A terra e a lua

Page 1

A Terra e a Lua Ana Blazer 1


Há muito, muito tempo que andava preocupada com o seu estado de saúde e até com a sua aparência, mas era orgulhosa e, além disso, tinha sempre muito que fazer. - Tenho lá tempo para me cuidar! Não posso, não sei o que fazer nem como fazer! Há tantos seres vivos a depender de mim! É nisto

que penso mesmo quando me sinto exausta de tanto cansaço e desmotivação. A minha vizinha Lua, que tem andado muito adoentada, contoume, aliás muito indignada, que há anos aguarda uma consulta no Espaço Sideral. - Trabalha-se uma vida inteira, gira que gira, gira que gira, dão-nos uma carteira profissional para uma atividade imprescindível e arriscada e, quando a saúde começa a faltar, o que é que nos dizem?! - Vamos tomar nota do seu pedido. Contudo,

adianto

que

não

podemos

marcar-lhe consulta para os anos mais próximos. 2


- É verdade, foi o que me disse o arrogante do meteoróide com uma voz seca e irritante! Aquilo deve ser por andar lá à volta do Sol, a bajulá-lo! Pff, como se ele precisasse de ser bajulado, ai, ai! - Ora, vizinha, não diga isso! Todos precisamos do Sol, todos andamos à sua volta, sempre assim foi desde que o mundo é mundo - respondi-lhe, deixando-a naquela ladainha. - Na verdade, eu não acredito lá muito na Lua… - Desde que o Neil Amstrong e o Buzz Aldrin a pisaram pela primeira vez começou a ficar esquisita… Depois da alunagem nunca mais foi a mesma; a vaidade povoou todas as suas crateras, sentiu-se desejada, célebre, uma verdadeira estrela, como dizem os críticos lá pelos meus continentes, quando se referem a pessoas célebres. Nestes últimos quarenta anos pareceme cada vez mais ausente, mais distante, mais cabisbaixa. Até chego a pensar que sejam saudades do convívio com os humanos ou então foi a proximidade dos foguetões que lhe deu cabo do sistema nervoso e a deixou mais seca e azeda! Também, uma tal deceção não deixa ninguém imune: primeiro foi mistério, foi inspiração, foi companheira e musa nas noites dos amantes; foi fonte de luz, foi a artista principal no grande palco negro que os humanos admiravam com uns olhos que a tornavam maior do que todas as estrelas. Desfeita esta auréola, veio a promessa de sonho e glória, a promessa de um outro palco, agora fruto da alunagem

3


dos astronautas que continuaram a perseguir o sonho de uma descoberta singular para a humanidade.

As naves, os módulos e rovers lunares trouxeram notícias da presença de água e de hidrogénio e a lua recuperou a sua auréola de mistério aos olhos dessa mesma humanidade ao mesmo tempo que definhava na sua imensa solidão. Companheiros silenciosos, apenas a imensidão das crateras, água gelada, hidrogénio e continentes esbranquiçados… A Terra, perdida nestas deambulações, demorou algum tempo a tomar consciência de que algo de muito bizarro lhe estava a acontecer. Sentia-se quente, muito quente, sentia-se tão quente que parecia toda ela envolta em chamas! - Será que me distraí e me aproximei demasiado do Sol? - interrogou-se, acrescentando:

4


- De tanto ouvir os meus habitantes a pedir sol, quem sabe se não me inclinei um pouco mais no equinócio da primavera - lembra-se de ter pensado. Quando despertou, a Terra sentia-se muito cansada e muito frágil! Parecia que já nem tinha movimento de rotação e do de translação nem sequer se recordava! Um grupo esquisito observava-a com uma parafernália de objetos bizarros, mais bizarros do que aqueles que tem visto ao longo da sua vida sempre que teimam em analisá-la física e espiritualmente. - Na certa são cientistas! - pensou. Estava em crer que sempre motivou a curiosidade dos seus habitantes. Há muitos anos que os ouve dizer que também inquilinos de outros lugares do espaço se interessam por ela – até fizeram um filme com um tal ET, coisa meio séria meio a brincar realizado por um tal Stevan Spielberg, que conta uma história de amizade entre um menino e o tal ET; deve ser porque não se entendem uns com os outros! Precisam de amizade, nem que seja imaginada – costumava pensar a Terra, enquanto girava. Até nos momentos de eclipse se ocupava deste e de outros assuntos para se distrair, o que nem sempre conseguia. Há muito que não andava a sentir-se com a mesma alegria de outros tempos… Os seus inquilinos humanos eram muito agitados e temperamentais, essa é que é a verdade, oh se é! - Um dos cientistas, após observações minuciosas, foi dizendo:

5


- Temos aqui uns vulcões, mas estão adormecidos e não justificam a alta temperatura que ela tem… até os glaciares estão afetados por esta temperatura! - Ai, ai - suspirou a Terra - sinto- me tão mal! Salvem-me por favor! Acolho uma infinidade de espécies, sinto-me responsável por elas, por favor ajudem-me, sejam lá quem forem - suplicou a Terra. - Calma, dona Terra, deixe-nos examiná-la bem para podermos fazer um diagnóstico correto. Ora vejamos: vejo muitas marcas na sua pele, muitas cicatrizes que reduzem as potencialidades da sua respiração cutânea; há um débito nas trocas gasosas, o que explica a sua cor amarelada. - São cicatrizes negras…. -

Parecem,

parecem…

-

pensava em voz alta um outro cientista. - Al, al, al, al – ca… alcatrão! É alcatrão! Disseram-me que eu ficaria

bem

melhor

com

muitas estradas de alcatrão, praças de alcatrão, parques de alcatrão!

Bem

o

disseram,

melhor o fizeram nas minhas regiões mais ricas. Foi um tal peeling, tão forte, que me deixou marcada para sempre e com os pulmões muito pesados… - A senhora fuma? - Não… quero dizer… fumo. - Então, afinal fuma ou não fuma? 6


- Bom, … vendo bem … fumo; fumo pelos escapes dos carros, fumo pela boca de todos os condomínios, pelos aviões, pelos incêndios, pelas centrais nucleares, pelos navios … - Chega, não diga mais! Isso é que é fumar, dona Terra! Uma senhora da sua idade e com tantos outros fatores de risco… - Que fatores? - Que fatores?! Tem consciência do seu peso? Aqui, por exemplo, na região da Ásia… - O que é que vê aí, senhor… - Cientista, cientista, minha senhora. - Então senhor cientista, que tenho eu na Ásia? - Sobrepopulação, sobrepopulação é o que eu vejo e vejo também muita aridez, muita desigualdade no acesso aos recursos naturais que estão a degradar-se a grande velocidade, a grande velocidade! - E… isso é grave, senhor cientista? - Claro que é! Alterados os regimes hídricos desses ecossistemas, há uma redução de produção de alimentos, o que vai desencadear enorme pressão sobre esses recursos, pois as comunidades locais tentam compensar com uma intensificação do uso dos recursos naturais, desrespeitando os ciclos naturais de recuperação do ecossistema e…. - Por favor - suplicou a Terra - por favor, não me dê mais pormenores da minha doença que já me sinto a morrer e com saudades dos meus antiquíssimos habitantes dinossauros! Mas um asteroide dizimou-os...

7


- Não percebo o que me diz, porém percebi que toda eu estou a precisar urgentemente de descansar num SPA… - Num SPA?! Só se a saúde pela água for em águas poluídas pelos petroleiro ou em zonas de desembocaduras de esgotos! A senhora está a ficar encurralada, dona Terra! Os seus inquilinos destruíram quase todo o seu património e, lamento dizer, a recuperação não é tarefa fácil, nem mesmo com uma revolução verde… De repente, começam a aperceber-se que a Terra está a escurecer, a escurecer, a escurecer cada vez mais. Olham-se inquietos, nervosos. - Ai, não vejo nada! Que se passa? Ajudem-me, por favor! Estou a morrer! Estou a morrer! Não me deixem morrer! Fez-se noite. A Terra quase perdeu os sentidos. Com os olhos semicerrados avistou a Lua que passava entre ela e o sol. - Olá, Terra, pressenti que não estarias bem. Como sei o que é a solidão e o desespero que ela provoca, vim visitar-te; queria muito, muito que me visses para te sentires mais acompanhada. Espero não te ter assustado com este eclipse… - Adeus, Terra, vou sair da frente do sol. Contente e um tanto envergonhada devido aos seus juízos sobre a Lua, a Terra começou a sentir -se ligeiramente mais revigorada, mais confiante. Acreditou até que aquela equipa de cientistas que a assistiu poderia desenvolver um antídoto contra a inconsciência ambiental

dos

humanos.

Era

o

efeito

da

cumplicidade

desinteressada da Lua. Afinal, ela não era fútil. Era realmente mágica e não apenas para os amantes… A Terra comoveu-se. Gradualmente, recuperou os seus movimentos a um ritmo normal. Estava desejosa de dialogar com a Lua e nunca 8


mais faria juízos de valor precipitados. Quando a Lua precisasse também ela apareceria, tapando o Sol, para que a lua a pudesse ver. Esboçou um sorriso, enquanto lágrimas tranquilas corriam pelo seu rosto crestado como se fossem estrelas cadentes. Ana Blazer, abril 2012

9


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.