Brexit

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Brexit

Há muito que substituí a Política por uma linha de conduta pessoal. Essa linha de conduta própria pode resumir-se numa só ideia, chamada “bem-estar”. Assim contada, a coisa até se podia confundir com egoísmo, mas não confunde, já que o meu bem-estar inclui o bem-estar daqueles que me rodeiam, e, mais amplamente, não há para mim bem-estar enquanto eu me puder cruzar, na rua, ou onde seja, com pessoas em cujas caras e comportamentos se espelham sofrimento, insuficiência e angústia. Exprimo aqui uma maneira atual do pensamento antigo, e uma axiologia secreta do Grande Paganismo, no qual me inscrevo. Sendo ainda mais tendencioso, vou chamar a esta simplificação das coisas “cidadania”, e vou, portanto, falar aqui de cidadania. Dado isto, passa a ser claro que arrumo todos os atores e autores de práticas políticas em prateleiras muito simplificadas, a dos que me concedem, ou concederam, mais bemestar, e a dos que me retiraram, ou tentaram retirar, quaisquer direitos cívicos. Uma vez apresentada a axiomática, vou agora falar do Brexit. Esse Brexit não passa, para mim, de uma brusca diminuição de cidadania. Enquanto natural europeu, esse episódio simultaneamente me diminui a extensão do passaporte, e me limita o alcance da carta de identidade. Diminui-me a rapidez de circulação, e, num mercado europeu antes despreocupado, induz-me novos receios na aquisição de bens e valores. Vai conseguir fazer de mim “estrangeiro”, num território que já foi a minha casa, e vai forçar-me a ver


estrangeiros em muitos cidadãos fluentes, com quem eu me cruzava nas ruas despreocupadas de todas as nossas terras. Na verdade, a História está cheia de figuras isoladas e de grupos iluminados, a tentarem trabalhar para o bem comum. No reverso, também se encontra infestada de figuras isoladas e de grupos vesgos, que sempre tentaram diminuir esse mesmo bem. O Sr. Johnson e o seu bando inserem-se, infelizmente, na segunda categoria, e, infelizmente, frequentam o nosso tempo, e são bem nossos contemporâneos. Nessa categoria, utilizaram o Brexit deles como uma violenta retração do bem-estar dos seus concidadãos, e de um simultâneo empobrecimento do bem-estar de todos os outros europeus, não-residentes no Reino Unido. Na ótica dos monumentos, eu tive a sorte de pertencer à geração de abertura do túnel do Canal da Mancha, uma das grandes pirâmides do nosso tempo. Na verdade, esses monumentos foram feitos para alargar cidadanias, e não para depois lhes instruírem fronteiras. Esse é, ou pode ser, um erro dos políticos, mas os políticos, felizmente, passam, e passam todos, enquanto os monumentos e as suas intenções por cá ficam. Indo desta passagem das coisas ao lugar dos símbolos, gostaria agora de recordar o papel do monarca na identidade e preservação dos territórios. Coube aos Stuart, da Escócia, dar corpo a um sonho perdido de Isabel Tudor, grande soberana da Ilha e senhora da Europa. Esse legado chamou-se Grã-Bretanha, e foi uma das invenções maiores do património continental. Ontem, curiosamente, um dos sucessores de Isabel, e dos mais longevos chefes de estado, foi cúmplice de uma brutal contração da cidadania dos seus súbitos. Com uma só assinatura, retirou-lhes o dom de europeus, e nada teve para lhes dar em troca, para além dos horizontes limitados de uma ilha. Assim se mostra como reinados grandes não são necessariamente os grandes reinados. Na verdade, podia ter ido além, e oposto o poder do seu símbolo a quaisquer manobras locais. Não o fez, e associou o nome e a memória às turvas manobras das tais figuras isoladas, dos grupos vesgos. Com isso, em nada se beneficiou, e em nada beneficiou alguém que fosse. Sabe-se serem todas estas coisas apenas o início de infortúnios maiores. Pressagia-se que também a Escócia, fundadora da União, se prepara agora para seguir um rumo continental. Em tal mundo, a futura Rainha de Inglaterra, depois de perder a nossa Europa, também acabará por perder o seu Norte e o que mais lhe vier anexo. Ao não cumprir o Símbolo, ela fundiu-se com o episódio débil que agora a inscreverá na Crónica. Sabe-se quanto a Eternidade é económica nas palavras associadas aos vultos. Em tal fatalidade, a penosa sucessora dos Tudor e dos Stuart, Isabel II, entrou ontem para a História como a soberana que retirou o Reino Unido da grande aventura europeia. Como diriam os nossos clássicos, retirou o seu reino de um Império maior, para apenas o remeter para uma melancolia menor.


Aqui cessa o ano e a oportunidade. Enquanto pensador, creio já ter escrito o essencial do que associo a este desastre. Resta acrescentar, para que saibam, aquilo que o Brexit em mim já conseguiu, e aquilo em que amanhã me vai tornar: um simples cidadão europeu, mas, doravante, convicta e assumidamente republicano inglês.

Luís Alves da Costa 31 de dezembro de 2020


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