1 Como as parteiras podem ajudar a melhorar o SUS?

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Como as parteiras podem ajudar a melhorar o SUS? Palestra no seminário “Parteiras tradicionais do Tocantins: Desafios e avanços” Palmas, 1º de setembro de 2014

Soraya Fleischer Professora do Departamento de Antropologia Universidade de Brasília soraya@unb.br

Bom dia a todas. Primeiro, eu gostaria de agradecer pelo amável convite que recebi de Paula Viana e de Karine, Samira e Margarida da SESAU. É sempre bom, para nós que somos da universidade, podermos vir, conhecer o que vocês estão fazendo e contar um pouco de nossa experiência. Durante os anos de 2004 e 2005, eu morei em algumas cidades do Pará, como Belém, Breves e Melgaço. Antes disso, eu tinha morado alguns meses em Olinda/PE e Novo Cruzeiro/MG, Oliveira dos Campinhos/BA e nas cidades de Antigua e Quetzaltenango na Guatemala. Em todos esses lugares, eu busquei conhecer, ficar e ouvir histórias de parteiras. Sei que as parteiras são responsáveis por menos de 10% dos partos que acontecem no Brasil. Parece pouco quando pensamos nos números de forma absoluta. Mas se pensamos os números dentro das realidades locais, a dimensão é outra. Nos estados do Norte, por exemplo, em algumas localidades, elas atendem 60 ou 70% dos partos que acontecem. Nesses lugares, ser “parteira” é ofício reconhecido por qualquer transeunte na rua, todo mundo sabe indicar uma parteira conhecida, muitas pessoas passam a relatar suas histórias de nascimento, quando foram recebidos por uma parteira. Quase todo mundo tem sua “mãe de umbigo”, como me diziam. Ela é um personagem facilmente compreendido.

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Quando eu realizei essa pesquisa, eu estava interessada em conhecer essa personagem que, até aquele momento, surgia na literatura acadêmica como um sujeito a ser “resgatado” do passado longínquo, como um sujeito a servir de “modelo” para profissionais de saúde desempoderados dentro dos hospitais. São motivos legítimos para se pesquisar as parteiras. Mas eu desejava conhecê-las para além de sua utilidade filosófica. Eu queria entender quem é esse personagem, como ela vê seu trabalho no século XXI, como ela é percebida pelas pessoas de sua ilha, comunidade ou bairro. Um dos aspectos importantes dessa contemporaneidade das parteiras, a meu ver, é sua relação com os serviços oficiais de saúde. Meu pressuposto aqui é de que elas não estão isoladas, invisibilizadas, esquecidas nos grotões do interior do país. Essa é uma visão de quem está olhando a partir dos “centros”, como as capitais, os hospitais, as universidades, a Esplanada dos Ministérios. Na localidade onde atuavam, as parteiras, pelo menos as dezenas que eu conheci naqueles anos, eram bem conhecidas, demandadas e cheias de opinião sobre a prática do partejar e sobre a atuação da Secretaria de Saúde de seu município. Elas eram atores atuantes e vocais, pelo menos naquele microcosmo. Hoje, eu desejo trazer para vocês algumas passagens e histórias que foram registrados em meus diários de campo. O diário de campo é um instrumento central no trabalho das antropólogas porque é onde escrevemos o que nos contam, o que ouvimos e observamos nos locais onde fazemos nossas pesquisas. Eu ouvi centenas de boas histórias, mas hoje quero trazer cinco histórias que revelam especificamente a relação que as parteiras estabeleciam com os serviços de saúde. Julgo que essa relação é fundamental por dois motivos: 1. Primeiro, atentar para a relação entre as parteiras e os serviços de saúde é reconhecer que elas não estão “fora do mundo” ou “isoladas” do nosso tempo presente. Embora atendam nas casas (delas ou das pacientes), elas sabem muito bem o que está acontecendo no nível dos serviços oficiais de saúde. Quero, portanto, revelar essas opiniões, com o objetivo de reforçar que as parteiras, embora algumas sejam analfabetas, não escolarizadas e pobres, elas observam, avaliam e opinam com muita clareza sobre os serviços de saúde e a administração do município. A perspectiva delas é privilegiada porque, além de 2


serem mães e matriarcas de extensas famílias e serem lideranças comunitárias/religiosas, elas atendem dezenas de mulheres e têm uma larga experiência com as questões de saúde reprodutiva.

2. Segundo, quando pensamos no SUS e desejamos fortalecê-lo como um sistema de fato universal, democrático, aberto e público, precisamos considerar todas as pessoas que contribuem para realizá-lo. Isso significa levar a sério as pessoas que, mesmo não formalmente dentro do Sistema, estejam trabalhando – muitas vezes de modo voluntário – para que a população tenha mais assistência e saúde. As parteiras, bem como os demais terapeutas populares que temos no país, são esse importante conjunto de atores. Considerar a experiência prática e a trajetória biográfica dessas mulheres (e alguns homens) é um passo importante para conhecermos melhor o SUS e, mais importante, para continuarmos cobrando – de forma crítica, inclusive – que o SUS de fato aconteça cada vez melhor todos os dias no Brasil e que seja cada vez mais inclusivo em relação a quem trabalha para e com ele, mesmo de forma indireta e voluntária como as parteiras. Conhecer o SUS de dentro é uma estratégia que o fortalece diretamente. Tomarei a liberdade, portanto, de contar cinco histórias de uma das paragens onde mais frequentei. Tive a sorte de viver em Melgaço, uma pequena ilha do arquipélago do Marajó paraense, e, mais importante, viver na casa de D. Tabita Bentes do Santos, uma parteira muito famosa na região que foi mais conhecida pelo seu apelido, D. Dorca. Ela foi a pessoa que mais me ensinou sobre o partejar nessa Amazônia ribeirinha e também sobre o funcionamento no SUS no Brasil. Infelizmente, faleceu em 2010, com quase 70 anos. Resgatei algumas histórias de Melgaço e de Breves, cidade um pouco maior a duas horas dali, para pensarmos na relação que as parteiras estabelecem e podem estabelecer com os centros de saúde, os hospitais, os conselhos municipais de saúde e as Secretarias municipais de saúde de suas localidades. Hoje, mais do que tudo, eu quero falar dos dilemas contemporâneos que as parteiras vivenciam no dia a dia de seu trabalho em prol das mulheres gestantes, parturientes e puérperas. Lembrando 3


que parteira, muito mais do que parto, atua para garantir os direitos que mulheres e seus filhos devem ter à saúde gratuita e total. Eu costumo dizer que as parteiras brasileiras são, além de obstetrizes populares (atuando no pré-natal, parto e puerpério das mulheres), também enfermeiras populares (porque atendem todo tipo de ocorrência em termos de adoecimento), psicólogas populares (porque socorrem aqueles com crises, nervoso, distúrbio mentais), puericultoras populares (porque cuidam dos bebês e crianças de suas clientes), assistentes sociais e advogadas populares (porque ajudam as mulheres a terem acesso a benefícios e direitos de várias ordens). Elas são profissionais multi-talentosas.

História 1 Uma das mais recorrentes recomendações que ouvimos no senso comum biomédico é de que, assim que notadas, as complicações obstétricas devem ser encaminhadas pelas parteiras ao hospital mais próximo. As parteiras que eu conheci ouviam muito bem essa recomendação. Elas sabiam que, em especial, a vida da sua paciente e também do rebento eram a prioridade. Sabiam também, por alguns casos contados, que morte neonatal e, mais raramente, morte materna já haviam motivado processos policiais contra as parteiras. “Albumina”, anemia, hemorragias, “infecções” (DSTs), “cara branca” (desmaios) ou mulheres com “pente estreita”, com histórico obstétrico anterior complicado ou com bebê grande demais e não na posição cefálica, por exemplo, eram todos sinais de alerta. Ainda na gestação, as parteiras já ajudavam a organizar a migração do parto planejado como doméstico para o espaço hospitalar. A primeira história que desejo contar é justamente sobre a referência. Numa manhã acordei perto das 7h e D. Dorca já tinha saído de casa. Seu neto me informou que ela tinha ido à “unidade”, acompanhar uma moça com dor. Quando lá cheguei, D. Dorca estava ao lado de Benedita, que tinha cerca de 20 anos de idade e pouco mais de um metro e meio de altura. Ela vestia uma camisolinha cor de rosa e tinha o rosto crispado de dor. Não havia ninguém de sua família, apenas a parteira. Dorca me explicou: “Ela já foi operada da primeira vez, não tem dilatação. Tem puxo, tem força, mas não adianta nada. Não tem passagem. A gente vai levá-la para Portel (a cidade vizinha de Melgaço, 4


que contava com hospital e centro cirúrgico). O marido já foi encontrar o barco”. Por isso, eu não tinha avistado o marido no espaço hospitalar. Mas sua presença física em nada acrescentou depois disso, quando estávamos a bordo do barco. Ele ficou o tempo da viagem – 90 minutos – conversando com sua irmã e o timoneiro. Pareciam fazer um passeio dominical. Enquanto isso, D. Dorca foi de pé, ao lado de Benedita, que gemia, chorava e reclamava dentro da rede. Acarinhava seus cabelos, passava um pano molhado em sua testa suada, puxava suas mãos e pernas para aliviar a dor das contrações. Quando chegamos à outra cidade, a parteira teve que pedir ao marido da moça para conseguir um táxi, já que ele não teve iniciativa para tanto. Quando finalmente chegamos à emergência do pequeno hospital, levaram Benedita sobre uma maca que, a essa altura, urrava de dor. A enfermeira a recebeu e chamou o médico. Ele entrou, não cumprimentou nenhuma de nós, sentou-se a frente da parturiente e a examinou. “O batimento fetal é de 160. Vamos operar, façam a tricotomia”. Saiu apressado. Benedita dizia, entre dores e medos: “D. Dorca fique comigo, não me deixe sozinha”. Quando o médico voltou, eu o indaguei sobre o quadro, já que ele nada havia nos explicado. “O bebê está baixo, mas em sofrimento”, ele explicou. Ficamos a um lado. De repente, ele nos olhou novamente e perguntou quem era D. Dorca, a mais velha do grupo. “É a acompanhante da Benedita”. Em nenhum momento, o médico quis saber o que havia acontecido ou a opinião de outros especialistas até a chegada ao seu centro cirúrgico. Por favor, saiam, ordenou. “Mas ela quer continuar ao lado da moça, tem lhe acompanhado desde o início”. “Vocês estão começando a me atrapalhar!”, gritou alto. Eu temia que ele descontasse seu incômodo em Benedita e começamos a deixar o local. Benedita esqueceu as dores do parto por um instante, agarrou-se à mão da parteira e continuou a cantilena, “Por favor, D. Dorca, não saia. Não me deixe aqui. Não conheço ninguém. Não me deixe sozinha, por favor, D. Dorca! Eu vou morrer aqui dentro, eu vou morrer!”. D. Dorca lhe abraçou, sussurrou algo em seu ouvido e saímos. Nesse interim, a família de Benedita tinha se reunido na sala de espera. D. Dorca passou-lhes a incumbência e voltamos para Melgaço. A parteira veio dormindo na rede, cansada. O parto foi cirúrgico, de uma criança de 4 quilos. Soubemos no dia seguinte.

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Depois de atender toda a gestação de uma cliente, depois de lhes puxar a cada quinzena para acompanhar a progressão da barriga e das condições familiares para a chegada do bebê, depois de lhe dar dicas de como evitar a anemia e para fazer paralelamente o pré-natal no “postinho”, essas parteiras não eram autorizadas a acompanhar suas pacientes quando decidiam ou precisavam – por qualquer motivo – ter seus bebês no hospital municipal. Iam até a porta e ficavam esperando do lado de fora por qualquer notícia sobre a mulher e seu bebê. A tensão, não me entendam mal, não era em razão de disputa pela autoridade junto aos profissionais de saúde oficiais. Confiavam nos médicos, mas sabiam que havia uns mais cuidadosos do que outros, por exemplo. D. Rita, uma parteira de Breves, me disse: “E eu fico lá do lado de fora, preocupada com a minha gestante”. Notem o pronome possessivo, mas que também revela compromisso, responsabilidade e intimidade com a cliente. Aqui, trago uma história de referência. A parteira notou o parto complicado de uma criança grande de mãe diminuta. Recorreu, primeiro, ao centro de saúde da cidade de Melgaço. Não havia ocitocina nem médico disponível para ajudar no parto normal. Sabia que pouco se resolvia no centro de saúde, mas dali, ao menos, saiu com um encaminhamento que obrigava a prefeitura a custear o transporte fluvial e também entrava em contato com o Hospital de Portel para garantir o leito. Acionou o marido e um barco foi providenciado. Acionou um táxi, indicou o hospital, apresentou a moça à equipe médica. Intermediou todas as etapas até o caso ser solucionado. Ouviu o diagnóstico do obstetra e, por não questioná-lo, assunto que tenha concordado com a conduta. No dia seguinte, recapitulando a história, percebi isso quando ela disse: “Eu toquei a Benedita ontem e disse que não tinha passagem. Eu disse logo que ela tinha que ir para o hospital”. Nessas etapas todas, D. Dorca esteve ao lado de sua paciente, mesmo sabendo que não faria o parto e, possivelmente, sequer receberia por todo o serviço que oferecera até ali (como, de fato, aconteceu). Era com Benedita que tinha um compromisso. Só descansou quando passou o caso às mãos de um colega de ofício. Ela lembrou no dia seguinte: “Ela quase morreu na primeira cesárea dela. Disseram que ela tinha como ter normal aquele filho. Ela sofreu muito e foi para a cesárea. Por isso ela se traumatizou de hospital. Ela não queria que eu fosse embora ontem de lá. Ela ficava dizendo que ia 6


morrer ali”. Sua memória ficou marcada com o pleito final de Benedita. Era com essa frase da moça que Dorca terminava seu relato aos que encontrou de volta em Melgaço. Há, no trabalho da parteira, uma especificidade só dela. É o fato de, sempre que procurada por uma mulher em trabalho de parto (ou outra questão reprodutiva qualquer), geralmente não negar auxílio, mesmo que seja “apenas” ficar ao seu lado até o final do seu sofrimento. Isso quer dizer, muitas vezes, fazer a migração da casa ao hospital, e acompanhar a paciente em todas essas etapas. Por isso, meu ponto é: não adianta pedir que parteiras identificassem as complicações obstétricas, que levassem as suas pacientes aos hospitais e depois fossem impedidas de acompanharem o sofrimento das mesmas dentro da instituição. Provavelmente, elas não disputarão com os médicos, tão exitosos em manter sua onipotência. Provavelmente, elas não darão palpite, salvo se algo muito equivocado estiver acontecendo, se algum direito da mulher estiver sendo usurpado. Mas elas ficarão como acompanhantes especialistas, oferecendo conforto e segurança à paciente e, também importante, servindo como testemunha dos serviços recebidos daquela instituição. Só a presença de um terceiro elemento na cena de parto tenderá a reprimir abusos contra aquela gestante. Estou falando aqui do compromisso que as parteiras mantêm com as mulheres, independente do local onde o parto irá acontecer.

História 2 Passo à segunda história. Não só partos eram levados por essas parteiras para o hospital. Mas outros serviços, sobretudo da atenção básica, eram mencionados e, mais importante, traduzidos pelas parteiras para suas pacientes. Elas mediavam a relação da população com os serviços públicos. A segunda história que desejo contar também alude à importante parceria que a parteira realiza com as instituições estatais. Numa manhã de novembro, antes de ficar quente demais, eu e D. Dorca pedalamos até a casa de Nara. Encontramo-na com a filhinha Clarice no colo, uma recém-nascida de 8 dias de vida. A outra filha, Michele, de mais ou menos 8 anos, já estava vestida

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para sairmos. D. Dorca entrou e pediu que Nara amornasse um pouco d´água no fogão que depois despejou na banheirinha de plástico. Tirou os cueiros de Clarice e deu-lhe o primeiro banho da vida, jogando punhados delicados de água sobre seu pequeno corpinho. Apesar de já ser mãe, Nara observava atentamente, aprendendo as dicas da parteira. D. Dorca havia sido convidada por Nara para acompanhar toda a sua gravidez, prestando-lhe visitas regulares, aplicando massagens nos momentos de dor e desconforto e depois realizando o parto. A parteira ainda voltou diariamente ao longo dos primeiros três dias de pós-parto para cuidar um pouco da casa, observar se a neném secava o umbigo e também pegava o peito com facilidade, e checar se Nara havia parado de sangrar e se recuperava como o esperado. Agora, era nesse oitavo dia que a parteira retornava para mais um ritual importante. Um deles era o banho. Depois dele, D. Tabita vestiu Clarice com uma roupa nova, separada de antemão por Nara. Michele, a filha mais velha, observava tudo de perto e logo trouxe a sombrinha que iria poupar a irmã do sol quente. Saímos, a pé, em direção ao centro de saúde. Éramos praticamente um cortejo, impossível de não ser notado pelos curiosos que cruzavam conosco ou que espiavam de dentro das janelas ou da ponta dos jiraus das casas. Éramos a parteira, sua neta que sempre estava conosco, a antropóloga a tiracolo, a mãe, suas duas filhas e uma vizinha. Várias outras mulheres nos pararam no meio do caminho, vinham ver a carinha da nova bebê, perguntar quando tinha nascido, que nome recebera e para onde nos dirigíamos àquela hora da manhã. No centro de saúde, D. Dorca nos conduziu para dentro da instituição, seguindo até o final do corredor, demonstrando conhecer bem aquele espaço. Todos aqueles de jalecos brancos a cumprimentaram e ela parecia à vontade ao circular por ali. A enfermeira logo apareceu e disse que precisava ir até o outro prédio da prefeitura fazer uma cópia. D. Dorca, jeitosa e gentil, pediu que não demorasse porque sua paciente era puérpera e não podia ficar exposta ao tempo, precisava voltar ao resguardo doméstico, altamente associado à boa recuperação das mães. Em poucos minutos, a moça estava de volta e nos conduziu para dentro do consultório. Preencheu a Declaração de Nascido Vivo, carimbou com o pé de Clarice as três vias do documento e entregou à D. Dorca que, em casa, explicaria à Nara onde cada via deveria ser levada 8


para realizar o registro da criança. Depois, procedemos ao teste do pezinho, único momento em que ouvimos qualquer reação da criança. A enfermeira agendou a primeira visita de Clarice ao pediatra e estávamos liberadas. D. Dorca, segurando a sombrinha, voltou ao lado de Nil, que levava a filhinha enrolada em paninhos caprichados. Como muitas outras parteiras, D. Dorca explicou ao deixar Nara em casa: “Com isso, meu trabalho está terminado. É a última coisa que eu faço, levar o bebê no centro de saúde no oitavo dia”. Além disso, esse ritual da caminhada, como chamo, também pretende exibir que ela não sofreu do “mal de sete dias”, uma doença associada à contaminação tetânica do cordão umbilical ao utilizar facas, lâminas ou tesouras infectadas. Além da criança, um bom observador vê que a mãe não padeceu no parto. A recepção exitosa pelo centro de saúde confirma que o trabalho da parteira foi bem sucedido. Ouvi vários relatos de parteiras que foram, há algumas décadas atrás, chamadas para prestar esclarecimentos às autoridades policiais ou sanitárias sobre partos que haviam realizado ou de criança e/ou mulher que havia morrido. Levar sua paciente para um espaço que historicamente se incumbe de escrutinar o trabalho de qualquer profissional da saúde, popular ou não, é uma oportunidade para a parteira exibir a segurança no trabalho que realizou. Muitas parteiras que eu conheci, em Melgaço e nas regiões vizinhas, temiam passar perto dos centros de saúde, embora nunca tivessem perdido mulher ou criança no parto, como diziam, mas simplesmente pelas histórias de discriminação que elas ou suas colegas e parentas haviam sofrido em tempos anteriores. Muitas vezes, observei que a discriminação nem se devia tanto à expertise técnica das parteiras, mas simplesmente por serem mulheres com pouca escolarização formal, negras ou indígenas e, sobretudo, pobres. Porque, na verdade, os profissionais de saúde e as autoridades em geral, muito em razão da diferença de classe social, sequer sabiam que as parteiras sabiam “alguma coisa”. A meu ver, era muito interessante que o atendimento menos oficial oferecido por D. Dorca fosse reconhecido pela burocracia super oficial do estado. Ela, ciosa de seu ofício e conhecedora de seus direitos, aproveitava para angariar ainda mais capital profissional ao circular por espaços como o centro de saúde, o cartório, a prefeitura etc. Sua altivez durante toda a caminhada era, a meu ver, um belo e eficiente cartão de 9


visita, com grande potencial para animar as grávidas da vez a procurarem os seus serviços. Noto que essa velha parteira não ensinava apenas sobre o banho ou a higiene com o coto umbilical, mas sobre os meandros do Estado brasileiro e suas instituições, a biomedicina e suas hierarquias. Ao passar tão à vontade pelos corredores do centro, sendo cumprimentada por colegas da saúde, D. Dorca demonstrava que seu trabalho ia muito além da atuação no quarto de parir, na casa da mulher atendida. Ela demonstrava influência em outros espaços, tão pouco familiares e até um pouco assustadores àquelas mulheres que ela atendia. Assim, esse era um ritual de empoderamento: quando Nara voltasse, para a primeira consulta de Clarice, já seria reconhecida pela enfermeira como a “paciente de D. Dorca”, possivelmente facilitando o acesso e a comunicação. Era um ritual de socialização para a cidadania o que D. Dorca promoveu naquela manhã. Era cooperação com o SUS e os serviços estatais.

História 3 Contudo, nem só de referência e cooperação vivia a relação das parteiras com o SUS. Ainda que as parteiras seguissem as sugestões que haviam recebido nos cursos de treinamento, não tinham suas expectativas preenchidas pelos serviços de saúde. Faziam sua parte, mas não recebiam de volta a contraparte. As histórias de frustração com os centros de saúde e hospitais eram inúmeras. E elas conheciam em detalhes essas histórias de desencontro porque muitas de suas pacientes passavam pelas instituições hospitalares e depois lhes relatavam essas experiências tristes. Eram muitas histórias, coletei-as ao longo de toda a minha permanência no Pará, Minas Gerais, Pernambuco e também Guatemala. A terceira história que quero contar reúne um pouco dessas histórias tristes. Sabiam que, no pré-natal, as mulheres iam e voltavam várias vezes do centro de saúde sem atendimento. Não havia senha, não havia funcionário, não havia sala disponível. Não havia material para fazer os exames de sangue, não havia funcionário para recebê-los de volta, se chegavam era muito tempo depois da consulta que os havia pedido. Já no momento do parto, sabiam que muitas das mulheres que se encaminhavam já com dor aos hospitais, eram mandadas embora porque “não havia 10


dilatação suficiente”. Quando conseguiam “dar entrada”, sabiam que essas mulheres seriam “dedadas” inúmeras vezes para que a dilatação fosse averiguada, por vários profissionais (ou não tão profissionais, como no caso dos estudantes e estagiários de medicina) produzindo inclusive infecção no período de pós-parto; sabiam que essas mulheres receberiam “injeção de puxo” para acelerar o parto mesmo provocando muita dor, dilacerações e sofrimento; que auxiliares de enfermagem do sexo masculino (muitas vezes, vizinhos ou parentes da parturiente) fariam a preparação e a limpeza do parto e o médico só estaria presente no momento da expulsão; que curetagens aconteceriam sem anestesia como forma de penalizar mulheres que haviam abortado (espontaneamente ou não); que pressão abdominal seria realizada sobre os ventres grávidos para acelerar partos demorados; que parturientes seriam deixadas sozinhas em salas refrigeradas, leitos metálicos, estreitos e frios, sem cobertores e sem acesso à informação, contato humano ou água mineral. Por todas essas experiências consideradas negativas é que muitas das mulheres da região, não apenas da classe pobre, evitavam os hospitais e centros de saúde. Quando D. Dorca me disse, “Tem muitas mulheres que têm medo de hospital. Não vão de jeito nenhum”, ela se referia a todas essas histórias frustrantes. As mulheres não deixavam de ir ao hospital por “ignorância”, como eu costumava ouvir; mas por um medo substanciado em experiências muito concretas. Apontavam duas principais razões para evitar os hospitais: Por um lado, sentiam-se extremamente sozinhas e, por outro, achavam que as parteiras davam muito mais atenção e carinho do que os médicos no momento do parto. Como já argumentei em meu livro, “sozinha” é uma ideia bastante forte. Mais do que estar acompanhada por outra pessoa, quando pediam para não serem deixadas sozinhas, como Benedita, na primeira história, elas esperavam ser ouvidas ao falar alguma coisa; ser compreendidas e levadas a sério em suas demandas; entender as práticas obstétricas a que eram submetidas, por exemplo. Como disse Elisângela, uma paciente de D. Dorca à época: “Não quero ir para o hospital de jeito nenhum. Lá, a gente fica largada três dias sozinha”. D. Dorca me explicou: “No hospital, iam deixá-la lá sozinha para ela deixar de ser mole. As pessoas com dinheiro são bem recebidas no hospital de Breves. Mas quem não tem nada, passa bem baixo”. Ser “deixada sozinha”, portanto, não acontecia somente porque faltava equipe 11


hospitalar e sobrava trabalho, mas porque, como sugere D. Dorca, o tratamento oferecido distingue entre mulheres ricas e pobres, brancas e negras, casadas e solteiras. Ela estava me dizendo que o SUS é muito semelhante ao Brasil, já que trata os cidadãos de forma distinta. Além disso, deixar as mulheres “sozinhas” poderia ser uma prática deliberada de punição às mulheres – sobretudo as negras, pobres e multíparas – que não “se comportavam” como era esperado na hora do parto: calarse, esperar, concordar. Eu acompanho muita gestante fazer o pré-natal. Vejo o peso, vou ao posto com ela, puxo. No hospital, tem mulher que é maltratada. É diferente do carinho da parteira em casa. A parteira puxa no ombro, nas costas, nas pernas. É bom, dá menos dor. No hospital, é “Vamos. Tá na hora. Agora é pra valer. Tem que empurrar”. Amassam a barriga da mulher se o neném não sai. Rasgam tudo para sair. Parteira nunca faz essa coisa de rasgar. A criança vem arrebentando devagarinho. Não fica muito aberto depois. Une tudo. No hospital, falta é coração. (Rita Borges, Breves) Inclusive, a escolha pela parteira, quando se engravidava, era feita conforme o grau de biomedicalização: quanto mais a parteira trabalhasse de forma semelhante aos médicos – dedando, permitindo apenas o parto supino, dando ordens apressadas, impedindo a amamentação imediata, por exemplo – menos eram procuradas. As parteiras eram escolhidas pelo seu estilo. Uma coisa é ser como D. Dorca, que tinha trânsito eficiente pelo centro de saúde ou hospital, sabendo, por exemplo, com quem falar para que uma mulher fosse atendida no caso de uma complicação obstétrica. Outra coisa, muito diferente, é reproduzir as práticas obstétricas associadas aos médicos e não priorizar uma parturiente em seu momento de dor e desamparo. As parteiras, sobretudo, as muito concorridas e famosas, têm uma escuta atenta e podem reunir muitas avaliações que suas pacientes fazem dos serviços de saúde. Elas têm muitos relatos sobre o funcionamento do SUS, tanto na atenção básica (por conta, sobretudo, do pré-natal) e na alta complexidade (por conta da realização de partos normais e cesarianos). Esses relatos, dada à quantidade, variedade e a legitimidade de quem vivenciou a experiência, dotam as parteiras de uma perspectiva muito acurada sobre os serviços do SUS. Aqui, estou sugerindo que, para além do trabalho realizado nas casas das mulheres, consideremos as histórias que as parteiras 12


têm para contar sobre seus encontros com o SUS. Elas, como tantos outros terapeutas populares, têm entrado e saído dos serviços de saúde (e de justiça, de cartório, de direitos humanos, de assistência social) e podem nos oferecer um retorno bastante significativo sobre o andamento dos mesmos. A condição um pouco ambígua que mantêm – não são servidoras oficiais do SUS, mas conhecem muito bem o SUS de dentro e de fora – lhes oferece um lugar privilegiado. Funcionam, digamos, como uma ouvidora popular ou até mesmo alimentam um DATASUS popular, processando estatisticamente as experiências negativas que tantas de suas pacientes vivenciam dentro dos consultórios, salas de parto, UTIs neonatais, por exemplo.

História 4 Quero lembrar, como quarta história, que o encontro das parteiras com o SUS não acontece somente dentro dos hospitais. O SUS também vai às casas, é bom lembrar, mas nem sempre de forma exitosa. Essa história, possivelmente, a mais dramática que eu presenciei naqueles anos de 2004 e 2005, revela várias facetas do funcionamento do SUS e do seu encontro com os terapeutas populares. Mas revela, sobretudo, como o SUS percebe de forma distinta os cidadãos brasileiros, em especial as mulheres pobres em suas experiências reprodutivas. Áurea era uma moça com cerca de 30 anos. Ela tinha três filhos quando engravidou desse quarto. Nenhuma parteira sabia que ela estava grávida naquele final de 2004. Apesar de trabalhar na prefeitura de Melgaço, Áurea estava vivendo há alguns meses em Belém, para cuidar da mãe adoentada. Lá também ela estava fazendo seu prénatal, onde a médica disse, com base nos resultados da ultrassonografia, que “sua gravidez era de risco” e, por isso, seu parto deveria ser hospitalar. Na noite de 27 de novembro, D. Dorca foi chamada às pressas até uma casa de um único e pequeno cômodo com uma mesa, dois bancos, uma estante com algumas roupas e duas redes, onde as crianças de Áurea dormiam. Ao fundo, uma porta dava para um jirau e uma latrina. A luz fora cortada por inadimplência. D. Jita, outra parteira, tinha sido chamada e aguardava o desenrolar dos acontecimentos. D. Dorca puxou a barriga da moça e lhe fez o toque vaginal. Percebeu que o feto vinha de pé. A moça reclamava que não tinha 13


puxo e por isso não conseguia empurrar na hora das contrações. Com muita dificuldade, muitos minutos depois, os pés e o quadril do bebê saíram. D. Dorca apertou o ventre da moça, lhe mudou de posição, untou-lhe com óleos vegetais, fez orações, levantou a bacia e as pernas da parturiente etc. Mas a criança ficou engatada nessa posição por mais de uma hora. Áurea reclamou de câimbras, apelou ao divino, se despediu de cada pessoa presente e começou a distribuir os outros três filhos aos membros de sua família. Contou, a certa altura, que tinha sonhado com sua morte. D. Benedita, outra parteira, também foi chamada. Deambularam Áurea e fizeram mais orações e massagens. As puxações continuaram, as três parteiras tentavam todas as técnicas que dominavam para ajudar a expulsar o bebê. D. Dorca me pediu para buscar Dr. Artur, único médico do centro de saúde. Ele estava numa festa da escola, dançando animadamente e tomando várias cervejas. Com muita relutância e claramente a contragosto, ele caminhou comigo até a casa de Áurea. Nos cinco minutos que permaneceu dentro daquela casinha, disse que nenhum médico formado conseguiria realizar aquele parto em circunstâncias tão hostis: “Só uma cesárea resolve isso aí. Vou tentar encontrar um barco para levar ela pra Breves”. Não voltou mais. Repito para quem não me ouviu: Ele nunca mais voltou. Em seguida, D. Dorca e D. Benedita decidiram administrar uma dose de café forte com manteiga. Foi o que deu um poderoso “puxo” à Áurea. D. Jita sacodiu o corpo da moça de um lado e a D. Benedita, de outro. D. Dorca agarrou os bracinhos do menino e puxou seu corpo para fora. Todas viram que a criança estava cinza, inerte e boquiaberta – estava morta. D. Dorca pelejou com a placenta, repetindo ordens que já destinara à Áurea: “Vamos, minha filha, você tem que empurrar um pouquinho só para o resto sair. Vamos, me ajude. Coragem!”. Ela puxava levemente a ponta do cordão, enquanto massageava a barriga da moça. Áurea deu um último empurrão e a placenta saiu. D. Dorca cuidou de lavar e vestir a criança para o velório. D. Benedita ajudou a limpar a moça e removê-la para descansar na rede mais próxima. Logo apareceu um “caribé” para ajudar a parturiente a se recompor. D. Jita ficou pra lavar a roupa suja do parto. Áurea chorava de dor, de tristeza, mas não de solidão – estava cercada de três parteiras. De dezenas de partos que acompanhei durante meu doutorado, esse foi o único com morte neonatal. Aqui, temos que levar em conta a situação complicada da mulher, 14


Áurea. Ela tinha desrespeitado a orientação de sua médica e deixou Belém. Ela não avisou as parteiras de que estava grávida, sequer foi puxada e preparada por uma delas durante a gestação. Não contava com família conjugal, nuclear ou extensa em Melgaço para lhe ajudar. Sua casa estava sem condições para a realização de um parto. Mesmo com a expertise de três famosas parteiras, o resultado não foi a contento. Se D. Dorca tivesse encontrado Áurea no dia anterior, teria lhe encaminhado ao centro de saúde e se desincumbido de realizar aquele parto difícil. Mas Áurea foi pega de surpresa e suas contrações uterinas anunciaram um parto mais cedo do que o previsto pela médica da capital. Mas, minha questão repousa, sobretudo, na participação do médico, responsável pela atenção básica do município, único representante formal do SUS no local. Diante do quadro grave que encontrou, ele sugeriu a remoção da moça para a cidade vizinha. Dependia do barco, do combustível, maré alta, autorizações da prefeitura e disponibilidade de leito em Breves. Nada disso seria providenciado de forma célere no meio da madrugada de um sábado. Diante desse quadro maior, que ele conhecia muito bem já que não era um funcionário novato em Melgaço, por que ele não arregaçou as mangas e colocou o pouco conhecimento que tinha sobre parto normal a serviço da vida daquela mulher e de seu filho? Era isso que as parteiras esperavam dele. Era para isso que ele era remunerado pelo erário. Nenhum compromisso com aquela mulher, com seu diploma ou mesmo com o juramento que fizera em ocasião de sua formatura em Medicina na UFPA. Não quero ser injusta e culpar a morte da criança na figura individual desse Dr. Artur porque, como apontei, foram vários elementos que dificultaram esse parto. Mas me questiono se fosse a esposa do prefeito ou se fosse uma mulher branca sabidamente com recursos, Artur teria lavado as mãos tão rapidamente? Estou falando de corpos e vidas que são valorizados de forma diferente. Naquela pequena casa, as parteiras encontraram o SUS e dele aprenderam sobre o atendimento discricionário realizado pelo SUS. Como anunciei no início dessa quarta história, as parteiras não convivem com o SUS apenas dentro dos serviços de saúde formalizados, mas também nos espaços públicos, como as ruas, e privados, como as casas. E não foi bonito o que viram. Diferente de Áurea, que estava acompanhada de três parteiras e até de uma 15


antropóloga, D. Dorca, D. Benedita e D. Jita estavam sozinhas. Sozinhas como as pacientes reclamam estar dentro dos hospitais. Fora dos hospitais, essas três parteiras se sentiram sozinhas, sem o apoio daqueles que são os primeiros a lhes criticarem a suposta falta de técnica ou higiene, mas parece que os últimos a oferecer backup nos momentos de aflição. Graças somente às três parteiras, Áurea pôde manter sua vida e criar os seus outros três filhos.

História 5 Por fim, depois de relatar tudo isso, essa gama de serviços e atendimentos que as parteiras da região de Melgaço realizavam, desejo falar de um aspecto que pareceu central para elas naquela época – e talvez até hoje. Esse aspecto, a meu ver, informa sobre como elas veem sua importância no quadro de atendimento à saúde reprodutiva das mulheres e como, em contraparte, elas imaginam que devam ser valorizadas. Naqueles meses entre 2004 e 2005, um assunto perpassou muitas das conversas que tive com as parteiras. Havia um boato que muitas tentavam confirmar. Algumas parteiras haviam ouvido de autoridades locais que cada parto atendido por uma parteira, em casa ou no hospital, rendia R$130 pagos pelo Ministério da Saúde à Secretaria Municipal. Mas se queixavam de que esse recurso não lhes era repassado. Elas se entendiam como tributárias desse pagamento, já que o trabalho tinha sido feito por elas. Outras parteiras me contaram sobre um pagamento, independente do número de partos atendidos, que toda parteira passaria a receber. Seria como um “salário” proporcional ao atendimento daqueles meses ou, como um “aposento” como chamavam, retroativo ao trabalho feito pelas parteiras aposentadas, a fim de honrar a dedicação que haviam empreendido. D. Rita disse, “A gente trabalha muito, né? É muita responsabilidade atender um parto. A gente tem que cuidar da vida de duas pessoas. E não ganhar nada?”. Outras ainda contaram de cestas básicas que haviam sido distribuídas às parteiras, sobretudo à época das eleições de 2004. Algumas tinham recebido a cesta, umas tinham recebido R$50, correspondentes à cesta, D. Rita comentou que a mortadela de sua cesta veio estragada. Por fim, algumas me contavam como o “pagamento” aconteceria via os coletivos de parteiras: “Está saindo 16


pagamento para as parteiras em Breves. Falaram que quando estivesse tudo organizado na Associação das Parteiras de Melgaço, vamos receber o aposento. A Associação já tem o livro, mas o documento não foi tirado ainda. O estatuto” (Zezinha, parteira de Melgaço). Independente da veracidade e, mais importante, da concretude dessas informações, fica claro para mim como as parteiras percebiam seu trabalho como digno de ser reconhecido oficial e, sobretudo, monetariamente. Estamos falando de mulheres pobres que R$50 ou uma cesta básica faria substancial diferença no consumo calórico do mês, sem falar nos processos de empoderamento feminino diante de maridos turrões e autoritários com o dinheiro da casa (como bem temos visto nos resultados positivos do Programa Bolsa Família ao redor do país). Independente da fonte desses recursos e homenagens, elas estavam comunicando que percebiam seu trabalho como uma contribuição às mulheres de sua localidade, à saúde reprodutiva dessas mulheres e à saúde de seus filhos. Mais importante, a meu ver, elas estavam reivindicando um espaço como trabalhadoras da saúde e tencionando uma naturalização que tanto temos realizado. Isto é, tomar como natural que o trabalho realizado por elas seja voluntário, benevolente, uma doação à humanidade. Elas propunham, de forma muito inovadora a meu ver, uma separação entre serviço em saúde e caridade. Essa é uma transição histórica porque, por muito tempo, os serviços de saúde no Brasil estiveram relacionados à ajuda cristã, à doação do curador ao paciente, um sacrifício que só na vida eterna seria recompensado. Ao exigir algum tipo de pagamento e reconhecimento formal, essas parteiras estavam dando um passo importante no sentido de profissionalização de seu ofício e, porque não, na percepção de um estado laico. Apesar do boato e do bochicho, vejo aqui um pleito político que deve ser levado adiante. Há muitas formas para que reconhecimento e remuneração sejam oferecidos às parteiras, cada estado poderá pensar no seu formato.

Considerações finais Para pensarmos nas parteiras domiciliares que trabalham no Brasil de hoje em dia, é fundamental que conheçamos as reais atividades e eventos que elas promovem. 17


Assim, correremos menos risco de cristalizar uma imagem em nossa imaginação – tão urbana e tão hospitalizada – sobre como deveria ser sua atuação. Aqui, quis trazer um pouco do que eu aprendi com as parteiras marajoaras, ouvindo atentamente e levando a sério o que me contaram. Só assim é possível trabalhar com as parteiras, quer dizer, só tomando-as como trabalhadoras da saúde, comprometidas com a vida das mulheres que atendem e com a ética do cuidado. Como fui informada de que, na plateia, eu encontraria parteiras, mas também gestores e profissionais da saúde, julguei necessário não priorizar as práticas das parteiras em si, mas em diálogo com as instâncias e funcionários do SUS. As parteiras brasileiras, repito, têm muito a dizer sobre o planejamento, organização e funcionamento do SUS. Passemos a realmente escutar esses relatos, no intuito verdadeiro de aprimorar o Sistema de saúde que tanto desejamos para o Brasil.

Palmas, 1º de setembro de 2014

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