Por pouco

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Por pouco Guilherme Scalzilli

A ponta da caneta encaixa numa ínfima ruga do papel: espera o primeiro impulso rumo à vastidão das formas aleatórias. Os dedos retesam no gesto iminente. A esfera afunda na derme fofa, libertando um pólen de tinta prestes a virar traço. Uma ideia desponta do caos e vem romper a pureza do ato nascituro, gestá-lo e ser gestada por ele à medida que ambos se amalgamem na síntese do texto. Só que a escrita não admite improvisos. Exige saber-se antes da própria gênese, prever um desígnio que norteie a sua materialização. Uma relevância. Dizer o que deve ser dito, o que não pode ser dito, o que pede para ser dito, o que deixaram de dizer, o que disseram em segredo. Um narrar transparente, embora talvez mentiroso, expondo a índole desonesta do relato como prova do delito sublime de inventar. Nem qualquer prosa vagamunda, mas uma reta e expedita, que ignore as trilhas pedregosas da lucubração, os ermos ao pé das metáforas, os abismos dos subentendidos, as alamedas bucólicas do devaneio. Que flua sem ornamentos baldios e visões crepusculares, pois o leitorado já não tolera flanar. É incrédulo e fatídico demais para especular símbolos. Prefere o atalho do legível. Trata-se, portanto, de cortar a demasia. Mas não convém talhar em demasia, roçando o nervo da leitura, fazendo-a tossir com as neblinas do hermetismo. A fala eficaz é melódica sem tilintar no melindre, fácil para o risonho público dos espetáculos, poética para os raros nefelibatas. Discurso mimado, que se deixa apalpar, que pousa no colo e nos lambe o pescoço. Bicho doméstico, fiel a temas e premissas, zelando pela gostosura da fluência. Ninando o gozo pudico dos intelectos pós-modernos. Daí a precisão do ritmo. Parágrafos coesos, manchas uniformes no dorso da página, seqüências indivisíveis da simetria maior. Frases que respirem. Diálogos de compassos no andamento dos raciocínios, na cadência harmônica dos sintagmas e na dança precisa da pontuação. Ondulando no soluço da vírgula, na calma vertigem que sua curva de lesma


provoca, tão lenta e elegante, pelo dorso do contar. Sustando à grandeza categórica de um minúsculo ponto final. Cada palavra um golpe certeiro, que não terá segundas chances. Palavra garimpada a custo de lodo e ruína, gema que sozinha reluz na peneira, coroando a rude labuta que ninguém reconhecerá. Palavra escolhida a pinça, fulcro do singular que abarca, mesmo quando vaga e etérea, mesmo feita coisa, ônibus, som, garatuja. Palavra única, renascida inédita, peça que veste a lacuna exata no infinito quebra-cabeça da língua. Mas o tesouro é vulgar, pulula em qualquer dialeto, velho novo de sina vampira. Basta que um cético arranhe sua derme, rompa a casca ilusória do signo e esfarele a carne grumosa, até o cerne das sílabas que nela saltitam, estalam, zunem, vãs. Até os átomos vogais e consoantes, agregados pelo imo quântico das letras. Então as desfaça em linhas abstratas, deixando os rabiscos flanarem para sempre no éter do indizível.

Texto selecionado para a Coletânea Off-Flip 2017


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