Do underground ao udigrudi Edmar Junior

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Fundação Armando Álvares Penteado

DO UNDERGROUND AO UDIGRUDI Cultura Brasileira II – Prof.ª Mônica Rodrigues da Costa Edmar Júnior 2113103313

Resumo: este trabalho tem como objeto de análise os movimentos contraculturais, procurando estabelecer as conexões entre as manifestações que se desencadearam no mundo e no Brasil. O ensaio traz apontamentos sobre o contexto histórico dos anos 1960, da Tropicália e do udigrudi, indicando o caráter experimental e híbrido da cultura contemporânea, sobretudo na música. Palavras-chave: Underground, contracultura, Tropicália, Udigrudi.

INTRODUÇÃO

Em tempos e lugares distintos, a arte liga o homem a seu passado, contribuindo para sua compreensão do presente e preparando-o para os acontecimentos futuros. Deixar de rever os eventos que podem explicar os fenômenos de uma sociedade tão complexa como a nossa é uma postura um tanto arriscada. Corre-se o risco do conformismo, da alienação ou – o que é pior – da rebeldia sem causa. No mundo globalizado, a cultura se manifesta em todos os lugares, quase que ao mesmo tempo e de maneira incontrolável, carregando influências de um lado para o outro, deixando marcado aqui o que de mais significativo está acontecendo acolá. Nesse sentido, ficar alheio ao que acontece à nossa volta é praticamente impossível. Basta observar o impacto das redes sociais nos levantes populares


recentes. Poderíamos apontá-los como contraculturais? Não. Falta-lhes um ingrediente fundamental: a arte. Este

trabalho procura

traçar um breve

voo

panorâmico sobre

os

acontecimentos socioculturais dos anos 60, quando a revolta popular tinha o respaldo de realizações artísticas, principalmente no campo da música. Segue-se com reflexões sobre a Tropicália, movimento brasileiro que se apresenta como um legítimo representante do espírito underground. Enfim, é apresentado o udigrudi, que assim como os eventos que o precederam, torna-se referência para os tempos vindouros.

OS ANOS 60 Marcado por eventos que se irradiavam de diversas partes do mundo, os anos 60 constituíram uma período repleto de episódios políticos e culturais importantes para a compreensão do homem contemporâneo. O esforço dos Estados Unidos em estabelecer a supremacia do capitalismo espalhou regimes totalitários pela América Latina e, somado à guerra do Vietnã, despertou o descontentamento daqueles que se viam sob o jugo de uma postura ditatorial e imperialista. O sentimento de repúdio a esses sistemas desencadeou atitudes assinaladas pela ousadia, já que um outro conflito mais insólito - a Guerra Fria - também concorria para a insatisfação que se avultava. Na Europa, ao expressar ideias revolucionárias, o movimento estudantil na Paris de 68 deixava claro que a situação política incomodava. Frases como "a imaginação no poder" passavam a fazer parte do vocabulário daqueles que queriam combater os valores sociais vigentes. "Os jovens começavam a pontuar uma ação transformadora em direção aos costumes" observa Ligia Canongia (2005, p. 61), e o surgimento do movimento hippie é um dos mais contundentes sinais de que aqueles garotos estavam em busca de uma alternativa à situação opressiva universal. Sexo, drogas e rock'n roll formaram o tripé no qual se sustentavam ideias e comportamentos, e desta forma o legado cultural de uma década estava sendo estabelecido. Primeiro vieram os Beatles, depois os Rolling Stones, e no final da década a guitarra de Jimmy Hendrix e as canções de Janis Joplin uniam-se à poesia da geração beatnik de Jack Kerouac e Allen Guinsberg, fomentando um


núcleo de incompreendidos, como não se via desde a Paris de Rimbaud. (CANONGIA, 2005, p. 61)

Estes "incompreendidos" foram responsáveis por uma onda underground que se propagou pelo mundo. A cultura jovem tornou-se a matriz da revolução cultural nos modos e nos costumes, nos meios de gozar o lazer e nas manifestações artísticas que cada vez mais passavam a fazer parte da atmosfera respirada nos meios urbanos. No Brasil, "os hippies, independentemente do fato de serem ou não 'artistas', propõem um 'novo estilo de vida', uma nova 'sensibilidade', que procura fazer da vida uma constante explosão de arte." (HOISEL, 1980, p. 42). Ao fazer uma crítica aos valores éticos, morais e estéticos da cultura estabelecida, o movimento hippie afirma-se como um movimento da "contracultura", cuja essência está em ser um: Conjunto de comportamentos, valores e obras que, de maneira desafiadora e contestadora, opõe-se, de um lado, aos códigos sociais, aos sistemas políticos ideológicos ou às tradições artísticas vigentes e hegemônicas; e, de outro, reivindica novos modelos e formas expressivas não convencionais no âmbito sociocultural, ou mesmo a extinção de regras condutoras. O termo ganhou notoriedade a partir de meados do século XX, em decorrência de movimentos artísticos, políticos-universitários e comportamentais de jovens da época. (CUNHA, 2003, p. 206)

Nesse cenário, a música teve um papel decisivo, principalmente o rock'n roll por sua natureza rebelde. Há 50 anos, quando os Beatles tocaram pela primeira vez nos Estados Unidos, nem aquele país nem o resto mundo podiam imaginar a força que as figuras da cultura pop viriam a adquirir. Em 1969 mais de 500 mil pessoas se reuniram para três dias de paz, amor e música no Festival de Woodstock, evento que se tornou um dos maiores símbolos do movimento da contracultura. O Brasil não ficou de fora desses acontecimentos. A partir de 1964, quando os Estados Unidos apoiaram o golpe militar que instaurou a ditadura no País, uma ruptura em relação aos discursos artísticos anteriores pôde ser percebida, seja por produções de artistas como José de Agrippino de Paula, seja pelas demais produções da arte tropicalista. Esses discursos, nos diz Evelina Hoisel (1980, p. 14), se produzem em tensão com os acontecimentos compreendidos no período de 1964 a 1969. "São por eles engendrados, mas apresentam deles uma interpretação altamente irônica, desconstrutora e reveladora dos mecanismos que configuram a malha aparente através da qual eles se deram a conhecer." (op. cit.)


Remetendo ao ensaio Cultura e Política: 1964-69, escrito por Roberto Schwarz, Evelina Hoisel observa que a cultura no Brasil antes do golpe já fazia da arte um instrumento de ação política e de denúncia social. Realizado pelos Centros Populares de Cultura (CPC), a arte era levada às favelas, sindicatos, vilas operárias etc. Uma ação só possível porque naquele tempo "o processo político social permitia uma participação das camadas populares na vida política" (op. cit). O golpe militar deteve esta experiência, mas o movimento cultural logo tomaria novos rumos. Observa Schwarz que as forças culturais foram desviadas dos operários para os intelectuais (professores, escritores, estudantes etc.) que, naquele momento, ainda não representavam ameaça ao novo sistema. Representariam mais adiante, daí o enrijecimento em 68 com o AI-5. (op. cit., p. 23).

O deslocamento da arte para as questões que envolviam a realidade política daquele período deu início a uma profícua produção cultural. Em consequência da necessidade de encontrar uma saída para a repressão, os artistas brasileiros percebem que existia um ponto de conexão entre as propostas que elaboravam e aquelas oriundas do movimento underground internacional. Incorporar as tendências de seu tempo seria justamente uma das principais características do movimento que se tornaria um dos mais importantes acontecimentos no cenário musical brasileiro: a Tropicália. A TROPICÁLIA O campo de experiência da Tropicália torna-se alvo do cruzamento de diversas informações, proporcionadas por estudiosos que forneceram múltiplas interpretações a seu respeito. Mas basta a aproximação e entrelaçamento dessas informações coletadas para entrever que esse fenômeno está envolto em um mesmo ideal de revolução e engajamento artístico. É assim que a Tropicália surge em meio à atuação da Jovem Guarda, da Bossa Nova e de outros gêneros e artistas que também trilhavam os caminhos da vanguarda, caso do cinema, do teatro, da poesia e das artes plásticas. Tomando para si elementos de culturas as mais variadas, a Tropicália misturou e abarcou diversos gêneros: música, poesia, teatro, performances, instalações. “A pureza não existe mais”. Ligia Canongia (2005, p.54) aponta que


com essa fala Hélio Oiticica teria apresentado, em 1967, sua obra intitulada Tropicália. Naquele mesmo ano, a obra de Hélio Oiticica daria nome ao movimento que marcou produções que entrariam para a história da arte brasileira, notadamente, na música. “Ali iniciava-se o trabalho de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto e outros autores, hoje consagrados, fazendo a síntese da poesia concreta, da bossa nova e da contracultura, e unindo os dados artísticos a uma visão elevada do senso político.” (op. cit.)

A noção de conexões e justaposições de discursos, típico da arte contemporânea, forneceu a tônica para as produções da Tropicália. As fronteiras entre pop e regional, erudito e popular, tradição e vanguarda foram ao poucos sendo borradas. À imagem da Tropicália estavam associadas a literatura dos modernistas de 1922, a poesia concreta dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, o Cinema Novo de Glauber Rocha, o teatro de José Celso Martinez Corrêa, as artes plásticas de Hélio Oiticica e a influência artística de Ligia Clark. Celso Favaretto valida a ideia de que, “ao participar de um dos períodos mais criativos da sociedade, os tropicalistas assumiam as contradições da modernização, sem escamotear as ambiguidades implícitas em qualquer tomada de posição.” (2000, p. 25) Tudo isso foi possível graças ao experimentalismo empregado no processo criativo dos artistas que aderiram ao movimento. Aqui, os conceitos de “transculturação”, “tradução” e “hibridismo” defendidos por Moacir dos Anjos (2005) são adequados para compreender a produção daquele período. O contato entre culturas distintas promovido pela globalização “invoca a contaminação mútua, em um mesmo tempo e lugar, de expressões culturais antes apartadas por injunções históricas e geográficas”. (op. cit., p. 16). É neste sentido de “transculturação”, colocado por Moacir dos Anjos, que vislumbramos a chegada da cultura pop e da contracultura no Tropicalismo. Uma vez posto em marcha os processos de trocas culturais, a maneira como a “cultura local” se posiciona ante ao encontro com a “cultura hegemônica” é exemplificada pela ideia presente no conceito de “tradução”, isto é, “primeiro, apreender os sentidos dos produtos gestados em uma cultura; em seguida, recriá-los nos termos de uma outra.” (op. cit., p. 20). Uma leitura recorrente que se faz do Tropicalismo é a forma como ele mescla e incorpora elementos culturais de origens distintas. Na música, encontramos registros do rock, da bossa


nova, do samba, da rumba, do bolero, do baião. Em muitas composições tropicalistas a presença de mais de um destes estilos é recursiva e, apesar de estarem em uma mesma canção, são perfeitamente reconhecíveis isoladamente. O termo “hibridismo” encontra aqui sua aplicação, pois “sugere a impossibilidade da completa fusão entre componentes diferentes de uma relação.” (op. cit., p. 28). Recorrendo ao que Sarat Maharaj definiu como a “intradutibilidade do outro”, Moacir dos Anjos observa que “as ressignificações locais da cultura global sempre engendram recriações originais de produtos alheios.” (op. cit., p. 21). Essa ideia, também implícita no conceito de “hibridismo”, permite concluir o quão autêntico foram os procedimentos tropicalistas. O Tropicalismo usava e abusava da confluência de mídias e linguagens, da dispersão dos suportes de trabalho e do contágio direto entre várias áreas da arte e da cultura. Fazia, assim, a “antropofagia da antropofagia” modernista e, em surpreendentes voos experimentais, unia o imaginário da semana de 22 à poesia de Souzândrade, a prosa de Guimarães Rosa às construções concretas dos anos 50, passando ainda pela cultura underground, tão em voga no mundo, na ocasião. (CANONGIA, 2005, p. 54)

As letras das canções tropicalistas compunham um quadro crítico e complexo da realidade nacional, incorporando as referências do momento político e cultural pelo qual o País atravessava. A explosão da Tropicália colocou em evidência dois dos maiores expoentes do movimento: Caetano Veloso e Gilberto Gil. Em seus primeiros discos e na antológica obra coletiva Tropicália ou Panis et Circensis (1968), vários clássicos seriam registrados. Os músicos e os estilos que formaram a base de referência desses artistas iam do samba à música pop inglesa e norteamericana - impressões que podem ser facilmente identificadas nas composições daquele período. Caetano Veloso, ao lembrar-se da composição da letra de Tropicália, (música do disco que levava seu nome, também de 1968), associa o movimento às festas populares. Ele cita que na música constam menções à Carmem Miranda e Elis Regina, aponta sua proximidade com Coisas Nossas, samba de Noel Rosa, e ressalta que ainda faziam parte de seu universo o “carnaval, o próprio movimento tropicalista (que ainda não tinha esse ou qualquer outro nome), a miséria e a opressão, a Jovem Guarda de Roberto Carlos, tudo teria lugar legal ali – as palavras encontram rimas; as ideias, contrastes e analogias; as imagens, espelhos, lentes e ângulos insuspeitados. Mas eu não queria que a canção fosse, como “coisas nossas” um mero inventário” (VELOSO, 1997, p. 184). Caetano


realmente não fez de sua música "um mero inventário", mas sim uma das mais contundentes e inventivas músicas de protesto compostas naquele momento. Fazendo surgir referências múltiplas, o próprio Tropicalismo em cena se multiplicava. A Tropicália de Caetano, junto a Geléia Geral de Gilberto Gil e Torquato Neto, se tornariam hinos clássicos do movimento, bem como viriam a ser a marcha Alegria alegria (Caetano) e a cantiga de capoeira Domingo no parque (Gil). Essas últimas composições foram apresentadas no III Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, em 1967, e entrariam para a história como sendo uma das mais representativas referências musicais midiáticas daquele momento. Celso Favaretto (2000) ressalta que embora não se intitulassem “como porta vozes de qualquer movimento (...) destoavam das outras canções por não se enquadrarem nos limites do que se denominava MMPB (Moderna Música Popular Brasileira)” (op.cit, p. 19). A televisão foi fundamental para o sucesso e a propagação do Tropicalismo por todo País. No momento em que eclodiam pelo mundo manifestações reivindicando novas alternativas de se viver pacificamente em sociedade, os brasileiros foram tomados de assalto por jovens cabeludos vestindo roupas coloridas e entoando canções de protesto. Libertária por excelência, a Tropicália – que figurava como uma força cultural contrária à política ditatorial e opressora – exercia sua influência com irreverência e originalidade. Entretanto, seu momento de glória durou pouco. O governo militar intensificou a perseguição aos que eram contrários ao regime, e com o Ato Institucional N.º 5 acirrou as ações para silenciar seus ‘inimigos’. Em dezembro de 1968, Gilberto Gil e Caetano Veloso foram presos, infringindo ao movimento um golpe tão abrupto que acabou por encerrá-lo. Contudo, a semente já estava lançada, e a Tropicália colheria seus frutos em outros recantos do País.

O UDIGRUDI

A abertura musical engendrada pelo legado tropicalista a partir dos anos 70 permitiu experimentalismos com timbres e arranjos incomuns, resultado da conjunção entre o virtuosismo psicodélico do rock'n roll e os variados estilos do cancioneiro popular do País. A despeito da radicalização política do AI-5, os jovens continuaram agindo dentro de suas possibilidades, entre as quais a música ainda se apresentava como um gênero artístico acessível e adequado para uma expressão


mais livre tanto em sua forma estética, quanto no conteúdo das mensagens que carregavam. No

âmbito

contracultural,

além

do

Tropicalismo,

as

manifestações

precedentes continuavam a ecoar no imaginário daquela geração, como a literatura beatnik, o orientalismo, o Maio de 68, o Woodstock e o movimento hippie (e sua consequente abertura para o sexo, para as drogas, para a paz e para o amor). Sob a insígnia do underground, jovens artistas e músicos insistiam em abrir os caminhos em direção a uma arte contestatória e libertária, criando as condições necessárias que possibilitavam vivenciar experiências paralelas àquelas estabelecidas por um sistema opressor. No Recife dos anos 70, a música adquire relevância dentro do fenômeno underground a partir dos comportamentos e atitudes apontadas pelo movimento hippie e pela Tropicália. Acompanhadas de perto pela vigilância militar, as iniciativas contraculturais que ganhavam espaço no campo artístico eram realizadas às margens do sistema, onde o risco de serem silenciadas era menor. O “udigrudi”, corruptela abrasileirada do underground (tradução: subterrâneo) norte americano, foi o termo encontrado capaz de suportar todas as referências desviantes que a postura marginal dos jovens daquela época suscitava. Suas atuações formavam a “cena mais udigrudi (e pouquíssimo documentada) surgida no Brasil durante a fase mais plúmbea da ditadura militar” (TELES, 2000, p. 152). O termo foi largamente utilizado para elucidar a produção de artistas e grupos da música experimental do Recife, entre os quais se destacaram “Ave Sangria, Lula Cortês, Zé Ramalho, Marconi Notaro, Flaviola e o Bando do Sol”. (op. cit, p. 155). O

movimento,

que

também

ficaria

conhecido

como

"udigrudi

da

pernambucália" (TELES, 2000), reuniu os jovens de Recife em torno das ideias já anunciadas pelo Tropicalismo: a ruptura, o hibridismo e o experimentalismo. O músico e artista plástico Lula Cortês, sintonizado com estas premissas e atento às suas múltiplas possibilidades, já 'experimentava' em suas composições tocando com instrumentos típicos de outras culturas, como o tricórdio marroquino. Por subverter as linguagens da música popular produzida no nordeste do País, suas atitudes o levaram a ser considerado um "guru do movimento" (op. cit., p. 211). A contracultura entrava em cena com artistas que, assim como ele, souberam somar nos seus trabalhos as múltiplas referências de seu tempo.


O palco em que ocorreu um dos atos mais emblemáticos dessa história ficava localizado em Nova Jerusalém, Pernambuco. Lá, no dia 11 de novembro de 1972, foi realizada a "I Feira Experimental de Música da Fazenda Nova" (op. cit., p. 155), um evento aberto a todos os tipos de música. Sem ter a pretensão de lucros e com nenhuma outra intensão a não ser a de promover um espaço para que os grupos alternativos pudessem se apresentar para o maior número de pessoas possível, os organizadores realizaram a feira no mesmo local em que era encenada a Paixão de Cristo de Nova Jerusalém (peça conhecida por sua estrutura grandiosa). Aproveitando o equipamento de som utilizado para a encenação da peça, os organizadores também não cobraram ingressos do público, não pagaram cachês aos artistas e não investiram em muita divulgação. O evento ficou conhecido como "Woodstock do Nordeste" (op. cit., 150) e, além de Lula Cortês, ali se apresentaram Marco Polo e o Tamarineira Village, Flaviola, Pitti (que tocou com Caetano e Gil em Salvador), Otávio Bzz, Tiago Araripe e outros artistas. José Teles afirma que se tratava de "músicos que trabalhavam cada um na sua, dispersos, pouco profissionalmente, muitos deles nem se conheciam." (op. cit., 152). "Infelizmente, sabe-se muito pouco do que aconteceu durante esse festival", observa José Teles (op. cit, p. 217), mas foi a partir dele que estes artistas se aproximaram e deram início a um trabalho que alcançaria o reconhecimento da crítica e do público, com especial destaque para o Tamarineira Village. Capitaneada pelo músico e poeta Marco Polo, a primeira apresentação do Tamarineira Village fora ali mesmo, na I Feira Experimental de Música da Fazenda Nova. Com uma interpretação de ritmos que iam do samba ao blues, do maracatu ao jazz e do baião ao rock, o grupo passou a tocar também nos bares e teatros de Recife. O sucesso da banda viria sob um novo nome: Ave Sangria. Com ele, o grupo se caracterizou por fundir, com ampla assimilação artística, elementos de vários estilos regionalistas com a cultura pop, sobretudo o rock’n roll. Suas apresentações eram envoltas num clima festivo e psicodélico, o que lhes rendeu a alcunha de “Rolling Stones do Nordeste” (TELES, 2000, p. 146). Guitarras distorcidas e letras lisérgicas expressavam um tipo de musicalidade moderno e subversivo, numa mistura de sonoridades experimentais, aleatórias e abstratas. A partir das primeiras apresentações, a fama do grupo foi espalhando-se boca a boca. Sua música não tinha parâmetros: tanto poderia ser um rockão (sic) com os solos ensandecidos da guitarra de Ivinho, quanto um chorinho


movido a cavaquinho e bandolim. As incursões de Marco Polo pela poesia deixaram-lhe marcas que ele agora passava para sua música. Os nomes dos shows colaboravam para inflar o mito. O primeiro depois da Feira de Fazenda Nova foi Fora da Paisagem. Vieram em seguida Corpo em Chamas, e o Concerto Marginal (este o último com o nome de Tamarineira Village). Sem nenhum marqueteiro, as lendas foram sendo formadas ao redor da banda: “São um perigo para as moças de família”; “É tudo coisero (maconheiro)”; “São uns frangos (veados, em pernambuquês)”; “Usam batom e se beijam na boca”. (TELES, 2000, p. 34)

Performáticos, o uso de batom e o beijo na boca faziam mesmo parte do espetáculo, mas foi com a música Seu Waldir, de Marco Polo, que o grupo incomodou de fato as autoridades. Presente no LP Ave Sangria, lançado em 1974 pela gravadora Continental, a música nada mais é do que um samba escrito em 1ª pessoa e descreve o lamento de um amor não correspondido pela indiferença do ‘Seu Waldir’. O problema estava no fato de ser um homem, Marco Polo, o autor e intérprete da canção. Supreendentemente, isto foi motivo para que a música fosse considerada um atentado à moral da sociedade pernambucana. O regime militar então vetou a sua veiculação pelas rádios e a tiragem dos LPs foi recolhida das lojas. José Teles considera que a “censura não poderia ser mais competente. Não proibiu apenas uma obra de arte, acabou também com seus criadores. O disco chegou a voltar às lojas, sem a faixa maldita, mas aí o grupo entrou no maior baixo astral” (op. cit, p. 175). Esse episódio afastou o interesse grupo em continuar trabalhando e naquele mesmo ano o Ave Sangria parou de atuar. O udigrudi da pernambucália foi uma convergência das diversas leituras que os aristas locais faziam de sua realidade, impregnada pela tradição nordestina e pela influência da cultura pop. Souberam, assim como os representantes da Tropicália, assimilar o local ao global (ANJOS, 2005), criando uma arte autêntica e original. Embora pouco conhecido, o movimento que agitou a cena cultural de Recife é um registro indelével da força que a cultura underground propagou pelo mundo. A turma udigrudi dos 70 não se preocupou em cerzir uma cena local através de manifestos ou trajes com que fossem identificados. Se cena houve, foi uma colcha de retalhos, de muitas tonalidades e feita com tecidos de procedências variadas. Não houve, enfim, uma ação premeditada: a “cena” foi acontecendo sem muito respaldo da imprensa, que, feito o Mr. Jones da canção de Bob Dylan, sabia que algo estava acontecendo, mas não do que se tratava.(TELES, 2000, p. 148)


A abertura promovida pelo udigrudi antecipou procedimentos que se tornariam a marca da música Pernambucana. Ao formular a concepção da “identidade cultural nordestina na contemporaneidade”, Moacir dos Anjos (2000, p. 61) aponta que ela “veio da música pernambucana feita a partir da década de 90, principalmente dos artistas ligados ao Mangue Beat.” (op. cit.). Associada à ideia de isolamento e do contato entre o doce do rio – local – e o sal do mar – global –, o mangue evoca a ideia das “trocas culturais” que alimentaram a arte produzida naquela região. Moacir dos Anjos indica que a atuação de bandas como Chico Science & Nação Zumbi, Mundo Livre S.A. e outros grupos constituíam uma “resposta àqueles que não viam alternativas entre a consagração histórica e folclorizada dos ritmos nordestinos (...) e a adoção acrítica de ritmos e formas musicais criados em outros lugares.” (op. cit., p. 61-62). A identidade da música nordestina atual está, portanto, no seu “hibridismo”. Em vez de causar a morte de tradições musicais, o movimento Mangue tornou-as contemporâneas dos que se ocupavam da criação artística local. De fato, há muito não se tocavam nem se ouviam tanto e tão longe alfaias de maracatu, toadas de cavalo-marinho, a cadência hipnótica da ciranda, cantos de embolada ou a batida quebrada do coco (...). (op. cit., p. 62)

De volta ao centro da produção artística, o contato entre o tradicional e o moderno é o que distingue a música pernambucana recente. Tendo em vista a produção musical dos anos 60 e 70, é razoável argumentar que o experimentalismo continuou a fornecer os parâmetros para que estas criações fossem possíveis. Aí reside a importância que os movimentos contraculturais tiveram para a história: com a distância do tempo, eles nos permitem compreender melhor a pluralidade e a riqueza do que hoje é realizado no campo das artes.

CONCLUSÃO

Não só o medo da repressão fez tremer o mundo nos anos 60. As manifestações da contracultura também mexeram com as mentes e os corpos dos jovens daquela época, apresentando-se como antídoto para a opressão dos regimes totalitários. No Brasil e no mundo, o que se viu foi uma resposta positiva em relação


às adversidades, uma postura que fez da arte a arma de combate de toda uma geração. Na perspectiva daqueles jovens, uma sociedade mais justa e igualitária era possível, e a coragem com que colocaram em prática seus ideais hoje nos parece algo ainda mais fascinante. Proclamar a paz e o amor em meio às ameaças de tortura e de prisão não demonstra somente um comportamento sensível e humanitário, mas sobretudo uma maneira coerente de encarar o mundo. Nesse sentido, a contracultura dos anos 60, a Tropicália e o udigrude são acontecimentos luminares para a sociedade contemporânea. Nestes tempos em que manifestações de protesto eclodem em diversas partes do mundo (e enquanto observamos atônitos a incapacidade dos Estados em lidar com elas) voltar o olhar – e os ouvidos – para a música e para arte do passado é fundamental para nos mantermos alertas e preparados para os acontecimentos da atualidade e aqueles que estão por vir.

REFERÊNCIAS ANJOS, Moacir dos. Local/Global: arte em trânsito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. CANONGIA, Ligia. O legado dos anos 60 e 70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. CUNHA, Newton. Dicionário Sesc: a linguagem da cultura. São Paulo: Perspectiva: Sesc São Paulo, 2003. FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria alegria. 3ª Edição. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. HOISEL, Evelina. Supercaos: os estilhaços da cultura em PanAmérica e Nações Unidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1980. TELES, José. Do Frevo ao Manguebeat. São Paulo. Ed. 34. 2000. VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.


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