28

Mosca

29

Perseu

das constelações em grego e abaixo em caracteres árabes nashki70. Esta é a estrutura básica das legendas encontradas71, mas, por vezes, surgem alterações, como, por exemplo, nas constelações do Corvo72, do Dourado73 e da Hidra Macho74 onde foi acrescentada a sua designação alemã ou nas da Cabra, da constelação do Cocheiro, e do Grou onde estão ausentes os caracteres árabes. Por vezes, para além destes elementos nashki surgem no texto expressões em árabe, transliterações, formas escritas da vocalização das palavras que designam essa 26

Unicórnio

Águia, sendo considerada uma subdivisão desta.Tycho Brahe considerou-a uma constelação independente em 1602. O facto da figura surgir, por vezes, transportada pela Águia levou a que fosse confundido com Ganimedes. Cf. RIDPATH, Star Tales, p. 138 60 A associação de Ganimedes com a constelação vizinha da Águia, deve-se ao facto deste animal, consagrado a Júpiter, senhor dos Deuses, o ter raptado para ser o copeiro divino. Como agradecimento por este feito o animal foi colocado entre as estrelas. A inclusão de Ganimedes neste conjunto constituí uma duplicação da personagem pois diz-se, normalmente, que é ele a figura que representa a constelação de Aquário. 61 As constelações divulgadas por Ptolomeu, c. 150 d. C., são a base da Astronomia sendo designadas como clássicas. Em número de 48 incluem as doze Zodiacais: Carneiro,Touro, Gémeos, Caranguejo, Leão,Virgem, Balança, Escorpião, Sagitário, Capricórnio, Aquário e Peixes; e as restantes no céu do Norte: Águia, Andrómeda, Cocheiro, Boieiro, Cassiopeia, Cefeu, Cisne, Coroa Boreal, Delfim, Dragão, Flecha, Hércules, Lira, Ofiuco ou Serpentário, Pégaso, Perseu, Potro, Serpente,Triângulo, Ursa Maior e Ursa Menor; e no céu do Sul: Ara, Baleia, Cão Maior e Cão Menor, Centauro, Coroa Austral, Corvo, Eridano, Hidra, Lebre, Lobo, Navio, Orion, Peixe Austral e Taça. 62 A Ave do Paraíso, o Dourado, o Camaleão, a Fénix, o Grou, a Mosca, a Hidra Macho ou Serpente Marinha, o Índio, o Pavão, o Peixe Voador, o Triângulo Austral e o Tucano. 63 Nas legendas respectivas Coronelli assinala que haviam sido acrescentadas recentemente por “modernos astrónomos”.


representação, como é o caso do Aquário75, da Baleia76, do Carneiro77, do Corvo78, do Erídano79, de Orion80, de Peixes81, do Touro82 ou da Cabeça de Medusa, na constelação de Perseu83.

para a Serpente86 que o rodeia. Nos Peixes (Imagem 31), surge a menção ao conjunto formado pelos dois animais e referências particulares a cada um deles, como Austral87 e Boreal88. Deixando de lado estas especificidades podemos estruturar três modelos base de legendas: a legenda simples, sem qualquer outra referência que não sejam os nomes da constelação nos cinco idiomas89, a legenda informativa, com subdivisões temáticas e a legenda discursiva, com um texto sobre a imagem representada. No primeiro caso, o da legenda simples, mais raro, encontram-se a Fénix (Imagem 32), a Flecha, as Nuvens Grande e Pequena de Magalhães e o Pavão.

30

Cocheiro 32

31

Peixes

Casos únicos são as referências da Mosca (Imagem 28) e da Coroa Austral. Na primeira a sua designação altera-se no francês para Abelha84 e a imagem parece não corresponder a nenhum destes insectos: asas semelhantes ao morcego, corpo de aranha e cabeça com sobrevalorização da trompa algo tentacular. No que respeita à Coroa Austral, a designação modifica-se no latim para Caduceu, um bastão com duas serpentes, atributo de Hermes ou Mercúrio. Também único é o caso da constelação de Perseu (Imagem 29), sem qualquer legenda, surgindo uma na Cabeça de Medusa pela importância que assume a sua estrela Algol “o Demónio”. Dentro de outra categoria estão as constelações do Cocheiro, do Serpentário e dos Peixes, com diversas legendas cada uma relacionada com um dos elementos que as constituem. No caso do Cocheiro (Imagem 30) encontram-se três legendas: uma para a figura, uma para Cabra e outra para o Chicote85. O Serpentário, também conhecido como Ofíuco, tem também uma legenda 64

Fénix

Na generalidade, as legendas encontradas no Globo celeste de Coronelli pertencem à segunda categoria - a informativa variando estas das mais simples para as mais complexas. Integram-se neste grupo a Ave do Paraíso90, a Balança91, o Caranguejo92, o Corvo93, o Dourado94, o Escorpião95, o Grou96, o Índio97, a Lebre 98, o Lobo 99, a Mosca 100, o Peixe Voador 101, o Potro 102, o Quadrante103, o Sagitário104, o Triângulo Austral105, o Tucano106 ou a Ursa Menor107. Todas apresentam textos simples com pequenas explicações relacionadas com o tema da constelação. Por vezes, estas referências remetem para aspectos mitológicos das figuras representadas, como acontece com a Águia108, o Aquário109, o Cocheiro110, a Cabeça de Medusa111, da constelação de Perseu, o Erídano112, os Gémeos113, o Leão114, os Peixes115, Serpentário116, ou o Touro117. No terceiro conjunto de legendas, mais densas nas relações entre o objecto representado e as ideias que Coronelli pretende expor, encontram-se: a Ara118, a Cabeleira de Berenice119,

33

Cabeleira de Berenice

Cf. ALMEIDA e RÉ, Observar o céu profundo, p. 84. Curiosamente Coronelli não representou a constelação do Gallus, o Galo, introduzida por este astrónomo. Ainda que a mesma tenha sido representada em alguns Atlas celestes encontra-se hoje abandonada. Cf. RIDPATH, Star Tales, p. 143. 66 As constelações dos Cães de caça, Lagarto, Pequeno Leão, Lince, Escudo, Sextante e Raposa. Cf. ALMEIDA e RÉ, Observar o céu profundo, p. 84. 67 Ainda que tenhamos recorrido a diversa bibliogafia, por vezes contraditória no que se refere à responsabilidade de introdução de algumas das constelações, a fonte principal que apresentamos baseia-se em ALMEIDA e RÉ, Observar o céu profundo, p. 83-84. 68 A única constelação sem qualquer legenda referente à sua história ou mesmo com as diferentes designações porque é conhecida é Pégaso. 69 No globo da Sociedade de Geografia as legendas aparecem sem qualquer referência ao idioma a que respeitam ao contrário dos fusos provenientes do Departamento de Calcografia do Museu do Louvre. Nestes, junto 65


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Navio

considerada uma curiosidade, ainda que alguns astrólogos empreguem estas noções, procurava-se associar a influência das restantes constelações ao Zodíaco tradicional. Assim, estudavam-se as longitudes destas para o dia de nascimento, observavam-se quais as estrelas que interagiam com os signos individuais e com os planetas para esse momento e analisavam-se os resultados. A interpretação das estrelas, consideradas importantes para o indivíduo, tinha como base a respectiva constelação a que pertenciam e aquela que se considerava a sua natureza. No primeiro caso, tendo como referência as duas constelações mencionadas no Globo Coronelli, a Hidra146 e o Orion147 (Imagem 35), podem comparar-se as legendas que acompanham o desenho e as informações disponíveis para esta área da astrologia. No caso da Hidra, esta constelação “...dá uma natureza emotiva e apaixonada,muito sujeita a problemas...”148 para aqueles que caem sob a sua influência, ideias próximas das adjectivações na legenda no Globo “... teimosa, altiva, magnânima, impetuosa, exaltada, vigorosa, forte, corajosa...”149.

o Carneiro120, a Coroa Austral121, o Peixe Austral122, a Taça123 e o Triângulo 124. Nestes textos surgem ideias cuja relação com o objecto estelar parece,aparentemente,mais distante.É o caso da Ara, que menciona um templo ou da Cabeleira de Berenice (Imagem 33) com referência a trivialidades, ideia talvez associada à história que presidiu ao aparecimento desta constelação125 ou ao facto destas estrelas terem pertencido à Virgem. Neste núcleo de legendas,com um registo mais complexo de relações, também se encontram textos sobre figuras da mitologia e da cultura grega e latina, directa ou indirectamente relacionadas com a constelação representada. Neste grupo enquadram-se: Andrómeda126, o Boieiro127 e a Cabra128, Cassiopeia129, Cefeu130, o Cão Maior131, o Delfim132, a Ursa Maior133 e a Virgem134. Numa terceira categoria, dentro do grupo de legendas discursivas, encontram-se Antinoo135, assinalando a sua origem, a Cruz136, a Girafa137, a Pomba138 e o Unicórnio139 todas referindo a sua recente descoberta. Neste grupo insere-se, igualmente, o emblema da Accademia degli Argonauti, o Navio140 (Imagem 34), com uma explicação detalhada da sua escolha para símbolo da organização criada por Coronelli. Mais curiosa é a legenda do Dragão onde, para além das referências mitológicas141 se menciona que este agrupamento de estrelas, para os árabes, correspondia a dois lobos e cinco dromedários142. Num outro registo de explicação temática enquadram-se o Capricórnio143 e o Centauro144, referindo-se as legendas à natureza constituinte destas figuras mitológicas que, no segundo caso, remete para o Minotauro, ou o Camaleão145, mencionando as mudanças de coloração deste réptil. Naquilo que se pode considerar uma quinta categoria, dentro do grupo das legendas discursivas, encontram-se as que são associadas a noções astrológicas.

As Estrelas Fixas A ideia determinista de estrelas benéficas ou malignas que influenciariam a vida e o destino dos homens, prende-se com um aspecto da astrologia designado como as Estrelas Fixas. Hoje

40 41 35

Orion

Para além do conhecer da influência das constelações, importava perceber quais as estrelas que dominavam a vida do indivíduo. Assim, a natureza de cada um destes corpos celestes era relacionada com aspectos associados aos planetas tradicionais da Astrologia150, informação evidente no Globo celeste de Coronelli. Um olhar mais atento permite-nos observar que quase todas as estrelas possuem símbolos associados aos planetas: A (Sol), 2 (Lua), B (Mercúrio), !(Vénus), ?(Marte), K (Júpiter), L(Saturno) . Estes podem surgir em cada estrela, individualmente ou agrupados, sendo a sua associação ao significado geral das constelações a responsável pelo sua feição mais ou menos funesta.

No Globo de Coronelli nem todas as estrelas possuem símbolos, o que surpreende, pois muitas das que não se encontram assinaladas são importantes na leitura astrológica.Se observarmos Alpheratz, a estrela Alfa (α) de Andromeda (Imagem 36), ainda que não surjam quaisquer símbolos deveria ter!K pois ela confere “...independência, liberdade, amor, riquezas, honras e inteligência penetrante...”151. No caso de Algol, o Demónio, a Beta (β) da constelação de Perseu (Imagem 37), considerada a mais temível de todas as estrelas, deveria ter junto da sua representação os símbolosLK . A sua temível influência “...provoca desgraça, violência, decapitação, enforcamento, electrocussão e tumultos. Confere natureza

a cada legenda, encontra-se a menção do idioma. Isto é patente nos elementos que se introduziram para preencher os espaços em falta nas constelações como a Ara, a Baleia e a Coroa Austral. Isto ocorre devido ao facto do Globo celeste da Sociedade de Geografia pertencer à edição de Veneza de 1693 e os fusos que se encontram em Paris serem da edição executada nesta cidade em 1693. 70 Variedade de alfabeto usado a partir do século X, em Meca e Medina, e que serviu de modelo a todas as escritas árabes modernas. 71 Da relação que se segue não foram incluídas as legendas das constelações: Cão Menor, Cisne, Ceptro, Lira, Lírio ou Flor de Lis e Hércules, por se encontrarem muito deterioradas. 72 “.... German: Grapp....” 73 “... Germ: Schwedt-Fisch...”


torpe e violenta, que pode causar a morte do nativo ou a outros...”152. Se algumas das estrelas principais não possuem quaisquer

36 Andromeda, pormenor símbolos outras, por vezes mais secundárias, têm junto delas

e obras originais de autores árabes, que começam a ser traduzidas em grande número para latim. Muita terminologia e denominação de estrelas mantiveram, por vezes com alguma corrupção de sintaxe, estabelecendo um elemento fundamental para a formação da Astronomia. No Renascimento, a preocupação Humanista de estudar as fontes primárias da investigação levou muitos estudiosos a tentar recuperar o conhecimento árabe na sua forma original, o que viria a influenciar, igualmente, os fabricantes de Globos. Já Willem Blaeu, colocou no seu globo de 68 cm de diâmetro os nomes das 48 constelações clássicas, de Ptolomeu, em latim, grego, na grafia árabe original e transliteradas neste idioma. De acordo com Paul Kunitzsch153, as fontes para estas referências - que Blaue não menciona na sua obra Institutio Astronomica de usu Globorum & Sphaerarum Caelestium acTerrestrium,publicada em Amsterdão em 1634 - terão sido a 2ª edição da obra de Joseph Scaliger (15401609), o Marci Manilii Astronomicom e o Syntagma Arateorum de Hugo Grotius (1583-1645).Ambos apresentam designações que não correspondem às expressões árabes originais, mas são tentativas a partir das formas latinas transliteradas. Com Vincenzo Coronelli são os seus globos de 1,10 m que possuem, frequentemente, nomes redigidos em árabe. Estas inscrições variam em rigor consoante as edições a que se reportam e no caso da Sociedade de Geografia154 elas estarão parcialmente adulteradas.

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Cabeça de Medusa, pormenor

estes símbolos. Observando no Globo celeste Denebola, a estrela Beta (β) na cauda do Leão (Imagem 38), surgem os símbolos KDB, no entanto, no tema das Estrelas Fixas, a natureza desta seriaL!. O motivo desta alteração, comum à natureza de outras estrelas representadas por Coronelli, poderá indiciar que foi seguida, na representação, uma via menos comum desta área de astrologia. Sintomática é a presença do símbolo D (Terra) que, tradicionalmente, não é considerado na Europa embora surja regularmente nas leituras astrais árabes.

38

Na sua enciclopédia denominada Bibliotheca Universale155, da qual se encontram alguns exemplares na Biblioteca do Palácio de Mafra, Coronelli apresenta uma extensa lista de abecedários de diversos povos, onde se inclui o persiano (Imagem 39). Curiosamente, os caracteres aí representados, não sendo os que actualmente emprega o alfabeto nashki, também não são os que compõem as palavras junto das constelações, daí não terem relação com os do globo.

Leão

As inscrições árabes, gregas e numéricas A introdução de inscrições árabes em globos prende-se com razões maioritariamente históricas e epistemológicas.A renovação do estudo da Astronomia no Ocidente, durante o período medieval,teve como base as traduções dos antigos clássicos gregos

39

Página com alfabetos vários, Bibliotheca Universale Sacro-Profana,Antico-Moderna de V. Coronelli publicada pela Academia degli Argonauti, Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra. Cortesia do Palácio Nacional de Mafra // IPPAR.

Ainda de acordo com Paul Kunitzsch156, merecem destaque duas curiosidades que podem ser notadas, nas inscrições gregas dos


globos celestes de Coronelli: neles nem sempre foram empregues os nomes associados tradicionalmente às constelações clássicas, a partir de Ptolomeu, sendo também acrescentadas designações em grego nas novas constelações, desconhecidas dos Antigos. Processo idêntico ocorre com informações em árabe. O que parece claro é que Coronelli terá tido inicialmente auxílio de linguistas ou de indivíduos naturais destas regiões que o terão apoiado, inicialmente, nesta tarefa. À medida que se foram imprimindo novas versões dos fusos, os gravadores foram corrompendo as formas escritas originais, chegando a composições totalmente ilegíveis sem qualquer significado. De acordo com este investigador, em algumas constelações (Hércules, Cabeleira de Berenice e Erídano) parece intuir-se uma vaga reminiscência francesa na grafia dos nomes, estranha à expressão árabe original. Assim, Paul Kunitzsch propõe que o tradutor poderia ser alguém residente em Paris157, onde Coronelli mandou fazer em 1688 o seu primeiro globo a que acrescentou as inscrições árabes em Veneza (Cf. Imagem 27). Junto de cada estrela representada no globo encontram-se também letras gregas, correspondentes à classificação dada por Johan Bayer, a partir do trabalho anterior de Alexandro Piccolinaini com o alfabeto latino. Estas letras consideravam a ordem de grandeza das estrelas, consoante a constelação a que pertencem.Assim, uma estrela a (Alfa), seria a mais brilhante do grupo, a b (Beta), menos, a c (Gama) ainda menor. Normalmente, todos os globos apresentavam uma cartela onde surgia esta explicação mas, curiosamente, no da Sociedade de Geografia, o local onde esta deveria surgir está ocupado com uma referência às constelações entretanto descobertas no pólo sul (Cf. Imagem 27). Encontra-se uma terceira categoria de inscrições junto de cada estrela do globo celeste de Coronelli. Trata-se de uma referência numérica, que remete para uma lista publicada posteriormente, enumerando cada um destes corpos celestes. Esta menção estava ausente na edição de Paris de 1688, conforme se pode observar nos fusos utilizados no preenchimento de algumas áreas em falta nesta intervenção de conservação e restauro (Cf. Imagem 27). 74

“... Masser-Schlange...” “...Arab: Edeleu...”, em árabe Al-dalw, o que significa “um balde de tirar água” ou Al-dãlî, Al-sãkib,“o carregador de água”. Cf. HUES, Robert,Tractus de globis et eorum usu, p. 210. 76 “... Arab: Elkaitos, Elcatos...”, El-kaitos ou Al-caitus, a Baleia. Cf. HUES, Robert,Tractus de globis et eorum usu, p. 215. 77 “... Arab: Elhamel...”. De acordo com HUES, Robert,Tractus de globis et eorum usu, p. 208, a designação é Al-Hamal ou Al-Hamel “o jovem carneiro”. A segunda forma é a transposição do nome da constelação para a estrela Alfa de Aries ou Carneiro. 78 “... Arab: Algorab...” ou Al-ghorab, o Corvo. Cf. HUES, Robert,Tractus de globis et eorum usu, p. 208 79 “.... arab: Nahar, Nahaon...” ou Al-nahr, o Rio. Cf. HUES, Robert,Tractus de globis et eorum usu, p. 215 80 “... Arab: Elgeuze...”, Al-geuze, também dita Al-shuja,“o homem valente” ou Al-gibbar,“o herói.“. Cf. HUES, Robert,Tractus de globis et eorum usu, p. 208 e p. 217. 81 “...Arab: Haut, Elhaut....”, a designação para Piscis ou Peixes deveria ser Al-semcha. Cf. HUES, Robert,Tractus de globis et eorum usu, p. 218 82 “... Arab: Altour...” ou Al-tor ou Al-thaur, o Touro. Cf. HUES, Robert,Tractus de globis et eorum usu, p. 210 83 “...Arab: Ras-algol ...” a cabeça do Demónio”, a forma correcta deveria ser Chamil-ras-algol ou Hãmil-ras-al-ghul,“aquele que traz a cabeça do Demónio”. Cf. HUES, Robert,Tractus de globis et eorum usu, p. 213 84 Esta referência parece tratar-se de uma confusão com a constelação da Mosca Boreal, que neste Globo celeste surge como Lírio. Cf. NOTA 57. 85 “... SCURIATA, LA FOIT, FLAGELLUM,Tibullus Stimulum appellat...” 86 “... Serpe Ophiuchi, ad differentiam Draconis; Anguilla, Coluber, Anguis...” 87 “... Meridianus Austrinus, Capricorni Solitarius Magnus, add differentium duorum minorum...” 88 “... Pesce Boreale, Le Poisson Boreal, Piscis Boreus, seu Sequens...” 89 Italiano, francês, latim, grego e árabe. 90 “...Apis, Seu Avis Paradisi...” 91 “...Iugum Ciceroni, Milan Hebræis...” 92 “... Octipes, Nepa, Astacus, Canimaris....” 93 Esta legenda surge em italiano, ao contrário das anteriores em latim:“....obscuro, seu nigro còlore...” 94 “....Piscis Hisp: idest Aurata, alias Xinhias, se Gladius...” 95 “... Scorpius, Ne pa, Magna Fera, Hacrab, Alta rab, Alacrab...” 96 “...seu Avis, sub Pisce...” 97 “... Sev Homo Indianus...” 98 “...Leuipes apertis oculis dormiens....” 99 “...Bestia, Bestiola, Hostiola, F__ Quadrupes, Capella Pa__era, Equus __naju_lus Asid_ Leœns Bridemif_ ...” 100 “...Apis Five, Crabro Indicus...” 101 “...Passer Marinus, Piscis volucris, et volatilis...” 102 “...Equus Minor, Equus Prior, Sectio Equi...” 103 “...Sive Rhombus...” 75

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104

“... Sagittipotens Arcit__ens Croton, vel Crotus, Eumenes ___ Veteribus particularis fuit Al___ Terebellum dicti___ Geutilibus fuit ___ Centauri, Phily___” “....Trigonus, Notius....” “... Avis, seu Anfer, et Pica Basilica, seu Indica...” 107 “.... Plaustrum, vel Plostrum ininus, Ursus minir, Arctos Minor, Septentrio, Cynosura, Phœnice, Eruccabah, Dubol-azgaro, Ezra...” 108 “... Povis Alex, Rapt__, Ganymedis, Servan, Antinoum,Vultur voluns, Athair...” 109 “... Deucalion, Ganymedes, Aristœus, Cecrops, Fusor _aquæ, Apiano, Hydrudurus, Horatio Aquæ Tyrannus...” 110 “... Aurigator, Moderator habinar__, Heniochus, Currus, Agitator, Primus curruum Inventor, Custos, ___prarius, Erichteus, Erichonius, ____nifer, Mulus clitellatus, All__ feu_ Alhatator....” 111 “... Gorgonis, Gorgoueum, et Anguioco___ Caput...” 112 “...Fiumen, Fluvius, Oceanus, Gyon Nilus, Padus, Mauritanius, Gadi...” Ao contrário das restantes legendas, que surgem junto da respectiva representação, esta encontra-se serpenteando na corrente do Rio. 113 “...Duo Frates ex Leda Geniti alias Tyndaridæ...” 114 “... Herculeius, Cleonœus, Nemeœus....” 115 “... Elhautinæ, Ichiguen, Piscis, Greucellus, Proles Derica, Derce, Derceto, Dercetis, Dea Syria,Veneris Mater,Venus et Cupido....S_nneh....” 116 “... Ang______ Serpentis lator, Ser_____ is natus Ophiuculus, ___ Ophiucultus, Carnaboris,Triop__, Hercules, Glaucus, Æsculapiu, Alhague corrupie, Alangue....” 117 “...sive Isis, Bos Portitor Europæ...” 118 “...Thuribulum, Altare, vel Altar im, Pharus, Sacrarium, Puteus,Templum. Focus, Prono rum, Conceptaculum...”. A constelação, por vezes, foi designada Turíbulo e Cassianus Bassus (c. 6-7 d.C.) refere-se a ela como Sacrário. Será, talvez, devido a estas formas anteriores que surgem estas menções na legenda de Coronelli. Cf. HUES, Robert,Tractus de globis et eorum usu, p. 210 119 “... Cicinus, Cæfaires,Tricæ, Crines, Frugum, seu Spicorum Manibulus...” 120 “... Dux Gregis, Crino__ Signorum Cor__ Æquinotialis, Crysomallus .__rectiu Alchamalo...” 121 “... Notia, Globulus Cœlulum, Parvum Cœlum, Rota Ixioni....” 122 “... Meridianus, Austrinus Capricorni, Solitarius Magnus, ad differentiam duorum minorum...” 123 “... Cratera, Urna Patera, Calix, P___ Vas,Vascolum, Poculium Apol___...” 124 “...Deltoton,Trigonum, Sicilia,Tricuspis, Nilus, Orbis,Terra (...) tripertitus Muthlatum Triplicitas...” 125 Berenice foi uma princesa célebre pela sua beleza, casada com Ptolomeu III, rei do Egipto. Pouco depois do casamento ele partiu para uma importante batalha na Síria e ela prometeu que ofereceria o cabelo a Afrodite caso ele regressasse ileso, o que aconteceu. O cabelo, entretanto consagrado, desapareceu do templo e Conón, matemático de Alexandria e astrónomo da corte, afirmou que surgira miraculosamente no firmamento formando uma nova constelação. O acontecimento levou a que o poeta Calímaco compusesse uma narrativa em verso, o Berenikes plomakoi. Cf. MOORMANN, De Adriano a Zenobia,Temas de historia clásica en literature, música, artes plásticas y teatro, p. 65/66 126 “... Cephae, et Cassiopae Filia, Mulier cathenata,Virgo a Tota vitilus marinus Marinue pathenatus...” 127 “...___ Bubulous,Thegius, Clamator ___ Ploraris, Plarytri, Custos ___, Icarus, Lycaon, Canis ___ Lanceator...” 128 “... Capra Amaltheæ, Capella Iouis Nutricis, Hircus, Alhabod, Fœlix dicitur Sydus, siquidem Cornu Amaltheæ, allegoricè explicant Astrologiqui, omnia fœliciter evenire dicunt... 129 “... Cassiopea, Cathedra, mollis, Mulier sedis, Seliquastri, Seliquastrum, Setla, Solium, Sedes Regalis, Habens Palmam delibutam, Cerua, Canis, Cephei Vœor, Andromedæ Mater, Abenezra...” 130 “... Dominus Solis, Flamniger Incensus Sonaris, Iasides Plucares, Cheiieluus, Canea Cheguuis, Ceginus, Pater Andromedæ...” 131 “... Australior Dexter, Secundus Magnus Canicula, Sirius, lœlaps, Canis Astœoriis, aut Orionis, Scheereeliemini, Elsere, Slseiri, Scaeara, Albabor, Elchabor...” 132 “...Delphin, Portitor, seu Vector Avionis, Amphitrites, Simon Nautis, Hermippus Plin: Musicum Signum Cicer, ab gibbum in dorso Curuus....” 133 “...Cynosura, Plaustricula, Erymanthis, Parrhasis, Licaonia, Nonacrina, Arctos Maior, Hyg: Mayor, Ovid: Magna...” 134 “...Erigone, Anta___, uel Pantica, Spicifera, Dea,Vi___. Spicea munera gestaris, Eladari, Sunbala, Adrenedesa, Albuin, Seclenidos de Darzarna...“ 135 “... Puer Aquilae, et Ganimede, Costelatione formata per comando d’Adriano Imperatore dalle Stelle informiche, da Tolomeo vengamo comumérate sotto l’Asterismo dell’Aquila...” 136 “... Hispanis Cruzero, Le Stelle di questa Costellatione altre volte appartenevano al Centauro...” 137 “...Costellatione eretta dei Moderni di Stelle informi, circa il Polo, e Scabello di Cassiopea...” 138 “...__ Dalle Stelle informi del Cane maggiore hanno li Moderni eretta questa Costellazione, quale per brevissimo tempo stá erecta sopra il nostro Horizonte...” 139 “... Costellatione accresciuta dalli moderni Astronomi...” 140 “....Naus Iasonica, Navis Battavica, dalla quale l’Accademia nostra Cosmografica degli Argonauti dedusse la denominatione, e l’Idea delle Impresa...” 141 “... Serperis, Anguis, Hesperidum Custos, Palmes emeritus, Coluber arborem conscendens, Python, Atanin ___anino, Etanin, Aben,Taben. Eabin....” 142 “ __ Arabi in vece di questo dipinge __ due Lupi, e cinque Dromedaris. __ Antichi la lettera S. over Z...” 143 “... Æg_cerus, caper cornutis, Poetis, Neptunia Proles, Ægnoris Hircus, Pelagi procella, Imbrifer, Gelidus, Gorniger, Capra, Monstruosa imago esCapra, et Pisce, Algedi, seu Algedis, Asasell...” 144 “... ___Hiron, Chiron, Phyllyrides, Semifer, Minotaurus, Monstrum Bicorporeum, ex Tauro, et Homine, fuie ex Homine, et Equo compositum....” 145 “...Aere vistitabe dicitur variosque colores assumere...” 146 “...Hydrus, Serpens Aquaticus, Longissimum Cœli Sydus, Asima, Coluber, Anguis, Sublimatus, Magnanimus, Furiosus, Fortis, depingevasi già, non com uno; ma com piú Capi...” 147 “...Arion, Urion, Hyriades, Audax, Furiosus, Furibundus Gigas, Ragulon, Bellator fortissimus...” 148 Cf. MAGALHÃES, Elcio Torres de – Astrologia. [on line], [referência de 15 de Julho de 2004]. Disponível na Internet em: <http://www.astrologie.com.br/Secreto/Completo.doc. 149 “...Asima,... Sublimatus, Magnanimus, Furiosus, Fortis...” 150 Mercúrio,Vénus, Lua, Marte, Júpiter, Saturno e, não sendo um planeta mas o elemento que define o signo zodiacal de cada indivíduo, o Sol. 151 Cf. MAGALHÃES, Elcio Torres de – Astrologia. [on line], [referência de 15 de Julho de 2004]. Disponível na Internet em: <http://www.astrologie.com.br/Secreto/Completo.doc. 152 Cf. MAGALHÃES, Elcio Torres de – Astrologia. [on line], [referência de 15 de Julho de 2004]. Disponível na Internet em: <http://www.astrologie.com.br/Secreto/Completo.doc. 153 Cf. KUNITZSCH - «European celestial globes with arabic inscriptions». Der Globusfreund, p. 136. 154 Este globo celeste pertence ao tipo III, referido por este autor. Cf. KUNITZSCH - «European celestial globes with arabic inscriptions». Der Globusfreund, p. 137. 155 Cf. CORONELLI,Vincenzo, Bibliotheca Universale Sacro-Profana, Antico-Moderna, In cui si Spiega com ordine Alfabetico ogni voce, anco straniera, che puo avere significato nel nostro Idioma Italiano, Appartenente Á Qualunque Materia.Venezia, A Spese di Antonio Tivani, vol. I, p. 394. 156 Cf. KUNITZSCH - «European celestial globes with arabic inscriptions». Der Globusfreund, p. 138 157 Os nomes propostos são: Salomo Negri (c. 1665-1729) nascido na Síria e enviado por Jesuítas a estudar em Clermont, que em Paris deu lições de árabe a escolares, até 1697. Outra hipótese poderá ter sido B. D’Herlot (1625-1695) autor do que viria então a ser o muito divulgado Bibliothèque orientale, com 1º ed. em Paris em 1697. A terceira hipótese poderia ser A. Galland (1646-1715), autor da famosa tradução das Mil e uma noites, publicada entre 1704-1717). Cf. KUNITZSCH - «European celestial globes with arabic inscriptions». Der Globusfreund, p. 139. 105 106


44 45


A ICONOGRAFIA CELESTE E AS INFLUÊNCIAS DECORATIVAS Com um vasto programa iconográfico, as constelações, no Globo celeste de Vincenzo Coronelli, podem ser divididas em quatro grandes blocos, de acordo com a sua representação: o primeiro é constituído por figuras mitológicas158; o segundo agrupa diferentes tipologias de animais159;o terceiro é constituído por objectos ou símbolos160 e o último por Rios161 (Imagem 40) e Nuvens162.

40

Lorenzo Lotto, dito Lorenzetti (1490-1541), executou, cerca de 1515, com base em desenhos de Rafael, para a capela Chigi, em Santa Maria del Popolo, em Roma. A semelhança entre ambos parece evidente: a própria representação do Aquário vertendo água da ânfora para a boca do Peixe Austral, aproxima-os, à semelhança do que acontece com Jonas e a baleia. O Serpentário ou Ofíuco, por sua vez, representando Laocoonte, evoca a escultura desta figura descoberta na colina Esquilina,em Roma,em 1506.A intensidade dramática desta cópia helenística, adequava-se ao gosto barroco que se pretendia imprimir aos Globos. Destes, o celeste permitia maior liberdade criativa, aspecto que Coronelli tão bem soube explorar – adaptando a imagem do sacerdote troiano para a sua representação celeste.

Erídano

Para a execução de um programa tão complexo, o gravador Jean Baptiste Nolin e o pintor Arnould de Vuez basearam-se em várias fontes iconográficas,umas mais evidentes que outras,mas observando os desenhos realizados é possível reconhecer algumas dessas citações a que elas reportam. No caso da constelação Antinoo (Cf. Imagem 24), é notória a semelhança com a pintura representando Ganimedes, de Antonio Allegri dito Correggio (c.1489-1534), actualmente no Kunsthistorisches Museum, de Viena. Outras representações parecem mais distantes mas, ainda assim, evocativas de obras de pintores e escultores italianos, franceses e flamengos. No caso do Aquário (Imagem 41) existe alguma proximidade entre este e a escultura de Jonas que

42

O Boieiro (Imagem 42) está muito próximo da figura de “Páris recebendo a maçã de Mercúrio”, fresco da abóbada da galeria do Palácio Farnese, da autoria de Annibale Carracci (1560-1609).A semelhança entre ambos é por demais evidente, sendo as vestes que envolvem o príncipe substituídas por peles e uma vara que segura na mão esquerda transformada em foice. A mão estendida do Boieiro segura uma vara, em vez da maçã de Páris. É provável que o desenhador do Globo tivesse conhecimento deste fresco através de alguma gravura, isto porque nestas o sombreado do queixo do príncipe pode ser confundido com uma barba, tal como aparece na esfera.

43

41

158

Aquário

Boieiro

Capricórnio

Outras constelações poderão seguir modelos de representações celestes anteriores: o Capricórnio (Imagem 43), Cisne (Imagem 44), Gémeos (Imagem 45), Lira, Perseu, Pégaso e Potro (Imagem 46), evocam figuras do fresco Caprarola, na Vila Farnese,daquela região italiana.Nesta obra,com cerca de 12 x 6 m,

Andrómeda, Antinoo, Aquário, Capricórnio, Cocheiro, Boieiro Cassiopeia, Cefeu, Centauro, Fénix, Gémeos, Hércules, Hidra, Índio, Orion, Pégaso, Perseu, Sagitário, Serpentário, Serpente do Mar,Virgem e Unicórnio Animais terrestres: Cabra, Cão Maior e Menor, Carneiro, Girafa, Lebre, Leão, Lobo, Potro,Touro, Ursa Maior e Menor; Animais marinhos: Baleia, Caranguejo, Delfim, Dourado, Peixes, Peixe Austral, Peixe Voador; Aves: Águia, Ave do Paraíso, Cisne, Corvo, Grou, Pavão, Pomba,Tucano; Insectos e Répteis: Mosca, Camaleão, Escorpião. 160 Ara, Balança, Cabeleira de Berenice, Ceptro, Coroa, Cruz, Flor de Lis, Lira, Navio, Octante, Seta,Taça,Triângulo e Triângulo Austral 161 Erídano e Jordão 162 Nuvens Pequena e Grande de Magalhães 159


atribuída a Taddeo Zuccaro (1529 - 1566) e concluída cerca de 1575, o pintor transpôs a esfera celeste para a forma cilíndrica de uma abóbada de berço163.

44

Cisne

A observação das imagens do globo celeste de Coronelli, nomeadamente as figuras mitológicas, sugerem uma diversidade de origens. Andrómeda, que se diferencia pela sua pujança física,

47

Peixe voador

parece de influência flamenga, ainda que o facto de se encontrar em escorço poderia justificar este aspecto (Imagem 48). Cassiopeia, também em escorço, sugere as formas mais italianizante das Sibilas da Capela Sistina (Imagem 49).

45

Gémeos

46 47

46

48

Andrómeda

49

Cassiopeia

Pégaso e Potro

É provável que as constelações Girafa e Unicórnio (Cf. Imagem 26) tenham sido baseadas nas representações do Atlas Coelestis da Harmonia Macrocosmica, de Andreas Cellarius (c.1596 - 1665), publicado pela primeira vez em Amsterdão em 1660,por Johannes Janssonius164. Outras representações animais, poderão ter sido inspiradas nas numerosas gravuras de Naturalia que circulavam então pela Europa. Sendo quase impossível determinar a origem das imagens no globo, o Peixe Voador (Imagem 47) e mesmo o Peixe Austral, junto do Aquário,assemelham-se a uma gravura de Nicolaes de Bruyn (1571 - 1656) incluída numa série designada Libellus varia genera piscium165. Também a constelação do Lírio ou da Flor de Lis (Cf. Imagem 23) poderia basear-se numa gravura de Ludovico Scalzi (1555 - 1619) datada de 1599166.

163 Para mais informações sobre este artista e o seu irmão Frederico Zuccaro. Cf. LUCHINAT, Cristina Acidini,The life of the Zuccari brothers, [on line] In kwArt Magazine [referência de 15 de Julho de 2004]. Disponível na Internet em: <http:// www.kwArt.kataweb.it/kwArt/eng/magazine.jsp?idCategory=1822 164 Existem quatro edições desta obra, encontrando-se uma, de 1661, na colecção da Biblioteca do Palácio da Ajuda. 165 Cf. DE JONG, Marijnke, Ornamentprenten.in het Rijksprentenkabinet I, 15de 16de Eeuw, Staatsuitgeverij’s- Gravenhage, p.39 166 Cf. DE JONG, Marijnke, Ornamentprenten.in het Rijksprentenkabinet I, 15de 16de Eeuw, Staatsuitgeverij’s- Gravenhage, p.288


Na observação do globo é patente a diversidade de elementos iconográficos. Na selecção de imagens, aparentemente aleatória e com um propósito estético, o artista adaptou criteriosamente as fontes à representação das constelações. Este aspecto verdadeiramente revelador da liberdade criativa confere a este documento histórico-científico, um carácter fundamentalmente artístico e ao mesmo tempo eloquente de uma cultura rica e à época universal.

50

Virgem

Poderíamos pensar que as distorções encontradas nestas figuras foram devidas à sua adaptação a uma superfície curva, no entanto, a Virgem (Imagem 50), ainda que de maiores dimensões, não apresenta escorço. Esta imagem – talvez de influência francesa - apesar de ocupar uma superfície mais vasta no globo, não tem as distorções patentes tanto nas figuras anteriores como no Cocheiro (Cf. Imagem 30) e no Índio (Imagem 51).Assim, parece evidente que a superfície curva não é condicionante fundamental da distorção das imagens, mas o seu escorço dever-se-á à fonte iconográfica utilizada.

51

Índio


48 49



A construção de Globos


A CONSTRUÇÃO DE GLOBOS A manufactura de globos envolve a conjugação de esforços e conhecimentos de matemáticos, cartógrafos, construtores de instrumentos de precisão, gravadores, impressores e editores. Através da História, os construtores de globos foram sempre confrontados com o dilema essencial da escolha dos materiais a utilizar para a construção das esferas e como alterar a bidimensionalidade dos mapas para uma representação tridimensional.

Sobre o extracto de papier mâché, era aplicado um composto de gesso com cola proteica, de modo a obter uma superfície polida e regular. Este era aplicado em camadas, com secagens intercalares, até atingir a forma e dimensão desejadas170,171. O processo de engessamento era conseguido segurando a esfera num torno, suspendendo-a através dos espigões metálicos cravados nos topos do pilar central. Através da imersão e rotação num banho de gesso, o líquido aderia à esfera pela força

Embora com muitas variantes, a estrutura de um globo pode definir-se como uma esfera oca, tendo um pilar central como elemento de suporte entre os dois pólos. A esfera pode ser construída com diversos materiais, providenciando uma forma rígida, leve e estável, como a “casca de um ovo”167. As paredes são, na maioria dos casos, de papier mâché, sobre o qual assenta uma camada de massa de gesso ou cré. Esta camada oferece uma superfície polida adequada à colagem de folhas de papel e permite, com alguma facilidade, a construção da esfera com um diâmetro pré-determinado pelo número e dimensão dos fusos168 gravados a aplicar. (Figura 1) Fig.2

Inserção do pilar central

centrípeta. Após secagem da superfície de gesso, esta era aparada na espessura desejada,utilizando um padrão semi-circular de desbaste fixo entre os pólos172. A construção de uma esfera com estes materiais tornava difícil ou mesmo impossível a uniformização da espessura e peso das paredes das calotes. Para contrariar quaisquer desníveis tendenciais e permitir uma utilização eficaz do globo, ou seja, que este se mantenha imóvel em todas as posições desejadas, era muitas vezes necessária a inserção de contrapesos. Para o efeito, introduzia-se um saco de chumbos ou outro elemento metálico no interior ou numa das camadas intermédias, de modo a calibrar a esfera. Fig.1

Esquema de um globo

Nos globos de pequena ou média dimensão, a esfera era construída utilizando duas calotes unidas na linha do Equador. Para a sua construção utilizava-se um molde rígido – esfera em madeira ou metal – sobre o qual eram aplicadas tiras de papel ou papelão em camadas sucessivas. Este material, ao secar sob tensão, proporciona uma estrutura coesa e rígida mas, simultaneamente, leve. Após a secagem, a polpa de papel era cortada à volta do Equador e os dois hemisférios soltos do molde. Seguidamente inseria-se um pilar central, em madeira ou metal, fixando-o através de pregos nas zonas polares, com a dimensão exacta do interior da esfera completa169. (Figura 2) Nos globos de grande dimensão, era frequente, para além do pilar central, o recurso a um “esqueleto” de madeira. Em muitos destes exemplares encontramos uma estrutura complexa em madeira, sem recurso a moldes para aplicação do papier mâché. 167

Na literatura sobre globos surgem descrições gerais e explicações do uso destes instrumentos mas pouco ou quase nada sobre detalhes técnicos e métodos da sua construção. Coronelli, no seu Epitome Cosmográfico, lamenta-se da falta de informação sobre esta matéria, referindo-se apenas à sua experiência anterior com os grandes globos de Luís XIV, concluindo que “… o processo mais seguro e simples de construir uma esfera para globos, quando são de dimensão média, é a construção de um esqueleto com círculos de madeira …”173. Dos raros textos então conhecidos conta-se uma descrição da preparação de esferas numa obra sobre construção de “relógios de sol” de Bartholomaeus Scultetus174 (1540-1614) e, em finais do séc. XVIII, é publicada uma gravura com indicações sobre a construção destes objectos na “Encyclopaedie”175. Edward H. Knight no séc. XIX, aconselha a adição de cola e óleo à cré, na composição da massa, aplicada em camadas sucessivas,com o uso de um raspador semi-circular e polimentos intercalares176.

BAYNES-COPE, - «The study and conservation of globes». p. 14. Gomos de papel gravados com a cartografia. BAYNES-COPE, A.D., - op. cit., p. 14-15. 170 O diâmetro da esfera é calculado em função dos fusos a aplicar. O somatório dos fusos gravados, que são editados em número e formato variados, vão definir a dimensão da esfera construída para suporte dos mesmos. 171 FERRONI, Alice, - «Tecniche di costruzione dei globi e problemi di conservazione». p. 70. 172 Molde em madeira ou metal com a dimensão e forma de meia esfera. BAYNES-COPE, A.D. - op.cit., p. 14-15. 173 “…che il modo piú, facile, e meno dispendioso di fabbricare le Palle per il Globi, quando sono di grandezza mediocre, sia il fare l’ossatura con alcuni circoli di legno … “, In Epitome Cosmografica, Capítulo XXXIX, Apud BONELLI, Maria Luisa, - op.cit.,p. 15-16. 174 OESTMANN, Gunther, - «On the construction of globe gores and the preparation of spheres in the sixteenth century», p. 126. 175 LEWIS, Gilian, LEANE, Anne, SUMIRA, Sylvia, - «Globe conservation at the National Maritime Museum, London». p. 8-9. 176 REYDEN, Dianne van der, em http://www.si.edu/scmre/relact/globes.htm, 27-08-04. 168 169


O crescente interesse e consequente procura de globos permitiu o desenvolvimento e estudo da forma adequada de conceber mapas gravados para aplicação em esferas. Estes eram seccionados em gomos, denominados fusos, dos quais são conhecidas várias formas, criadas pela dificuldade em planificar directamente uma superfície esférica sem distorções do desenho177. Em 1541, o cartógrafo Gerhard Mercator (15121594) desenvolveu um sistema matemático para a execução de fusos a aplicar em esferas, incluindo as regiões polares em separado178.

representar as calotes polares num papel distinto dos fusos.Isto explica porque motivo, em alguns globos, como ocorre no

Na construção de um globo, o papel aplicado na esfera e na tábua do horizonte179 é sujeito a manipulações extensas de Fig.3

1- Fuso inteiro, 2- Fuso inteiro aparado, 3- Meio fuso, 4- Meio fuso aparado, 5- Meio fuso aberto, 6- Meio fuso aberto aparado, 7- Calote

celeste, o seu eixo central não coincide com o eixo Norte-Sul, procurando evitar-se, deste modo, a sobreposição do espigão metálico com a Estrela Polar183. (Imagem 53) Para ser eficaz, como instrumento de precisão e conhecimento, a execução do globo não se limitava à construção da esfera sendo exigidos uma série de outros elementos. O pilar central, que suporta a esfera nos pólos, possui dois espigões metálicos

52 53 52

Fusos gravados, Globi Celeste e Terraqueo del P. Coronelli. Biblioteca do Palácio de Mafra. Cortesia do Palácio Nacional de Mafra // IPPAR.

modo a adaptar-se a estas formas.A textura avergoada180 e a sua constituição serão as mesmas de qualquer outro papel da época utilizado em obras gráficas. O desenho gravado a talhe-doce é impresso sob forte pressão, sendo as folhas cortadas em gomos e coladas a uma superfície uniforme e polida (Imagem 52). Os fusos de papel, depois de colados à esfera, são fortemente impermeabilizados com uma encolagem à base de cola de amido ou gelatina, o que favorece a aplicação da aguarela e impede ou minimiza a absorção do verniz aplicado como camada final. Esta camada de verniz promove uma protecção face ao manuseamento do globo e uma barreira contra a deposição de poeiras e gordura na superfície gravada . É sobre este papel, que ocupa a quase totalidade da superfície dos globos, que encontramos o desenho cartográfico. O número mais frequente de fusos que compõem um globo é doze, podendo as calotes serem ou não autónomas. Para facilitar a sua aplicação na esfera, estes eram cortados em várias formas (Figura 3). Para se conseguir uma boa definição cartográfica na zona dos pólos, de grande importância no globo celeste pois as estrelas circumpolares representavam uma referência indispensável para a navegação, procurou-se

177

53

União dos fusos no pólo.Anel das horas. Globo celeste Smith’s, c. 1890. Sociedade de Geografia, inv. 1193

cravados nos seus topos que atravessam todas as camadas da “casca”. Estes espigões fazem a ligação, através de dois elementos aparafusados, a um anel exterior – o anel meridiano – envolvendo o globo na vertical e permitindo a sua rotação. O anel meridiano, por sua vez, encaixa na tábua do horizonte, colocada horizontalmente na parte superior da base,e num guia metálico da base. O anel ou tábua do horizonte, em madeira, é coberto com um papel ilustrado com o Zodíaco, o calendário e a graduação para o cálculo da posição do sol ao longo do ano (Figura 4). Este papel era normalmente aplicado sobre uma camada fina de gesso e, por fim, envernizado à semelhança do globo184. O anel meridiano deverá apresentar, gravada numa das faces, uma graduação. Mais recentemente, encontramos anéis meridianos em madeira ou mesmo em cartão, mas o metal é o material mais comum para a sua execução. Outros elementos

OESTMANN, Günther, - op. cit., p. 121. Com a projecção cilíndrica de Mercatore, os arcos dos paralelos e dos meridianos aparecem ampliados em função da distância ao Equador. REYDEN, Dianne van de, em http://www.si.edu/scmre/relact/globes.htm, 27-08-04. Superfície horizontal paralela à linha do Equador e exterior à esfera, onde é aplicado um papel gravado com o Zodíaco, calendário e graduação. 180 Papel com textura de linhas muito finas resultantes dos arames da forma de fabrico da folha. 181 Processo de gravura em cavado sobre matriz de metal. 182 McKLINTOCK,T.K., «Observations on the conservation of globes», p. 135-136. 183 FERRONI, Alice, op.cit., p. 67-70. 184 MCKLINTOCK,T.K., op.cit., p. 135-136. 178

179


metálicos podem estar presentes, como o denominado anel das horas. Este poderá ser colocado em contacto com a esfera, entre esta e o anel meridiano ou exterior a todo o conjunto, no vértice do círculo meridiano, em correspondência com o

Fig.4

Base

Pólo Norte. Com a rotação da esfera, a lanceta existente no anel das horas permite estabelecer a posição do globo nos diversos momentos do dia e da noite185. (Cf. Imagem 53) As estruturas de suporte186 das esferas e do anel meridiano são um elemento integrante destes objectos. Globos construídos pelo mesmo fabricante podem apresentar diferenças significativas, decorrentes de métodos próprios, com variantes dentro duma mesma tradição. Alguns componentes, particularmente as bases, podem apresentar diferenças substanciais, reflectindo quer o gosto do cliente quer o talento dos marceneiros187.

185

FERRONI, Alice, op.cit., p. 66-71. Construídas em madeira ou metal, estudos de identificação das madeiras utilizadas nas bases, verificaram a predominância de carvalho, nos séc. XVI e XVII, e a introdução de madeiras mais macias, como a nogueira, pinho, choupo e madeiras preciosas provenientes de árvores tropicais, como o mogno, no séc. XVIII. FERRONI, Alice, op.cit., p. 70. 187 BAYNES-COPE, A.D., op.cit., p.12; McKlintock,T.K., op.cit., p. 136. 186


A CONSERVAÇÃO DE GLOBOS A fragilidade considerável destes objectos deve-se às suas características estruturais: forma esférica oca, suportada por dois espigões metálicos fixos no anel meridiano; encaixe deste anel nas bases apenas em três pontos de apoio; movimento de rotação da esfera e do anel meridiano e revestimento exterior constituído por folhas de papel fino colado sobre um suporte rígido. Nos globos de grande dimensão, o peso excessivo acresce à dificuldade do seu manuseamento. A multiplicidade de materiais presentes – madeira,metal,tela,papier mâché,massas e papel revestido com camada de verniz – determina um equilíbrio delicado e resulta, frequentemente, na ruptura das camadas mais superficiais, decorrente das movimentações dos vários substratos, face às oscilações ambientais. Sendo no papel que se encontra o desenho cartográfico que confere a funcionalidade a estes objectos, é também este o elemento mais susceptível de comprometer o aspecto e a integridade do globo. Por este motivo, a conservação destes objectos tem sido desenvolvida por especialistas nesta área da conservação. No entanto, a variedade dos elementos constituintes num globo exige uma familiaridade com diferentes materiais, promovendo a necessidade de um trabalho conjunto entre conservadores-restauradores de outras especialidades188. É comum a deterioração da camada superficial de verniz de protecção. Durante anos, muitos globos estiveram expostos à fuligem e poeiras em salas aquecidas a carvão e iluminadas com velas ou candeeiros a óleo e gás. A sujidade é depositada de forma irregular no globo, com maior incidência no hemisfério norte e na tábua do horizonte, cujas superfícies se encontram mais expostas.Tendo em consideração que estes objectos eram feitos, não só para deleite dos nossos olhos mas essencialmente para serem manipulados, as mãos que foram fazendo rodar o globo e os “dedos exploradores” deixaram, ao longo do tempo, gordura depositada adicionada à fuligem189.

Tendo em conta o grau de obscurecimento do desenho pelo amarelecimento do verniz é possível optar pela sua remoção, que poderá revelar cores no contorno das terras ou um fundo verde retomar a sua cor azul original. Esta operação comporta riscos pois o solvente utilizado pode afectar a tinta da gravura e a aguarela. Quando o verniz se apresenta muito friável é possível, em alguns casos, a sua remoção mecânica. Quando não foi aplicada uma camada de impermeabilização correcta ou esta perdeu propriedades pelo seu envelhecimento, o uso de solventes poderá arrastar o verniz para o interior do papel, sendo então quase ou mesmo impossível, a sua eliminação. Nos casos em que se optou pela remoção do verniz, depois de concluídas as consolidações da superfície do papel, deverá ser aplicada nova camada de impermeabilização (encolagem) e nova camada de verniz de protecção. O levantamento dos fusos, parcialmente ou na totalidade, apenas deverá ser efectuado caso existam danos graves. Estes podem ocorrer nas paredes da esfera ou na estrutura interna, sendo as camadas deterioradas de massas e papier mâché, substituídas ou consolidadas com materiais semelhantes ou compatíveis. Verifica-se, com frequência, abrasão no verniz e nas camadas de papel nas zonas circundantes ao Equador, o que ocorre porque o espaço entre a esfera e a tábua do horizonte, que permite a rotação do globo, é de pequena dimensão. Uma ligeira alteração do ângulo do pilar central, é suficiente para que o globo encoste ao interior do anel do horizonte, resultando na abrasão das camadas superficiais. Muito comum também é a abrasão na zona circundante ao pólo sul: a deslocação ou posicionamento incorrecto do anel meridiano no elemento metálico de suporte colocado na parte inferior da base e que serve de guia a este anel, origina o contacto directo da superfície do globo com este elemento saliente. Ao forçar a rotação da esfera, sem esse apoio correcto, as camadas superficiais no pólo sul são constantemente sulcadas pelo guia metálico. (Imagens 54 e 55)

O verniz utilizado, geralmente uma resina natural, sujeito às agressões ambientais vai sofrendo uma oxidação que resulta num amarelecimento que pode mesmo levar ao obscurecimento do desenho gravado e aguarelado.As fissuras abertas no verniz, como consequência da sua degradação190, ou mesmo zonas em que esta camada se destacou, favorecem a deposição das poeiras directamente nas fibras do papel. Esta sujidade, em condições de excesso de humidade, pode penetrar no papel e nas camadas subjacentes, tornando-se a sua remoção, por vezes, impossível. É no hemisfério norte que se observa de forma recorrente, pela maior incidência da luz, um estalado mais pronunciado e maior desvanecimento dos pigmentos, por comparação com os mesmos pigmentos no hemisfério sul. É também aí que se encontram as tipologias decorrentes da manipulação, pois este hemisfério é mais acessível ao observador e, nos globos terrestres, é aí que se encontra a maior extensão de terra que interessava aos estudiosos de então (Europa, Ásia,América)191.

188

54

Posicionamento do Anel Meridiano no guia metálico

A conservação dos elementos metálicos e das bases é fundamental pois uma insuficiência estrutural ou a falta de quaisquer elementos, pode impedir o suporte eficaz do globo. Se o papel que cobre a tábua do horizonte não tem uma camada subjacente de massa haverá maior degradação, pelo contacto

McKLINTOCK,T.K., op.cit., p. 135. LEWIS, Gilian, LEANE, Anne, SUMIRA, Sylvia, op.cit., p. 8-9. A degradação dos vernizes ocorre, entre outros factores, pela oxidação – reacção que envolve a perda de electrões. Os polímeros sofrem quebras ao longo das cadeias moleculares, provocando a desintegração do filme. FELLER, Robert, STOLOW, Nathan, JONES, Elizabeth, On picture varnishes and their solvents, p. 154-155. 191 SUMIRA, Sylvia, «The conservation of globes – old and relatively new», p. 142. 189 190

54 55


directo com os produtos ácidos libertados pela madeira. É frequente este papel ser,por vezes,encerado como os restantes móveis presentes no local de exposição.

do equador. Esta linha de junção resulta numa zona de tensão e maior fragilidade face às oscilações de temperatura e humidade e consequente resposta dos materiais. É comum observarmos nestes globos a quebra, e consequente abertura, da zona coincidente ou adjacente ao Equador. As madeiras partidas ou deslocadas deverão ser fixadas e a linha do equador colada quando se verifica a sua abertura (Imagem 56) pois é comum verificar um desajustamento das duas calotes que se movimentaram ao longo dos anos.Antes da colagem e, eventualmente em ambiente húmido, é possível obrigar as duas calotes a um reposicionamento semelhante ao original exercendo uma pressão controlada e gradual entre os dois hemisférios.

55

Abrasão do pólo

Exceptuando casos em que o globo sofreu um impacto de grande intensidade, resultando numa abertura das suas camadas constituintes e revelando o interior da esfera, apenas se pode observar a sua estrutura interna recorrendo a meios auxiliares de observação. A radiografia permite avaliar a presença de madeira; de elementos metálicos (pregos, placas ou sacos com chumbos para calibração, posicionados correctamente ou deslocados) e a dimensão e solidez dos espigões que unem a esfera ao anel meridiano. Quando existe alguma perfuração nas camadas ou intervenções anteriores a remover, permitindo o acesso ao seu interior, o método possível de observação será o uso de endoscópio. Abrasões fortes, impactos no globo ou mesmo a sua queda, podem provocar quebras ou depressões acentuadas das camadas de massas e papier mâché, podendo mesmo atingir, em casos extremos, a estrutura interior, resultando na quebra do pilar central ou do “esqueleto” de madeira. A solidez do pilar central, e da estrutura de madeira é essencial para a conservação destes objectos, pois deles depende a boa manutenção de todas as camadas de sobreposição, bem como a sua correcta e eficaz manipulação. Como já foi referido, os globos de menor dimensão são constituídos por duas calotes em papier mâché unidas na linha

56

192

Abertura das calotes na linha do Equador

McKLINTOCK,T.K., op.cit., p. 136-137.

Uma intervenção de conservação e restauro num globo, permite a observação de algumas das suas características que, em condições normais, não são possíveis de identificar. Como já foi referido, nos casos em que é possível a observação directa ou por meios auxiliares do interior do globo, pode-se avaliar o sistema construtivo da esfera e detectar eventuais falhas estruturais. Quando se verifica a necessidade de levantamento do verniz, é possível caracterizar com maior rigor o papel, a sobreposição dos fusos, a proximidade ou o afastamento dos fusos entre si, rugas e vincos de montagem, a técnica da gravura e do aguarelado, inscrições manuscritas, etc. No acto de conservação e restauro, o papel utilizado nos globos deverá ser encarado não como uma folha mas sim como uma superfície. A manutenção da informação e integridade física e visual destes objectos determina a escolha dos processos de restauro e grau de intervenção. O preenchimento de lacunas do desenho deverá ter em atenção a sua extensão e a importância histórica do globo. Para a reposição do desenho poderá recorrer-se a um globo semelhante como modelo, quer através de cópia feita à mão, reimpressões gravadas ou manipulação de imagens em computador ou aplicação de fusos originais não utilizados192. Esta opção não é pacífica e alguns autores consideram que se deve optar pela conservação do globo, tal como se encontra na actualidade encarando-o como documento de arquivo rejeitando a reposição de desenho cartográfico não original.


ELEMENTOS CONSTITUINTES. ESTADO DE CONSERVAÇÃO Os dois globos em estudo193, integrando as esferas, os anéis meridianos e as bases de suporte, apresentam características comuns, surgindo algumas diferenças ao nível da estrutura interna de madeira, do número de fusos e da extensão das intervenções de restauro anteriores. As duas esferas194, constituídas por uma estrutura interna de madeira onde se sobrepõem camadas de materiais diferentes, servem de suporte ao papel gravado e aguarelado. São suportadas nos pólos por espigões metálicos que fazem a ligação aos anéis meridianos apoiando-se o conjunto numa base de madeira195, onde estão fixados quatro braços metálicos que sustentam o anel do horizonte. Este está revestido com um papel gravado e colorido, com o Zodíaco, um calendário e uma graduação. A mobilidade do anel meridiano dentro do anel do horizonte permite colocar as esferas em diversos ângulos, sendo a inclinação de 23º5, correspondente ao eixo da Terra, a forma mais comum. Estes globos apresentavam zonas extensas de intervenções anteriores,sendo a sua característica mais evidente a introdução de massas de preenchimento em grande número que ocupavam superfícies extensas, sobrepondo-se mesmo ao desenho original tonalizadas com tinta verde, que dificultavam, pontualmente, a leitura do desenho cartográfico. Comparando intervenções com características semelhantes efectuadas em peças de escultura e pintura, apontamos o séc. XIX como época provável para a sua execução. Quando estes globos são transferidos do Arsenal do Exército para a Sociedade de Geografia em 1878, o seu estado de deterioração196 é testemunhado pelo Tenente de Artilharia Fernandes Costa, sendo provável que a sua recuperação tivesse ocorrido nesta data.

58

Globo celeste.

As esferas As esferas, com o centro oco, apresentam um diâmetro exterior de 107 cm no globo terrestre e de 108 cm no globo celeste197. A estrutura interna de madeira compreende um eixo central, uma base quadrangular, oito aduelas verticais e sete aduelas horizontais. O eixo central, de secção quadrangular,une

Eixo central Triângulo Aduela vertical Aduela horizontal Revestimento de faia Tela Papier mâché Camada de gesso Papel (fusos) de protecção Fuso Gravado Fig.5

Corte transversal dos globos da Sociedade de Geografia

Fig.6

Aduelas horizontais e verticais

Podemos hoje reconhecer o avançado estado de degradação em que estes globos se deviam encontrar na época deste restauro e a importância da intervenção então efectuada que, embora não correspondendo aos critérios actuais de conservação, permitiu a sua manutenção no tempo. (Imagens 57 e 58)

os dois pólos na parte interna.(Figuras 5 e 6) Cravados nos topos deste eixo,encaixam dois espigões dentados de ferro forjado que, atravessando todas as camadas, ligam a esfera ao anel meridiano exterior através de dois elementos aparafusados. Nos topos, junto aos encaixes com as bases quadrangulares,as quatro arestas do eixo estão cortadas e reforçadas com pequenos elementos metálicos pregados198 . (Imagem 59)

57 193

Globo terrestre.

No globo celeste o pilar central é reforçado numa das faces por um elemento de madeira colado a uma das secções. A

Celeste – nº inv. 1189;Terrestre – nº inv. 1183. Com um peso de 51 kg (esfera celeste). Com peso de 43 kg (base do globo celeste). 196 CORDEIRO, Luciano, op. cit., p. 259. 197 A esfericidade é quase perfeita. O círculo medido no equador do globo terrestre é de 3042 cm e nos pólos de 3040 cm. 198 Colocamos como hipótese, que estes elementos metálicos tenham continuidade por baixo do topo do eixo central, resultando num ponto de reforço para o espigão. Não foi possível confirmar esta ideia pela leitura da radiografia, pois na imagem existe sobreposição destes elementos com as calotes metálicas. 194 195

56 57


madeira apresenta um tom claro, ligeiramente rosado. O pilar central, no globo terrestre apresenta uma tonalidade mais escura, podendo ser de uma madeira exótica. Neste globo, o eixo tem uma secção menor, mas os topos alargam, para permitir maior resistência aos espigões aí cravados. Ao contrário dos restantes elementos de madeira no interior das esferas, os eixos centrais apresentam uma superfície lisa com acabamento mais cuidado.

Fig.8

59

Radiografia de um pólo

Em cada extremo deste eixo, junto aos pólos, uma base quadrangular, composta por quatro elementos triangulares, serve de suporte e de travamento às aduelas verticais199. Destas, quatro encaixam nos cantos junto ao eixo, as restantes firmam-se nas bases dos triângulos através de malhetes em cauda de andorinha (Imagem 60). O cruzamento das aduelas verticais e horizontais faz-se através de ligações em ganzepe, sendo que os cruzamentos, na primeira e na última aduela horizontal, não são visíveis à face da madeira (escondida no topo). Todas as aduelas apresentam encaixes em forma de empalme ao longo da sua extensão (Figura 7 e 8) e, por vezes, observam-se também algumas cavilhas de secção circular200.

60

Encaixe escondido a topo

É notória uma maior fragilidade da estrutura interna do globo terrestre que apresenta alguns elementos partidos. Possivelmente, este facto originou, a inclusão das calotes em ferro forjado, cravadas no exterior dos pólos com pregos de secção quadrada, com 8 cm de comprimento (Imagem 61). Neste globo as aduelas têm secção menor e os cruzamentos entre verticais e horizontais estão alternados, (Imagens 62) enquanto no globo celeste a espessura da madeira permitiu uma continuidade no seu alinhamento (Imagens 63).

61

Calote metálica.

62

Estrutura interna do globo terrestre

63

Estrutura interna do globo celeste

Interior de um pólo celeste

2

1

Fig.7

199

1- Encaixe em ganzepe, 2- Empalme

Um revestimento de madeira cobre toda a estrutura anteriormente descrita,resultando numa primeira aproximação à forma esférica do globo. Este é constituído por faixas201 de faia202, justapostas e pregadas às aduelas,no sentido vertical, com pregos de ferro forjado.

Observámos uma numeração gravada em algumas aduelas verticais. As madeiras presentes nestes elementos, bases quadrangulares e aduelas, não foram analisadas. No entanto, pela observação, podemos apontar para madeira de casquinha. Faixa – Tira de madeira fina, com espessura superior a 1 mm. 202 Globo celeste: Fagus sp.; Globo terrestre: Fagus sylvatica L.As madeiras presentes nos folheados foram identificadas por observação microscópica de amostras: numa zona de quebra do fasqueado (globo terrestre) e numa área subjacente a massas de restauro (globo celeste). 200 201


Este revestimento tem um envolvimento total em tela com sobreposições coladas203 e pregadas204, - ainda que, esta não tenha sido observada na sua totalidade - de modo a permitir a sua adaptação à forma esférica.A tela, com ponto de tecelagem em tafetá205, é constituída por fibras de linho no globo celeste e de cânhamo206 no globo terrestre (Imagem 64).

64

elementos em forma de concha, presos com fios têxteis à aduela vertical com o número três gravado (Imagem 68). No globo celeste, a calibração é feita através de uma placa metálica enterrada na camada de gesso e coberta por uma faixa de madeira colada211 (Imagem 69). Neste caso não é possível determinar se o elemento é original, ou se foi introduzido posteriormente, pois nesta zona encontramos massas de intervenção.

Tela de revestimento do globo terrestre

Sobreposta à tela, uma camada de papier mâché, com espessura média de 1,3 cm. Esta pasta de papel, composta por fibras de trapo, é seguida uma massa de gesso e cola de pele207, com espessura média de 0,7 cm (Imagens 65). Esta última apresenta um extracto inferior de grão mais grosseiro e um superior de grão mais fino, havendo uma ligeira separação entre as duas camadas208. (Imagem 66)

67

Fragmento de papel com contas anotadas

68

Elemento metálico de calibração e numeração na aduela. Globo terrestre

58 59 65

Espessura das massas de preenchimento

69

Placa de calibração. Globo celeste

Fusos gravados

66

Separação entre camadas

Entre esta camada e o papel gravado existem dois estratos de papel fino de fibras de trapo209, sem decoração. Estes são constituídos por gomos de papel colados, com sobreposições entre eles. Estes papéis actuam como barreira de protecção entre os fusos gravados e a camada subjacente de gesso. Durante a operação de levantamento de fusos originais para consolidação das camadas subjacentes, verificou-se uma inscrição manuscrita de “contas de carpinteiro” e “prova dos nove”, numa zona de papel intermédio (Imagem 67). As várias camadas, excluindo as aduelas, perfazem uma espessura aproximada de 2,5 cm210. Os dois globos apresentam elementos metálicos para calibração das esferas. No globo terrestre são dois 203

Sobre o conjunto anteriormente descrito assenta a camada de papel, com a cartografia gravada e colorida (fusos). Este papel, também de fibras de trapo, do tipo avergoado, apresenta sete vergaturas por cm e 3,4 cm de distanciamento entre pontusais212. Não foi possível a observação de nenhuma marca

70 Fotografia com luz transmitida.Vergaturas no papel do fuso original 70) de água213. (Imagem

Numa zona de levantamento de restauros anteriores no globo terrestre observou-se sobreposição entre dois fragmentos de tela original. Na radiografia podemos observar pregos ao longo das aduelas, para fixação das faixas de faia e da tela. Cf. imagem 59. Ponto de tecelagem simples, alternando um ponto de teia e um ponto de trama. 206 As fibras das telas foram identificadas por observação microscópica dos cortes transversal e longitudinal. 207 Sulfato de cálcio e cola animal. A composição das massas foi identificada por análise microquímica e espectroscopia de IV (mS-FTIR) (Técnica que permite a caracterização de materiais orgânicos através das bandas de vibração características que os materiais apresentam quando sujeitos à radiação infravermelha). 208 Esta separação foi observada nas zonas adjacentes aos levantamentos de massas da intervenção de restauro anterior. 209 Identificação efectuada por meio de observação microscópica das fibras dissociadas. A designação “papel de fibras de trapo” resulta do facto este tipo de papel ser obtido pela maceração de tecidos e desperdícios têxteis. Estas duas camadas de papel, muito compactadas e coladas, poderão corresponder apenas a três estratos, podendo ter sido observada uma zona de sobreposição dos gomos nesta amostra. 204 205


O globo terrestre apresenta o número de fusos mais comum: vinte e quatro semi-fusos aparados – do equador até aos 70º de latitude norte e sul – e duas calotes polares. Este número de fusos corresponde a igual número de chapas de gravação. O globo celeste apresenta quarenta e oito quartos de fusos aparados – do equador aos trópicos, e até aos 70º de latitude – e duas calotes polares, atravessadas pelos espigões

1

2

O globo terrestre apresenta uma gravura com desenho linear, ponteado e algumas linhas cruzadas para sombrear o desenho (Imagem 72). Neste globo encontramos as três primeiras letras do nome “Barbaria”217 manuscritas a tinta

3 72 Gravura do globo terrestre castanha, possivelmente por erro na gravação da chapa.

Fig.9 Fusos (1)que terrestre, celeste, (3) calote metálicos, não(2)são coincidentes com os pólos norte e sul (Figura 9). 73 Letras 73) manuscritas (Imagem

Não foi possível concluir se no globo celeste este número de fusos corresponde a chapas de gravação independentes ou se, num número inicial de vinte e quatro, foram cortados nas linhas correspondentes aos trópicos de Câncer e Capricórnio para facilitar a sua colocação na esfera, ou impressos em duas

O globo celeste apresenta uma gravura com marcação do contorno e traçados interiores das figuras e algumas zonas com técnica do ponteado, não surgindo linhas cruzadas para marcação das sombras.A volumetria das figuras é realçada pela

74

Gravura do globo celeste

71 União dos fusos nos Trópicos com linha final de gravação folhas de menores dimensões, possivelmente para inclusão no Libro dei Globi214. (Imagem 71)

pintura (Imagem 74).

Não parece haver sobreposição dos fusos na montagem, ou se ocorre é mínima.Aparentemente tendo sido feita topo a topo, a sua colocação na esfera parece ter sido nos sentidos W-E e partindo do Equador para os pólos215.

A camada cromática

O desenho cartográfico e os textos foram gravados a talhe-doce – água-forte e buril216 – impressos a preto com uma tinta à base de carvão vegetal.

A análise da camada cromática foi efectuada após o levantamento dos vernizes218. De modo geral, apenas se detectou uma camada cromática sobre o suporte de papel, com excepção de duas amostras no globo celeste: o cinzento na constelação Unicórnio e carnação na constelação Virgem219. Na maioria dos casos a cor é constituída por apenas um

210

As espessuras indicadas para as várias camadas referem-se às zonas em que foram levantadas intervenções anteriores, podendo não corresponder à realidade de toda a superfície dos globos. São indicadas apenas como dimensão aproximada. Localizada sob a constelação Peixe Austral. 212 Os pontusais são linhas no papel correspondentes aos arames que fazem a fixação dos arames das vergaturas na forma de fabrico da folha. 213 A marca de água, ou filigrana, é conseguida pela inserção (“bordado”) de arames na rede de fabrico da folha, formando um desenho ou letras. Nesta zona, a deposição da pasta de papel é de menor espessura, resultando numa menor opacidade na zona do desenho, observável à luz transmitida. Os fusos, ou fragmentos de fusos, destacados durante o tratamento não apresentavam marca de água. 214 Scianna refere que Coronelli terá impresso os fusos tapando metade da chapa de cobre com um papel, ou seja metade de cada vez, resultando em duas meias impressões da mesma chapa para facilidade de publicação em livro. De facto, podemos observar em alguns pontos da união entre estas duas metades de fuso uma linha negra impressa, que não tem correspondência no desenho cartográfico do globo. Esta linha poderia corresponder à fronteira entre a chapa a descoberto e a metade tapada com papel. A ourela deste papel, retendo alguma tinta, poderia provocar uma linha a negro na impressão. SCIANNA, Nicolangelo, op. cit., p. 181-182. 211


2 1

pigmento, tendo nalgumas adicionados o branco de 75 Corte estratigráfico do verde dascores, folhas dosido Centauro. 220 1 -Papel + Branco de chumbo. chumbo ou2 o- Verditer carvão vegetal . (Imagens 75 e 76)

2 1

76

visualmente nameridianos superfície do globo, comcores particular no 78 Marcação dos e opacidade de algumas pela adição destaque de Branco chumbo globodeceleste.

Os pigmentos utilizados na camada cromática destes objectos apresentam uma elevada qualidade e são usados desde tempos antigos. É de realçar a presença de azul ultramarino (Imagem 79), pigmento dispendioso, nas figuras e barcos, nos mares, oceanos e fundo do globo celeste, embora em zonas mais extensas tenha sido aplicado numa forma mais diluída o pigmento de prata foi detectado nos centros das estrelas.

Corte estratigráfico dos castanho do Navio. 1 - Papel 2- Ocre vermelho + Carvão vegetal.

2

Na caracterização do tipo de aglutinantes nas várias tintas verificou-se: a presença de resina copal e resina de pinheiro em algumas amostras, correspondentes a resíduos dos vernizes de protecção; a ausência de aglutinante em algumas amostras221 ou em quantidade tão diminuta que impedindo a sua detecção, indicia a presença de aguarela e a presença de polissacáridos222 em algumas amostras223 - aglutinantes característicos dos guaches e aguarelas. A aplicação da cor nestes globos foi feita recorrendo, essencialmente, à técnica da aguada (Imagem 77). As cores apresentam uma transparência necessária à visualização dos traços da gravura subjacente, embora algumas tonalidades apresentem maior opacidade pela adição do branco de chumbo. Observamos pontualmente uma pincelada com corpo e textura como nos realces a branco para pontos de luz e na marcação dos meridianos (Imagem 78). Esta última é realçada na pintura a branco e preto, respectivamente o vazado e o traçado na gravura. Esta marcação é feita com muita intensidade, pois estas divisões são muito importantes

1

79

Corte estratigráfico do pigmento azul da Taça. 1- Papel. 2 –Azul ultramarino.

(Imagem 80 e 81)

60 61

80

Pormenor do centro das estrelas

3 2 1

81 77

215

Camada cromática em aguada. Globo celeste

Corte estratigráfico do pigmento de prata da mão de Oríon 1- Papel. 2 – Matéria orgânica. 3 - Pigmento de prata

Apontam para esta ordem de montagem, as pequenas sobreposições que se podem observar entre fusos. Gravura a água-forte – processo de ataque indirecto da chapa, através do uso de ácido. Gravura a buril – processo de ataque directo à chapa, com instrumento que abre um sulco triangular no metal. No norte de África, a Este do primeiro meridiano, entre os 15º e 25º de longitude e os 30º de latitude norte. 218 Por meio da observação microscópica dos cortes transversais das amostras para definição das estratigrafias e análise microquímica efectuada sobre os pigmentos individualizados das várias camadas cromáticas e das suas propriedades físicas, conjuntamente com os dados obtidos por Espectrometria de Fluorescência de Raios X (FRX) – Técnica de análise qualitativa e semi-quantitativa dos elementos químicos que constituem um material. 219 O cinzento azulado da constelação Unicórnio é obtido pela sobreposição de uma camada de branco de chumbo com alguns pigmentos de azul ultramarino sobre uma camada de branco de chumbo com carvão vegetal; a carnação da constelação Virgem é obtida pela sobreposição de uma camada de vermelhão com carvão vegetal sobre uma camada de branco de chumbo. 220 O verde das folhagens = verditer + branco de chumbo; o castanho da Nau = ocre vermelho + carvão vegetal; o vermelho do panejamento da Virgem = vermelho de chumbo + branco de chumbo; o azul-escuro dos barcos, no globo terrestre = azul ultramarino + carvão vegetal. 221 O azul da constelação Taça, o cinzento da constelação Unicórnio. 222 Nome genérico dos glícidos, presentes na celulose, os amidos e as gomas. 223 O amarelo da constelação Leão, o castanho da constelação Nau, o vermelho do panejamento da constelação Virgem, o preto da constelação Escorpião. 216 217


O globo terrestre, menos colorido que o celeste, tem a marcação dos mares com aguarela azul aplicada num riscado, com maior intensidade junto às costas terrestres e nas zonas circundantes aos barcos (Imagem 82).As áreas ocupadas pelas terras apresentam o contorno pintado a verde ou vermelho, com alguns interiores totalmente preenchidos com um vermelho rosado e outros com tonalidade castanha224 (Imagem 83). É nas cartelas alegóricas e em alguns pormenores figurativos de usos, costumes e representação de animais, que

tonalidades cinzentas, azuis e rosas presente na plumagem das aves e nos panejamentos transformaram-se em empastamentos de cor única; desenho gravado, parcialmente encoberto pela

84

Obscurecimento da gravura e aguarela pelo verniz alterado

pintura, quando utilizado o branco de chumbo no composto, perdeu leitura. (Imagem 84) 82

Aguarela azul junto aos barcos

83

Contorno das terras

encontramos maior concentração de pintura, com cores mais

Zonas de destacamento e um estalado acentuado do verniz favoreceram a deposição de poeiras no papel e a sua oxidação pelo contacto directo com o ar, resultando no seu escurecimento, em mancha ou em reticulado (Imagem 85). Novas camadas de verniz foram tapando estas zonas,mas o tom enegrecido do papel indica um tempo considerável de contacto directo com o ar, sem protecção. Zonas em que as fissuras delimitaram uma pequena área do verniz que se destacou em bloco, são bem visíveis. Cobertas com novas aplicações de verniz podemos observar espessuras muito diferentes, colocando como hipótese que o verniz original nunca tenha

densas e vivas.

Os vernizes A superfície apresenta uma cobertura total e homogénea de camada de acabamento com brilho intenso e espessura considerável. Compreende três tipos de vernizes: resina de pinheiro (provavelmente correspondente ao verniz original), resina copal225 e goma laca226,este último com menor ocorrência nos pontos analisados227.

85

Escurecimento do papel na zona de destacamento do verniz

sido removido (Imagem 86). Estado de Conservação das esferas As duas esferas apresentam um estado de conservação semelhante, variando a extensão de algumas patologias e intervenções de restauro anteriores. As sucessivas camadas de verniz aplicadas ao longo do tempo degradaram-se, apresentando um tom amarelo escuro, uma certa opacidade, encobrindo parcialmente o desenho gravado e alterando acentuadamente as tonalidades da pintura.Os azuis, todo o fundo do globo celeste, tornaram-se verdes; os brancos transformaram-se em amarelos; todo um cambiante suave de

224

Esta tonalidade castanha deverá ser resultado da alteração de um pigmento verde. Resinas naturais de origem vegetal. Resina orgânica de origem animal. 227 A composição dos vernizes foi identificada por análise microquímica e espectroscopia de IV (mS-FTIR). 225 226

86

Zonas de destacamento do verniz


perícia de montagem. Durante o processo de remoção dos vernizes, verificámos que a impermeabilização do papel era mais eficaz no globo celeste. Esta maior protecção foi conseguida, não só pela aplicação da encolagem no papel, como pela presença dos pigmentos e respectivos aglutinantes que actuaram como barreira à penetração do verniz. Nas zonas em que o seu destacamento arrastou também a aguarela, deixando o papel sem protecção, verificámos alguma penetração dos vernizes aplicados posteriormente. Zonas de abrasão do verniz e, em alguns casos, das camadas subjacentes, são também comuns aos dois globos. Nestas foi aplicada, em inúmeros casos, uma tonalização directa na superfície de papel a descoberto (Imagem 87). Nada indica a inclusão de papel para preenchimento de zonas de lacuna nem o repinte do desenho gravado, exceptuando casos pontuais da

Possivelmente contemporâneo da colocação de massas de preenchimento, foram aplicadas as calotes metálicas nos pólos do globo terrestre, cravadas na estrutura228.A sua aplicação por pressão provocou uma alteração da esfericidade, mais acentuada no pólo sul, resultando num rebatimento para o interior de toda a zona circundante ao metal e na obstrução total do desenho na área correspondente, num diâmetro de 35 cm. Este globo, com uma estrutura interna de madeira mais frágil, teve quebras e destacamentos consideráveis nas camadas de massas e quebra ou deslocação de alguns elementos da estrutura interna de madeira, provocadas por queda do objecto, por impactos exteriores e, possivelmente, pela aplicação das calotes metálicas229. Uma aduela vertical estava partida junto ao encaixe no triângulo do pólo sul; dois triângulos estavam deslocados; o revestimento de faia apresentava lacuna entre duas aduelas; e um dos elementos

89 Verde alterado folhas.do Globo celestecentral junto ao pólo norte, metálicos do nas topo eixo 87

Tonalização directa no papel

auréola vermelha das estrelas e um repinte extenso sobre as

62 63

90

Alteração do pigmento verde, com oxidação do papel. Globo terrestre

91

Pigmento azul alterado, na Taça

92

Interior do pólo sul no globo terrestre

apresenta destacamento parcial. (Imagem 92) 88

Reintegração sobre massa de preenchimento

massas de restauro na constelação Sagitário. (Imagem 88)

A camada cromática apresenta bom estado de conservação. Alguns pigmentos, no entanto, como os verdes – verdigri e verditer – ricos em cobre, são susceptíveis à oxidação, tornando-se friáveis ou alterando a sua cor para castanho (Imagem 89). Podemos observar uma oxidação do suporte na zona subjacente e circundante às áreas em que foram aplicados (Imagem 90). Algumas áreas de azul ultramarino com maior quantidade de pigmento, como na constelação Taça, revelam pouco aglutinante ou a sua degradação, resultando uma camada cromática com alguma desagregação (Imagem 91). Na constelação Baleia, a cor à base de carvão vegetal e branco de chumbo, apresenta alteração acentuada, com textura muito granulosa e com pouca adesão ao suporte. O número muito reduzido de vincos e rugas no papel e a justaposição rigorosa dos fusos, são demonstrativos de grande

228 229

Com pregos de ferro forjado, de secção quadrangular e com comprimento aproximado de 8 cm. Eventualmente durante o terramoto de 1755, com a queda da cúpula do torreão do Paço da Ribeira, onde estariam instalados os gabinetes da Biblioteca Real.


Os globos apresentavam grandes áreas, com maior incidência no hemisfério sul, com massas não originais numa composição à base de cré, cola de pele e, em alguns casos, óleo230, revestidas a tinta verde. Nas lacunas de menor dimensão o preenchimento foi feito com massas de cor e grau de dureza diferentes, tonalizadas com aproximação pouco cuidada à cor circundante. Estes preenchimentos, para consolidação do papel e camadas subjacentes em falta, foram aplicados de forma pouco cuidada, ultrapassando as margens da lacuna existente, numa sobreposição considerável aos fusos gravados (Imagem 93). Este tipo de intervenção é muito superior em número e 3 2 1

93

Globo celeste. 1 - Sobreposição das massas na gravura original. 2 – Massas.

extensão notonalizada globo aterrestre, ocupando aproximadamente 20% 3 – Massa verde da sua superfície.

Após levantamento das massas de intervenção no globo terrestre, verificou-se a existência de galerias provocadas por insecto xilófago, aparentemente inactivo: na camada de papier mâché, na tela subjacente e nas faixas de madeira, nestas com maior incidência nas zonas sobrepostas às aduelas verticais correspondentes. A observação directa do interior da esfera não indicia a presença do insecto xilófago nas aduelas de

232 tela , fixada com pregos de ferro de fabrico industrial, 95 Faixas de madeira manchada. Globo terrestre aparentemente sem função estrutural pois não existe lacuna subjacente.

Os pregos de fixação das faixas estão muito oxidados, tendo a ferrugem atingido a área de madeira adjacente. O globo celeste apresenta uma camada de verniz mais espessa que o terrestre, com menor extensão de massas de preenchimento. Possui abrasão acentuada na zona circundante ao pólo sul, resultado do mau posicionamento do anel meridiano no guia metálico, e na zona do equador provocada pelo contacto e fricção junto ao anel do horizonte. A estrutura interna de madeira apresenta-se em bom estado de conservação, com o eixo e aduelas estáveis. Depois de removida a calote polar sul verificou-se alguma falta de aderência entre as duas camadas de gesso original, o que era menos evidente no globo terrestre. A deterioração, com destacamento e pulverização das massas originais nas zonas subjacentes e circundantes às aplicadas em intervenção anterior, é comum aos dois globos (Imagem 96).As massas não originais variam em espessura, atingindo, em muitos

96 Massas originaismâché subjacentes destacados casos, o papier e aos na fusos maioria, uma massa com tonalidade rosada233de dureza média, nas áreas circundantes da lacuna,

94

Papel de embalagem de bolachas Aliança

madeira. Durante esta operação foi retirado do interior do globo um fragmento de papel de embalagem de bolachas da Sociedade Industrial Aliança231 (Imagem 94). O globo terrestre apresenta no revestimento de faia uma zona com grande fragilidade provocada pelas inúmeras galerias de insecto, com quebra de algumas faixas e uma lacuna. Uma mancha com limites bem definidos, parece resultar da oxidação provocada por contacto directo com um elemento metálico, possivelmente uma placa de calibração da esfera (Imagem 95). Uma área sobre o papier mâché foi reforçada com remendo de

230

97

Massas com tonalidade rosada

junto à camada original. (Imagem 97)

Análise micro química e Microespectroscopia de Infravermelhos (mS-FTIR). O óleo presente nestas amostras poderá corresponder a um componente das massas ou das tintas utilizadas nos repintes que as cobrem. Não foi ainda possível datar esta embalagem, o que permitiria uma cronologia de uma das intervenções de restauro. Tela de algodão cru. 233 Massa com composição de gesso, cré, cola de pele, óleo e ocre. 231 232


Os espigões metálicos colocados nos pólos que unem o eixo interno ao meridiano metálico, apresentam estabilidade física e boa união com a estrutura interna. Os anéis meridianos Os anéis meridianos não possuem as características equivalentes ao valor destes globos. Peças desta dimensão e valor apresentam normalmente um anel meridiano de bronze maciço, sendo provável que estes não sejam os originais, podendo ter sido feitos posteriormente para substituição de outros desaparecidos ou danificados. Estes anéis com secção rectangular de 56 x 22 mm, são constituídos por uma alma de madeira234 coberta com folhas de latão nas quatro faces.A folha da face interior do anel meridiano do globo terrestre desapareceu e no globo celeste está pintada com uma tinta escura, possivelmente para evitar o reflexo da superfície policromada do globo. As outras faces apresentam cobertura espessa com verniz colorido235.As folhas de latão nas várias faces são constituídas por quatro placas com uniões soldadas. A fixação à alma de madeira é feita através de

aderente,são visíveis resíduos de produtos de limpeza na folha metálica, bem como na alma de madeira. A falta de alguns parafusos de fixação, provocou uma ligeira deformação da folha de latão, com destacamento em relação à alma de madeira.

As bases Estrutura de suporte das esferas e do anel meridiano, a base é constituída por três partes distintas destacáveis entre si: elemento inferior em madeira policromada, de formato hexagonal, com pés em garra de leão; elemento central em

99 Bases entalhada dos globos madeira policromada e tábua do horizonte octogonal em madeira policromada, suportada por quatro arcos metálicos (Imagem 99).

98

Elemento aparafusado do anel meridiano para fixação do espigão

parafusos em ferro fundido com cabeça de embutir. A alma de madeira é composta por sete elementos unidos por meio de empalmes horizontais.

Em pontos opostos do círculo, dois elementos aparafusados, em ferro fundido,fixam os espigões metálicos (Imagem 98). O elemento inferior, correspondente ao pólo sul236,é fechado na base para apoio do espigão e impedir que este desça,o que provocaria o contacto do papel da esfera com o anel meridiano. O elemento superior, correspondente ao pólo norte,é aberto nos dois extremos,para permitir a montagem do globo no anel meridiano.Nas zonas subjacentes a estes elementos,a madeira não está coberta com folha de latão,apresentando um sulco reforçado com ferro para inserção do espigão e fixação dos parafusos.

64 65 Esta base apresenta características semelhantes às de outros globos Coronelli pertencentes a colecções de vários museus237 e segue o desenho proposto pelo veneziano no Libro dei Globi. O elemento inferior, em madeira de casquinha policromada a vermelho-ocre e dourada, com formato hexagonal e um perfil ao estilo Luís XV,é constituído por quatro elementos sobrepostos, ligados entre si por colagens e encaixes. No topo, possui uma cavidade onde encaixa o espigão de ferro da parte superior. Assenta em seis pés em forma de

A face superior do anel, na zona correspondente ao pólo norte, tem duas aberturas na folha metálica possivelmente para o encaixe de um anel de horas actualmente desaparecido.A folha metálica, entre estes dois sulcos está pintada de preto.A face posterior do anel apresenta a marcação dos graus, gravada no metal.

Estado de conservação dos anéis meridianos O estado de conservação destes elementos é razoável.A folha metálica tem pontos de alteração,com maior incidência junto aos parafusos e aos elementos de fixação.No verniz muito alterado com camada de sujidade

234

100

Rodízio da garra de leão - base

garra de leão fixos na face inferior por meio de colagem e

Provavelmente madeira de nogueira – Juglans sp. (observação à lupa binocular). A utilização de verniz colorido e zonas pintadas com tinta preta é comum em instrumentos científicos metálicos. No anel meridiano do globo celeste, este elemento não parece ser original pois é feito em latão e com dimensão ligeiramente inferior. 237 Biblioteca Nacional da Áustria; Biblioteca Federeciana, Itália. 235 236


pregos,que possuem no seu interior rodízios de latão fixos com parafusos de ferro (Imagem 100), que já não existem no globo terrestre.

10 9 8 7 6 5 4 3

O elemento central, que faz a ligação com o anterior, em madeira policromada a vermelho e folha de ouro, entalhado em folhas de acanto é vazado ao centro, o que permite ser atravessado pelo espigão da parte superior.Sobre ele está assente

2 1

Estado de conservação das bases

Corte estratigráfico dourado de uma garra.1Preparação;2- Bolos; 3- Dourado; 4- Preparação; 5- Amarelo; 6- Verde; 7- Verde escuro; 8- Dourado; 9- Matéria orgânica; 10- Vermelho Os elementos de madeira da base encontravam-se muito atacados 102

por insecto xilófago, hoje inactivo, apresentando inúmeras galerias

101

Guia metálico para anel meridiano

um elemento metálico em forma de cruz, em latão dourado, fixado através de pregos de ferro, onde encaixam dois rodízios, que permitem o movimento do anel meridiano (Imagem 101).

O elemento superior é constituído pela tábua do horizonte, formando um anel octogonal, sustido por quatro arcos em espiral de ferro dourado ligados a um espigão também de ferro que faz a ligação com o elemento inferior da base. A tábua do horizonte, em madeira de mogno, apresenta a face exterior coberta a folha de ouro, a face interior revestida com uma camada fina de gesso pintado de azul e a face inferior de vermelho. O anel é composto por pranchas de madeira em dois níveis, sendo que a superior238 apresenta oito elementos de madeira com uniões por empalme diagonal e a inferior239 oito elementos com uniões a meia madeira. Em pontos opostos ao círculo,duas ranhuras com 2,7 cm de largura,servem de encaixe ao anel meridiano.A tábua do horizonte do globo terrestre tem este encaixe reforçado interiormente com dois elementos metálicos, e no globo celeste um dos encaixes apresenta uma protecção em pele numa das faces e resíduos na outra. A face superior deste anel serve de suporte a oito folhas independentes de papel gravado com o Zodíaco, o calendário e uma graduação, colada directamente na madeira. Nos pontos analisados foram identificadas três camadas cromáticas, destacando-se a presença de pigmentos, como o verde de crómio e o azul de cobalto, que surgem apenas no início do séc. XIX, correspondendo a repintes ou intervenções posteriores (Imagem 102). No elemento inferior, subjacente ao vermelho foram detectadas velaturas de verde de crómio240 aglutinado a óleo de linho, e vestígios de uma preparação em que está presente o zinco. As garras e o elemento de acantos central apresentam vestígios intercalares de folha de ouro, estando a superfície actualmente coberta com folha de ouro falso241. A preparação original, à base de gesso e cré aglutinados a cola de pele, está presente nas amostras levantadas nestas duas zonas. Os elementos metálicos, arcos e o guia com rodízios, estão dourados a ouro falso.

e mesmo perda de suporte no elemento central. Estes elementos também apresentavam fracturas: pelo movimento da madeira provocado por oscilações de temperatura e humidade, pelo excessivo peso exercido sobre eles e também pela presença de pregos oxidados no seu interior. As garras estão debilitadas ao nível da sua fixação com o elemento hexagonal que se lhe sobrepõe e a policromia encontra-se fissurada, com alguns destacamentos. Uma camada de sujidade cobria toda a base, em especial nos elementos mais expostos, bem como vestígios da presença de insectos. Os metais encontravam-se bastante oxidados, em especial os pregos que prendiam as garras à estrutura da parte inferior. Os rodízios apresentavam pontos com tonalidade verde, característicos da alteração do cobre. Os arcos em ferro redourados e com o verniz alterado e escurecido, apresentavam destacamentos e uma fractura num dos elementos. O espigão de ferro que encaixa no elemento inferior, apresentava corrosão acentuada à superfície. Podemos considerar que todos os elementos metálicos (calotes polares,espigões, pregos e ferros das bases) presentes nas bases e esferas são forjados, mesmo que originalmente tenham sido fundidos, tiveram tratamento posterior apropriado a cada peça. O anel do horizonte apresenta lacunas na folha de ouro, nos cantos e uniões das madeiras. Existem lacunas no papel, principalmente nas zonas exteriores da periferia da tábua do

103

238

Com espessura de 1 cm no globo terrestre e 2 cm no globo celeste. Com espessura de 3 cm no globo terrestre e 2 cm no globo celeste. Azul da Prússia + amarelo de crómio. 241 A Espectometria de Fluorescência de Raios-X detectou o cobre como elemento maioritário. 242 Mais numerosas na tábua do horizonte celeste. 239 240

Papel gravado da tábua do horizonte


A INTERVENÇÃO A intervenção de conservação e restauro, teve como objectivo a estabilidade física destes objectos e a reposição da informação cartográfica que se perdeu ao longo do tempo. Este segundo aspecto, não sendo consensual entre os críticos, parece-nos uma opção válida, atendendo à extensão das lacunas, essencialmente no globo terrestre, e à possibilidade de acesso ao desenho original, ou muito semelhante, dos fusos, devido à colaboração da Bibliothèque National de France. A extensão das lacunas preenchidas com massas pintadas, no globo terrestre, definiu o critério de reposição de fusos fac-similados. A qualidade e a variedade da paleta de cores no globo celeste, determinaram a remoção total dos vernizes amarelecidos. Constituindo estes objectos um par, os mesmos critérios foram aplicados a ambos, tendo a desagregação das massas originais determinado o número e extensão de fusos originais a destacar. Como referimos anteriormente,o Departamento da Calcografia do Museu do Louvre conserva as chapas da gravura dos fusos celestes, executadas por Nolin em 1693. Essa edição apresenta algumas diferenças em relação aos fusos dos exemplares da Sociedade de Geografia. Na edição de Paris, o desenho apresenta linhas cruzadas para o sombreado e volumetria das figuras - por oposição ao contorno e traçado interior nas peças em estudo - os textos são gravados com um tipo de letra diferente,não tem os caracteres árabes nashki,e a representação do céu é feita na versão convexa, estando as figuras invertidas.

eliminação de manchas, união de rasgões ou reposição de letras perdidas, reproduzidas de outra área do globo. Reimpressões destas matrizes forneceram os fusos aplicados nas lacunas do globo terrestre da Sociedade de Geografia (Imagem 104).

104

Fusos fac-similados. Globo terrestre

As esferas Ultrapassada a primeira dificuldade, que foi o transporte destes objectos, procedemos à construção de um suporte de trabalho, que permitisse a suspensão e rotação dos globos durante as várias fases de tratamento245. (Imagem 105)

66 67

Partindo da reprodução das chapas de Paris, executada em fotogravura243,Alain Roger imprimiu novos fusos, recorrendo à técnica da serigrafia244. Esta solução permitiu a rotação das figuras mantendo os textos iguais, através de duas impressões no mesmo papel, tapando alternadamente, as figuras invertidas e o texto na posição correcta. Como o estilo da gravura é diferente, o resultado final não foi satisfatório. Nas lacunas em que o desenho apresentava menor intensidade do traçado, a aplicação dos fusos foi mantida, sendo o balanço final positivo pela reposição de informação perdida, nomeadamente os textos.Na lacuna existente nas constelações Serpentário e Hércules não existe texto. A introdução de desenho com linhas cruzadas muito intensas e compactas, desvirtuava o carácter estético do desenho cartográfico. Com um desvanecimento da intensidade dos traços da gravura, é possível uma aproximação ao contorno da figura, seguido de uma tonalização aproximada às cores circundantes. Não existindo as chapas originais do globo terrestre, Alain Roger e a sua equipa, reproduziram novas matrizes destes fusos, recorrendo a processos utilizados na cartografia a partir de satélites de observação. Utilizando um programa informático, são criadas imagens esféricas, a partir de um globo em bom estado de conservação, e adaptadas para uma imagem plana. O conservador-restaurador intervém na fase de tratamento de imagem, fazendo um “restauro virtual”: remoção do verniz,

243

105

Sala de trabalho

Após a desmontagem do anel meridiano, as esferas foram colocadas nos suportes de trabalho e analisado o sistema construtivo da estrutura interior de madeira. Numa primeira abordagem, foi efectuada uma pequena perfuração no globo celeste, numa área com massas não originais, para introdução de um aparelho de endoscopia246. A estrutura interior foi observada mais detalhadamente através da ampliação da abertura, pois a extensão da massa e a não sobreposição com uma aduela assim o permitiu247. O interior do globo terrestre foi observado através de uma lacuna no revestimento de faia, após remoção das massas não originais. A iluminação interior foi efectuada com uma lâmpada incandescente de pequena dimensão, com observações de curta duração, pois esta provocava aquecimento no interior do globo.

A reprodução de uma nova chapa gravada evita o uso das chapas originais e permite um número elevado de impressões. Processo de impressão planográfico em que a tinta é aplicada através de uma rede com uma emulsão fotossensível, onde se projectou a imagem. Sobre a caixa de transporte e o suporte de trabalho falaremos no capítulo da Conservação Preventiva. 246 Aparelho facultado pelo Laboratório de Mineralogia e Petrologia do Instituto Superior Técnico. 247 Neste processo, foi necessário cortar um pequeno quadrado no revestimento de faia, reposicionado durante o preenchimento com novas massas. 244 245


Na sequência das análises efectuadas à composição das massas e tintas não originais248, procedeu-se a ensaios de levantamento das mesmas.A aplicação de água tépida, água acidulada249 e Tylose® 250 amoleceu as massas, mas, pela alta higroscopicidade do cré e do gesso, rapidamente atingiu as camadas subjacentes, tornando difícil a sua remoção isolada sem arrastamento do papel. A remoção mecânica era eficaz, mas provocava, pela trepidação, algum destacamento das massas originais circundantes, em estado avançado de desagregação. O uso de decapante resultava medianamente na remoção das tintas aplicadas sobre as massas, mas comportava alguns riscos nas zonas limítrofes junto ao papel original. Todos estes processos foram aplicados conforme as características da zona intervencionada. Em primeiro lugar foram removidas as zonas limítrofes das massas (Imagem 106), com menor espessura, tendo-se sempre verificado uma sobreposição considerável ao papel gravado. A remoção mecânica revelou os melhores resultados, essencialmente nas zonas em que o papel subjacente ainda

108

Compressas de água acidulada

ou maior dimensão e arrastava, por vezes, a camada superficial do papier mâché, quando este estava em contacto directo. No globo terrestre, na parte central das áreas mais extensas, a espessura da massa foi reduzida com disco abrasivo aplicado com mini-craft. Na parte interior das áreas mais extensas a tinta foi removida mecanicamente, em simultâneo com a massa subjacente. Nos preenchimentos de menor dimensão e também de menor espessura, aplicou-se decapante252, com eliminações intercalares com água, para se visualizar a fronteira com o papel original, para posterior remoção das massas subjacentes. As zonas limítrofes foram sempre removidas mecanicamente.

106

Remoção das zonas limítrofes das massas

apresentava a camada de verniz, tendo actuado como barreira de protecção. No entanto, em muitos pontos este processo não resultava, pelo grau elevado de dureza das massas, sendo necessário recorrer ao seu amolecimento. Nesses casos utilizámos a Tylose®, processo de humidificação mais lento, mas mais controlado que a água acidulada (Imagem 107).

Numa primeira abordagem aos vernizes de protecção, pensámos manter esta camada, reduzindo a sua espessura e, consequentemente, diminuindo a intensidade da sua tonalidade amarela. Foram testados vários solventes, entre eles: acetona (acção rápida e eficaz); gel de 1 Metil 2 Pyrrolidinona (acção média); gel de isopropanol e toluol (acção média) e gel de isopropanol (acção média)253. Os solventes na forma de gel permitem uma acção controlada na remoção de vernizes, com melhores condições de trabalho para o utilizador e menor inalação de vapores tóxicos. Demonstrando igual eficácia, a escolha recaiu sobre o de menor toxicidade, gel de isopropanol254. Aproximadamente metade da superfície de cada globo foi limpa com este gel (Imagem 109) que, aplicado sobre uma pequena área, actuava durante segundos, sendo removido com isopo255 de algodão. Entre cada aplicação, era usado um solvente256 para remoção dos resíduos.

107

Zonas de lacunas delimitadas

As zonas de espessura média, sem papel subjacente, foram removidas por meio mecânico e por aplicações sucessivas de compressas de algodão com água acidulada, o que permitiu cortar “em fatias” a camada mais superficial (Imagem 108). Nas zonas de maior espessura251, como o centro das áreas de maior extensão, recorremos ao formão, goiva e lâmina de X-acto ou bisturi, com batimentos ligeiros com martelo. Este processo provocava o destacamento por fragmentos ou blocos de menor 248

109

Limpeza do verniz com gel de isopropanol

O levantamento de amostras para análise e identificação dos pigmentos e respectivos aglutinantes foi efectuado após levantamento dos vernizes. Solução de água + ácido acético, com pH 4. Éter de celulose que, em solução aquosa pode ser utilizado como cola ou encolagem. No caso presente foi empregue como agente humidificante. 251 Em algumas zonas, estas massas não originais chegavam à camada de papier mâché, podendo atingir uma espessura de 2 cm. 252 Decapante lavável Robbialac® D-013-0070. 253 WOLBERS, Richard, New Methods of Cleaning Painted Surfaces, [p. 45-46]. 254 Isopropanol (300 ml) + água (50 ml) + Ethomeen® C25 (20 ml) + Carbopol® 954 (6 g). 255 Cotonete. 249 250


Procedeu-se ao levantamento total do verniz nos fusos de papel com necessidade de destacamento, pela deterioração das camadas subjacentes. Sendo necessária a aplicação de humidade no papel para o seu destacamento e posterior reposicionamento, foi essencial a remoção total do verniz, para que o papel se pudesse movimentar em todas as direcções, com relativa proporcionalidade, de modo a evitar distorções nas folhas. Nesta fase do trabalho, verificou-se que iriam ocorrer dificuldades em uniformizar as áreas com levantamento total e as de levantamento parcial do verniz. Atendendo às cores reveladas no globo celeste durante esta operação, optou-se pela remoção total desta camada, aplicando-se o mesmo critério no globo terrestre.

112

Zona com verniz original

113

Remoção do verniz após aplicações de acetona

114

Zona com verniz removido

Utilizou-se o solvente que apresentou melhores resultados nos testes prévios. A acetona foi aplicada em compressas de algodão, papel absorvente e papel japonês fino, sendo este último o método que apresentou melhores resultados.

110

Aplicação de acetona sobre papel japonês

desagregação. Algumas áreas foram removidas pontualmente com isopo, utilizando o solvente ou o gel de limpeza, ou mesmo pela acção mecânica do bisturi.

111

Arrastamento do verniz para o papel japonês

O solvente foi aplicado a pincel sobre um pequeno rectângulo de papel japonês fino257, removido depois de actuar alguns segundos. Com a evaporação do solvente o verniz é transportado para o papel (Imagens 110, 111). As compressas de papel foram aplicadas em rectângulos alternados (como num tabuleiro de xadrez), nunca ultrapassando uma área possível de executar num período de trabalho. Esta alternância e a delimitação da área de aplicação teve como objectivo minimizar a formação de auréolas. Estas por serem de verniz regenerado pela aplicação do solvente são mais difíceis de eliminar. A operação foi repetida até à eliminação total do verniz. (Imagens 112,113 e 114) O número de aplicações variou consoante a espessura e o estado de degradação do verniz. A superfície do globo parcialmente limpa com o gel de limpeza ofereceu maior resistência à acção da acetona, resultado da regeneração do verniz. A aplicação do solvente, na superfície sem acção prévia do gel, provocou alguma quebra do verniz em forma de palhetas (Imagem 115). Nestes casos, ligeiras fricções com uma trincha ou lâmina aceleraram o processo, retirando parte do verniz em

256

Este método revelou grandes vantagens, pois a utilização de um papel intercalar evita uma acção mecânica directa na camada cromática e a captação do verniz pela evaporação do solvente, minimizando a possibilidade de arrastamento dos pigmentos com alguma desagregação. Em simultâneo, implica uma quantidade menor de solvente e uma evaporação rápida, diminuindo a possibilidade da penetração do verniz no papel. No entanto, verificou-se alguma penetração do solvente e verniz no papel do globo terrestre, menos protegido pela camada cromática e por uma encolagem mais fraca, resultando zonas de manchas escurecidas do papel.

115

Verniz após aplicação da acetona sem limpeza prévia com gel

Os repintes efectuados directamente nas camadas de papel, foram removidos com Fred gel258, neutralizado com solvente259, aplicados a isopo. (Imagem 116)

White spirit + isopropanol (1:1). Para este processo é possível a utilização de um papel fino que se adapte com alguma facilidade à forma redonda e tenha alguma capacidade de absorção, como o papel japonês, o papier bolloré (papel fino de qualidade, com ausência de pasta de madeira). 258 1 metil 2 pirrolidinona (100 ml) + água (25 ml) + Ethomeen C25 (20 ml) + Carbopol (2 g). 259 White spirit + isopropanol (1:1). 257

68 69


O destacamento dos fusos respeitou, sempre que possível, as uniões existentes entre eles. Naqueles em que a lacuna ocupava

116

Remoção de repinte

uma área diminuta, optou-se pelo corte a meio do fuso, seguindo a marcação de um círculo secundário, para evitar o seu destacamento completo. Fizeram-se incisões verticais nos limites da área a destacar, para levantamento total das camadas de papel subjacente,pois os fusos gravados apresentavam pouca resistência face ao manuseamento. Estes foram protegidos com um facing em papier bolloré sobre o qual foi aplicada Tylose a 4%, cobrindo-se em seguida com Melinex®260 para impedir uma evaporação rápida e providenciar um suporte para o fuso. A Tylose proporcionou a humidade necessária para amolecer a cola subjacente e favorecer o destacamento das várias camadas de papel. Os fusos apresentavam inúmeras lacunas, correspondentes à inclusão das massas não originais e desagregação do gesso subjacente,que se destacou de forma irregular resultando em pontos de grande tensão no papel. (Imagem 117).

fazer-se antes implicaria distorções e deslocações durante o processo de reposicionamento na esfera. Em simultâneo, procedeu-se à consolidação dos elementos da estrutura interior de madeira do globo terrestre. Removidas as massas não originais, eliminou-se o remendo de tecido e cortou-se a tela original sobreposta à zona de maior fragilidade. A zona do revestimento de faia que apresentava forte ataque de insecto xilófago e algum apodrecimento com quebra de elementos, foi aberta através do corte da madeira, numa área aproximada de 40 cm2. Dois pregos da calote metálica sul, que provocavam distorções na parte interior, foram removidos. Os elementos triangulares que se encontravam parcialmente destacados foram reposicionados, utilizando uma régua de madeira para exercer pressão, introduzida pela abertura do revestimento (Imagem 119).

119

117

Destacamento de fuso original com desagregação do gesso subjacente

Reposicionamento dos elementos de madeira da estrutura interna

Os elementos partidos, um triângulo e respectiva aduela, foram reposicionados e colados. Os pregos removidos foram substituídos por parafusos de latão, que permitiram a fixação destes elementos, exercendo uma ligeira força contrária à pressão provocada pela calote metálica exterior. A cabeça dos parafusos foi tonalizada com a cor da calote polar metálica.As madeiras removidas no revestimento foram substituídas por novas faixas de faia, fixadas às aduelas com pregos de arame fino (Imagem 120).A tela original foi esticada e pregada, aplicando-se uma camada de PVA261 como isolamento.

Estes fusos foram tratados individualmente em plano. Removido o facing e a protecção de Melinex®,eliminaram-se os resíduos das massas (Imagem 118) e do papel subjacente do verso, humedecendo-os com água ou Tylose e raspagem com lâmina. Os vestígios de verniz que ainda permaneciam na frente do papel foram removidos com acetona. Os fusos foram planificados e reforçados com papel japonês e cola de amido.O preenchimento das lacunas foi efectuado depois da montagem no globo, pois a

Removidas as massas originais em desagregação, as lacunas foram preenchidas com uma camada de polpa de papel262 com adição de PVA, até atingir a espessura necessária (Imagem 121). Depois da secagem, foi aplicada tela gessada263 humedecida e

118

120

260

Eliminação dos resíduos de massas no verso dos fusos destacados

Película transparente de poliéster da Dupont and Teijin Films. Acetato de polivinilo. Pappmaché® da Eberhard Faber GmbH. 263 Gaze com gesso coloidal. 261 262

Substituição das faixas de madeira


inserção de tela gessada e/ou massa. Como barreira entre a massa e os fusos de papel gravado, foi

124 121

Padrão em cartão, para delimitar a espessura da camada

Delimitação com polpa de papel da zona com levantamento de massas

cortada em rectângulos, formando cruzamentos entre si, para distribuição das forças exercidas (Imagem 122). Nas margens das lacunas, a tela gessada foi introduzida no papier mâché, com a ajuda de um pico metálico, resultando um reforço com fixação

70 71 122

Aplicação da tela gessada 125

Finalização da aplicação de massas. Globo terrestre

126

Finalização da aplicação de massas. Globo celeste

forte às zonas circundantes. Este processo é efectuado por camadas, com secagens intercalares, possibilitando um preenchimento até à camada superficial,sem aumento excessivo do peso. Sobre estas camadas, procedeu-se à finalização da esfera. A superfície das lacunas foi coberta com uma massas acrílica de grão fino264, em finas camadas sucessivas, com secagens intercalares, e com a ajuda de uma espátula curva em cartão (Imagem 123), uniformizando-se com lixa manual ou disco abrasivo eléctrico. Para atingir a forma correcta, foi utilizado um padrão em cartão com recorte circular (Imagem 124), para definição dos limites superficiais da intervenção (Imagens 125 e 126). Nas lacunas de menor dimensão, o papel original circundante foi cortado em cruz e ligeiramente levantado, para

123

264

Aplicação da Polifila

Polifila®.

aplicado um papel japonês espesso, cortado em gomos e com sobreposições não coincidentes com as dos fusos superiores. O papel, depois de humedecido, foi colado sobre a esfera, com uma mistura de PVA e cola de amido, aplicada sobre a massa, e pressionado com espátula de Teflon® para eliminação de bolsas de ar e excessos de cola.


Após secagem, foram aplicados os fusos fac-similados nas lacunas existentes, incluindo as zonas em que se destacaram os fusos originais. Antes de serem colados estes fusos impressos em papel avergoado de cor branca, foram tonalizados com tinta acrílica265, com uma cor ligeiramente mais clara que o fundo do globo terrestre, aplicada com aerógrafo (Imagem 127). As

subjacentes necessárias, aplicados com justaposição à área circundante. Lacunas das camadas mais superficiais foram preenchidas com papel ou pó de papel269 (Imagem 130) tonalizado com aguarela.

130 127

Tonalização dos fusos fac-similados

margens foram desbastadas no verso, para evitar espessuras exageradas nas zonas de sobreposição e os fragmentos dos fusos originais foram colados por cima dos novos. Os fusos fac-similados e os originais, foram bem humidificados266 e a cola aplicada na superfície do globo.A sua fixação foi feita sob forte tensão, obrigando o papel a acompanhar a forma esférica e o desenho cartográfico a coincidir nos fusos adjacentes. No final, a pressão exercida com uma espátula, ajudou a eliminar as bolsas de ar e os excessos de cola removidos com uma esponja. (Imagens 128) Estes processos utilizaram sempre uma película

128

Preenchimento de pequenas lacunas com papel

Após secagem total dos fusos colados procedeu-se à impermeabilização da superfície, utilizando Tylose MH300P a 4% aplicada a trincha, em camadas sucessivas até atingir um grau de saturação do papel.A integração cromática sobre os fusos não originais foi executada sobre esta camada, depois de seca. Para tal, utilizou-se tinta acrílica e aguarela270, diluídas em água e aplicadas a pincel. Como camada final de toda a superfície foi aplicado um verniz de protecção. Utilizou-se uma resina natural, diluída em etanol, aplicada a boneca271 em movimentos circulares. Esta era mergulhada no verniz e aplicada após absorção deste no seu interior,o que se detecta quando desaparece o brilho no tecido. Áreas de pequenas lacunas dos fusos originais foram tonalizadas a aguarela entre as duas camadas deste verniz (Imagem 131).

Colocação dos fusos fac-similados

intercalar de protecção267 à acção mecânica. Para cada lacuna a colocação dos fusos foi feita num único período de trabalho, para verificação dos acertos das folhas e secagem simultânea da mesma camada268.Após este processo, os fragmentos dos fusos originais foram reposicionados e colados, servindo os fusos fac-similados subjacentes como guia de acerto (Imagem 129). 131

Zona com tratamento finalizado com integração dos fusos

As bases

129

Colocação dos fragmentos originais

Nas lacunas menores, sem levantamento dos fusos originais, foram recortados fragmentos dos fusos fac-similados e, depois de executado o processo de preenchimento das camadas 265

A intervenção efectuada nas bases dos globos compreendeu o tratamento preventivo e curativo da madeira, a limpeza e fixação da policromia, a consolidação da estrutura de madeira e a remoção de produtos de alteração, estabilização e protecção dos metais. A fixação da policromia foi efectuada com uma solução de PVA272 e água273, aplicada a pincel. Em simultâneo, procedeu-se à limpeza da superfície com White spirit, sendo os pontos de

Liquitex®.Tintas de base aquosa. Os fusos fac-similados foram imersos em água durante alguns minutos, até que o papel atingisse um grau de saturação suficiente para responder bem às manipulações necessárias à sua adaptação à forma esférica do globo. Reemay (poliéster não tecido) ou papier bolloré. 268 A cola utilizada foi uma mistura de cola de amido e PVA (1:1). 269 Pó de papel referência Whatman CF11. 270 Liquitex® e aguarelas Windsor & Newton. 271 Tecido com algodão em rama no interior, formando uma bola, com as pontas torcidas fortemente. 272 Mowilith DMC 2. 266 267


sujidade mais resistentes removidos com uma solução de água com detergente274. A consolidação das madeiras, necessária para a estabilidade estrutural dos vários elementos, seguiu metodologias diferentes, consoante o seu estado de conservação.As lacunas das garras foram preenchidas com pasta de celulose275, PVA e pequenas faixas de madeira de balsa (Imagem 132).

Os anéis meridianos Para a intervenção nos anéis meridianos, procedeu-se à desmontagem das folhas metálicas, através da remoção dos parafusos de fixação, para análise do estado de conservação da alma de madeira e eliminação dos resíduos de produtos de limpeza. Os elementos metálicos foram tratados à semelhança dos existentes nas bases e aplicada nova camada de protecção, sendo os parafusos de ferro substituídos por outros de latão.

Conservação preventiva Uma das primeiras dificuldades que encontramos na conservação destes objectos prende-se com o seu transporte. Nos globos de menores dimensões uma caixa com material de suporte e travamento será suficiente, mas para um globo

132

Garras de leão após o preenchimento das lacunas

No elemento inferior, foram aplicadas camadas sucessivas de pasta de celulose, pasta aquosa de madeira276 e, por último, uma massa acrílica de grão fino277 tonalizada com tinta acrílica e guache, que serviu de base para a integração cromática final. O elemento central foi impregnado com uma solução de Paraloid B72278 diluído em xilol numa concentração a 6%, por aplicações sucessivas. As lacunas da camada cromática foram integradas com tinta acrílica e guache, à qual se adicionou pigmento dourado279 para as lacunas da folha de ouro.Toda a superfície foi protegida com cera microcristalina. Os elementos metálicos, arcos e rodízios, foram limpos com etanol para remoção do verniz, seguido de aplicação de uma solução de ácido cítrico a 3%280 para remoção dos pontos de alteração.Os produtos de alteração dos pregos foram removidos mecanicamente e o metal protegido com cera microcristalina.

133

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Transporte dos globos da Sociedade de Geografia

de maiores dimensões outros cuidados são necessários.

A caixa de transporte foi concebida de modo a proporcionar uma base de trabalho para a conservação dos globos (Imagem 133). Construída em contraplacado, os vários elementos que a compõem são desmontáveis para fácil acondicionamento em reserva, e quatro placas laterais suplementares mais baixas, que podem proporcionar uma caixa de trabalho preenchida com um material inerte. Elementos em espuma de polietileno282, servem de encaixe e apoio ao anel meridiano. A esfera foi

A intervenção no espigão metálico do elemento superior compreendeu a remoção mecânica dos produtos de alteração e estabilização com ácido tânico.Em seguida fez-se a protecção com cera microcristalina e um envolvimento com Melinex®. Esta película isola os produtos de alteração que se formam à superfície do metal, impedindo um possível tingimento da madeira. 2

Na tábua do horizonte foi feita uma limpeza prévia com saliva sintética281 para remoção da sujidade que se depositou na superfície ao longo dos anos. À semelhança dos globos, removeram-se as camadas de protecção superficial para consolidação do papel gravado. As lacunas do papel gravado foram preenchidas com fragmentos dos fusos fac-similados e tonalizados com tinta acrílica. Sobre uma camada prévia de encolagem com Tylose MH 300p, foi aplicada a boneca uma camada de protecção com uma resina natural 273

1

1

1 2

Fig.10 Caixa transporte 1. Placas adicionais Elementos em espuma travada nodeseu interior para que 2.não pudesse rodar (Figura 10).

Com adição de Agepon, surfactante que baixa a tensão superficial, favorecendo a penetração nas camadas a consolidar. Lissapol N– detergente não iónico. Polpa de papel + cola + água. 276 Veraline® + cola + água. 277 Modostuc®. Massa à base de cré e caolino. 278 Resina acrílica da Rohm & Haas. 279 Ouro Royal e Ouro Mica. 280 Neutralizada posteriormente por lavagem com água desionizada 281 Solução de limpeza com pH neutro, constituída essencialmente por água, juntamente com uma gama de enzimas, um agente quelante, um tensioactivo e material polimérico que sustém e transporta a sujidade removida. 274 275


Para o trabalho de conservação e restauro foi essencial a manipulação do globo em diversos ângulos e com alguma facilidade. Nos globos menores é possível trabalhar com o globo apoiado numa bacia protegida com material não abrasivo ou sobre anéis de cortiça, polietileno ou poliestireno talhados na dimensão adequada. Nos globos de maiores dimensões é possível o recurso a um suporte de madeira que permita a rotação da esfera durante todo o processo de intervenção. Esta última foi a opção escolhida para o trabalho de conservação dos globos da Sociedade de Geografia. Este suporte é constituído por dois apoios verticais, com encaixes laterais para os espigões do globo, e travamento horizontal, na parte inferior e superior, para impedir qualquer afastamento dos primeiros elementos. Dois elementos com encaixe no travamento horizontal e com a parte superior protegida com espuma servem

globos fossem deslocados ou mexidos, evitando que estivessem sujeitos a constrangimentos mecânicos ou ao contacto directo com o público. A hipótese das peças voltarem para o seu local anterior de exposição, a Sala da Biblioteca, não é de momento a mais indicada, já que este, além de ser um espaço de uso comum e não propriamente museológico, apresenta também alguns problemas de vibração e de protecção em relação aos utentes. Procedeu-se assim ao estudo das condições de iluminação e do comportamento termohigrométrico das salas seleccionadas (utilizando os dois Data Logger, disponibilizados pela instituição). Referiu-se, na altura, a importância de no decurso do estudo das salas, não ser alterada a sua rotina tanto de utilização, como de manutenção, de modo a obterem-se resultados fidedignos

Humidade Relativa e Temperatura O estudo termohigrométrico teve início a 30 de Maio de 2003, com registos de hora a hora, tendo ficado concluída uma primeira fase a 19 de Dezembro, deste mesmo ano. A partir da monitorização realizada verificou-se que as duas salas possuem um comportamento termohigrométrico semelhante. No entanto, as oscilações de humidade relativa e temperatura, ainda que lentas em ambas, são mais pequenas na Sala dos Padrões, o que se deve ao facto desta ser um espaço interior sem janelas, que comunica com a Sala da Índia somente através de uma porta central, que nem sempre se encontra aberta. Deste modo, de acordo com o já referido, na Sala da Índia registaram-se os valores mais elevados e mais baixos, tanto de humidade relativa, como de temperatura283:

TEMPERATURA

HUMIDADE RELATIVA

Mínimo Máximo

134 apoio Suporte de trabalhoee travamento elementos de travamento. de adicional à esfera. (Imagens 134)

A conservação de globos, como de qualquer outro objecto, implica antes de mais a sua manutenção em boas condições no local de exposição ou de armazenamento. A Sala da Índia e a Sala dos Padrões, contíguas, situadas no segundo piso da Sociedade de Geografia de Lisboa, foram as alternativas sugeridas, pelo Prof. Dr.Aires de Barros e a pela Dra. Manuela Cantinho,para a exposição futura dos Globos Coronelli. Na selecção do espaço de exposição foram postas de lado soluções que obrigassem,ainda que circunstancialmente,a que os

282 283

Mínimo

Máximo

SALA DA ÍNDIA

13,6 ºC

31,6 ºC

37 %

71,1 %

SALA DOS PADRÕES

14,1 ºC

29,6 ºC

39,4 %

65,1 %

Para a conservação dos Globos, como parte integrante do acervo museológico ali contido, os valores registados nas salas não são problemáticos. As oscilações observadas são lentas e sem grande amplitude, permitindo aos diferentes materiais constituintes - orgânicos e higroscópicos (madeira, tela, gesso/cré,papel),que podem variar dimensionalmente - a adapta-ção sem stress mecânico. Os valores detectados de HR mantiveramse dentro de um intervalo que não põe em risco a preservação das obras, sendo que, entre estes, os mais elevados tendem a minimizar os danos mecânicos e os mais baixos minimizam as alterações químicas (como por exemplo, a corrosão dos elementos metálicos). Não se observaram valores extremos, fora do intervalo de 25%-75% de HR, que, caso se mantivessem,

WOLBERS, Richard, op. cit., p. 6-7. Ethafoam da Dow Chemicals - Espuma de polietileno extrudido. Em termos gerais, para o período de Junho a Setembro a temperatura oscilou nas salas, em média, entre: 24º - 29ºC na Sala da Índia e 25º - 28ºC na Sala dos Padrões. A temperatura desceu gradualmente em ambas as salas, nos meses de Outono e início de Inverno, até cerca dos 14ºC. A humidade relativa, de Junho a Setembro, manteve-se, em média, entre os valores: 42% - 54% na Sala da Índia e 47% - 54% na Sala dos Padrões.


seriam críticos para a estabilidade físico--química das peças. A partir dos Boletins Meteorológicos Diários do Instituto de Meteorologia, teve-se acesso aos valores de temperatura e humidade relativa exteriores, registados nas observações de superfície em Lisboa. Interessa-nos, para caracterizar o comportamento das salas, a avaliação do impacto do clima exterior nas condições interiores, em relação aos parâmetros de temperatura e HR. Tomou-se como referência nesta análise a Sala da Índia, uma vez que pela sua localização e características, é a que se encontra mais exposta. Apesar das temperaturas exteriores terem atingido valores à volta dos 40ºC e de sofrerem grandes oscilações, o interior da Sala da Índia manteve-se a uma temperatura inferior e relativamente constante, o que traduz a capacidade do espaço em amenizar as condições exteriores.284 O mesmo se constatou em relação à humidade relativa, em que os valores exteriores mais baixos dos dias 11, 12, 13 e 14 de Setembro foram de 25%, 23%, 32% e 19%, enquanto que no interior da Sala da Índia, em todo o período em que decorreu a monitorização, a HR não só não desceu abaixo dos 37% (valor registado no dia 14 de Setembro), como se manteve diariamente sem grandes oscilações. A abertura ao público das salas ou o aumento do número de eventos aí realizados poderá pôr em causa a actual estabilidade das condições termohigrométricas, tornando necessário que se tomem medidas prévias de controlo ambiental para compensar a perturbação daí decorrente, como o aumento de temperatura e de HR. Em seguida são apresentados os gráficos do comportamento termohigrométrico das duas salas, obtidos directamente do conjunto de registos dos Data Loggers, no período aproximado de seis meses, em que decorreu a monitorização.A sua análise, pela quantidade de dados que comportam torna-se difícil, pelo que se entendeu aconselhável desdobraram-se os registos em gráficos mensais para cada uma das salas, para se proceder à análise das curvas obtidas, verificando as amplitudes de variação, bem como o seu tempo de duração, comparando simultaneamente com os valores exteriores (registos diários às 0, 6, 12 e 18 horas), para uma melhor compreensão dos resultados (Imagens 135 e 136). Condições de iluminação e de exposição A Sala da Índia, embora raramente utilizada - salvo em casos de grandes recepções em que o tempo de permanência é curto apresenta alguns inconvenientes a ter em consideração. Por um lado, existem cinco janelas de grandes dimensões, sem cortinas, que ocupam quase na totalidade duas das paredes da sala, o que coloca problemas de excesso de luz e de dificuldade no seu controlo, para além de se reflectir negativamente na estabilidade termohigrométrica do espaço. Por outro lado, esta é uma sala que pelas características do espólio, constituído maioritariamente por peças de mobiliário que para muitos

284

visitantes mantêm o seu carácter utilitário, o que obrigará a que os globos, sendo aqui expostos, tenham de ser protegidos através de cordões que delimitem o espaço ou barreiras mecânicas dissuasoras. Prevê-se para este espaço uma intervenção com vista à melhoria das suas condições, relativamente à preservação da colecção, ainda que dependente de apoio financeiro. Nesse quadro é importante encarar a redução da intensidade luminosa e dos níveis de UV, através da colocação de películas nos vidros e de cortinas para garantir a obscuridade da sala quando esta não está a ser utilizada. Esta solução é mais económica e mais fácil de adoptar do que a substituição dos vidros das janelas, não interferindo com as características da sala e da colecção. Os níveis de iluminação determinados nesta sala com um luxímetro, no dia 19 de Dezembro de 2003, em quatro locais diferentes - ao fundo da sala e do lado direito, a uma distância de um metro de cada uma das janelas - foram de 210 lux, 280 lux, 320 lux e 180 lux. Estes valores além de reflectirem a heterogeneidade dos níveis de iluminação num espaço que depende da iluminação natural, estão muito acima dos recomendados para a conservação de algumas das obras ali expostas, como têxteis e documentos gráficos. A Sala dos Padrões, de menores dimensões, à qual se tem acesso tanto pela Sala da Índia como pela Sala Portugal, não possui nenhuma janela, apenas um vitral. Foi recentemente reestruturada, apresentando em exposição permanente uma colecção constituída maioritariamente por pedra. Em termos de iluminação, são utilizados dois sistemas de calha em cada um dos lados da sala, com focos direccionáveis. Os níveis de iluminação determinados nesta sala, a 19 de Dezembro de 2003, indicavam valores de 50 lux ou inferiores, o que está de acordo com os requisitos necessários para a conservação dos globos. Este espaço não apresenta problemas de vibração, conseguindo-se facilmente delimitar o percurso dos visitantes a um corredor central de passagem, protegendo as peças expostas em ambos os lados. No entanto, dadas as suas dimensões e o facto de se encontrar ali organizada uma exposição com coerência temática, a colocação dos globos aí levanta algumas questões de foro museológico, que necessitam de ser ponderadas. Relativamente à escolha do local de exposição para os globos é importante ter em consideração que estes não devem ser colocados em zonas onde a luz solar possa incidir directamente sobre a sua superfície. São recomendados níveis de iluminação de cerca de 50 lux (nível mínimo para uma visibilidade adequada), visto estarmos perante superfícies coloridas a aguarela, ainda que, com uma camada de verniz de protecção final. Estes valores de intensidade luminosa salvaguardam também esse acabamento, com uma resina natural, retardando a sua deterioração e consequente amarelecimento, contribuindo assim para que se mantenha uma boa leitura formal e cromática. Igualmente necessário será reduzir o tempo de exposição ao mínimo indispensável, aconselhando-se a que as luzes estejam desligadas e as cortinas fechadas, sempre que a sala não estiver a ser visitada ou utilizada.

No período de Outubro a Dezembro: 54% - 68 % na Sala da Índia e 52% - 62% na Sala dos Padrões. Verificou-se que, relativamente à temperatura, os valores máximos exteriores, foram nos dois últimos dias de Julho de 39ºC e 40ªC, e nos dias de 1 a 8 de Agosto, de 42ºC, 39ºC, 28ºC, 33ºC, 37ºC, 38ºC, 35ªC e 33ºC, respectivamente. Neste período, na Sala da Índia, os valores de temperatura, que rondavam inicialmente os 26-27ºC, subiram lentamente e mantiveram-se de 6 a 8 de Agosto à volta dos 30-31ºC (o valor mais elevado

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Os globos, uma vez no local, deverão ser acompanhados regularmente, de modo a detectar alguma alteração no seu estado de conservação, o que acontecendo, poderá tornar necessária a mudança das condições em que são mantidos ou que se tomem outro tipo de medidas de prevenção. Caso se detecte sinais de ataque xilófago com o insecto activo, tal como o aparecimento de vestígios de serrim recente,dejectos,marcas de orifícios novos ou galerias nos globos (nestes a estrutura de suporte em madeira é mais susceptível) ou em qualquer uma das outras peças presentes, deve-se proceder desde logo ao isolamento das obras - evitando assim a possibilidade de contaminação e propagação - e, logo que possível, levar a cabo o seu tratamento (tratamento curativo de desinfestação). Dos espaços estudados, a manterem-se tal como hoje se encontram, a Sala dos Padrões é a que possui de imediato as características mais adequadas para a preservação futura dos globos e, conseguindo-se ultrapassar os constrangimentos relativos à coerência temática museológica, considera-se, por enquanto, a melhor solução. (Imagem 136)


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136

Globo celeste, final de tratamento



A ESFERA CELESTE E OS GLOBOS CELESTES Um observador situado sobre a Terra, numa noite de céu límpido, tem a ilusão de se encontrar no centro de uma esfera enorme, na qual as estrelas e os restantes astros parecem incrustados. Essa esfera é tradicional-mente designada como esfera celeste e os globos celestes pretendem materializar tal esfera, como se fosse vista de fora.

EQUADOR CELESTE é o círculo máximo que se encontra equidistante dos pólos celestes e é perpendicular ao eixo da esfera celeste. (Linha cinzenta central). O equador celeste pode ser entendido como a projecção do Equador da Terra na esfera celeste. O equador celeste constitui a referência para a medição da coordenada astronómica denominada declinação, medida em graus, para norte (positivos) e para sul (negativos). TRÓPICOS CELESTES são os dois círculos paralelos ao equador celeste tais que que, quando intersectados pela elíptica, determi-nam os seus pontos Norte e Sul mais distantes do equador celeste. A estas duas intersecções dá-se o nome de solstícios (ou pontos solsticiais). O ponto solsticial norte localizava-se, classicamente, na cons-telação do Caranguejo (Cancer) e o ponto solsticial sul na constelação do Capricórnio (Capricornus). É por isso que ainda hoje se fala do Trópico de Câncer e do Trópico de Capricórnio. Actualmente estes dois pon-tos solsticiais encontram-se respectivamente nas constelações dos Gémeos (Gemini) e Sagitário (Sagittarius). Para o hemisfério norte da Terra, e utilizando a termi-nologia clássica, o Solstício de Caranguejo (Cancer), ou de Verão, e o Solstício de Capricórnio, ou de Inverno correspondem aos momentos do ano em que o dia e a noite são, respectivamente, maiores. (Linhas cinzentas) PARALELOS CELESTES são círculos menores, paralelos ao equador celeste, dos quais os mais importantes são os que definem os Trópicos, intersectando a Norte, actualmente, a conste-lação dos Gémeos (Gemini) e a Sul a do Sagitário (Sagittarius). (linha cinzenta superior) MERIDIANOS CELESTES são círculos máximos que passam pelos pólos celestes Norte e Sul da esfera celeste. Os meridianos celestes, também conhecidos como círculos horários, são perpendiculares ao equador celeste. (Linhas azuis claras) Para a medição da coordenada astronómica conhecida como ascensão recta, atribui-se o valor zero ao meridiano celeste que passa pelo ponto equinocial de Março, localizado actualmente na constelação dos Peixes (Pisces). Este meridiano é

por vezes chamado primeiro meridiano. (Linha azul escuro). O Sol passa por este ponto equinocial a 20 ou 21 de Março de cada ano, marcando o início da Primavera (para o hemisfério norte da Terra).

ECLÍPTICA é o círculo máximo marcado pelo movimento aparente anual do Sol, entre as estrelas, visto da Terra. Apresen-ta uma inclinação de cerca de 23,5º em relação ao equador celeste. A eclíptica intersecta o equador celeste em dois pontos diametralmente opostos, conhecidos como pontos equinociais (ou equinócios). O ponto equinocial de Março, onde o Sol passa a 20 ou 21 de Março de cada ano, é também conhecido como Ponto Vernal. O ponto equinocial de Setembro, onde o Sol passa a 22 ou 23 de Setembro de cada ano, é também conhecido como Ponto Outonal. Quando o Sol passa pelos pontos equinociais ocorrem os dois momentos do ano em que há igualdade entre a dura-ção do dia e da noite (equinócios). No Céu, os pontos equinociais localizavam-se, classicamente (há cerca de 2000 anos), nas constelações de Carneiro (Aries) e Balança (Libra). (Linha preta). Na actualidade estes pontos equinociais encontram-se respectivamente nas constelações dos Peixes (Pisces) e da Virgem (Virgo).

MERIDIANO CELESTE ECLÍPTICO Esta linha refere-se a um outro sistema coordenadas que toma como elementos de referência a eclíptica e os pólos eclípticos (pólos de eclíptica). A linha branca irá dar, a norte, ao pólo eclíptico norte, na constelação do Dragão (Draco).

COLUROS são os dois círculos horários (a que também podemos chamar meridianos celestes) que passam pelos solstí-cios ou pelos equinócios. O coluro dos solstícios passa pelos pontos solsticiais. O coluro dos equinócios passa pelos pontos equinociais. Os dois coluros são perpen-diculares entre si.

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