Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

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DIREITOS HUMANOS: UMA RESPOSTA À CRISE ECONÔMICA E FINANCEIRA


DIREITOS HUMANOS: UMA RESPOSTA À CRISE ECONÔMICA E FINANCEIRA

Uma publicação do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) Rio de Janeiro, agosto de 2012


DIREITOS HUMANOS: UMA RESPOSTA À CRISE ECONÔMICA E FINANCEIRA Uma publicação do Instituto Brasileiro de Análise Sociais e Econômicas (Ibase)

AUTOR

Aldo Caliari

Center of Concern – Washington DC COORDeNADORa

Maria Elena Rodriguez Ibase

EDIÇÃO e REVISÃO

Produzido pela iniciativa: Liberalização Financeira e Governança Global: o Papel das Entidades Internacionais, desenvolvida em parceria com especialistas e ativistas de 13 países. Coordenação de Fernando J. Cardim de Carvalho e de Jan Allen Kregel.

Mariana Werneck organização

Mariana Werneck TRADUÇÃO

Jones de Freitas PROJETO GRÁFICO e DIAGRAMAÇÃO

Guto Miranda IMPRESSÃO

3G Gráfica

Distribuição dirigida. Pedidos de exemplares: Ibase

Esta publicação foi apoiada por The Ford Foundation

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Avenida Rio Branco, 124 / 8º andar Centro – CEP 20040-916 Rio de Janeiro – RJ Tel.: 5521 2178-9400 Fax: 5521 2178-9402 E-mail: secretariageral@ibase.br Site: www.ibase.br

Brazilian Institute of Social and Economic Analyses


HUMAN RIGHTS: a response to the economic and financial crisis

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Apresentação Regulação financeira e direitos humanos não são temas comumente trabalhados em conjunto. Enquanto percebemos os direitos humanos como uma luta política, travada por meio de articulações, mobilizações e disputas acerca dos conceitos e das práticas políticas, a regulação financeira frequentemente é apresentada como uma questão técnica reservada aos especialistas. E, no entanto, é evidente o impacto das decisões e dos desequilíbrios econômicos na vida cotidiana e no bem-estar das populações. Nesse quarto volume produzido pela iniciativa Liberalização financeira e governança global: o papel das entidades internacionais, coordenada pelo Ibase com o apoio da Fundação Ford, trazemos uma leitura da crise a partir dos direitos humanos. Com esta nova publicação, desejamos avançar sobre a necessidade de (re)politizar os assuntos econômicos, a partir da participação e vigilância pública sobre as relações entre a economia e a política e buscando o aprofundamento da democracia brasileira – uma agenda a qual tem se revelado de suma importância para a sociedade civil. Mais do que nunca, a conjuntura propiciada pela atual crise financeira aponta para um legado desalentador – resultado de um modelo capitalista desigual, excludente e violento – mas também para uma oportunidade histórica – e a responsabilidade para uma geração – de repensar o processo decisório na política econômica. O enfoque aqui apresentado defende a implementação de políticas econômicas acordadas com o regime dos direitos humanos, e, assim sendo, cada etapa de suas decisões deve estar submetida aos princípios do escrutínio público, da transparência e da prestação de contas. Todavia, também é reconhecido que uma mudança de tal estatura não será construída somente a partir da esfera estatal, como deve envolver uma reforma das estruturas da governança global capaz de reduzir o seu déficit democrático. Gostaríamos ainda de agradecer a Aldo Caliari, parceiro dessa iniciativa e representante do Center of Concern, autor do texto que aqui se apresenta, e informamos que as publicações anteriores estão disponíveis no site do Ibase (www.ibase.br). Desejamos a todos uma boa leitura. Maria Elena Rodriguez Coordenadora

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Introdução O que começou, no verão de 2007, como uma crise no setor de hipotecas subprimeNT nos EUA tornou-se uma crise econômica de dimensões globais, que tem sido considerada a pior desde a Grande Depressão. A magnitude da crise tem lançado uma nova luz sobre as consequências do enfoque tradicional dado aos direitos humanos e à regulação financeira. De acordo com esse paradigma, os defensores dos direitos humanos são levados a crer que as questões de regulação financeira são inteiramente técnicas e devem ser deixadas para os especialistas, enquanto as políticas e preocupações próprias dos direitos humanos ou devem ser tratadas de forma independente dos temas da regulação financeira ou devem simplesmente estar circunscritas pelo enfoque que os peritos financeiros decidam adotar. Entretanto, a crise tem revelado as deficiências dessa abordagem e encorajado uma crítica da regulação financeira baseada nos direitos humanos. Embora haja muitas explicações sobre as origens da crise, há um amplo acordo sobre a importância de falhas causadas por uma frouxa regulação e supervisão dos mercados financeiros, dos atores que neles operavam e dos instrumentos que utilizavam.1

O que são os direitos humanos? Direitos Humanos são comumente entendidos como direitos inerentes aos seres humanos. O conceito de direitos humanos confere a cada ser humano a prerrogativa de usufruir seus direitos sem qualquer distinção de raça, cor, sex, língua, religião, opinião política, nacionalidade, origem social e outros.

NT Empréstimos concedidos a pessoas que não apresentam comprovação adequada de rendimentos. 1 Para um levantamento detalhado das principais fontes oficiais (FMI, Banco de Compensações Internacionais, Fórum de Estabilidade Financeira), mostrando uma notável similaridade no entendimento das causas imediatas da crise financeira, ver Caliari (2009), “Assessing Global Regulatory Impacts of the U.S. Subprime Mortgage Meltdown: International Banking Supervision and the Regulation of Credit Rating Agencies”, documento preparado para o simpósio sobre Mercados Financeiros e Riscos Sistêmicos: as repercussões globais do “derretimento” do mercado das hipotecas subprime nos EUA, organizado pelo Journal of Transnational Law and Contemporary Problems (Revista de Direito Transnacional e Problemas Contemporâneos) na Faculdade de Direito da Universidade de Iowa, juntamente com o Centro de Finanças e Desenvolvimento Internacional da Universidade de Iowa.

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Os direitos humanos são legalmente garantidos pela legislação de direitos humanos, a qual protege indivíduos e grupos contra ações que interfiram nas liberdades individuais e na dignidade humana. Eles estão expressos em tratados, no direito consuetudinário internacional, conjuntos de princípios e outras fontes do direito. A legislação de direitos humanos impõe obrigações de conduta aos Estados, proibindo que os Estados se envolvam em certas atividades. Contudo, o direito não estabelece os direitos humanos; estes são, sim, direitos inerentes que toda pessoa possui, como consequência direta de sua condição humana. Tratados e outras fontes de direito geralmente servem para proteger formalmente os direitos de indivíduos e grupos contra ações ou negligências por parte dos Estados que impeçam o gozo dos direitos humanos. Algumas das principais características dos direitos humanos são: • Os direitos humanos são baseados no respeito à dignidade humana e dignos de todos; • São universais, aplicados igualmente e sem quaisquer discriminações; • São inalienáveis, e, portanto, ninguém pode ser privado de seus direitos, exceto em situações específicas – por exemplo, a restrição do direito à liberdade de uma pessoa que tenha sido julgada culpada de um crime por um tribunal; • São indivisíveis, inter-relacionados e interdependentes, no sentido de que é insuficiente respeitar somente alguns direitos, e não outros. Na prática, a violação de um direito frequentemente afeta o cumprimento de outros direitos. Todos os direitos humanos deveriam, portanto, ser reconhecidos como de igual importância. Fonte: OHCHR. Human Rights: a basic handbook for UN staff.

Ao mesmo tempo, não é difícil encontrar argumentos em favor da noção de que o gozo dos direitos humanos será afetado pela crise de forma significativa e em toda parte. Por exemplo, a queda acentuada da demanda agregada global resultou em amplo desemprego e destruição de meios de subsistência. Depois de anos de declínio do desemprego, estarão desempregadas em 2009 cerca de 20 milhões de

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pessoas a mais do que em 2007, de acordo com as previsões da OIT.2 Cerca de 50 milhões de pessoas podem ficar sem emprego se a crise atingir a magnitude do desemprego dos anos 1990.3 Esses números gerais escondem os impactos maiores sobre as mulheres e seus filhos, as pessoas pobres, os grupos indígenas, as minorias étnicas e os trabalhadores migrantes. Juntamente com o aumento do desemprego, a proteção social – que em muitos países depende de se ter um emprego – está em declínio. Para aqueles que ainda têm emprego, mais desemprego significa maior pressão sobre seus salários e cobertura social. A seguridade social das pessoas idosas também está sendo afetada pela crise de forma significativa, com fundos de pensões registrando perdas de cerca de 50% em alguns casos.4 Nas últimas décadas, a diminuição dos sistemas de pensão financiados pelo poder público magnificou esses impactos. Por sua vez, as receitas públicas necessárias para prover cobertura social e pensões vêm caindo substancialmente, o que limita as opções governamentais. Espera-se que o número de pessoas pobres em escala mundial aumente em até 53 milhões.5 Mesmo esse número pode ser otimista, pois está baseado na definição de pobreza do Banco Mundial, que é amplamente questionada, e provavelmente subestima o número real de pobres.6 A piora da situação nutricional e de saúde das crianças, que sofrem com a redução de consumo alimentar (ou com a deterioração de sua qualidade) pode ser irreversível, e estimativas sugerem que a crise alimentar já aumentou o número de pessoas desnutridas em 44 milhões.7

2 OIT. “The Financial and Economic Crisis: A Decent Work Response”. Documento de Discussão, 2009 GB.304/ESP/2. 3 ibid. 4 Banco Mundial. “The Financial Crisis and Mandatory Pension Systems for Developing Countries”. Washington, DC: Banco Mundial. 5 World Bank News, 12 de fevereiro de 2009. 6 ver Relatório da ONU sobre as Metas de Desenvolvimento do Milênio, 2009:4-7). 7 Banco Mundial. “Swimming Against the Tide: How Developing Countries Are Coping with the Global Crisis”. Washington, DC: Banco Mundial. 2009.

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A Definição de Pobreza do Banco Mundial A classificação arbitrária feita pelo Banco Mundial considera pobre a pessoa que vive com US$ 2 por dia e na pobreza extrema aquelas que vivem com menos de US$ 1 por dia. Esta classificação tem sido muito criticada por não captar a realidade da pobreza em diferentes países, com linhas de pobreza muito distintas, assim como as distintas cestas de produtos que as pessoas com essas rendas podem adquirir nos diferentes países. Em 2008, o Banco atualizou seus antiquados cálculos de paridade do poder de compra e, com base nisso, o número de pessoas que o Banco considera na pobreza extrema (agora os que vivem com menos de US$ 1,25/dia) foi revisado para 1,4 bilhões, quase 50% a mais do que a previsão anterior de um bilhão.

Além disso, os efeitos da crise provavelmente levarão a um aumento da desigualdade. O hiato entre os domicílios mais ricos e mais pobres, que tem aumentado desde a década de 1990, aumentará ainda mais. A desigualdade de renda entre os 10% de assalariados que ganhavam mais e os 10% que recebiam menos aumentou em 70%, em amostra de países pesquisados de um relatório da OIT publicado em 2008.8

Crise e Desigualdade de Renda A Grande Depressão de 1929 e a Grande Recessão de 2008, iniciadas nos EUA, representam as duas maiores crises econômicas dos últimos 100 anos, e a desigualdade de renda pode ter tido um papel preponderante na origem de ambas. Tanto em 1929 quanto em 2007, momentos antes de as crises se anunciarem, a sociedade americana apresentava um forte crescimento na desigualdade de renda e um aumento pronunciado no coeficiente de dívida sobre renda das famílias.¹

8 OIT. World of Work Report 2008: Income Inequalities in the Age of Financial Globalization. Genebra: Organização Internacional do Trabalho (OIT).

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A participação na renda nacional dos 5% mais ricos cresceu de 24% em 1920 para 34% em 1928; já em 1983, os 5% mais ricos detinham 22% da renda nacional, índice que extrapolou para 34% em 2007.² Em ambos os períodos, o índice de dívida sobre a renda das famílias também cresceu dramaticamente: quase dobrou entre 1920 e 1932 e também entre 1983 e 2007, atingindo no segundo período o valor de 139% para os 95% restantes da população americana.³ No período mais recente (1983-2007), a diferença no consumo dos mais ricos em relação ao consumo das camadas mais pobres e da classe média não se ampliou tanto como as diferenças na renda dos dois grupos. O único modo de sustentar taxas de consumo tão altas foi por meio do crédito. Assim, os estratos pobres e médios têm resistido à erosão de seus padrões de vida a partir de empréstimos, enquanto os ricos vêm acumulando mais e mais ativos, incluindo aqueles atrelados à concessão de crédito para a maioria da população. O fato de a desigualdade no consumo ter crescido menos que a desigualdade na renda levou a mais desigualdade. Por um lado, pode se afirmar que maior dependência do crédito por parte das categorias mais baixas – e o aumento da riqueza financeira por parte dos grupos mais abastados – levou a fortes demandas por intermediação financeira e tornou a economia mais vulnerável. Por outro, a crise despontada pela intermediação financeira realizada sob a ideologia neoliberal, sem regulação financeira verdadeira e eficaz, pode ser lida como a manifestação última de uma dinâmica social perversa de longo prazo, a desigualdade de renda. Sob a política de crescimento econômico própria da racionalidade neoliberal, o incremento na qualidade de vida não foi promovido pelo exercício dos direitos, mas se deu via mercado. Mais agravante foi o fato de as concessões de crédito terem sido realizadas em condições fraudulentas, ocultando a variação progressiva das taxas de juros em um texto legal longo e complicado. A crise, por sua vez, trouxe ainda mais efeitos negativos sobre os grupos pobres e médios. ¹ KUMHOF, Michael. Income inequality, debt leverage, and economic crisis. In: PUSCHRA, Werner; BURKE, Sara (eds.). Fixing finance is not enough: the social consequences of monetary and financial policies. Nova York: Friedrich-Ebert-Stiftung, 2012, p.23. ² Ibidem. ³ Ibidem.

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Caso os conflitos sociais e as expressões públicas de desespero e frustação sejam enfrentados, como já ocorreu em alguns países, com repressão violenta de forças governamentais, então os direitos civis e políticos também estarão ameaçados pela crise econômica. O aumento de sentimentos de xenofobia e de outras formas de discriminação, já observado em vários lugares, pode também prejudicar os direitos dos trabalhadores migrantes e de grupos minoritários, que são mais vulneráveis à discriminação. Observando esses impactos e aceitando o consenso sobre as origens da crise, chega-se à conclusão que as escolhas feitas em relação à regulação financeira trazem consequências tangíveis para o gozo dos direitos. O oposto também é verdade: uma abordagem que busque defender padrões de direitos humanos sem tratar dos impactos das políticas financeiras e das opções regulatórias será lamentavelmente insuficiente e ineficaz. No entanto, as evidências mostradas por esta crise não são diferentes das apresentadas por outras crises financeiras que atingiram periodicamente distintas partes do mundo no século passado, especialmente a crise no Leste Asiático no final dos anos 1990. Todas elas causaram privações e sofrimentos extremos aos cidadãos e cidadãs comuns, especialmente aos mais vulneráveis e marginalizados, enquanto aqueles que lucravam com a especulação financeira não eram responsabilizados por seus atos. Por exemplo, nos últimos anos, vimos não somente a continuação da tendência à crescente desigualdade de renda, como também o aumento da riqueza controlada pelos “super-ricos”.9 Este fenômeno foi possível com estratégias de investimento agressivas – leia-se especulativas – facilitadas pelos fluxos de capital sem controle.10 Contudo, serão os grupos de baixa renda, e não aqueles que lucraram com o boom anterior à crise, que serão desproporcionalmente afetados pela recessão pós-crise.

9 De acordo com um estudo do Merrill Lynch e Capgemini (2007),“O número de pessoas com um milhão de dólares ou mais para investir cresceu 8%, atingindo 9,5 milhões no ano passado, e a riqueza que controlavam alcançou US$ 37,2 trilhões. Cerca de 35% estão em mãos de somente 95.000 pessoas com ativos de mais de US$ 30 milhões. Ver Thal Larsen, P. “Super-rich Widen Wealth Gap by Taking More Risks”. Financial Times, 28 de junho de 2007. 10 Thal Larsen (op. cit.), ao citar um executivo do Merrill Lynch declarando que a diferença entre ricos e super-ricos refletia “uma disposição dos muito ricos para assumir maiores riscos”.

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Nesse sentido, a crise financeira também questiona a crença de que a riqueza ganha nos mercados terminaria beneficiando todos os demais. O economista Joseph Stiglitz, ganhador do prêmio Nobel, afirmou recentemente que os mercados financeiros – e o próprio crescimento do PIB como é atualmente medido – não são um fim em si mesmos, mas devem estar a serviço do bem-estar das pessoas. O que é bom para as finanças e para o crescimento do PIB não é necessariamente bom para o bem-estar econômico de todos. O colapso sistêmico requer um novo papel para os governos nacionais na política econômica – tanto no campo doméstico quanto internacional.

Uma resposta baseada nos direitos humanos – os princípios Uma resposta à recessão financeira e econômica que coloque em posição central as normas dos direitos humanos não é somente necessária em termos de justiça, como também torna as reformas do sistema financeiro e econômico mais sustentáveis e resilientes frente a crises futuras. Formulá-la não pressupõe um certo tipo de sistema econômico. Contudo, ela certamente parte de um marco de referência claro e universalmente reconhecido – um conjunto de normas fundadas nos instrumentos essenciais da legislação internacional sobre direitos humanos – para orientar o desenho e a implementação das políticas e programas econômicos que enfrentem a crise. Os direitos humanos não somente estabelecem limites à opressão e ao autoritarismo, como também impõem obrigações positivas aos Estados de defenderem direitos econômicos, sociais e culturais. Os Estados têm o dever de respeitar, proteger e implementar os direitos humanos em todas as épocas, especialmente em tempos de crise.

Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais PARTE II ARTIGO 2º 1. Cada Estado Membro no presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos dispo-

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níveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o, pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativa. 2. Os Estados Membros do presente pacto comprometem-se a garantir que os direitos nele enunciados se exercerão sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação. 3. Os países em desenvolvimento, levando devidamente em consideração os direitos humanos e a situação econômica nacional, poderão determinar em que medida garantirão os direitos econômicos reconhecidos no presente Pacto àqueles que não sejam seus nacionais.

Os governos têm o dever de assegurar níveis essenciais mínimos de desfrute dos direitos sociais e econômicos como uma questão prioritária, e estão também sob a obrigação específica e contínua de avançar de forma expedita e efetiva, dentro do possível, na direção de sua plena implementação. As normas dos direitos humanos requerem que os governos não adotem medidas deliberadamente regressivas como, por exemplo, o corte de programas essenciais, a menos que isso esteja plenamente justificado frente à totalidade dos direitos garantidos nos tratados essenciais sobre direitos humanos, e num contexto de uso pleno do máximo de recursos disponíveis. Mesmo diante de limitações nas receitas públicas, os Estados têm a obrigação de dispor do máximo de recursos disponíveis para assegurar que a implementação plena dos direitos econômicos e sociais ocorra a curto e longo prazo. Além disso, o princípio de não discriminação exige que os governos assegurem que todas as medidas adotadas em resposta à crise evitem efeitos desproporcionais, e que medidas deliberadas e dirigidas sejam tomadas para assegurar uma substantiva igualdade de acesso aos serviços básicos em todo o país e por todos os grupos populacionais. As pessoas

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que vivem em situação de privação devem ser protegidas como uma prioridade, mesmo em épocas de severas limitações de recursos. Embora as obrigações primárias dos Estados com os direitos humanos estejam dentro de suas jurisdições, eles também têm obrigação – no espírito da Carta da ONU e da legislação internacional – de contribuírem para a cooperação internacional no sentido da aplicação plena desses direitos. Ao atuarem em fóruns intergovernamentais, tais como a ONU, Banco Mundial e reuniões ad hoc do G-20, os Estados devem garantir que suas políticas sejam coerentes com os direitos humanos e que conduzam à sua aplicação. Neste sentido, aqueles Estados que desfrutaram de posições mais poderosas no processo de decisão das políticas econômica globais tiveram maior responsabilidade por causar, por ação ou omissão, esse desastroso colapso global. Isso significa que também têm mais responsabilidade pela mitigação de suas consequências pela tomada de medidas necessárias que assegurem um avanço justo e sustentável. De acordo com a legislação internacional, os governos devem também garantir que os padrões de direitos humanos tenham primazia sobre os compromissos comercias, de investimento ou financeiros.

O Grupo dos 20 – o G-20 O Grupo dos 20 ou G-20 é formado por EUA, Reino Unido, França, Itália, Alemanha, Japão, Canadá, Rússia (antigos membros do G-8), além de Argentina, Austrália, Brasil, China, Índia, Indonésia, México, Arábia Saudita, África do Sul, Coreia do Sul e Turquia, contando também com um assento para a União Europeia. Enquanto as 19 maiores economias do mundo tem como seus representantes os respectivos ministros da Fazenda e presidentes dos Bancos Centrais, a União Europeia é representada pela presidência rotativa do Conselho e pelo Banco Central Europeu. Criado em 1999 em decorrência das sucessivas crises financeiras da década de 1990, o grupo dos 20 surgiu como “um novo mecanismo de diálogo informal no marco do sistema internacional de Bretton Woods para ampliar o diálogo sobre questões-chave de política econômica e financeira entre as economias sistemicamente significativas e para promover cooperação no sentido de alcançar um crescimento mundial e sustentável que beneficie a todos”.¹ Para garantir uma ligação

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efetiva com as instituições de Bretton Woods, o dirigente-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI) e o presidente do Banco Mundial, além dos presidentes do Comitê Monetário Internacional e do Comitê de Desenvolvimento do FMI e do Banco Mundial participam das reuniões do G-20. O G-20 ganhou importância a partir da crise de 2008, ano no qual foi realizada a primeira reunião de chefes de Estado ou de governo do grupo desde sua criação, ocorrida em Washington. Já em Pittsburg, terceira reunião de cúpula do grupo, o G-20 declarou-se como o principal fórum para a cooperação econômica internacional, eclipsando o G-8. 1 Disponível em: <http://www.g7.utoronto.ca/finance/fm992509state.htm> apud CARVALHO, Fernando Cardim de; KREGEL, Jan Allen. Crise financeira e déficit democrático. Rio de Janeiro: Ibase, jan. 2009, p.20.

Os princípios básicos de direitos humanos incluem a participação social, transparência, acesso à informação, proteção jurídica e prestação de contas. As pessoas precisam poder participar da vida pública e interagir de forma significativa com os processos decisórios que as afetem, para que tenham a possibilidade de contestá-los. Além disso, os Estados devem assegurar que ninguém esteja acima da lei. Os indivíduos que tiveram seus direitos afetados devem ter acesso a recursos jurídicos eficazes para buscar medidas corretivas. Os responsáveis por danos, incluindo atores privados, devem ser responsabilizados judicialmente e atividade futuras que afetem os direitos humanos precisam ser evitadas.

Reforma dos processos decisórios sobre política econômica A crise que enfrentamos apresenta uma oportunidade histórica e é responsabilidade dessa geração repensar o processo decisório na política econômica como ocorreu até o momento. Um enfoque baseado nos direitos humanos requer uma reforma das estruturas de governança para assegurar que todas as políticas econômicas, tanto domésticas quanto no plano internacional, sejam implementadas de acordo com o conteúdo legal do regime dos direitos humanos. Com demasiada frequência, decisões oficiais sobre, por exemplo, a

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regulação dos fluxos do capital financeiro (ou a necessidade de eliminá-la) são tomadas por uns poucos “especialistas” e, em muitos casos, incluindo representantes das próprias indústrias privadas. Em essência, esse processo bloqueia a participação pública em discussões políticas e jurídicas fundamentais que afetam a todos, especialmente aqueles mais vulneráveis e marginalizados. Uma resposta política baseada nos direitos humanos transformaria esse processo, assegurando a participação em todos os níveis e submetendo as decisões ao escrutínio público, com transparência e accountability em cada etapa. A prestação de contas e a participação na elaboração de politicas econômicas também são prejudicadas quando condições políticas intrusivas são exigidas por instituições financeiras e doadores internacionais ou por regras de acordos comerciais e de investimentos. Os Estados devem ter o poder de assegurar que suas obrigações de direitos humanos tenham prioridade sobre seus compromissos econômicos ou sobre os direitos dos investidores. Esses mesmos princípios de direitos humanos devem ser instilados no plano internacional, onde a cooperação na realização desses direitos é obrigação de todos os Estados, especialmente daqueles responsáveis por danos. Apesar das amplas consequências das medidas de políticas financeiras, os organismos intergovernamentais que estabelecem a agenda e desenham as reformas financeiras, como o Comitê de Basileia de Regulamentação e Supervisão Bancária, o Fórum de Estabilidade Financeira e o G-20, limitam a participação da maioria dos países. Por seu lado, o FMI e o Banco Mundial, no que diz respeito ao processo decisório, continuam a ser regidos por princípios que reduzem os países em desenvolvimento a um papel marginal e limitam a transparência. Igualmente importante é o fato de que outras organizações internacionais com mandato expresso para proteger os direitos humanos são excluídas da elaboração de políticas nesses fóruns. A ONU, como guardiã do marco jurídico internacional, é o fórum mais adequado e legítimo para a discussão das reformas necessárias para reestruturar o sistema econômico e financeiro internacional com fundamento nos direitos humanos. Seu papel seria grandemente reforçado pelo estabelecimento de um Conselho de Coordenação Econômica Revisão: Direitos Humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

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Global, como foi recomendado pela Comissão de Peritos da ONU.11 Um organismo como esse, operando sob o princípio de representação de setores interessados e no mesmo nível da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança, poderia dar maior eficácia, representatividade e transparência ao processo de elaboração de políticas econômicas na sua relação com as prioridades do desenvolvimento, indo além do estreito escopo dos ministérios de Economia e Fazenda.

Regulação do setor bancário e financeiro Um aspecto notável da crise é o grau em que as entidades financeiras conseguiram transferir o peso de sua postura irresponsável com relação à tomada de riscos para as pessoas mais vulneráveis da sociedade. E foram políticas específicas de governo para desregulamentar o sistema financeiro como um todo que possibilitaram isso. Portanto, os governos nacionais em coordenação com outros países devem adotar medidas para proteger os direitos humanos de seus povos por meio de uma regulação robusta dos respectivos setores bancários e financeiros. Eles também devem fortalecer a prestação de contas e o Estado de Direito, controlando comportamentos criminais. Onde certos atos não sejam considerados crimes (como, por exemplo, evasão fiscal em certos países) ou ofensas que acarretem responsabilidade legal, uma legislação apropriada deve ser aprovada e aplicada. Além disso, os governos devem atuar com seriedade para garantir que indivíduos e países afetados, porém inocentes no desencadeamento da crise, tenham acesso a recursos e medidas corretivas. Os bancos são as entidades mais reguladas em todo o setor financeiro. Contudo, seu comportamento tem sido cada vez mais regido por princípios de supervisão que dependem de seus próprios mecanismos internos de administração de risco, no lugar de normas desenvolvidas externamente por supervisores nacionais. Em resposta a pressões dos países industrializados, muitas nações pobres adotaram progressiva-

11 Assembleia Geral das Nações Unidas. “Recommendations of the Commission of Experts of the President of the General Assembly on Reform of the International Monetary and Financial System”. A/63/838. 29 de abril de 2009.

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mente os mesmos princípios, em parte tentados pela possibilidade de atraírem bancos internacionais. Pelos mesmos motivos, também aceitaram que esses bancos movimentassem capitais de forma irrestrita. No entanto, com frequência a desregulamentação para atrair bancos estrangeiros não teve os retornos esperados. As evidências empíricas não mostram nenhum vínculo entre a liberalização das contas de capital e um maior crescimento econômico. O acesso ao crédito, especialmente dos grupos mais marginalizados, tem melhorado pouco, enquanto os grandes bancos internacionais tendem a eliminar o setor bancário nacional do qual dependem as pessoas mais necessitadas. Atualmente, os países com maior exposição e dependência dos bancos estrangeiros são os mais afetados pela crise financeira, à medida que aquelas instituições se retiram para os países sedes e se recusam a fazer empréstimos a essas economias fragilizadas. As reformas no setor bancário devem dar espaço para que os governos nacionais regulem os serviços fornecidos por qualquer banco, assegurando amplo acesso a crédito e a outras funções sociais importantes. Quando serviços bancários estatais forem considerados uma opção melhor para a garantia de direitos, esse caminho deve ser plenamente explorado.

Os Acordos da Basileia O primeiro acordo da Basileia, firmado em 1988, era relativamente muito simples, recomendando aos supervisores nacionais que exigissem dos bancos internacionalmente ativos a manutenção de patrimônio líquido (capital próprio) na proporção de 8% de seus ativos ponderados pelo risco. O acordo de Basileia II (2004), por sua vez, é bem mais complexo: não só estabelece exigências de capital distintas para diferentes classes de bancos, como também estipula funções aos supervisores e define requisitos com relação à divulgação de informações. Todavia, seus três pilares principais – as exigências de capital, a inspeção regulatória e a disciplina de mercado – traçavam um caminho rumo à autorregulação, por meio de incentivos dados às firmas para o controle de seus próprios riscos, o qual se mostrou ineficiente frente à crise de 2008. Por consequência disso, propostas de reforma da regulamentação financeira foram firmadas no acordo de

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Basileia III, de dezembro de 2010. Com o objetivo de reforçar o sistema financeiro após a crise do subprime, Basileia III foi pensado para ser adotado em fases a partir de 2013, com implementação até 2019. Mesmo assim, os mais críticos ao acordo afirmam que o novo acordo é somente uma emenda ao acordo de 2004, uma vez que não apresenta rupturas com a forma de se fazer regulação dos acordos anteriores. O conjunto de novas regras sobre a maior exigência do capital, o padrão de alavancagem e liquidez, bem como a introdução de colchões de capital, não asseguram a estabilidade do sistema financeiro. O principal motivo para a insuficiência de Basileia III é justamente considerar que as atividades financeiras são, grosso modo, apropriadas. A partir das respostas formuladas no novo acordo, pode-se perceber que o Comitê da Basileia ainda considera as crises financeiras como eventos disfuncionais e aleatórios; não obstante, tornou-se claro, a partir da crise de 2008, que as condições para crise, na verdade, instituíram-se de modo progressivo durante o período de estabilidade, como a exacerbação de características próprias do sistema financeiro. Além disso, o novo acordo foca-se mais uma vez sobre as instituições bancárias internacionalmente ativas, deixando inovações financeiras como os fundos de hedge e os derivativos sem uma regulação eficiente, o que compromete, por consequência, todo o regime de regulação financeira.

Os fundos de hedge12, os fundos private equityNT e as agências de classificação de risco foram deixados com seus planos de autorregulação. Em muitos países, foi permitido que os fundos de hedge se tornassem o mecanismo principal para cidadãos comuns fazerem poupança, colocando em risco seu acesso à seguridade social. Os fundos de hedge 12 “Os fundos de hedge são fundos comuns de recursos privados que investem em instrumentos negociáveis (títulos e derivativos), que podem empregar alavancagem por vários meios, mesmo pelo uso de posições a descoberto, e geralmente não são regulamentados. São fundos com estratégias de investimentos tidas como altamente sofisticadas e de alto risco.” (CARVALHO, Fernando Cardim de; KRIEGEL, Jan Allen. Crise financeira e déficit democrático. Rio de Janeiro: Ibase, 2009, p.16). NT Esses fundos compram ações de uma empresa para retirá-la da negociação nas bolsas, “fechando” o capital da empresa até que decidam vendê-la ao público novamente.

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e os fundos private equity também forçaram desemprego repentino e outras violações trabalhistas por meio de sua influência indevida sobre os processos decisórios na reestruturação de empresas em todo o mundo. Foram fomentados lucros extraordinários por meio de estratégias de alavancagem que eram baseadas em isenções fiscais no financiamento da dívida, colocando em risco as fontes de receitas públicas. Isso limitou as possibilidades de expansão fiscal de muitos governos, justamente quando mais necessitavam de recursos para estimular a criação de empregos e fortalecer medidas de proteção social. Ao reconhecer que as atividades desses atores financeiros têm impactos profundos e mensuráveis nos direitos humanos, o Estado não deve abdicar de seu dever de proteger esses direitos. Os governos devem atuar juntos para adotarem todas as medidas necessárias no sentido de evitar que os fundos de hedge, fundos private equity, instrumentos derivativos e agências de classificação de risco afetem negativamente os direitos humanos. A liberalização dos capitais e a criação de paraísos fiscais impenetráveis tornaram mais difícil taxar progressivamente os fluxos de capitais e erodiram ainda mais a base fiscal em países do Norte e do Sul, facilitando o desvio de lucros de onde são obtidos para outros lugares em que os impostos são baixos ou inexistentes. Isso traz resultados negativos para as receitas públicas, o que é um fator crítico para que os governos possam preencher suas obrigações de direitos humanos. Os governos devem cumprir os deveres com seus povos, protegendo as receitas públicas de forma transparente e com prestações de contas, fechando os paraísos fiscais e tomando medidas adequadas para controlar os movimentos de capitais e fortalecer as contas fiscais. Por seu lado, os bancos centrais são agências públicas e, como parte do governo, têm obrigações com os direitos humanos. Com demasiada frequência, o princípio da “independência do banco central” tem significado independência em relação aos interesses sociais e dos direitos humanos. Entretanto, isso não tem significado a ausência de interferências de grupos financeiros privados. Os bancos centrais devem reconhecer que independência não significa falta de responsabilidade em servir aos interesses da sociedade como um todo. Eles devem contrabalançar a necessidade Revisão: Direitos Humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

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de atingir uma inflação baixa e estável com suas obrigações de combater as desigualdades de renda e estabilizar os empregos e os meios de subsistência das pessoas por meio de diferentes instrumentos de crédito e supervisão.

A crise e os direitos humanos no Sul

“Os povos afro-americanos e indígenas têm uma história comum de exploração e conquista. Eles sofrem os impactos da crise de forma desproporcional. Nosso atual Império Americano foi construído com base no chamado sonho americano, mas sabemos que o roubo de terras e a exploração do trabalho também foram utilizados na construção do país – o mais rico jamais existente. Desde o início, as instituições financeiras ajudaram e encorajaram esses exploradores que buscavam construir um império usando todos os meios necessários. Devemos rejeitar a teologia neoliberal e desenvolver teorias teológicas mais progressistas”. Jean Rice (Picture the Homeless, New York)

O grau em que a crise compromete o cumprimento dos compromissos de direitos humanos pode ficar evidente de maneira mais dramática no Sul. Durante muito tempo, os países em desenvolvimento foram levados a acreditar no crescimento voltado para a exportação e nas políticas de livre mercado. Estes países são justamente os que mais sofrem com a queda da demanda externa causada pela crise. Uma flexibilidade especial deveria ser permitida, de modo que esses países pudessem contemplar plenamente suas obrigações com os direitos humanos, à medida que desenvolvessem políticas comerciais as quais pudessem lidar com a crise, prevenindo também vulnerabilidades relacionadas à exportação no futuro. O perfil de exportação e a estratégia escolhida por um país, assim como o equilíbrio entre as necessidades de exportação e dos mercados internos, devem ser cuidadosamente orientados por suas obrigações com os direitos humanos, especialmente a necessidade de assegurar a não discriminação e a implementação progressiva daqueles direitos.

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Os níveis de endividamento dos países em desenvolvimento também devem aumentar. Não somente a crise vai piorar suas situações financeiras e comerciais, tornando necessário tomar mais empréstimos, como também uma resposta eficaz à crise que não recorra a gastos deficitários para acelerar a recuperação provavelmente vai prejudicar os níveis essenciais mínimos de bem-estar. Entretanto, não se pode ignorar as consequências para os direitos humanos e os impactos futuros dos empréstimos. Parte do aumento do endividamento se deve à proliferação de linhas rápidas de crédito das instituições multilaterais, incluindo o Banco Mundial, com o aparente objetivo de ajudar os países em desenvolvimento a lidarem com a crise. Essas linhas de crédito desembolsam quantias vultosas com pouco ou nenhum controle da cidadania ou prestação de contas ao público, com risco real de passarem completamente ao largo de salvaguardas sociais e ambientais. Outra parte do aumento dos níveis de endividamento resulta da necessidade de os países refinanciarem suas dívidas em meio aos mercados de capitais privados sob estresse, nos quais os recursos estão escassos, conforme os países em desenvolvimento tentam em vão competir com os países industrializados, saneando seus setores bancários em dificuldades e implementando planos de estímulo econômico. Embora, em curto prazo, essas linhas de crédito possam ser necessárias para permitir que os governos estabilizem seus gastos, os princípios dos direitos humanos são críticos para determinar o seguinte: (1) o volume estritamente necessário de empréstimos que precisa ser tomados; (2) as demandas que devem ser atendidas por meio de financiamentos concessionais no lugar de empréstimos; (3) os princípios de prestação de contas e transparência que irão assegurar que novos empréstimos sejam feitos de forma responsável, com adequado controle social, de modo a evitar a criação de mais dívidas ilegítimas que as futuras geração terão de pagar. Alguns preveem que os cortes orçamentários causados pela crise e a transferência de recursos para os pacotes de estímulos fiscais levarão os países doadores a diminuírem sua ajuda ao desenvolvimento. Com o desfrute dos direitos humanos de tanta gente em risco por causa da crise financeira, os governos doadores não devem recuar de suas obrigações com a ajuda internacional, cortando a ajuda ao desenvolvimento. Revisão: Direitos Humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

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Pacotes de incentivos econômicos orientados pelos direitos humanos O esboço de uma abordagem à crise baseada nos direitos humanos não estaria completo sem uma referência ao papel muito especial que os padrões de direitos humanos devem cumprir nos pacotes nacionais de estímulo econômico. Nesse sentido, são especialmente relevantes os já citados princípios de não discriminação, transparência, prestação de contas e participação. Os pacotes de estímulo econômico não podem discriminar de nenhuma maneira. Os governos devem avaliar as consequências distributivas dos pacotes em toda a sociedade, para assegurar que os benefícios recebidos sejam também equitativos em termos de gênero, etnicidade, orientação sexual e classe social. Podem ser necessárias medidas extraordinárias para promover igualdade substantiva entre aqueles historicamente marginalizados e especialmente vulneráveis. Por exemplo, políticas sensíveis ao gênero exigem que as mulheres participem do desenho e execução dos pacotes de estímulo. As decisões durante o período do pacote de estímulo também devem estar abertas a questionamentos e serem baseadas na participação e transparência, para fortalecer a prestação de contas ao público. Nos seus pacotes de estímulo fiscal, uma área especial de prioridade para os governos deve ser a estabilização e o fortalecimento dos sistemas de proteção social para todos, especialmente para as pessoas mais vulneráveis. O direito à seguridade social é reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em numerosos tratados internacionais sobre direitos humanos. Todos os Estados têm a obrigação de estabelecer de imediato um sistema de proteção social básico e expandi-lo progressivamente de acordo com os recursos disponíveis. O fortalecimento desses sistemas cumpre o dever de curto prazo de proteger as pessoas contra declínios econômicos, assim como contribui para a prioridade econômica de longo prazo de investir nas pessoas. Entretanto, na atualidade nem todos os países têm a capacidade de apelar para pacotes de estímulo econômico com o objetivo de evitar medidas regressivas na implementação de direitos e melhorar suas economias nacionais. Ao assegurarem que esses pacotes preencham os padrões básicos de direitos humanos no plano nacional, os governos

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devem também manter suas obrigações com a cooperação internacional, ajudando a diminuir a brecha financeira no Sul Global. No esforço para estabilizar o emprego e os meios de subsistência, é importante que os pacotes de estímulo não expandam a demanda de acordo com padrões de consumo superados e insustentáveis – tanto nos países ricos quanto nos pobres. A continuação de uma economia com alto consumo de carbono, que exaure os recursos do planeta e aumenta as emissões de gases de efeito estufa, irá somente piorar os desafios já enfrentados por muitos países que tentam manter seus padrões de direitos humanos.

Observações finais Devemos esperar que a atual crise financeira deixe um legado desalentador – pior do que qualquer outra crise que esta geração tenha presenciado. Ao mesmo tempo, existe um legado de ideias importantes que não podem mais ser ignoradas e que devem estar no centro da reestruturação do sistema econômico global. Uma dessas ideias é a inegável relevância dos compromissos de direitos humanos endossados desde 1948 pela comunidade internacional para as escolhas de políticas econômicas e financeiras. A humanidade faria bem em não esquecer a que custo foram forjados os instrumentos modernos de direitos humanos.

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