A grande viagem ao riso de Bergson

Page 1

A grande viagem ao riso de Bergson Cia. Humbalada de Teatro

Introdução Durante dois meses, no Espaço Cultural Humbalada, a Cia. de Teatro Humbalada realizou o ciclo “Estudos sobre o riso” em que na primeira etapa do processo nos debruçamos sobre o livro “O Riso”1 de Henri Bergson. Nas duas etapas seguintes realizamos a leitura de seis textos cômicos 2 e finalizamos com o estudo de grandes mestres do riso3. Este relatório refere-se à análise da obra “O Riso” e tem como objetivo relatar os pontos principais do livro criando como conclusão uma relação entre o estudo cênico da Cia. e os argumentos elaborados por Bergson.

Bergson e seu ensaio sobre a significação da comicidade O livro “O Riso” é dividido em três artigos sendo o primeiro sobre a comicidade em geral, das formas e dos movimentos; o segundo sobre a comicidade de situação e de palavras; e o último acerca da comicidade de caráter. No início temos três observações referentes ao lugar onde a comicidade é encontrada. Na primeira entendemos que não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano. Em seguida, Bergson relata sobre a capacidade da comicidade

1

BERGSON, Henri. O riso. São Paulo: Martins Fontes, 2001

2

O ciclo de leituras foi realizado no mês de abril de 2011 e estudou os seguintes textos: “As aves” de

Aristófanes; “Aulularia” de Plauto; “O Tartufo” de Molière; “As alegres comadres de Windsor” de Shakespeare; “Morte acidental de um anarquista” de Dario Fo e “A mais-valia vai acabar, seu Edgar” de Oduvaldo Vianna Filho. 3

A pesquisa dos grandes mestres, também realizada em abril de 2011, foi feita a partir de vídeos e textos

dos seguintes artistas cômicos: Grock, Charles Chaplin, Peter Sellers, Família Fratellini, Harold Loyd, Irmãos Marx, Jerry Lewis, Charlie Rivel, Buster Keaton, Giulietta Masina, Mazzaropi, Dercy Gonçalves, Benjamin de Oliveira, Piolim, Chicarrão, Picolino, Carequinha, Arrelia, Oscarito e Grande Otelo.


A grande viagem ao riso de Bergson

em anestesiar o coração e o aumentar o uso da razão, dirigindo-se portanto à uma inteligência pura. Por último, de acordo com o autor, o riso precisa de eco. Não saborearíamos a comicidade se nos sentíssemos isolados. Em resumo, a comicidade nascerá, ao que parece, quando alguns homens reunidos em grupo dirigem todos a atenção para um deles, calando a própria sensibilidade e exercendo apenas a inteligência. (...) Para compreender o riso, é preciso colocá-lo em seu meio natural, que é a sociedade; é preciso, sobretudo, determinar sua função útil, que é uma função social. O riso deve ter uma significação social. No capítulo seguinte Bergson começa a aplicar o conceito do efeito de rigidez ou de velocidade adquirida, ou seja, quando “os músculos continuam realizando o mesmo movimento na medida em que as circunstâncias exigiam outra. Aqui se aplica o exemplo clássico do homem que caminha na rua, tropeça e cai. O movimento natural deste homem é seguir seu caminho, mas algo na natureza faz com que seu movimento interrompa a lógica estabelecida, e com um automatismo mecânico pare de fazer o que seu corpo fazia. Para Bergson a comicidade, que normalmente está na superfície da pessoa, passa a penetrar no interior quando a própria pessoa fornece matéria e forma, causa e ocasião. Mais risível será a distração que tivermos visto nascer e crescer diante de nossos olhos. O cômico torna-se invisível para si mesmo ao torna-se visível para todos. Outro conceito interessante é a relação entre tensão e elasticidade. A fricção entre essas duas idéias deve resultar no riso. Como é o caso, por exemplo, dos personagens de Molière ou Shakespeare, na medida em que temos cenas e situações que permeiam ora o relaxamento, a tranquilidade, a elasticidade e ora o conflito, a crise, a tensão. No decorrer do livro, Bergson sintetiza e organiza as idéias em pequenas leis. A primeira a aparecer é a seguinte: pode tornar-se cômica toda deformidade que uma pessoa bem-feita consiga imitar. Quando atenuamos a deformidade risível, temos a fealdade cômica.

2


A grande viagem ao riso de Bergson

Para o riso criado a partir do rosto, é possível tê-lo quando este rosto nos leve a pensar em algo rígido, congelado. Como se toda a vida moral da pessoa se cristalizasse em determinado sistema. O rosto deve conter uma ação simples, mecânica, como uma personalidade absorvida para sempre. Rimos de um rosto que é em si mesmo, sua própria caricatura. Sobre o exagero, Bergson cria uma ressalva para ser cômico, o exagero não pode aparecer como objeto, mas como um meio para manifestar aos nossos olhos as contorções que ele vê preparar-se na natureza. Quando a matéria consegue espessar assim exteriormente a vida da alma, congelar seu movimento e contrariar sua graça, obtém um efeito cômico.

O mecanismo sobreposto ao vivo Temos a seguinte lei: as atitudes, os gestos e os movimentos do corpo humano são risíveis na exata medida em que esse corpo nos faz pensar numa simples mecânica. A partir desta lei, o autor vai tecendo um argumento sobre o riso por meio da mecanização. O efeito cômico será mais marcante quanto mais inseridas a imagem de pessoa e de mecanismo. Sobre o tema “o mecanismo sobreposto ao vivo”, podemos caminhar para três direções: I)

Por que rimos do negro ou do nariz vermelho? Porque a coloração não consegue ser inerente à pele; nós consideramos sobreposta artificialmente, porque nos surpreende. Todo disfarce é portanto cômico. Não só do homem, mas também da sociedade. E até da natureza. Na sociedade é como se tivéssemos uma “mascarada social”, uma sociedade fantasiada. Há neste primeiro caminho dois efeitos engraçados: mecanismo inserido na natureza e automatização da sociedade.

II)

Corpo e alma. É cômico todo incidente que chame nossa atenção para o físico de uma pessoa quando o que está em questão é o moral. De um lado temos a personalidade moral com sua energia, do outro, temos o corpo

3


A grande viagem ao riso de Bergson

com sua estúpida obstinação de máquina. A comicidade nascerá quando virmos corpo e alma se sobrepondo. III)

Rimos sempre que uma pessoa nos dá a impressão de coisa. A comicidade nascerá na relação de coisificação do homem.

A comicidade de ações e situação e suas formas É cômica toda combinação de atos e de acontecimentos que nos dê, inseridas uma na outra, a ilusão de vida e a sensação nítida de arranjo mecânico. Novamente Bergson propõe a divisão da mecanização em tês categorias: I)

A caixa de surpresas

Tem como principal assunto o efeito mola. Examinemos ainda mais perto a imagem da mola que espicha, encolhe e volta a espichar. Extraindo dela o essencial, vamos obter um dos procedimentos usuais da comédia clássica, a repetição. Um exemplo clássico é o personagem que ao brigar com outro em cena, xinga-o repetidamente. Este acusador sai de cena e, de repente, volta xingando-o com as mesmas palavras, exatamente como uma mola daquelas guardadas numa caixa em que ao abrir a tampa nos assustamos. Há, portanto, mais uma lei: numa repetição cômica de palavras há geralmente dois termos presentes: um sentimento comprimido que se estira como uma mola e uma ideia que se diverte a comprimir de novo o sentimento. O efeito mola se refere ao físico, mas também pode se referir no sentido moral. O efeito mola pode ser uma questão moral que atormenta o personagem. Por exemplo a avareza, o medo, a ganância, podemos citar o Pantalone que ao negociar a compra de um tecido, vez ou outra deixa soltar “um pedacinho de pano por tudo isso!”.

II)

O fantoche e seus cordões Inúmeras são as cenas de comédia em que uma personagem acredita estar

falando livremente, mas por outro lado, aparece como simples joguete nas mãos de outra, que com isso se diverte.

4


A grande viagem ao riso de Bergson

É preciso imaginar que a liberdade aparente encobre uma trama de cordões, e que somos “pobres marionetes cujo fio está nas mãos da Necessidade”.

III)

A bola de neve São processos que se engrenam em processo, e o mecanismo funciona cada

vez mais depressa. Um efeito que se propaga por auto-acumulação, de tal modo que a causa, insiginificante na origem, desemboca, por meio de um progresso necessário, num resultado tão importante quanto inesperado. Como por exemplo, a personagem que recebe uma carta misteriosa, que vai criando os mais diversos conflitos e confusões. Há ainda outras três categorias importantes a serem descritas que são designadas em detrimentos das três já observadas. Elas são criadas a partir de uma observação de Bergson sobre a vida, para ele a vida se nos apresenta como certa evolução no tempo, é contínua, com um progresso contínuo, com um sistema fechado de fenômenos e incapaz de interferirem outros sistemas da natureza. Isto distingue o que é vida do que é mecânico, portanto façamos o caminho inverso para criar o riso. Temos então: repetição, inversão e interferência de séries. Repetição: Uma situação que retorna, várias vezes, contrastando com o curso mutável da vida. Inversão: Imaginem-se algumas personagens em certa situação, será obtida uma cena cômica se a situação se inverter e os papéis forem trocados. Como por exemplo do ladrão que ao roubar é roubado ou do pai que leva bronca do filho. Interferência de séries: Uma situação é sempre cômica quando pertence ao mesmo tempo a duas séries de acontecimentos absolutamente independentes e pode ser interpretada ao mesmo tempo em dois sentidos diferentes. Quer haja interferência de séries, inversão, repetição, bola de neve, a caixa de surpresas ou o fantoche com seus cordões, vemos que o objetivo é sempre o mesmo: obter a mecanização da vida.

5


A grande viagem ao riso de Bergson

Gesto X Ação Existe para o autor uma diferença entre o que seria o gesto e a ação. Para Bergson o gesto é entendido como uma atitude, um movimento ou um discurso, ele é um estado de alma que se manifesta sem objetivo, o gesto escapa, é automático. Já a ação é desejada e consciente, a pessoa inteira se dá. A ação é proporcional ao sentimento que a inspira. O gesto tem algo explosivo, lembrando-nos de nós mesmos, impede-nos de levar as coisas a sério. Quando nossa atenção incidir no gesto e não no ato, estaremos na comédia.

Comicidade de palavras Obtém-se uma frase cômica inserindo-se uma idéia absurda num molde frasal consagrado. A comicidade da linguagem deve corresponder à comicidade das ações e situações já descritas. É sua projeção no plano das palavras. A linguagem, assim como os homens, é viva, está em constante mutação, logo, sua mecanização, será cômica. Obteremos o efeito cômico se fingirmos entender uma expressão no sentido próprio quando ela é empregada no sentido figurado. Ou ainda, quando nossa atenção se concentrar na materialidade de uma metáfora. A comicidade das palavras requer uma atenção maior para o seu entendimento, pois ela não está relacionada somente ao autor da frase, mas ela possibilita uma comicidade que possa acontecer pela frase, ou pela palavra que possuem força independente. No geral, percebemos que por meio da repetição, da inversão e da interferência de séries, obteremos também a comicidade das palavras.

6


A grande viagem ao riso de Bergson

O absurdo dos sonhos Encontramos na comicidade, o absurdo, que não é um absurdo qualquer. É um absurdo determinado. Não cria a comicidade; ao contrário deriva dela. Não é causa, mas efeito – efeito muito especial, no qual se reflete a natureza especial da causa que o produz. O riso, como sabemos, é incompatível com a emoção. Se há uma loucura risível, só pode ser uma loucura conciliável com a saúde geral do espírito, uma loucura normal, pode-se dizer. É o estado de loucura onírico. O absurdo cômico é de mesma natureza do absurdo dos sonhos.

E o riso o que é? Bergson nos convence de que o riso tem significado e alcance sociais, de que a comicidade exprime acima de tudo certa inadaptação particular da pessoa à sociedade, de que não há comicidade fora do homem, é o homem, é o caráter que visamos em primeiro lugar. Podemos dizer que na medida em que o homem deixa de se comover com o próximo, nasce a comédia. Começa o que poderíamos chamar de “enrijecimento para a vida social”. O riso está desligado portanto da emoção e conectado a razão. Ele faz pairar sobre cada um, senão a ameaça de correção, pelo menos a perspectiva de uma humilhação que, mesmo sendo leve, não deixa de ser temida. Sempre um pouco humilhante para quem é seu objeto, o riso é de fato uma espécie de trote social. A comédia tem a intenção de corrigir pelo menos exteriormente. Está mais perto da vida real que o drama. Os defeitos alheios nos fazem rir pela sua insociabilidade e não por sua imoralidade. Os personagens cômicos se perguntam “como entrar em uníssono com uma alma que não está em uníssono consigo mesma?”, parece ter nela algo inquietante, uma alma que não está de acordo com o corpo, com um automatismo capaz de mecanizar seu jeito e sua forma de lidar com os outros. Bergson nos apresenta três itens que somados resultam na comédia. São eles: insociabilidade da personagem, insensibilidade do espectador e automatismo. É cômico deixar-se distrair-se de si mesmo.

7


A grande viagem ao riso de Bergson

Há entre nós e nossa própria consciência, um véu espesso para os homens comuns e um véu leve para o artista e o poeta. Este véu estaria tapando, ou não, aquilo que está em torno de nós e, não nos é percebido. Não vemos as coisas mesmas, limitamo-nos, no mais das vezes, a ler etiquetas colocadas sobre elas. Assim, seja pintura, escultura, poesia, música, a arte não tem outro objeto senão o de afastar símbolos úteis do ponto de vista prático, generalidades convencional e socialmente aceitas, enfim tudo o que nos mascara a realidade, para nos pôr face a face com a realidade mesma. A comédia para Bergson é a única arte que visa ao geral. Nela, a generalidade está na própria obra. A comédia pinta caracteres que já conhecemos, ou com que ainda toparemos em nosso caminho. A comédia anota semelhanças. Seu objetivo é apresentar-nos tipos. Se houver necessidade, chegará a criar tipos novos. Nisso se distingue das outras artes. E estes tipos são modelos de impertinência para a sociedade. A essas impertinências a sociedade replica com o riso, que é uma impertinência maior ainda. O riso, portanto, nada teria de benevolente. Ao contrário, pagaria o mal com o mal. O riso é, acima de tudo, uma correção. Ele não pode ser absolutamente justo, sua função é intimidar humilhando. O riso exerce sem dúvida uma função útil à medida que quem ri raciona mais sobre o seu riso.

Conclusão: a comédia da Cia. Humbalada Por que uma Cia. de Teatro estuda os conceitos e pensamentos de um filósofo que descreve o riso? Durante cerca de sete anos, a Cia. Humbalada vem estudando e pesquisando a comédia como uma escolha de linguagem, através de espetáculos que buscam por meio do riso uma posição crítica do espectador e da própria Cia. Portanto, este núcleo de estudos existiu para amadurecer e aperfeiçoar o trabalho artístico da Cia.

8


A grande viagem ao riso de Bergson

A leitura do livro fez com que surgisse para a Cia. não apenas uma análise técnica de como fazer rir, mas principalmente do porquê fazer rir, ascendendo a chama de nossas motivações políticas na arte e reafirmando nossa linguagem estética. Estudar a comédia nos interessa na medida em que entendemos o riso como a materialização dos valores de uma sociedade, o riso é a expressividade dos julgamentos de determinado grupo de pessoas. Estudar as moralidades e os préconceitos da sociedade fazendo deles objetos de estudo e tendo como finalidade o riso de uma platéia que ao rir utiliza a racionalidade, e não a emoção, nos parece coerente com nossas inquietações. Bergson nos mostra uma visão política do que é a comédia. Afirma que a arte tem como objetivo desmascarar a realidade e afastar generalidades socialmente aceitas. Ao pensar a arte desta forma, eleva-a para um ato político, na medida em que não é possível discutir o homem e a sociedade estando alienado de suas questões políticas. Se tomarmos distância das atitudes da humanidade, e de determinada sociedade, e automatizarmos sua existência, teremos a comicidade. Não seria, portanto, função desta Cia. de Teatro buscar como criar uma estética que automatize e consequentemente torne cômica a vida social? Já sabemos que o riso é uma correção. Aquele que ri, se está rindo é porque algo fora do sistema habitual se mostra de maneira aguda e pontual. Aquele que ri, ri das moralidades postas pelo senso comum e coloca em prática o julgamento. Dessa forma, que aspecto social a Cia. Humbalada estaria disposta a ressaltar e tornar visível para que a platéia ria, e rindo, possa querer corrigir? Se a função da comédia é reprimir as tendências separatistas, então podemos dizer que ela é para nós a estética do combate, que pode colocar em discussão a luta de classes, a desigualdade social, um sistema econômico gerador de pobreza e riqueza, a relação humana, a guerra, a diferença, entre outros. Se a comédia é uma quebra de expectativa, se ela se localiza fora de um contexto, encaramos que a Cia também pertence a esse universo, uma vez que surgiu por meio de um projeto público, em um espaço público, longe da Academia, fora do eixo teatral da cidade, entre duas represas, na margem, em um bairro onde as pessoas têm fome, e não é de teatro.

9


A grande viagem ao riso de Bergson

Assim como a comédia, funcionamos no vazio, dilatamos o tempo e espaço para tirar as pessoas de seu sistema, tornando a arte uma lupa, que intensifica os espetáculos dos atos sociais. Cada vez mais que optarmos pelo distanciamento da platéia através da utilização do cômico, mais distante estaremos da utilização de meios naturais de comunicação. Ou seja, quanto mais nossos personagens e espetáculos mergulharem fora daquilo que é natural, mais levaremos a platéia para longe de uma viagem emocional, possibilitando que eles participem de maneira consciente do ato teatral. O riso para nós não cumpre a intenção moralizante, não se consegue através de uma peça cômica terminar um espetáculo com “e a moral da história é...”, e quando se tem isso ou o riso não cumpriu sua função ou o teatro não existiu, na medida em que fazer o outro rir não nos parece ser uma atitude catequizante ou moralista. Fazendo rir, somos uma Cia. de Teatro “singular” que brotou sobre as partes “pedregosas” de uma sociedade. Não é a toa que estamos na beira. Nesse sentido, estar na periferia e estudar a comicidade tem uma relação intrínseca; assim como o riso, nós brotamos deste solo social e é por meio da comédia que vamos revelar o invisível, expor o que todos vêem e não têm coragem de sentir, buscando na gargalhada uma posição política, racional e inteligente.

Cia. Humbalada de Teatro Maio de 2011

10


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.