O Uso das Imagens

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Os Usos das Imagens: Estudos sobre a função social da arte e da comunicação visual Ernst Hans Gombrich

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Formato: 17,2x24,5cm Páginas: 304 ISBN: 978-85-407-0167-0 Ano: 2012 Reunião de ensaios produzidos ao longo da vida do autor, a partir da análise de obras-primas da arte ocidental, este livro discute os aspectos sociais – religiosos, políticos, filosóficos, psicológicos – das funções da imagem na arte e na comunicação visual, em um estilo de prosa claro, bem-humorado, sagaz e sempre critico e didático.


Capítulo 1

Pinturas em paredes Meios e fins na história do afresco

Apresentado como a oitava Conferência do Memorial Walter Neurath e publicado pela primeira vez por Thames & Hudson (Londres, 1976).

Neste capítulo, apresentarei algumas segundas impressões sobre um tópico que discuti pela primeira vez em meu livro Arte e Ilusão:1 tratava-se da ideia, que é mais frequente na teoria da arquitetura do que na crítica da pintura, de que a forma segue a função, ou de que o fim determina o meio. É claro, slogans desse tipo não podem nunca ter mais do que um valor heurístico: eles chamam atenção para o tipo de questão que historiadores deveriam perguntar-se quando confrontados com monumentos do passado. Reconhecidamente, nenhuma ação humana e nenhuma criação humana tendem a servir apenas a um fim: frequentemente, encontramos uma hierarquia inteira de fins e de meios. Mas podemos também notar um propósito dominante sem o qual o evento não poderia ter acontecido de modo algum. Além disso, nos assuntos humanos, os meios podem facilmente tornar-se fins, como indicado na fórmula da “arte pela arte”. Ao tentar ilustrar alguns aspectos dessa interação complexa por meio da observação da história do afresco, devo pedir indulgência em relação a vários aspectos. Então irei me ocupar dos meios, mas não serei pedante sobre a mídia. As Figuras 6 e 7 justapõem dois murais famosos, ambos pintados na última década do Quattrocento, os afrescos de Ghirlandaio na Basílica de Santa Maria Novella, em Florença, e A Última Ceia de Leonardo na Santa Maria delle Grazie, em Milão. Não adentrarei a questão da técnica experimental supostamente usada por Leonardo para evitar a necessidade de rapidez ligada ao afresco;2 na verdade, não usarei o termo “afresco” em um sentido pickwickiano ao fazer referência a qualquer pintura mural ou de teto realizada para um interior. Obviamente, precisei ser cruelmente seletivo ao escolher exemplos colhidos de alguns milênios; e frequentemente uso pontos de referência familiares mais do que os não familiares, sem, infelizmente, poder me demorar neles como merecem. Eles servem aqui como evidência para apoiar uma tese sobre meios e fins, na história não da arte, mas da produção de imagens. O fim ou propósito dominante dos dois afrescos é razoavelmente claro. A história do ciclo de Ghirlandaio, como contada por Vasari, era

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6 Domenico Ghirlandaio, A Vida de São João Batista, 1490. Santa Maria Novella, Florença, parede sul da capela-mor 7 Leonardo da Vinci, A Última Ceia, c.1495. Santa Maria delle Grazie, Milão, refeitório

um dos exemplos favoritos de Aby Warburg, que o usava para destruir a abordagem puramente estética dos historiadores da arte do século XIX.3 Foi pintada no coro de uma das maiores igrejas de Florença, cujo patrono era o banqueiro Francesco Sassetti, um associado da firma Medici, que naturalmente a queria decorada – se é que se usa essa palavra – com afrescos contando a história do santo que lhe dá nome, São Francisco. No entanto, a Basílica de Santa Maria Novella é uma Igreja

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dominicana, não franciscana, e a sugestão foi demais para os monges. No fim, Sassetti retirou-se para a Igreja da Santa Trindade e cedeu seus direitos na Basílica de Santa Maria Novella para outro membro do clã Medici cujo nome de batismo por sorte era Giovanni, Giovanni Tornabuoni. Nenhuma objeção foi feita à pintura da vida de São João Batista em uma igreja dominicana. O principal propósito do outro exemplo, A Última Ceia, no monastério da Santa Maria delle Grazie em Milão, é quase autoexplicativo. Era tradição representar a Última Ceia nas paredes de refeitórios, e nesse plano Leonardo conformou-se ao costume, embora sua concepção da cena fosse menos tradicional. Meu propósito em ilustrar esses exemplos, no entanto, não é apenas lembrar o tecido social no qual a produção de imagens estava inserida na Itália Renascentista, mas ilustrar o texto que escolhi para essas reflexões sobre fins e meios. É um texto importante, pois vem do Tratado da Pintura, de Leonardo da Vinci, uma compilação dos pensamentos do mestre, feita por seu pupilo Melzi. Nele, Leonardo ataca diretamente afrescos como os de Ghirlandaio na Capela Tornabuoni: Por que o posicionamento de figuras umas acima das outras deve ser evitado: há um costume universal, seguido por aqueles que pintam em paredes de capelas, que em muito deve ser abominado. Eles retratam uma cena com sua paisagem e construções em um nível e então vão para cima e fazem outro, mudando o ponto de visão, e então mais um terceiro e um quarto de tal modo que uma parede parece ser feita com quatro pontos de visão, o que é o cúmulo da estupidez [“somma stoltitia”] por parte desses mestres. Nós sabemos que o ponto de visão deve corresponder à altura dos olhos de quem vê a cena.4 O princípio que foi demonstrado por Leonardo, e que ele seguiu em Milão, pode ser formulado como “uma parede, um espaço, uma cena”. Isso pode fazer o historiador da literatura lembrar das três unidades da tragédia, demandadas por Aristóteles – de tempo, lugar e ação. E, como os críticos aristotélicos que fizeram pouco de Shakespeare por ignorar tais princípios, Leonardo critica ferozmente aqueles colegas que violam suas unidades, dizendo em outra nota que uma pintura com vários horizontes se parece com uma loja de mercadorias dispostas em vários pequenos compartimentos retangulares.5 Apesar do preconceito de Leonardo ter feito com que ridicularizasse algumas das maiores criações italianas em pintura, como o círculo de Piero della Francesca no coro de S. Francesco em Arezzo, deve ser dito a seu favor que a prática dos historiadores e editores da arte acabou por concordar com seu ponto de vista. Em geral, essas pinturas nos são mostradas isoladamente, no princípio de uma imagem, um espaço,

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uma cena; de fato, compilar esse ensaio me fez perceber como é raro que esses afrescos, na verdade, sejam mostrados em seu estado original, como são por sorte mostrados no livro de Eve Borsook, Mural Painters of Tuscany.6 Mas ainda que a isolação possa servir aos fins do historiador da arte e do moderno apreciador da arte, o pintor de um ciclo de afrescos deve se contentar com diferentes demandas, e Leonardo sabia disso. Sua nota continua assim: Se você me perguntar: como devo pintar em uma parede a vida de um santo que é dividida em diversos incidentes? Minha resposta é a de que você deve colocar o primeiro plano à altura dos olhos de quem vê a cena e naquele plano representar a primeira cena em tamanho grande, e então diminuir as figuras e construções nas várias colinas e planos, e, enquanto faz isso, estabelece o ambiente para a história inteira. E quanto ao resto da parede, encha-a com grandes árvores, relacionando-as às figuras, ou com anjos, se eles combinarem com a história, ou quem sabe pássaros e nuvens. Se você fizer de outra maneira, estará esforçando-se em vão, e todo o seu trabalho irá por água abaixo.7 Assim, a única concessão que Leonardo estava pronto para fazer às demandas dos patronos que quisessem a vida inteira de seu santo patrono era a de oferecer uma parede, um espaço, mas várias cenas subsidiárias em tal espaço: o que pode ser descrito como uma vaga analogia ao relato de uma testemunha ocular ou de um mensageiro em um drama unificado. O tipo de compromisso que tinha em mente pode ser ilustrado pelos afrescos do Quattrocento na Capela Sistina em Roma, mas apenas aproximadamente, pois elas estão bem acima nas paredes e têm muitos compartimentos. Botticelli, por exemplo, representou sete episódios da história de Moisés em uma única paisagem (Fig. 8), com o encontro de Moisés e as filhas de Jetro no poço ao centro, a moita em chamas ao fundo e o Êxodo apertado em um canto – uma solução que faz a pessoa pensar se o jogo da unidade vale mesmo a pena. Não surpreende que a aplicação mais consistente das demandas de Leonardo tenha sido uma tentativa de seu pupilo Bernardino Luini no afresco colossal Gólgota, na Santa Maria degli Angioli, em Lugano (Fig. 9). Este também não está à altura dos olhos, e a relegação da história da Paixão a um tipo de pano de fundo nos lembra que realmente não havia futuro algum nesse tipo de compromisso. Por que, então, Leonardo se deu ao trabalho de recomendar um expediente tão pouco conveniente? Claramente porque, para ele, a pintura tinha apenas uma meta decisiva, sobre a qual insistia em incontáveis notas:

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8 Sandro Botticelli, O encontro de Moisés com as filhas de Jetro, 1481-2. Capela Sistina, Vaticano, parede norte 9 Bernardino Luini, Gólgota, 1529-30. Santa Maria degli Angioli, Lugano

Os elementos das cenas pintadas devem tocar aqueles que a observam para que experienciem as mesmas emoções daqueles representados na história, ou seja, sentir o terror, o medo, o pavor ou a dor, a tristeza e o lamento ou prazer, felicidade e risada … se eles falham ao fazer isso, o esforço do pintor terá sido em vão.8 Esse efeito, que Leonardo considera o verdadeiro propósito da habilidade de um pintor, é conhecido como empatia. Ao confrontar sua Última Ceia, deveríamos nos incomodar com os Apóstolos, ser resistentes a Judas, resignados com Cristo, que recém havia anunciado

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Sua traição e paixão iminentes. É quase desnecessário dizer que essa experiência também demanda um tipo especial de olhar. Devemos nos concentrar, como afirma a sabedoria da linguagem, e devemos nos focar em cada uma das figuras, uma após a outra, enquanto mergulhamos no evento retratado. É para causar esse fim que todos os meios do pintor devem ser mobilizados. De modo a apreciar por completo a relação psicológica das figuras, devemos ser induzidos a sentir o espaço no qual se movem e agem. Vasari, em sua descrição da obra, notoriamente destaca, como elogio, a convincente acurácia do tecido da toalha de mesa;9 e mesmo esse mínimo detalhe deve ser compreendido como uma ajuda visual, que realça a imediatez da experiência do observador, enquanto é posto para testemunhar a histórica ocasião da Instituição da Eucaristia. Infelizmente não temos uma palavra melhor para essa sensação do que o amplo termo “ilusão”, embora, é claro, ninguém possa estar sob a ilusão genuína de ser confrontado com um acontecimento congelado. A palavra de que precisaríamos necessitaria corresponder ao termo “ficção” na literatura. A ficção pode ser vívida e convincente ao evocar um evento imaginário sem que ninguém o use para descrever um acontecimento real. Devo argumentar que, na arte e na literatura, essa resposta depende de uma coerência interna, uma consistência situacional. Foi essa coerência que Aristóteles queria assegurar com suas unidades, e Leonardo com suas insistências para que se tenha um cenário consistente em termos de espaço. A ideia de uma sucessão de cenas mostrando o céu e depois o chão acima dele era o cúmulo da estupidez porque lhe faltava essa elementar coerência situacional. A essa altura, devo retomar um capítulo de Arte e Ilusão, chamado “Reflexões sobre a Revolução Grega”;10 não para renunciar à hipótese que apresentei aqui, mas para articulá-la um pouco mais. O que argumentei foi que estaríamos colocando a carruagem na frente dos bois se seguíssemos os autores da antiguidade clássica ao recontar o crescimento da mímese, a imitação da natureza, como um mero desenvolvimento formal. O desenvolvimento pode apenas ser compreendido como um meio para um novo fim, ou seja, a evocação visual de um evento mítico. Na Grécia Antiga, mitos não eram apenas recitados em termos sagrados imutáveis; eles eram livremente bordados por poetas e colocados no palco para que a audiência pudesse experienciar o medo e a misericórdia que Aristóteles considerava a meta da tragédia. Para fazê-lo, ao dramaturgo seria preciso conceder a licença de imaginar o evento tal como deveria ter acontecido, como uma interpretação de corpo e alma de uma situação humana com a qual pudéssemos simpatizar; por isso as unidades. Acredito que era essa mesma meta dominante, de mostrar não apenas o “o quê” mas o “como” de um evento, que também levou a arte grega à observação de aparências naturais, à interpretação da expressão, da anatomia,

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10 Tumba de Sennedjem, 19ª Dinastia, c.1292-1190 a.C. Tebas, Egito

do espaço e da luz. A forma seguiu a função. Se os antigos egípcios poderiam ou não ter adquirido essas habilidades me parece irrelevante, pois teriam usado essa imagem para um propósito diferente. Isso nos traz de volta ao problema de Leonardo. As imagens nas tumbas dos antigos egípcios são certamente arranjadas em registros (Fig. 10), mas suas funções são predominantemente simbólicas, quase pictográficas, indo da inscrição hieróglifa à enumeração de atividades sobre os mortos e os julgamentos que aguardavam os mortos na pós-vida. Tais imagens devem ser lidas sequencialmente, mais ou menos como lemos um texto, e para esse processo uma divisão em registros é uma ajuda quase indispensável. Não temos murais gregos do período decisivo, mas pinturas em vasos parecem confirmar que a emancipação com relação à narrativa episódica em zonas andava de mãos dadas com a nova ênfase psicológica: basta colocar em contraste o vaso François do século VI, com seus tantos incidentes (Fig. 11), e os skyphos do século V feitos por Brygos, que mostram o episódio homérico em que Príamo pede o corpo de Heitor a Aquiles, no qual nossos olhos certamente devem se demorar nas ações dos participantes desta tocante cena (Fig. 12). Parece que o pintor Polignoto, que foi um contemporâneo dos grandes tragediógrafos gregos do século V, alcançou a mesma empatia psi-

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cológica, mas foi ainda assim incapaz de unificar suas cenas tão completamente.11 Esta, ao menos, é a conclusão a que somos levados pela descrição de dois murais em Delfos, que encontramos no antigo guia turístico feito por Pausânias.12 Seus motivos eram episódios da destruição de Troia e da descida de Ulisses ao Hades, e parece que Polignoto adaptou algo como a solução sugerida por Leonardo, distribuindo suas figuras e grupos livremente sobre um terreno íngreme para que aqueles mais ao fundo fossem mostrados mais ao alto no mural, como indicado na reconstrução diagramática de Goethe (Fig. 14).13 Há um famoso vaso grego (cujo assunto foi interpretado de variadas maneiras) que muitos acreditam refletir o método de composição usado por Polignoto (Fig. 13). Temos de fato um mural de um período posterior, as chamadas paisagens da Odisseia de Esquilina, em Roma, do século I d.C., que parecem ser uma ilustração perfeita de minha hipótese (Fig. 15).14 A demanda de que o artista nos permita visualizar o “como”, em vez 11 Clítias, Vaso François, c. 570 a.C. Museo archeologico, Florença 12 Pintor de Brigos, Príamo e Aquiles, skyphos, século V a.C. Museu de História da Arte, Viena 13 Pintor dos Nióbides, Hércules e Atena, cálice-cratera, c. 455-450 a.C. Museu do Louvre, Paris

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14 J. W. von Goethe, As pinturas de Polignoto na Lesque de Delfos, diagrama, 1803. Extraído de ˝Polygnots Gemälde in der Lesche zu Delphi˝, Gedenkausgabe der Werke, vol. 13 (Zurique, 1953)

Gregos, inimigos de Ulisses

amantes

Meleagro Ajax Térsites Palamedes Ajax

Pátroclo Aquiles Protesilau Agamemnon Antíloco

Gregos, amigos de Ulisses

Pentesileia Páris Sarpédon Memnon Heitor

Olímpo Mársias Tâmiris Pélias Esquédio Promedon Orfeu

Troianos

portadores água

Pero Nômia Calisto Autónoe Acteon Maira Iaseus Foco

Tântalo

poetas professores patronos discípulos

Pedra Sísifo rocha sem nome

obrigados a trabalhar em vão

navio

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de meramente nos dizer “o que” aconteceu, levou-nos hoje à criação de cenas banhadas em luz e atmosfera, que testemunhamos de longe; e mesmo assim os gregos e lestrigões são indivíduos cientes da destra habilidade de uma grande tradição. Precisamente porque os meios haviam sido descobertos para este fim, um novo problema surgiu ao adaptar esse tipo de composição às necessidades de um mural. Ao apreciar esse problema, devemos apenas pausar por um momento para considerar o que acontece quando entramos em um cômodo ou qualquer outro ambiente. Primeiramente, olhamos em volta para vermos onde estamos; percebemos a parede; inspecionamos um detalhe; todas essas, e muitas outras variações de percepção, requerem diferentes maneiras de escanear e focar. Para que a evocação visual de uma pintura dramática ganhe vida, devemos focar-nos nela mentalmente e escrutinizá-la de modo controlado para que interpretemos sua coerência. O que F. C. Bartlett chamou de “a busca pelo significado”15 nos faz ver a mancha azul como água e a zona brilhante como um intervalo entre as rochas. Isso pode não tomar um tempo longo, mas requer um tempo mensurável. Perceber um interior também requer tempo, mas ali olhamos em volta em uma sequência de movimentos oculares errantes que logo completa nossa orientação. Já a decoração de um quarto, quer seja arquitetônica ou pictórica, não necessita diminuir esse esforço alternativo em busca do significado. Pelo contrário, ao articular os murais e o teto, a decoração poderá estabelecer pontos de ênfase para uma rápida escrutinização. Não precisamos inspecionar cada coluna ou pilastra real ou fictícia, pois rapidamente captamos correspondências e redundâncias que nos

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15 Os Lestrigões atacando os barcos, século I a.C. De uma casa em Esquilina, Roma. Museo Profano, Vaticano

fazem perceber o elemento individual como lido. Perceba que, ao fazê-lo, nós também operamos com a afirmativa de uma coerência esperada que nos torna capazes de aceitar qualquer ficção que o decorador possa ter introduzido. Ele pode, por exemplo, pedir-nos que imaginemos estar olhando para fora do cômodo para várias vistas e pode usar, para esse propósito, exatamente os meios do assim chamado ilusionismo que era desenvolvido, se estou correto, para o propósito alternativo de evocar dramaticidade nas pinturas e provavelmente também no palco. Pois bem, os cenários da Odisseia eram originalmente parte de um esquema decorativo sugerindo uma série de aberturas a partir das quais observamos vários episódios do poema épico. Está claro que, aqui, os dois testes de coerência entram em conflito – é um curioso cômodo que parece se abrir em vários episódios diferentes separados no tempo e no espaço. Em termos abstratos, existem dois modos de sair desse dilema artístico. O pintor pode transformar a parede inteira em um retrato de uma cena só; na verdade, pode fazer do cômodo inteiro um cenário fictício de um evento imaginário. Isso é o que fez o mestre da Villa dei Misteri, próxima a Pompeia (Fig. 16). Entre nós e o imaginário, ele criou um cenário pouco profundo, concebido como algo distinto da parede verdadeira, aumentando suas figuras em uma escala que é facilmente compreensível e que tem enorme impacto dramático, mesmo que não estejamos muito certos de qual ritual está sendo realizado. Por outro lado, o artista pode salvar a coerência de sua ficção ao introduzir o clássico mecanismo do conto dentro do conto. Traduzindo em termos das artes visuais, isso significa ter uma representação dentro

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16 A iniciação de noivas nos Mistérios Dionisíacos, século I a.C. Villa dei Misteri, Pompeia

da representação. Os decoradores de Roma e Pompeia eram antigos mestres em mostrar as mudanças desse sofisticado mecanismo: figuras individuais emolduradas, a serem inspecionadas por um controlado exame, são apresentadas como parte do interior fictício inteiro, que pode abrir-se em panoramas (Fig. 17). Se os romanos usavam as leis da perspectiva para esses panoramas ou não ainda é uma questão em aberto.16 Penso que isso importa menos do que o modo como lidavam com os princípios da coerência.Vitrúvio, no Reinado de Augusto, notoriamente tomou o princípio de modo bem literal, insistindo que em murais ilusionistas o pintor deve ater-se estritamente às formas que são arquitetonicamente viáveis e que poderiam ser feitas na realidade. Ele rejeitava de prontidão as estruturas fictícias divertidas e grotescas, sem ao menos perceber que eram exatamente suas inadequações e seus paradoxos visuais que intensificavam seu caráter como ficção decorativa.17 De qualquer modo, as palavras nas quais essa canônica autoridade condenava a pintura de situações impossíveis tiveram enorme influência na história da crítica18 e podem até mesmo terem sido pensadas por Leonardo quando este atacou os pintores de murais de sua época por suas inconsistências. Logo o pintor de murais precisaria se contentar com um tipo muito mais pesado de oposição, que iria de fato mudar o curso da arte. Os cristãos não podiam ignorar o Segundo Mandamento, que lhes instruía a não fazer qualquer “imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra” (Êxodo 20:4). Sob a influência desse texto, o milagre é, na verdade, que, diferentemente do Judaísmo e da maior parte do Islã, a Igreja Cristã no Ocidente continuava a tolerar a produção de imagens em contextos religiosos. A concessão que fazia isso possível é mais bem formulada no pronunciamento do Papa Gregório, o Grande, que reconhecia o propósito didático das imagens: “A pintura é, para aqueles que não podem ler, o que as letras são para aqueles que podem”. Para simplificar, e no entanto não para, espero eu, falsificar um

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17 Decoração mural, século I d.C. Casa dei Vettii, Pompeia

problema imensamente complexo, podemos dizer que essas restrições da função da arte religiosa redirecionaram os produtores de imagens à exploração desses métodos pictográficos que nunca haviam sido inteiramente extintos. Os murais nas catacumbas romanas ilustram com perfeição a diferença entre tal pictograma e o que tenho chamado de evocação dramática. Na igreja de SS. Pietro e Marcellino, reconhecemos ao fundo cenas da Adoração dos Magos, ladeadas por Moisés Batendo na Rocha e Noé Emergindo da Arca (Fig. 18). Esse é um bom exemplo porque ninguém poderia ter pensado que a Arca, que foi, afinal, feita para acomodar um par de cada espécie, poderia ter sido menor do que o próprio Noé. É um pictograma no sentido de que a imagem de uma caixa flutuante marca a figura como Noé, e que a figura gera escassamente mais espaço fictício à sua volta do que gerariam rolos decorativos. Uma vez que a imagem foi, portanto, reduzida a um símbolo, o problema de Leonardo dos espaços inconsistentes desaparece por si mesmo. Nos murais de Vigna Magna (Fig. 19), podemos fazer a leitura de inúmeros exemplos de intervenções divinas em vários registros: acima, Moisés Batendo na Rocha, O Milagre dos Pães e dos Peixes, A Adoração dos Magos, a figura de uma pessoa em posição de um orans e mais uma vez o hieroglifo de Noé; abaixo, Daniel na Cova dos Leões, Tobias com seu peixe, a cura do homem coxo que sai de sua cama, a Ressurreição de Lázaro e o pobre Lázaro nos portões do homem rico. Claramente, o que importa aqui é o quê, e não o como, do acontecimento. Imagine como um contemporâneo dos artistas do grupo Laocoonte teria produzido a cena de Daniel na Cova dos Leões! Sabemos que a prática, censurada por Leonardo, de contar uma história sequencialmente em vários registros foi exemplificada na prin-

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18 Adoração dos Magos, século IV d.C. Cubículo de São Pedro e São Marcelino, Roma 19 Cenas do Velho Testamento, século IV d.C. Catacumba da Vigna Magna, Roma

cipal igreja da cristandade, a original Basílica de São Pedro, onde havia um ciclo de murais do qual temos pelo menos uma cópia, feita antes da igreja ter sido finalmente implodida para dar lugar à estrutura atual 19 (Fig. 20). A data e o estado exatos desse ciclo imensamente influente não podem ser estabelecidos com certeza; é suficiente dizer que aqui novamente vemos o que tenho chamado de método pictográfico. Isso é exemplificado na imagem da Arca de Noé à esquerda, bastante cedo em um longo ciclo que deve ser lido sequencialmente para que sua coerência interna venha à tona. Geralmente, associamos a decoração do início do Cristianismo a mosaicos mais do que a pinturas em murais. A durabilidade do meio

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20 Jacopo Grimaldi, Decoração mural da antiga Basílica de São Pedro, Roma, desenho, 1620. Vaticano, Biblioteca Apostolica, MS. Barb. lat. 2733, fol. 108v

tem muito mais a ver com isso, mas há outras razões conectadas mais intimamente com a mudança no papel da imagem. A pintura realista está ligada à observação da natureza em toda a sua variedade; o pictograma não implica qualquer necessidade desse tipo de servidão. Do mesmo modo que o escrivão é livre para escrever a palavra sagrada, com letras douradas em um papel púrpura, para exprimir sua veneração e admiração, também é livre o designer da narrativa pictórica para enfatizar sua mensagem com todos os recursos de esplendor visual. O que ele perde em termos de visão focada é amplamente compensado pelo ganho do olhar vago. Se aqueles que não podem ler conseguem absorver ou não o significado exato de algumas das figuras do mosaico do arco triunfal de Santa Maria Maggiore, que ainda aturdem os es20 tudiosos (Fig. 21), é algo a ser discutido, mas, do fato de que laicos e clérigos sentiriam igualmente o significado de tanto ouro e solenidade, não podemos duvidar. Como resultado, o mural, na Idade Média, tornou-se algo semelhante a um parente pobre de meios mais esplêndidos como o mosaico e o vitral. Sobre as conferências de um professor de história da arte de Harvard foi dito: “largue seu lápis e terá perdido um século”. Meu caso é pior; devo largar um punhado de séculos ao selecionar apenas um dos bem preservados exemplos do mural medieval – a abside da igreja catalã de S. Maria de Tahull (Fig. 22), na qual vemos a Virgem em um 21 trono e os três Magos, marcados com seus nomes, se aproximando. Na cúpula podemos ver as silhuetas de Abel com Deus aceitando seu sacrifício; sem dúvida havia a imagem correspondente da rejeição de Caim do outro lado. No alto há o símbolo do Cordeiro de Deus, e, embaixo de uma fila de Profetas, há animais maravilhosos que podem ser puramente decorativos. O que esse conjunto romano confirma é o que tenho procurado sugerir. Não há distinção, nesse estilo, entre o simbólico, o narrativo e o decorativo. O que chamamos de Adoração dos Magos é na verdade a Epifania, a primeira homenagem da parte de poderosos reis à Palavra Encarnada. Não é uma visualização da realidade terrena mais do que é o Cordeiro de Deus no centro. Nada em seu didático e ritualístico propósito impediu o artista de fazer total

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21 A Adoração dos Magos, mosaico, c. 435 d.C. Santa Maria Maggiore, Roma 22 A Virgem e o Menino no trono, adorados pelos Magos, 1123. De Santa Maria de Tahull. Museo de Arte de Catalunya, Barcelona

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uso da estrutura proporcionada a ele pelo arquiteto. As articulações da construção coincidem com o agrupamento de imagens. Quando é que esse magnífico e consistente uso de imagens desintegrou-se, e quais foram as pressões que levaram à ressurreição da concepção clássica que chamamos de Renascença? Esta é uma questão que envolveu as mentes dos historiadores por gerações e para a qual não há resposta totalmente correta. Um importante elemento na história me parece ser paralelo ao desenvolvimento na antiguidade clássica. Trata-se da crescente demanda pelo que tenho chamado de evocação dramática, o retorno do desejo de ser informado não apenas sobre o que aconteceu de acordo com as Escrituras, mas também sobre como aconteceu, como os eventos devem ter parecido a testemunhas oculares. Concordo com aqueles que ligam essa mudança decisiva ao novo papel do pregador popular no século XIII. Foram os frades que levaram a história dos Evangelhos às pessoas e não pouparam esforços para fazer os fiéis a reviverem e reencenarem em suas mentes. É de conhecimento geral que São Francisco celebrou o Natal em Greccio dessa maneira, de fato levando para o interior da igreja um boi e um burro, e talvez também um bebê vivo. Foi também na tradição franciscana que cresceu a importante técnica da devoção que envolve esse tipo de identificação imaginativa. O grande historiador da iconografia cristã Émile Mâle enfatizou a importância crucial, nesse contexto, das Meditações da Vida de Cristo, de Pseudo-Bonaventura, e dos milagres das peças de teatro sacro.22 Foi acusado de exagero, e sem dúvidas houve outros fatores, mas ainda penso que ele tinha a intuição correta e que a mudança de atitude com relação à narrativa sagrada engendrada pela nova concepção de ensino e sermão não pode ser deixada de fora da história da arte. Deixe-me citar aqui, como evidência, a descrição da chegada dos Magos, feita por Nicholas Love antes de 1400, das Meditações da Vida de Cristo, que apenas modernizei levemente: E assim imaginamos e dispusemos nossa mente e nosso pensamento como se estivéssemos presentes no lugar onde isso foi feito em Belém, testemunhando como estes três reis vinham com grandiosa multidão… e como desceram dos dromedários em que haviam cavalgado, diante daquela simples casa e espécie de estábulo na qual nosso Senhor Jesus nasceu. E então, Nossa Senhora, escutando muito tumulto e comoção de pessoas, imediatamente tomou sua doce criança em seus braços, e eles adentraram aquela casa, e, assim que viram a criança, ajoelharam-se, e, adorando-a e reverenciando-a, veneraram-na como a um rei… Então prestamos boa atenção à maneira de falar de ambos os grupos, a como

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Nossa Senhora, com ares de honesto acanhamento, baixando o olhar à terra, falou e respondeu triste e objetivamente às perguntas deles, pois não aprecia falar muito…23 Não preciso me estender sobre o choque entre esse relato e o afresco romanesco da Espanha. Poderia ser dito que, primeiramente, a escultura era mais flexível a essas novas demandas do que a pintura. A representação da figura individual, como respondia a qualquer situação, alcançou uma intensidade dramática com Nicola e Giovanni Pisano que nunca foi ultrapassada (Fig. 23). Mas uma vez que se sentiu que esses protagonistas precisavam de um palco convincente, de um estabelecimento espacial consistente, apenas a pintura pôde oferecer todos os meios para esse fim. É nesse ponto da história que eu colocaria a figura de Giotto (Figs. 24, 25). Ele era o gênio da narrativa que sabia como transformar o pictograma tradicional em presença vívida, e os participantes em seres com uma vivacidade de intensidade inexaurível. Portanto, minha interpretação do crescimento da maestria representacional apoia-se no mesmo princípio básico que tenho postulado para o desenvolvimento do ilusionismo na arte antiga. Seria de fato possível iniciar nesse ponto a história da arte do Renascimento e narrar o progresso em direção ao seu objetivo, no qual, é claro, a conquista da 24 perspectiva e da anatomia têm seu papel. As preparações de Leonardo para sua Adoração dos Magos (Figs. 26, 27) ilustram essas crescentes preocupações, que trazem os recursos da ciência e justificam o papel na história deste desenvolvimento que historiadores têm associado a ele desde os tempos de Vasari. Esses rascunhos foram feitos por Leonardo não para um afresco, mas para um retábulo – outra nova área na qual o novo alvo da pintura poderia chocar-se com a função tradicional da imagem visual na Igreja Cristã.25 É suficiente dizer que, de certo modo, a história de Vasari teria de ser complementada e talvez ajustada para descrever os vários meios pelos quais os artistas tentaram libertar-se desses conflitos de fins. Na história do afresco, Giotto está no começo de uma longa e complexa série de soluções problemáticas. Lembre-se de que, na tradição que herdou, os elementos simbólicos, narrativos e decorativos poderiam coexistir pacificamente com qualquer ciclo de afresco. No entanto, essa coexistência estava inevitavelmente ameaçada pela nova demanda pela evocação convincente de eventos significativos. Para reconhecer essa nova necessidade de diferenciação, Giotto introduziu uma distinção visual entre simbolismo e narração: as imagens didáticas das Virtudes e Vícios estão distribuídas abaixo em grisalha, sugerindo estatuária fictícia em vez de carne viva; ao passo que as histórias acima são contadas com todos os recursos desse novo realismo. Introduzindo desse modo o mecanismo que o historiador de arte sueco Sven San-

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23 Nicola Pisano, Adoração dos Magos, relevo, 1265-8. Catedral de Siena 24 Giotto, Adoração dos Magos, c.1306. Capela Arena, Pádua, seção da parede sul 25 Detalhe da Fig. 24

dström, em um reflexivo livro, chamou de níveis de irrealidade,26 Giotto atribuiu um status especial àquelas personificações que, na tradição ocidental, no entanto, ocupam uma espécie de “terra de ninguém” entre entidades espirituais e meras abstrações. Mas as demandas de uma narrativa completa não permitiam a ele, ao mesmo tempo, escapar daquele arranjo empilhado que Leonardo descrevia como o cúmulo da estupidez – pois esse efeito era inseparável de sua conquista. Enquanto a narrativa era concebida como um escrito na parede, concentrando-se no quê em vez do como, não havia um salto visual entre as cenas; mas quando nos é pedido que foquemos na única moldura que Alberti desejava associar a uma janela que se abria para uma cena, os múltiplos panoramas carregam consigo as sementes de sua própria destruição.

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26 Leonardo da Vinci, estudo para a Adoração dos Magos, c.1480. Uffizi, Florença 27 Leonardo da Vinci, Estudos de Figura, c.1480. Louvre Paris

Isso é assim até mesmo antes de a introdução da perspectiva tornar completamente visível essa contradição.27 Historiadores da arte não precisam ser lembrados de que, no começo da história da perspectiva, meios e fins não estavam por vezes sintonizados. O primeiro uso da nova técnica da pintura de afresco que conhecemos é a majestosa Santíssima Trindade de Masaccio, em Santa Maria Novella, Florença (Fig. 28); mas o que representa nessa muitíssimo convincente capela fictícia não é uma realidade imaginada, mas uma imagem puramente simbólica, um lembrete de uma doutrina que não pode ser visualizada de modo algum. A presença real, na arte, da

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Primeira Pessoa da Trindade, de uma forma tão tangível, não é facilmente conciliada com o Decálogo, mas não parece ter perturbado os contemporâneos de Masaccio. Na capela Brancacci de Santa Maria del Carmine, em Florença, Masaccio fez uso do esquema compartimentalizado; e também o fizeram incontáveis mestres do Quattrocento em outros locais. Mas há sinais de que, no curso do século, o método começou a parecer antiquado. Mantegna havia usado o esquema tradicional na Capela Ovetari na igreja dos Eremitani, em Pádua, mas na Camera degli Sposi no Palazzo Ducale, em Mântua (Fig. 29), ele criou um interior de impressionante originalidade, aplicando os aparatos básicos dos pintores de murais da antiguidade de uma maneira inteiramente nova, com seus panoramas fictícios e o famoso medalhão aberto no teto, através do qual as pessoas pareciam olhar, de cima, para o interior do aposento. Note o conjunto familiar acima do consolo da lareira que nos confronta de forma quase corpórea no espaço estreito à frente da parede ou cortina fictícia. Mas,

28 Masaccio, A Santíssima Trindade com a Virgem, São João e Patronos, 1425. Santa Maria Novella, Florença

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nesse quarto extraordinário, Mantegna não teve de contentar-se com os alvos narrativos da arte didática Cristã, que se mostraram tão difíceis de assimilar aos novos meios da pintura ilusionística. Quando uma sequência de cenas era demandada, o modo mais fácil de resolver o dilema ainda era oferecido pela articulação arquitetonical real de uma parede, a divisão em lunetas, cada qual acomodando uma cena com seu próprio espaço, como no quarto de Domenico di Bartolo no Ospedale della Scala, em Siena (Fig. 30). Há apenas um pequeno passo entre esse esquema familiar e a solução de Pinturicchio, que se conforma completamente à demanda de Leonardo pelas unidades da parede, espaço e cena, no belo interior de uma capela em Santa Maria Maggiore, em Spello (Fig. 31). Aqui há três cenas em três paredes: a Anunciação, a Natividade e Cristo entre Doutores. O artista não considerou nada fácil preencher essas paredes com detalhes significativos, mas a impressão geral dessas cenas espaçosas é muito mais prazerosa do que ilustrações isoladas poderiam sugerir. A capela foi completada em 1501, e devemos considerá-la um ponto de referência, pois, no começo do século XVI, o velho sistema compartimentalizado não era mais aceitável. Outros devem ter compartilhado da mesma visão de Leonardo. Há um único trabalho, é claro, que escapa ao problema e desafia a categorização por inteiro. É o teto de Michelangelo na Capela Sistina (Fig. 32), no qual as histórias ou cenas individuais não são empilhadas umas em cima das outras, precisamente porque estão em uma esfera surreal acima da arquitetura fictícia. Se Leonardo teria aprovado essa invenção ou a considerado uma trapaça, nunca saberemos. Ele dificilmente teria feito objeção às stanzas de Rafael no Vaticano (Figs. 33, 29 Andrea Mantegna, Camera degli Sposi, c.1464-74. Palazzo Ducale, Mântua

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30 Domenico di Bartolo, Atividades de um hospital, 1441-4. Ospedale della Scala, Siena, parede oeste da sala do Pellegrinaio 31 Pinturicchio, Anunciação, 1501. Santa Maria Maggiore, Spello

34), que se tornaram o exemplo padrão da decoração em afresco, com lunetas em cada um dos cômodos abobadados, correspondendo a um espaço e um tópico, senão a uma cena. Leonardo não teria qualquer razão e qualquer direito de fazer objeção ao fato de que essas cenas não começam no nível do chão, mas acima do friso. Ele havia feito o mesmo em Santa Maria delle Grazie; e de fato essa é uma precaução

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32 Michelangelo, arco da Capela Sistina, 1508-12. Vaticano

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prática, sem a qual as pinturas em murais logo sucumbiriam à fricção de multidões as esfregando ou nelas encostando os dedos. A base na Stanza della Segnatura não é original, exceto pelos relevos fictícios abaixo do Parnaso, que indicam que Rafael teve de apelar para aqueles “graus de surrealidade” que lembramos em Giotto. A ideia foi usada com convicção na próxima stanza, a Stanza d’Eliodoro, na qual cariátides fictícias carregam uma espécie de ba-

33 Rafael, Stanza della Segnatura, 1509-11, Vaticano 34 Rafael, Stanza d’Eliodoro, 1511-14. Vaticano

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laustrada através da qual olhamos para as cenas dramáticas que estão, por si mesmas, muito longe de ser simples. De fato, se analisarmos essas duas primeiras stanzas, chegaremos ao ponto de refletir que suas aparências harmoniosas são, em parte, questão de sorte – nossa, assim como de Rafael. Suas primeiras comissões em Roma envolviam a decoração de cômodos relativamente pequenos, que quase pediam por essa solução harmoniosa. Foi diferente com a Sala di Costantino (Fig. 35), pois aqui ele precisou organizar murais muito maiores sem recorrer àquela subdivisão em registros que havia se tornado antiquada e inutilizável. Portanto, Rafael lançou mão do mecanismo do conto dentro do conto. Suas cenas dramáticas da vida de Constantino são representadas como se fossem tapetes tecidos, pendurados entre nichos de retratos de Papas, ladeados por personificações que parecem em muito ser de nosso mundo da carne, uma estranha inversão da solução de Giotto. A variedade de soluções a esse problema de decoração, particularmente entre os pupilos e seguidores de Rafael e outros mestres ativos em Roma, foi recentemente estudada em um estimulante livro escrito por Catherine Dumont.28 Ao folhear suas páginas, somos apresentados às muitas variações usadas em temas introduzidos por Rafael e Michelangelo e levadas aos seus extremos pela geração seguinte – como as paredes lotadas da Sala della Giustizia, projetada por Perino del Vaga no Castelo Sant’Angelo, em Roma (Fig. 36), que nos mostra camadas superpostas de ficções imaginadas.Você será prontamente lembrado aqui dos antigos exemplos que já ilustrei, mas Pompeia obviamente não havia sido descoberta na época. Sem dúvida, pistas podem ter derivado de fragmentos de antigas pinturas encontradas em outro lugar, mas o que me traz mais interesse é a razão pela qual eram estudadas com tanto anseio. Eu diria que elas podem ser interpretadas como as respostas a um inevitável conflito entre fins e meios que vem do fato de que decoração, narrativa sequencial e evocação dramática demandam, cada uma, um modo diferente de observar. Se para Alberti era consistente com a lógica sugerir que uma pintura que represente a história devesse ser concebida como uma janela através da qual olhamos para a cena, segue que um mural de afrescos devesse ser similarmente tratado como uma abertura fictícia, como Peruzzi havia feito a partir de princípios vitruvianos na Villa Farnesina (Fig. 37), sem, no entanto, negar a si mesmo o privilégio de introduzir um friso fictício com cenas ovidianas acima da abertura e vários relevos e estátuas fictícios. Mas, em todo caso, por que deveria a ficção da abertura ser restrita às paredes separadas? Levado à sua lógica extrema, o princípio deve, de fato, negar não apenas a parede, mas o próprio cômodo, que é o que Giulio Romano fez em Mântua, em uma sensacional atração que não é, possivelmente, o cúmulo da estupidez, mas o cúmulo da loucura, quando considerado como um cômodo – precisamente por-

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35 Rafael e Giulio Romano, Sala di Costantino, c.1520-4. Vaticano 36 Perino del Vaga, della giustizia, c.1545-8. Castelo Sant’Angelo, Roma

que é o máximo em evocação dramática, o equivalente a um filme de terror em três dimensões (Fig. 38). Na história da arte, essas várias formas de confusão organizada são geralmente discutidas sob o rótulo estilístico do Maneirismo. Quando eu era um jovem estudante do assunto, esperava-se que o Maneirismo crescesse em tensões deliberadas, dilemas e paradoxos. Parece-me agora que esses dilemas não eram tão forçados como reais:

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eles eram o resultado dos meios da ilusão ultrapassando os fins da decoração e da evocação e criando problemas para o artista, o que fez de uma solução harmoniosa algo extremamente difícil, senão impossível. A riqueza, e de fato a sagacidade visual, de alguns desses esquemas decorativos não está em dúvida, mas o desequilíbrio entre fins e meios não é resolvido, se olharmos a Sala dei Cento Giorni, de Vasari, na Cancelleria em Roma (Fig. 39), com seus degraus fictícios levando a cenários fictícios; ou o Palazzo Sacchetti, de Francesco Salviati (Fig. 40), com seus painéis desconfortavelmente sobrepostos em colunas fictícias. Acredito que não podemos fazer justiça a essas complexidades a não ser que complementemos a abordagem puramente formal

37 Baldassare Peruzzi, Sala delle Prospettive, c.1516. Villa Farnesina, Roma 38 Giulio Romano, Sala dei Giganti, 1532-5. Palazzo del Tè, Mântua

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e estilística pela reconstrução dos problemas do artista no ajuste de meios a fins e de fins a meios.29 Sinto-me impelido a sugerir essa regra metodológica porque ela pode também nos ajudar em nossa apreciação do próximo desenvolvimento da história do afresco, a ascendência e proliferação do chamado teto ilusionístisco, que associamos ao estilo barroco, embora saibamos que foi iniciado no começo do século XVI, notadamente com as cú-

39 Giorgio Vasari, Sala dei Cento Giorni, 1546. Palazzo della Cancelleria, Roma 40 Francesco Salviati, Sala Grande, 1553-4. Palazzo Sacchetti, Roma

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pulas de Correggio (Fig. 41), derivadas, talvez, da abóbada de Mantegna.30 Agora, esse mecanismo pode ser também visto como uma resposta ao dilema que nos chamou a atenção. Pois se há uma área em um grande cômodo ao qual as unidades de Leonardo podem ser aplicadas sem subterfúgio e qualificações, esta é o teto. Imagine-o como uma vidraça fictícia, e você olha diretamente para o paraíso. Esse exemplo mostra de uma maneira particularmente surpreendente como os meios tenderão a gerar os fins. O que parece com outro mecanismo puramente formal ou decorativo tem a mais profunda consequência nos recursos da imagem. Ele habilita o artista a recapturar aquela unidade do simbólico, a narrativa e a decorativa, inerentes à arte medieval, que havia se desintegrado devido àquelas demandas por evocação dramática com que temos nos preocupado. No paraíso, não há distinção que possamos captar entre anjos e aquelas entidades espirituais que chamamos de personificações.31 Olhar para o paraíso é, em qualquer caso, uma experiência visionária, na qual metáforas ganham realidade, não como 41 Correggio, Cúpula, c.1526-30. Catedral de Parma

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representações tangíveis, mas como a incorporação da mensagem divina. A luz do paraíso não é luz terrena, mas radiação divina, que é vista no famoso teto de Santo Ignazio a brilhar no coração do santo, a partir do qual se reflete em todos os pontos do globo (Fig. 42). Chamar de ilusionística uma composição dessas, com todos os seus presentes seres e signos simbólicos, parece-me novamente forçar o sentido da palavra; mas nós podemos chamá-la de evocação, o que nos torna testemunhas oculares visionárias desse mistério que a Igreja deseja comunicar aos fiéis. Não há dúvida de que a possibilidade de transformar o teto em uma visão unificada também atraiu os governantes seculares, com seu anseio por apoteoses e discursos mitológicos; mas, como anteriormente, o sistema fraquejou e desintegrou-se com a chegada de um novo racionalismo e literalismo. Os neoclassicistas do século XVIII se cansaram de olhar para o paraíso e ignoraram essa forma de ilusionismo. Argumentaram que uma parede é uma parede e um teto é um teto. O Parnaso, de Anton Raphael Mengs, na Villa Albani, em Roma (Fig. 43), passou por um dos primeiros sintomas dessa atitude.Você não poderia perceber, pela ilustração, que era uma pintura de teto e não um mural. No Neoclassicismo, o quadro decorativo tornou-se gradativamente mais subserviente ao objetivo da organização lúcida, como exemplificado na Sala Etrusca projetada por Robert Adam, em Osterley (Fig. 44). Realizando uma conferência para os estudantes da Royal Academy na virada do século XIX, Henry Fuseli veio a falar dos murais perdidos por Polignoto em Delfos, que, naquela época, tinham se tornado o tópico de muitos debates entre intelectuais e artistas clássicos, que tentavam reconstruir sua aparência com base na descrição de Pausânias. Lembre-se de que o diagrama de Goethe do arranjo (Fig. 14) mostra em planos mais altos da parede as figuras mais distantes. Tomando nota desse princípio de composição, Fuseli alertou seus ouvintes para que não “atribuíssem puramente à ignorância ou à imbecilidade o que deve manter-se na firme base do princípio permanente”: Nesse cume, a arte ignora as regras prescritas à excelência inferior e … retorna aos seus elementos … Simplicidade, paralelismo, aposição, tomam o lugar da variedade, contraste e composição… Nós devemos nos inclinar a atribuir os arranjos primitivos do todo à escolha do artista e à simplicidade nobre em vez de ao desejo de compreensão.32 No decorrer do século XIX, essa preferência por métodos primitivos de composição, em vez do ilusionismo, na pintura decorativa, estava destinada a virar um artigo de fé entre os reformadores do design. Pugin emulou o tato do designer medieval, que evitava os perigos de motivos ilusionísticos; ele mencionava especificamente que papéis de parede

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42 Andrea Pozzo, Apoteose de Santo Inácio, 1691-4. S. Ignazio, Roma

nunca deveriam mostrar objetos sombreados, pois suas sombras pintadas, quando repetidas em torno do cômodo inteiro, entrariam em conflito com as sombras reais produzidas pela luz das janelas.33 Talvez os vitorianos, que pensavam de modo literal, subestimassem a capacidade da mente humana de interpretar a ficção como ficção. Quando, em 1852, o zeloso reformista Sir Henry Cole organizou uma exibição na Marlborough House de atrocidades visuais que desig-

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43 Anton Raphael Mengs, O Parnaso, 1761. Villa Albani, Roma 44 Robert Adam, Sala Etrusca, 1775-7. Osterley House, Londres

ners refinados deveriam evitar, não deixou de incluir os papéis pintados que são severamente criticados em catálogos por mostrarem “objetos naturais em posições indecorosas, cavalos e chão flutuando no ar, obje34 tos muito fora de escala”. Sombras de Leonardo! No inevitável conflito entre os meios da ilusão e os fins do design decorativo, a ilusão foi rapidamente perdendo seu posto na imagem visual. Os decoradores estavam na vanguarda daqueles que denunciavam publicamente a vulgaridade de artifícios ilusionistas, e os mestres destacados dos murais vieram a adotar seu dogma. Pierre Puvis

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45 Pierre Puvis de Chavannes, As Ciências e as Artes, 1887. Grand Amphithéâtre, Sorbonne, Paris 46 Ferdinand Hodler, A derrota de Marignano, 18961900. Schweizerisches Landesmuseum, Zurique 47 Gustav Klimt, Friso de mosaicos, 1909-11. Sala de Jantar, Palais Stoclet, Bruxelas

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de Chavannes disse que, se um artista deixasse de respeitar a parede, a parede rejeitaria sua obra (Fig. 45). A expressão que usou foi mais dramática, e é melhor deixá-la sem tradução.35 De Puvis, a mensagem foi tomada por Ferdinand Hodler na Suíça, que defendeu como o verdadeiro princípio da arte a ideia do “paralelismo” – o exato termo que Fuseli tinha usado em sua descrição dos murais perdidos por Polignoto. Mas mesmo os murais monumentais de Hodler (Fig. 46) eram robustos demais para a geração seguinte da Art Nouveau, que muito os admirava, mas que havia descoberto, no Oriente e na arte bizantina, novas fontes de inspiração – veja a decoração em mosaico de Gustav Klimt para a sala de jantar do Palais Stoclet, em Bruxelas, com seu jogo quase abstrato de formatos planos (Fig. 47). Esses designs são datados de 1905-9, e, nessa época, a crise que desordenou as unidades de Leonardo na decoração mural já havia também se espalhado para a pintura de cavalete. Mas a essa história deve ser concedido um capítulo a parte.

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Os Usos das Imagens: Estudos sobre a função social da arte e da comunicação visual Ernst Hans Gombrich

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