Democracia Viva 22

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Como deixaram que a Princesinha do Mar chegasse a esse ponto? O que fazer para livrar a Cidade Maravilhosa do pesadelo? Com a barba de molho, o marido vive silencioso, lê o jornal em casa, veste e abotoa o paletó e nunca mais assoviou “Os pobres de Paris”. Nos seus abismos, o medo pede detalhes. Acompanhando tudo pela imprensa, ela aprendeu o nome das favelas e pontos de venda em disputa, dos chefes de quadrilha e seus rivais, dos bandidos presos e procurados, dos delegados e comandantes. Sabe as siglas de batalhões e delegacias, o apelido de viaturas, gíria de bandidos e jargão da polícia. No seu pânico bem informado, vaticinou: “Com a condicional, Dudu vai atacar Lulu e retomar a Rocinha”. E concluiu ciosa: “O bicho vai pegar, tá ligado?”. O marido ouviu, perplexo. Assombrada, não dormiu mais. Com 80 homens armados, Dudu parte do Vidigal para a Rocinha. 1.300 militares ocupam os morros. Instala-se a barbárie. A cada hora, mais mortos. Entre eles, Lulu. Agora, a Rocinha espera o ataque de Dudu, assim que a polícia sair. Após dias de pânico, ela sucumbe: palpitações, falta de ar, insônia e inapetência. Sem ter quem a acompanhe, parte sozinha para a clínica. No banco de trás do táxi, atenta a cada movimento do motorista – um mulato sorridente –, recusa a oferta do ar-condicionado e pensa: “Quer fechar tudo pra sumir comigo”, certa de que numa emergência, com janelas abertas, seus gritos chegariam à

rua. No sinal, ele abre o porta-luvas – “Ai, Deus, a arma!” –, tira a flanela e limpa o painel. Alivia-se com o camburão que pára ao lado. Mas, ao ver metralhadoras saltando pela janela, volta o pânico. Adiante, encontra no retrovisor os olhos dele sorrindo. O coração bate como as patas de um cavalo: “É sádico. Vai me matar sorrindo”. Mal o carro pára, salta, esquece o troco e, sem se virar, entra correndo na clínica. Respira sozinha na fila à espera do elevador. Logo, um homem posta-se atrás dela. É negro. Ela pressente e estremece. O elevador chega, sem ascensorista. Ele se antecipa e segura a porta, sorrindo. Emoções em turbulência, ela não sabe o que fazer. Cerra os olhos e entra rezando. Dentro, o homem pergunta: “O andar, senhora?”. “E agora, meu Cristo?” Murmura com lábios trêmulos: “Cinco”. Ele aperta o cinco, a porta se fecha. Cabisbaixa, ela mal respira. Intui cada gesto dele: “Maria Santíssima! Ele vai me estuprar. Oh, Senhor, meu Jesus Cristo! Ele vai me espancar, me torturar! Oh, clemente, oh, piedosa, doce Virgem Maria! Vai puxar a arma, minha santa! Rogai por nós, Santa Mãe de Deus!”. O elevador pára no quarto andar. O homem sai. Ela suspira fundo, persigna-se. Agradece a Deus. Trêmula e suada, irrompe no consultório e desabafa a uma perplexa sala de espera: “Quase fui assaltada!”. Sentiu-se aliviada da ameaça que não houve. É sempre assim. Onde o medo faz morada, a lucidez bruxuleia, a intolerância se insinua e o preconceito salta das entranhas.

AlcioneAraújo alcionaraujo@uol.com.br

JUN 2004 / JUL 2004

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